Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 35
Grand Line, Batalha de capitães! (Jogos Piráticos)




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Se não fosse por suas grossas paredes, não seria difícil para os moradores e demais turistas da ilha de Woo Pululu ouvirem os assobios alegres e melódicos que ressoavam pelos longos corredores da prefeitura, também conhecida como Memorial Municipal de Maximus Elephas. Ao contrário das demais construções, que não tinham ordem normalmente, o palacete era de aparência vistosa e imponente, com colunas suntuosas adornando a fachada e, grandioso na frente, a estátua do fundador da cidade sorrindo generoso alguns metros da entrada; Maximus Elephas, o elefante pioneiro que junto de seu circo itinerante trouxe boas mercadorias e vasto conhecimento dos Blues quando tudo pela Grand Line ainda era mato, hoje descansava tranquilo à sete palmos depois de criar seus filhos e netos para se tornarem experientes no ramo das batalhas de piratas, e se poderiam se considerar uma ilha de elite entre os mais diversos reinos de Paradise, era por sua causa.

Não havia pobreza, os cidadãos viviam em paz e, mesmo após décadas de convívio com as mais diversas discussões de forasteiros, graças ao sábio elefante, o dinheiro continuava entrando em seus cofres: bastou-lhe apenas uma ideia de momento, notando a necessidade de prender turistas por mais de um só dia — o magnetismo da ilha permitia que os log poses se ajustassem em exatas duas horas e quarenta e sete minutos, um tempo bastante ínfimo para vender suas roupas de palhaço e alugar hospedarias — e, puft, a pólvora das Davy Back Fights havia começado em sua ilha e, na parede da suíte principal, havia algumas dezenas de fotos de bandos piratas que brigaram e se misturaram; todos com roupas novas e alguns milhares de bélis mais pobres.

Isto posto, o cantarolar não era para menos, afinal, por mais que Baru tivesse dinheiro o bastante para fazê-lo saltitar por aí durante todos os dias de sua vida, nesse dia, em especial, não poderia se dizer mais contente do que estava: além de uma apresentação de sucesso realizada pela manhã junto de seus amados irmãos, logo poderia finalmente pendurar mais uma fotografia no gigantesco mural — e, diga-se de passagem, aquela certamente era uma das melhores que tinha.

As fotos de sua parede eram todas assim: cheias de rostos que nunca reviu, mas cada uma contendo uma porção de memórias inesquecíveis e, sobretudo, cofrinhos cheios de ouro e outras joias. As Davy Back Fights o acompanhavam desde que era apenas um pequeno elefante e desde lá seu avô o ensinara a tirar o máximo que poderia dos bons e velhos marujos. No entanto, de todas as batalhas que concluiu em sua vida, aquela estava sendo de longe a mais lucrativa: os visitantes não apenas se alimentaram como reis, mas compraram mais roupas que a maioria das demais tripulações (não poderia imaginar que tiraria a sorte grande de encontrar piratas circenses em meio a imensidão do mar) e, certamente, ainda abasteceriam suas dispensas antes de deixar a ilha e retornar para a Grand Line. Radiante, limpou o pouco de poeira que juntava nos quadros ao lado, sorrindo orgulhoso do próprio trabalho. Tantas batalhas magníficas...

— Fa-fa-fom, como somos sortudos! — riu consigo mesmo, colocando a mãos sobre a barriga e, puxando o monóculo de seu bolso direito, colocou-o sobre um dos olhos, observando atentamente sua própria imagem em uma das fotos de alguns meses atrás. Como aquele garoto ousou chamá-lo de gordo? Estava infinitamente mais esbelto agora!

— Aqui está, chefinho! — Artúlio adentrou a sala, a postura se endireitando e o sorriso se abrindo tímido ao ver o elefante se virar para vê-lo. De prontidão, Baru notou que o fotógrafo parecia mais nervoso que o habitual.

— Obrigado — disse, tomando a fotografia das mãos da zebra.

Artúlio direcionou-se à saída, apressado.

— Aqueles piratas exigiram muito de você? — perguntou Baru. O fotógrafo então parou de andar em um pulo, mas não virou-se para trás. — Está suado, deve ter tirado muitas fotos — completou o elefante.

— Não, mas eles pediram mais fotos antes de ir — mentiu, fitando a porta e mesmo assim virando os olhos para cima. Não podia ser descoberto. Não podia!

— Você está cobrando deles? Seus bolsos estão pesados.

— Apenas por algumas molduras extras, mas quem me dera que esse peso fosse dinheiro, chefinho! — a zebra riu alto, passando despercebido pelo elefante a gotícula de suor que descia pela lateral de seu rosto. — As fotos foram nossa cortesia. Afinal, tivemos um festival e tanto!

— Bom, não acabou ainda — Baru sentando-se em sua mesa e tomando seu tempo para colocar a nova fotografia em uma elegante moldura dourada. Sua demora fazia o fotógrafo querer roer os cascos de ansiedade, aguardando ser dispensado. — Como estão os preparativos para a última prova? Já foram finalizados?

— Sim, os palhaços estão apenas terminando de montar a proteção do ringue e logo irão chamar os participantes pelos altofantes. Acho que o senhor já pode começar a se preparar para ir apresentar, chefinho. Eu, também, tenho que me apressar.

Mais uma vez Artúlio tentou se aproximar da porta, mas a voz do elefante o impediu de continuar.

— Você tem certeza que não está se esforçando demais? É meu melhor fotógrafo, não posso deixar que exagere — ele levantou uma sobrancelha.

— Sabe que gosto do meu trabalho, chefe! Vamos tomar um vinho quando os visitantes forem embora, para comemorar — ele se virou, abrindo um sorriso de orelha a orelha. O elefante apenas concordou com um acenar de cabeça. — Agora, se me dá licença.

≈≈≈

Batendo um dos pés no chão de madeira, Pieri fingia escutar atentamente os agradecimentos de Baru, contudo não saberia parafrasear sequer uma palavra dita pelo elefante, que se alongava em seu discurso, nunca chegando ao verdadeiro ponto de interesse: as regras do último desafio. Após tantas derrotas, a capitã não poderia definir a si mesma como uma entusiasta de jogos piráticos e, ainda que tivesse os apreciado até então, já sentia-se completamente cansada das explicações dos elefantes apresentadores e, sobretudo, estava cansada de Woo Pululu como um todo, pois não gostava de se misturar com iguais — não era à toa que se vestia como em um livro infantil todos os dias; a atenção e olhares de estranhamento que recebia por aí eram parte de sua dose diária de vontade de viver. É claro que a vitória de seus companheiros na prova do entretenimento havia lhe dado algum ânimo de continuar ouvindo as balbúrdias dos irmãos elefantes, mas não demorou para que sua vontade de ir embora ultrapassasse qualquer outro desejo. Ah, o que não daria para estar embaixo do mar mais uma vez..., pensou consigo mesma, deixando a mente divagar enquanto cruzava os dedos para que uma bigorna caísse na cabeça de Baru e ele parasse de falar. 

No fim das contas, não foi necessário um acidente e, alguns minutos depois de um monólogo muito chato, Pieri fora trazida a força para a realidade com uma pequena cotovelada de seu imediato no braço, que a fez perceber que o prefeito limpava as poucas lágrimas que caiam do canto de seus olhos: pouco lhe importava o que faria um bicho daquele tamanho chorar, saber que aquele era um sinal de que sua palestra estava acabando foi o suficiente para fazê-la endireitar-se no lugar e voltar a escutar. Para sua sorte, a lista de regras do jogo era muito mais curta do que imaginava: não poderiam deixar a demarcação no chão e, até que o inimigo fosse derrotado ou desistisse do embate, a luta continuaria firme; somente um nocaute poderia lhe garantir a vitória.

O sorriso que surgiu no rosto da pierrô foi inevitável. Tinha uma boa chance em suas mãos.

— Vamos participar os três ao mesmo tempo? — perguntou ao elefante, olhando de soslaio para Poyo, que pulava nas pontas dos pés, aquecendo-se. Hanzo estava impassível como uma rocha.

— Sim, ao mesmo tempo — Baru respondeu — Não quero que percam mais tempo do que o necessário; já vi batalhas de capitães durar dois dias.

Pieri torceu o lado esquerdo de seu lábio, desgostosa; não duvidava daquela informação, e era exatamente porque sabia que haviam capitães orgulhosos o bastante para não desistir de uma batalha mesmo depois de dias inteiros que estava tão ansiosa (tinha certeza absoluta de que ambos, tanto o mendigo, quanto a aliada, eram certamente um desses otários). Coçou a nuca com uma das mãos, sentindo um cansaço passar por todo o seu corpo, mas não deixando sua postura tombar. Seria uma batalha longa, mas, de sua parte, preferiria garantir que iria logo para casa.

— Capitães, por favor, cumprimentem-se antes da batalha!

Pieri observou os adversários com uma das sobrancelhas erguidas e esticou sua mão direita em direção a Poyo, apertando-a com firmeza: sua mão estava gelada; suando frio. Sorriu pequeno em direção a garotinha, dando-lhe um tapinha nas costas encorajador: sabia que ela não poderia vencer, mas com sorte talvez conseguisse levar dela algumas bofetadas antes de vê-la cair no chão e isso seria o bastante para que a menininha saísse dali orgulhosa — afinal, quando dizia que estava certa de sua derrota, não se tratava de convencimento, muito pelo contrário, desde a primeira vez que vira a pequena capitã, observou nela traços perigosos em demasia e, exatamente por isso, queria tê-la ao seu lado. Poyo poderia não ser forte ainda, mas a experiência junto de sua personalidade manipuladora e astuta a tornariam mais assustadora que qualquer um algum dia e a força seria apenas uma consequência desse crescimento. Mas infelizmente não tinha nada para ser feito agora, disse a si mesma, e soltou um suspiro, porque não poderia facilitar para ela de maneira alguma (isso destruiria seu ego). Por fim, após soltar a mão da garota, virou-se em direção a Hanzo com a mesma mão esticada em sua direção e um olhar claramente desafiador, entretanto, ele lhe negou a mão, invés disso fazendo uma pequena reverência em direção às adversárias e, sem outra alternativa, Pieri tirou o chapéu e devolveu com uma mesura. Poyo nem se mexeu — estava congelada; de olhos arregalados, mas com uma visível chama em seu brilho.

— Uma última pergunta, como iremos lutar? Armas serão permitidas? — questionou Hanzo, olhando diretamente para o elefante, sem vacilar.

— Fa-fa-fom! Vocês devem lutar da maneira que desejarem, é a batalha final, logo nós não iremos nos opor a qualquer método.

— Então eu vou com as mãos-hya! — Pieri deu de ombros — Uso armamento de longa distância, não seria apropriado.

Poyo assentiu com a cabeça, concordando com a outra capitã, enquanto Hanzo manteve-se calado em seu lugar, com a expressão fechada. O apresentador, por sua vez, bramiu exultante: aquela batalha estava ficando cada vez melhor em seus olhos. Fazia tempo que não via participantes com tantos colhões quanto os daquela palhacinha.

— Muito bem! — ele bateu as palmas — Ao soar da minha tromba, vocês podem começar. Boa sorte.

— Um minuto, por favor — Pieri pediu.

Sem perder tempo, uma a uma de suas armas de fogo foram retiradas de suas roupas, sendo deixadas nos braços de seu imediato, que a encarava de sobrancelhas franzidas, sem entender ao certo o porquê dela se submeter a tanto se não gostava do capitão mendigo o bastante para dar-lhe o direito da honestidade. Isto é, Kristian entenderia se fosse um duelo contra Poyo; Pieri não a atacaria para matar, contudo, quando notou que ela estava tirando de suas botas as duas facas que guardava para emergências e até mesmo deixando o chapéu de capitã (e as duas granadas que guardava dentro dele) para trás, o sentimento que tinha não poderia ser outro senão o de mais puro temor. Hanzo não havia tirado a bainha de sua cintura e Poyo só jogara longe sua pistola. Sua capitã estava certamente entrando no campo em desvantagem e ela sabia disso desde o início.

— Você tem certeza, capitã? — o imediato questionou, incerto, olhando de rabo de olho para a capitãzinha, que recebia uma última chacoalhada de Belka antes de voltar para o ringue sobre duas pernas de pau.

— Hya-não poderia estar mais certa, Kristovsky! Na verdade, se eu estivesse mais certa que isso, talvez eu estivesse errada — sorriu largo.

— Isso não faz muito sentido — ele rebateu.

— Você andando por aí também não faz e eu não falo dos seus defeitos por aí — deu de ombros — No mais, eu quero mais é que tudo se exploda. Vamos logo para casa!

E, então, sem dizer mais nenhuma palavra, Pieri seguiu de volta para o campo, apenas alguns segundos antes que Baru bramisse alto como um trombone e, sem nem esperar um segundo, Poyo pulasse em seu pescoço como um gato furioso, mal dando tempo para que desviasse antes que recebesse um corte fundo entre o queixo e pescoço, um pouco acima da carótida. A capitã mais velha, surpresa, instintivamente a empurrou e foi para trás, colocando a mão em seu pescoço: a desgraçada realmente tentou matá-la, e logo no primeiro golpe

Uma alta gargalhada veio a sua garganta quase que de maneira instantânea. Pieri esquivou-se da gatuna uma segunda vez enquanto observava com atenção os movimentos de seus rivais e analisava por cima o campo de batalha: Poyo a encarava com raiva, indignada pela falha na execução de seus golpes e, sobretudo, ultrajada pelas risadas, e, Hanzo, por outro lado, não havia se mexido e tampouco conseguia desgrudar os olhos arregalados da figura sombria da menininha com o canivete brilhante em suas mãos. Sua expressão era de completo pavor, como se em sua frente estivesse uma figura demoníaca. Ele iria a atacar.

Num passe rápido, o capitão não respirou até que ouvisse o corte da lâmina no ar; desembainhou sua espada sem nem pensar ou enxergar e, quando percebeu, já estava de frente para Pieri, que tomara frente de Poyo para receber em uma de suas marias-chiquinhas o vento seco que derrubou o chumaço no chão. Os pierrôs deram um grito na plateia, arregalando os olhos ao ver a madeixa azul no chão e, desatenta aos subordinados, Poyo aproveitou a brecha da aliada para tentar atingir sua cintura com o canivete, mas não conseguiu, pois seu movimento fora interceptado pela mão da pierrô, que segurou a arma pelo fio enquanto, com a outra mão, virou-se rápido e acertou-lhe com um único golpe certeiro no pescoço. Ela desmaiou no mesmo instante. Hanzo engoliu seco ao sentir o olhar mortal da garota queimar sua pele. Mas avançou mesmo assim.

— Competidores, acalmem-se! — o elefante gritou pelo microfone — Iremos retirar a competidora Poyo do ringue e, após isso, poderemos retornar à luta — completou, dando um sorriso largo ao ver a troca de maldições silenciosa que ambos diziam ao retornar a suas posições originais no campo de batalha.

Não demorou mais do que alguns segundos para que Bertruska saltasse da plateia para recolher Poyo e levá-la para que Morgan avaliasse qualquer ferimento no acampamento, entretanto, de prontidão suas sobrancelhas se franziram ao constatar de que sua capitã não tinha nenhuma marca externo senão a vermelhidão do golpe do pescoço: havia sido um nocaute limpo, quase profissional. Entendeu no mesmo segundo que Pieri não era alguém com quem queria qualquer inimizade; ela sabia exatamente o que estava fazendo e como executar devidamente.

— HYA-HYA-HYA! Agora somos só nós, Sr. Mendigo! — Ela provocou o capitão, rindo descompassadamente. — Sempre soube que você era um pirata de merda, mas não imaginei que como cabeleireiro seria ainda mais lamentável. Talvez sua vocação seja mesmo puxar o saco de alguns marinheiros, não acha?

Hanzo não a respondeu, apenas continuou parado com a espada esticada, convergente a linha do corpo, esperando que Baru liberasse o embate. Ele havia abaixado sua túnica e a prendido na cintura, expondo o tronco cheio de cicatrizes e definido como um todo, embora não tivesse os mesmos músculos de alguns anos atrás. Ele tinha a mesma altura de Pieri, mas parecia infinitamente mais forte que a garota franzina.

— Imagino que eles não saibam que você precisou de auxílio em sua emboscada, né? — seu tom era jocoso, ignorando completamente os gritos de Yolanda na plateia e a feição lívida de Kristian, que, mesmo morto, por incrível que pareça, agora parecia ainda mais pálido que o normal. Seus companheiros precisavam, com grande urgência, confiar mais em si, pensou consigo mesma, sorrindo boba para o adversário — Hya-veja bem, nunca recebi os aplausos por salvar o seu rabo! — Por fim, com a arma de Poyo em mãos, ainda segurando-a pela lâmina, apontou-a em direção a plateia, onde os cães observavam a luta — E eles, sabem da verdade?

Mais uma vez, o capitão continuou em silêncio e, então, o prefeito-elefante permitiu que retomassem a batalha com um sinal de ataque curto, sem delongas. No mesmo instante, Hanzo avançou em direção da garota que, por sua vez, sorria em escárnio, convidando-o para atacar mais e mais. Pieri sabia que, se desse um passo em falso, ele lhe cortaria para matar — mas isso não a assustava de verdade; ao invés disso, sentia-se emputecida com sua atitude.

— Ajeita a postura e empunha essa coisa direito-hya! — disse, em alto e bom tom, enquanto sorria derradeira, embora desviasse dos golpes só por um triz. — Mostra pros seus tripulantes que você não consegue manter sua palavra e usar só as mãos na batalha!

Em resposta, Hanzo continuou intrépido e, dessa vez, conseguiu atingi-la com um chute em seu ventre, derrubando-a na areia do ringue. Pieri gemeu de dor, mas não teve tempo de fazer mais do que isso pois teve de rolar a direita para desviar de outra investida que quase a atingiu na cabeça. Ao menos dessa vez meu cabelo continuou intacto, consolou a si mesma, percebendo que durante a fuga deixara o canivete cair de sua mão e que agora ele estava levemente soterrado pela poeira que havia subido. Resmungou baixo; dos males, o menor.

Com um pulo levantou-se, colocando os punhos fechados próximos a face em posição de luta, observando Hanzo, que já corria em sua direção com os olhos avermelhados de irritação. Ela poderia gargalhar. O capitão-mendigo não apenas era um inimigo a altura, como suas técnicas estavam muito acima de seu conhecimento; isto é, não era para menos, tendo em vista a diferença de idade e experiência, no entanto, mesmo reconhecendo sua habilidade, Pieri não poderia deixar passar que, por estar preso em seus próprios delírios, Hanzo se tornava um alvo fácil, com golpes limpos e decisões previsíveis demais. Ele a subestimava e, ainda que com o ímpeto de derrotá-la, não dava-se ao trabalho de a considerar uma inimiga à altura: a via como uma pirralha, e era isso que o levaria a derrota.

Dessa vez, deixou-se ser derrubada com outro chute, fazendo o capitão recuar.

— Porra, Capitão-hya! Vai ficar só me derrubando, em vez de terminar o que começou de uma vez? — caçoou alto, apontando o chumaço de cabelo restante ao mesmo tempo que o observava distante de si, evitando avançar. Pieri então se ergueu, encarando-o diretamente nos olhos enquanto andava em sua direção. — Não que eu me importe em parecer louca, mas, vamos combinar, esse estilo novo é além do desleixo — piscou e, sem perder a postura, passou a correr em sua direção, ziguezagueando e pulando em sua própria base de luta: com um movimento rápido atacou-o diretamente com um soco no lado direito de sua face, forçando o capitão a defender-se com a mesma mão que empunhava a espada e, nesse instante, com a mão que lhe restava, lançou um grande punhado de areia no único olho bom de seu inimigo. — Pode confiar em mim de olhos fechados. Irei guardar todos seus segredos, capitão-hya!

A pirata riu alto e, aproveitando a distração que havia criado, desferiu um chute certeiro no peito de Hanzo, empurrando-o diretamente para o chão na direção oposta de sua espada, que fora lançada a alguma distância dos dois. Ela não era alta e tampouco fisicamente forte; normalmente se aproveitava das oportunidades e as ferramentas que carregava consigo para subjugar seus adversários, não obstante, como naquele momento não havia nada em seus bolsos, para não estar desprotegida, utilizava de sua maior e mais poderosa habilidade: a esperteza e, acima disso, a ingenuidade de quem tinha o descabimento de a subestimar. (É claro que suas botas com chapas de metal no solado e ponteiras de ferro poderiam acabar aquela luta ali mesmo — apenas um chute no lugar correto e Hanzo dormiria por algumas horas, sem sombra de dúvidas — entretanto, ganhar daquela forma já não lhe parecia mais tão interessante quanto poderia).

Com um sorrisinho ladino, chutou o homem diretamente no estômago algumas vezes, forçando-o a cuspir um pouco de sangue no momento em que se levantou. Talvez isso fosse o suficiente para deixar de subestimá-la?, pensou e, embora não se importasse em surrá-lo mais um pouco em prol de sua própria honra — pois, de fato, era apenas sobre aquilo que essa batalha se dava —, ao vê-lo levantar-se trêmulo no chão, erguendo o peso do corpo nos braços e alcançando a espada ainda com o olho entreaberto, recuou um passo, permitindo que se estabilizasse.

— Não deveria ter tirado minha espada do ringue, pirralha? Quero dizer, se deseja ter alguma chance de me derrotar — o homem provocou-a, franzindo o cenho e segurando a arma em frente ao corpo com as mãos firmes, mas tiritando de puro ódio.

— Eu não seria tão baixa, senhor, isto é, não a ponto de retirar seu único meio de defesa.

No mesmo segundo, o capitão investiu com a espada como se fosse atingi-la pela direita, mas quando Pieri se distraiu para se esquivar, ele largou a arma no chão, metendo-lhe um soco certeiro no nariz com a mão esquerda. Seu rosto foi para trás com o impacto, deixando o sangue espirrar em uma parábola no ar — mas ela não deixou de sorrir.

— Covarde — Pieri cuspiu, segurando-o com força pelos braços e imediatamente erguendo seu joelho em direção a virilha do homem e o golpeando.

Hanzo encolheu-se com a pancada, sentindo o sangue descer da face e o ar sumir dos pulmões, mas não demorou mais do que alguns segundos para ignorar por completo a dor e correr em direção a sua espada, tomando-a em mãos e a apontando em direção à sua adversária — certamente essa pancada surtiria mais efeito após a adrenalina deixar seu corpo, mas isso não era problema dele por agora. Ainda sorrindo, Pieri não deixou que o olhar assassino do inimigo a amedrontasse e, em vez disso, continuou desviando dos golpes que ele desferia, porém, dessa vez o "por um triz" não era o bastante para se safar de cada um deles, fora que já sentia sua roupa colar no sangue coagulando da pele arranhada, o que dificultava ainda mais sua movimentação. Em sua cabeça, lembrou-se por um instante da Ilha dos Homens-Pássaros, onde o vira lutar "a sério" pela primeira vez, entretanto, ela não poderia dizer que o ódio de outrora era tão corrosivo quanto o de agora: antes um fantoche, com ataques frios e certeiros, no momento seu padrão tinha mais velocidade e, apesar dos movimentos não perderem a previsibilidade, eles adquiriram também uma força descomunal, como se a fúria tivesse tomado o lugar do senso e a cada talho aumentasse a potência de seu corpo.

O burburinho da plateia de piratas não existia mais. O ritmo alucinante da batalha os impedia de torcer, mas com a súbita mudança de Hanzo, a atmosfera se tornara tão tensa que todos pareciam desprendidos da realidade, vendo toda a situação como se não os conhecessem mais. Ninguém tinha coragem de falar nada — os cães, com exceção de Nicholas, que já havia presenciado algo parecido com seu atual capitão anteriormente, pareciam catatônicos no lugar e os pierrôs estavam empoleirados em suas cadeiras, observando atentos cada vez que Pieri era golpeada e também a trilha de sangue que deixava ao caminhar. Ela estava lutando para morrer sorrindo, como sempre fizera, pensavam. Só que seu olhar parecia mais perdido a cada instante.

Por fim, quando a espada do capitão foi amparada pelo pequeno canivete que Poyo deixara para trás e a pirata aliada continuou enfurecida empurrando-o para trás como igual, os gatos que restaram assistindo não puderam reagir de outra forma senão com um suspirar aliviado: no fim das contas, eram e sempre seriam perdedores, mas sua capitã se encontrava a salvo e sem qualquer ferimento fatal na tenda. Os problemas futuros eram do futuro: por ora, não poderiam estar mais plácidos. Contudo, embora a maioria estivesse em paz, também foi deles que uma súbita e aguda fonte de som ecoou pela arena: Hiroshi, em um lampejo de coragem e com o peito ardendo, gritou ao capitão dos cães para que fosse adiante sem desistir e, ao passo que Belka avançara para lhe golpear, Flint segurou seu pulso, impedindo não só que ela o encostasse, como também que o garoto notasse sua hostilidade.

No campo de batalha, Pieri contorceu o lábio e fechou os olhos, sentindo o próprio corpo se acalmar. Ela já respirava com dificuldade, sentindo o sangue descer por sua garganta a cada lufada de ar e as mãos tremerem devido a perda de sangue e a dor que sentia em forçar o fio da lâmina contra a própria pele: não desmaiaria, certamente poderia se manter por muito tempo ainda de pé, mas essa não seria uma decisão sábia, visto que agora uma quantidade de areia considerável penetrava o corte em sua mão direita e não demoraria muito para que os ânimos abaixassem e uma dor terrível tomasse todo o seu corpo. 

Seus demais ferimentos eram superficiais, o que implicava que não morreria ou sequer perderia a força tão logo e, se estivesse com uma faca maior, poderia dizer com convicção que suas chances de vitórias eram maiores do que as dele, todavia, infelizmente o pequeno canivete não parecia mais exercer seu serviço com a mesma qualidade de antes e não demoraria para que a pressão imposta pela espada de Hanzo fizessem-no quebrar em duas partes. Estava em clara e completa desvantagem. A lâmina cederia, mas ainda assim não se sentia propriamente perdedora.

A dor não lhe incomodava, pois, a este ponto, seu inimigo também encontrava-se em um estado tão desnorteado que não havia como não sentir-se a verdadeira campeã daquele embate; ela havia apanhado, sim, mas desde o primeiro momento teve Hanzo em suas mãos; ele aceitou o seu ritmo e dançou conforme seus passos, não deixando passar sequer uma de suas provocações e, mesmo em seus ataques mais elaborados, eram as suas passadas que os olhos da plateia seguiam pelo campo de batalha. Pouco atacou, mas quase todos os ataques que recebera foram no momento em que desejou ser atacada e, dessarte, estivera acima do tabuleiro durante cada segundo, dominando o jogo sem precisar sujar suas mãos. Ainda que não fosse forte, tinha esperanças de que poderia vencer em uma luta mano a mano, mas aquele já não era o caso de agora. Então, no momento em que o canivete se rompeu e ela se desvencilhou do ataque indo para trás, sorriu para si mesma, sentindo as pedras em seus pés. 

— DESISTO-HYA!

Dando um salto para trás e estendendo os braços para cima, Pieri berrou, acometendo todo o estádio em um único arfar estarrecido, esquivando-se do último golpe de Hanzo já fora do ringue de luta. A espada encostou no chão, sendo segurada pelos cansados braços do homem, que encarava lívido a feição jocosa da palhaça; ainda que vencedor, não sentia o menor sabor de sua conquista, muito pelo contrário, sua boca amargava ao perceber o quão fora feito de tolo.

O jogo havia acabado, ela havia saído do ringue.

— Parabéns, capitão!

E reverenciou ao homem, tirando um chapéu imaginário de sua cabeça e cruzando as pernas enquanto se abaixava, certa de que deixou o palco prematuramente porque a cena já havia conquistado.

≈≈≈

— Por quanto tempo eu dormi? — Poyo perguntou ao médico, que estava sentado na cadeira da mesa principal, olhando-a de sobrancelhas franzidas. Não levou muito tempo para que notasse a presença de Belka ao seu lado e a luz tênue do crepúsculo vinda da porta aberta da tenda.

— Você tem uma sorte fodida. Hanzo levou o frutinha, não Flint. Acabou.

Ao ouvir dela não só sobre a desistência de Pieri e vitória de Hanzo, como também sobre a perda de seu mais recente tripulante, a feição de Poyo não mudou e tampouco sentiu dentro de si qualquer ansiedade; apenas assentiu diligente e levantou-se da cama em silêncio, passando a mão onde havia sido golpeada. As memórias da batalha queimavam vívidas em sua cabeça e o gosto de ter sido derrotada sem sequer ferir sua adversária o suficiente para atrapalhá-la era tão azedo que não tinha forças para conversar com os subordinados. Sentia-se em frangalhos em todos os aspectos — da mesma forma que sua imediata dissera, ela nunca tivera chances de vencê-la e deveria ser grata por ter seu suporte porque era o que restava para fracos como ela: tinha de juntar as mãos e orar a qualquer Deus que quisesse ouvi-la, pois, de fato, poderiam continuar no mar. 

No entanto, embora bem no fundo estivesse revoltada, o sentimento de pura resignação era o que realmente tomava seu peito naquele momento e, com ele, a capitã se levantou da cama em um solavanco, imediatamente tomando suas botas do chão. Precisava quitar suas dívidas o quanto antes.

— Onde pensa que vai, pirralha?

Belka questionou, mas Poyo já estava longe demais para que pudesse respondê-la: uma vez que se vestiu, ela marchou firme para fora da tenda e, sem dizer sequer uma palavra, desapareceu.

— Você não deveria contar as coisas para ela desse jeito — Morgan suspirou, levantando-se da cadeira. — Parece que não conhece a capitã que tem.

— E você deveria impedi-la de sair andando depois de apanhar! — ela censurou.

— Ela não está machucada. Com o ego ferido, certamente, mas nada além disso.

Consternada, a gata então deu de ombros, crispando os lábios em uma expressão desgostosa; a garotinha já estava longe demais para que valesse seu tempo correr atrás dela e, ainda que não tivesse dúvidas de que a alcançaria com facilidade caso tentasse, estava exausta demais para fazê-lo — em outros tempos, talvez, mas após a chegada de Hiroshi na tripulação, nenhuma besteira que Poyo fizesse lhe parecia tão desagradável a esse ponto. Se voltasse com um elefante em seu encalço, paciência, ao menos seria mais confiável do que aquele adolescente remelento.

Já a alguns bons metros de distância, Poyo caminhava o mais rápido que suas perninhas poderiam alcançar, não porque temia ter Belka em sua cola, mas porque tinha pressa de chegar onde deveria estar. O barulho das cigarras já podia ser ouvido e as luzes das ruas já estavam se acendendo, o que não podia ser um bom sinal para ela, uma vez que, junto disso, notava que não havia quase nenhuma tenda ocupada e tampouco woopuludenses desfilando com suas roupas apertadas. O jogo parecia ter mesmo terminado, e não havia nada que pudesse ser feito sobre isso. Longe de si, a conversa deixada para trás não a interessava nem um pouco e, mesmo que pudesse ouvi-los discutir alto ainda, não tinha tempo de se importar, porque, se não se apressasse, seria obrigada a deixar uma ilha novamente em débito com Pieri. Estava rumando o cais, e por mais tortuoso que o caminho parecesse, seus passos eram firmes e nem mesmo quando notou que o píer onde desembarcaram era mais longo do que se lembrava, ela se deixou levar e, ao ver o Diabo-Negro ancorado, deixou escapar um suspiro de alívio.

— SENHORA PALHAÇA! — gritou alto, acenando para a embarcação.

De pronto, a conversa paralela que ocorria no terceiro navio da frota, o dos Cães, se findou. Talvez por alguma confidencialidade, ou apenas porque temiam a sua reação após a derrota no campo de batalha, nenhum deles conseguiu reagir senão com um breve acenar de sobrancelhas para o capitão, que fechou o semblante e deu as costas.

— Vocês viram a Pieri? Ela não pode ir embora antes que eu lhe pague! — Poyo insistiu.

— Poyozinha — a voz de Shari soou detrás de si, e em seguida ele encostou a mão em seu ombro para que se virasse — Aconteceu alguma coisa? Flint e Bertruska estão no navio, posso chamá-los para você.

No entanto, ao invés de uma asserção, um soluço nervoso escapou da boca da capitãzinha, que não levou um segundo para desabar em um choro descomunal, segurando-o pelo colete. — Senhor Macaco!

— Ei, pirralha, está com dor em algum lugar? — questionou ele, puxando de seu bolso um lenço e entregando em suas mãos.

— N-não! — ela respondeu, segurando o choro e secando as lágrimas que caiam de seu rosto — Que susto, achei que já tivessem ido embora...

— Não vamos sair enquanto a Capitã estiver em tratamento. É ela quem navega — Shari a acalentou, fazendo um breve carinho nos cabelos soltos de Poyo — Ela está no consultório agora. É importante?

— Muitíssimo importante! Preciso pagar minha dívida, Senhor Shari! — Ela puxou o catarro. — É um caso de vida ou morte!

Shari deixou escapar uma risada nasalada; Poyo era tão exagerada quanto Pieri e isso o lembrava da época em que conheceu sua capitã, quando ela também tinha cerca dessa idade — Pois bem, siga minhas instruções, então.

Já com menos pressa, Poyo se atentou às ordens desnecessariamente, isto é, ao menos em seu ponto de vista, complicadas de como poderia entrar no Diabo-Negro e, depois de repetir para si mesma quantas vezes deveria bater no metal e, principalmente, o tempo e duração entre uma batida e outra, deu-se por satisfeita de explicações e sentia-se mais do que preparada para fazer por conta própria — onde já se viu, fazer uma grande capitã passar por códigos bobos como aqueles... Quando estava junto de Pieri, ela não precisava dessas formalidades idiotas, amaldiçoou.

— Qualquer coisa, estarei trabalhando no navio de vocês, até segunda ordem — ele piscou, tomando a maleta de ferramentas que agora descansava sobre a madeira.

Assim que Poyo saiu saltitante pelo cais, Shari deu as costas para voltar ao seu trabalho, mas não sem antes lançar um sorriso ladino para os cães: — Uma boa viagem aos fofoqueiros! — gritou.

Sem delongas, Sherikan, Fang e Yun deram um pulo no lugar, se empurrando para se distanciar do parapeito e voltar ao trabalho, contudo, enquanto o faziam, mal perceberam que seu capitão continuava plantado atrás de todos, igualmente ouvindo a fofoca e, ao passo que saíram correndo, quase o pisotearam pelo chão. Um grito de dor pôde ser ouvido por todo o cais. Shari gargalhou alto, e então partiu cantarolando em direção a carniça enquanto o bando rival se dispersava em suas atividades e ele próprio girava uma chave de fenda entre os dedos da mão mecânica.

— Shari! — uma voz o interrompeu.

O macaco olhou para trás, reconhecendo de pronto o garotinho que anteriormente estava na tripulação de Poyo, agora sozinho no parapeito do Sol Nascente. — Hum? — Meneou com a cabeça, sem se virar.

— Você disse que o Flint estava no navio? — ele perguntou, bem baixinho.

— Disse sim, mas por que está sussurrando, garoto?

— Eu preciso entregar a bagagem dele, mas não quero que o Hanzo veja. Ele queria que tivéssemos jogado no mar...

— Que cuzão do caralho! — Shari deu uma única gargalhada; nunca gostara do capitão dos cães, mas achava especialmente irônico um homem que se dizia tão firme ter uma atitude como aquela. Será que ele não era um bom perdedor? — Venha comigo, garoto! — respondeu, logo tomando a mala de mão que Hiroshi jogara do barco. — Tem mais alguma coisa? — perguntou.

— Só a besta, mas eu posso levá-la.

Depois disso, ambos seguiram em direção ao barco.

≈≈≈

— Eu rogo em nome de todos os palhaços, mesmo aqueles que já se foram... HYA!

No consultório do Diabo Negro, Pieri resmungava uma reza curta quando, sem piedade, Franz encostou o algodão molhado com medicamentos em um de seus ferimentos abertos, controlando sua risada, pois não conseguia deixar de achar engraçado a tão estranha forma de sua capitã demonstrar suas emoções. Ela estava sentada sobre a maca baixa, e, ao contrário de pacientes normais e independente da gravidade de seus ferimentos, não deixava que sequer uma lágrima caísse; pelo contrário, gritava para que elas voltassem para dentro de suas órbitas enquanto cantarolava músicas circenses em looping, como se aquela fosse a única forma de tranquilizá-la. As entidades que homenageava eram todas imaginárias, algumas criadas ali mesmo dentro do consultório, talvez pelo calor do momento, ou então pela dor que sentia quando seu médico limpava cada um de seus machucados. Ainda que tratar os ferimentos de sua capitã não fosse um cenário ideal, isto é, não desejava em momento algum que ela se machucasse de alguma forma, Franz não poderia negar que ela era uma de suas pacientes favoritas, pois nenhuma consulta era entediante e, sobretudo naquela, poderia provocá-la pelo beijo que selaram durante a apresentação anterior.

— Você quer que eu dê um beijinho no seu joelho para sarar? — ele provocou, rindo maldoso quando Pieri soltou outro gritinho de dor, já que ele se aproveitara de seu constrangimento momentâneo para encostar o algodão cheio de álcool no corte da maxila, um dos mais fundos e que ela mais postergara a limpar. — Agora aguenta — instruiu, limpando o machucado. A capitã batia as pernas no ar de maneira assíncrona e tremia os braços de um lado para o outro, prolongando um "iiii" agudo com sua garganta.

— Franz, cante comigo! Um elefante incomoda muita gente, mas um mendigo incomoda muito mais...

— Dois elefantes incomodam muita gente, mas um mendigo incomoda, incomoda muito mais!

Franz, com uma seringa em mãos e preparando o local para receber a sutura, acompanhava a capitã em seu riso estridente; o tempo nunca estava ruim para rir um pouco e cantar cantigas tão educativas. Em conjunto, continuavam a canção: — Quatro elefantes incomodam muita gente, mas um mendigo...

— Vocês acreditam que ela 'tava batendo em Código Morse no diabo negro?!

A porta fora aberta abruptamente, mostrando a feição jocosa do imediato, que gargalhava tão alto que poderia ser ouvido em qualquer canto do submarino.

— Hya-Kristoph! Estávamos na parte boa da música!

— Pois bem, eu não queria atrapalhar a sessão de tortura de vocês — ele franziu o cenho e apertou os olhos — Volto mais tarde, se não querem saber...

— O que ela estava dizendo? O que ela estava dizendo?

De repente, antes que Kristian pudesse fechar a porta do consultório, Yolanda veio correndo e gritando da cozinha, derrubando não só o imediato no chão, como também a si mesma e uma figura que, a princípio, nem Franz e nem Pieri notaram: era Poyo, com as bochechas vermelhas como um pimentão e as sobrancelhas unidas no centro da testa.

— Céus! Já basta ter que cuidar de um ferido! — Franz se levantou, correndo para oferecer a mão aos visitantes.

— Você jurou pela sua vida que não contaria a ninguém! — Poyo gritou, dando um tapa no braço do zumbi.

— E eu lá posso jurar por algo que nem tenho? — Ele mostrou a língua azul, e a capitãzinha revidou com um dedo do meio levantado. — Ela disse, "Abra para a jumentinha"! O Shari sacaneou ela.

— Que filho da puta! — Yolanda pontuou, enquanto Franz deixava escapar uma risada alta.

— Eu achei engraçado — Kristian deu de ombros — Você não entenderia o senso de humor dos mortos, Yolandinha!

— De que você precisa, Poyo-hya? — Pieri interrompeu, levantando-se também da maca e pousando as duas mãos na cintura, inclinando a coluna para observá-la mais de perto: não importava se seu tratamento estava incompleto, vê-la acordada tão cedo depois de seu golpe era algo mais importante do que seus machucados agora — Você está se sentindo bem? Franz pode analisá-la, se quiser.

— Pieri, cavalo que não corre é enviado para o abate, aprendi isso na fazenda! Estou ótima, só preciso encher o bucho — respondeu. Mesmo que ainda sentisse as pernas fraquejando, não admitiria na frente de todos que realmente precisava de mais algum descanso (além de que certamente sofreria nas mãos de Morgan mais tarde, caso ele descobrisse que ela andava se consultando com outro médico). — Falando nisso! Eu vim pagar minha dívida.

Franz, observando a capitã afastar-se de seu tratamento, caminhou em direção às gavetas onde guardava seus medicamentos, vendo de soslaio as mãozinhas de Poyo tremerem um pouco à medida que falava. Com um comprimido em mãos, foi ao encontro da garotinha, lhe servindo um copo de água e medicamento, antes que pudesse retornar a se explicar (assim que a medicasse, ao menos Pieri permitiria que terminasse sua sutura em paz).

— É uma vitamina, tome, por favor. Vai fazer o cansaço ir embora! — disse. A garotinha o olhou um tanto desconfiada, mas não negou o medicamento, engolindo de uma única vez com todo o copo de água. — E, você, capitã, fique quieta ou irei dopá-la! — Franz completou.

— O que é "dopá-la"? — perguntou Poyo.

— Colocar para dormir — Pieri gemeu. — Ele quer me matar, socorro-hya.

— Que forma estranha de se falar "matar" — ela deu de ombros, fazendo um beiço — Apesar de que, na fazenda, a gente falava "abater"! Você tinha entendido antes? — perguntou e, sem dar uma pausa para recuperar o fôlego, tampouco para deixá-la responder, acrescentou: — Eu deveria dopá-lo também, Senhorita Pieri?

Os pierrôs ficaram em silêncio por um breve segundo, até que todos explodiram em uma gargalhada escandalosa; mesmo Franz, que ainda estava concentrado em seu procedimento, precisou soltar as agulhas com as quais dava os pontos para recuperar-se, sentindo o rosto vermelho de tanto que ria.

— Hya, eu estava brincando! — Pieri interferiu, em meio à própria risada — De qualquer forma, de qual dívida você está falando? O log pose, os mapas que roubou, ou ter salvado sua bunda hoje?

— Você não salvou merda nenhuma, perdeu o jogo! — Poyo bateu o pé.

Mais uma vez, os piratas aliados caíram em uma alta gargalhada e, no que lhe diz respeito, a capitãzinha apertou as sobrancelhas, sentindo seus olhos lacrimejarem por não conseguir entender o que se passava naquele bando de adultos.

— Se tivesse visto a luta, você entenderia, Poyozinha! Nós também achávamos que a Pieri estava maluca — Kristian explicou, soltando uma risadinha de canto 

— Não estamos rindo de você, muito pelo contrário. Quando você vê-lo, irá entender — acrescentou Yolanda.

— Hanzo saiu muito machucado? — questionou, curiosa, as informações não fazendo sentido em sua cabeça. Isto é, Pieri havia desistido por ter apanhado demais, certo? Como ela poderia ter perdido e vencido ao mesmo tempo?

Em resposta, a pierrô apenas sorriu, meneando a cabeça em um pequeno sim, permitindo que o trabalho de Franz fosse finalizado.

— Bom, que seja — Poyo desviou o rosto, ainda embicada — Eu vim avisar que vocês irão jantar na carniça hoje! Sem opção de recusar! 

E apontou o dedo no nariz rosado da capitã, como se a intimasse. Desengonçada, Pieri recuou o tronco e cabeça, encolhendo-se no próprio queixo em genuína confusão e, ao ver Poyo ir embora correndo pelo submarino, trocou olhares para com seus tripulantes, como se perguntassem a eles se sabiam algo sobre aquilo. Não obstante, nenhum deles foi capaz de respondê-la antes que Poyo retornasse correndo a porta, segurando-se no batente para não sair deslizando no chão liso. Mais uma vez, ela apontou seu dígito:

— E terminem com isso logo! Eu ainda não avisei o Flint, além de que eu quero ver essa história do mauricinho com meus próprios olhos!

Em seguida, ela saiu correndo pelos corredores outra vez, deixando os pierrôs com a mesma expressão de confusão de antes (embora os motivos se divergissem, dado que, em sua mente, Franz só conseguia pensar em quem diabos era o "mauricinho"). 

≈≈≈

Apenas um pouco mais tarde, quando Pieri já estava devidamente costurada e seu corte de cabelo "Joãozinho" já havia sido explicado à capitã mais nova, todos subiram ao cais e, por coincidência, todos os gatos estavam sentados na orla, apenas esperando Poyo retornar. As luzes externas dos navios estavam todas ligadas, mas, ainda assim, a iluminação noturna era fraca comparada às luzes da cidade, que resplandecia em festa e soltava fogos de artifício em comemoração a sua partida. Ao mesmo instante, os cães preparavam-se para zarpar, carregando as últimas caixas de suprimentos para dentro do Sol Nascente enquanto Fang tratava de desenfronhar as velas e o capitão checava o casco por fora. Mesmo que presentes, nenhum deles parecia prestar atenção no festival e, tampouco, observavam os fogos de artifícios; havia muito trabalho a ser feito e o tempo dado por Hanzo era curto. No fim, ninguém parecia disposto a questionar se desejavam alguma ajuda; a este ponto da competição, eram poucos aqueles que não desenvolveram alguma antipatia pelo capitão cão.

— Poyo, o que você foi fazer?

Flint, que correu em sua direção no momento que a viu se aproximar, perguntou em alto tom, afobado. Shari havia lhe contado sobre seu encontro — não omitindo as lágrimas, pois achara uma reação bastante estranha — e, depois disso, Belka havia dito que ela havia saído sem olhar para trás, então não era de se surpreender o porquê de parecer tão preocupado (Pieri não era fraca e seu golpe certamente não havia sido leviano o bastante para Poyo sair por aí como se nada tivesse acontecido). No entanto, ao notá-la de bochechas coradas, com os lábios sutilmente apontados para cima e um grande chapéu de pirata em suas mãos, o cozinheiro sentiu seus ombros relaxar, deixando um suspiro de alívio escapar.

— Eu fui encontrar com a Pieri, avisar sobre nosso jantar — explicou a capitã, logo limpando a mão melequenta de algo na parte de fora do bolso da calça dele. — Gostou do chapéu? Agora está pronto — ela mostrou o desenho ao cozinheiro.

— Qual jantar, Poyo? — Belka se inseriu na conversa.

— O que o Flint vai fazer pra Pieri.

Belka, muito surpreendentemente, aceitou a resposta de bom grado, dando de ombros. Flint, por sua vez, apenas apertou o cenho.

— Como assim? — ele perguntou.

— Puxa, eu vou ter que explicar de novo? Você não presta atenção em mim? — Poyo encheu as bochechas. — Quando chegamos na Grand Line, a gente prometeu a eles um tremendo banquete! O melhor de todos!

— A gente, né — ele murmurou, abaixando as mãos para a altura dos bolsos: estavam um pouco trêmulas.

— Então... É isso, você vai fazer!

— Vou? — Era uma pergunta, mas Poyo entendeu como uma afirmação.

— Oba!

A capitã não deu tempo para que respondesse e apenas tomou a dianteira, correndo em direção aos convidados pierrôs, guiando-os em direção a carniça e comentando animada sobre o trabalho magnífico de Shari nos reparos do navio, berrando aos quatro ventos o quanto o enfeite de proa era imponente — quando, na verdade, parecia bem mais fofo. O macaco ria animado, juntando-se ao coro da garotinha com suas risadas e explicando as inspirações para a criação do enfeite; de toda maneira, era inegável o quanto o adereço havia dado vida a aquela caravela e como sua presença o tornava muito mais pirata do que jamais fora. Belka não parecia grata com a homenagem, isto é, sequer olhou duas vezes para o gato-sereia esculpido na madeira que muito se assemelhava a sua imagem, mas ao contrário do que Flint imaginara a princípio, ela não reclamou. Aceitou calada a presença do adereço, assim como não se opôs a pagar um jantar a uma tripulação inteira; seu humor estava bom e isso não poderia ser mais suspeito — mas isso era algo que lidaria depois.

— Flint! — ouviu um chamado baixinho e, mesmo sem olhar, sabia exatamente de quem se tratava; Hiroshi caminhava em passos rápidos, carregando em seus braços a mesma mochila que chegara no navio pela primeira vez e, em suas costas, já podia observar o sua antiga besta em posse de seu novo dono — Vim lhe agradecer novamente!

Belka olhou atravessada em sua direção; havia percebido a falta da arma no arsenal do cozinheiro desde que voltará ao navio, mas não havia perguntado, pois tinha suas próprias questões para lidar no momento e, destarte, aquele assunto não lhe parecia interessante, ou, ao menos até agora.

— Não se preocupe, Hiroshi. É apenas uma besta velha e, também, você me parece grato o suficiente — Flint respondeu com um sorriso pequeno, não poderia dizer que sentiria falta do garotinho, mas era gratificante saber que ele finalmente estaria livre e, principalmente, que não precisariam sujar as mãos com isso.

— Me chame de Hide, por favor — ele pediu. — É o meu nome de verdade.

O cozinheiro deixou escapar um riso contido, porém sincero. — Certo, Hide! Deseja alguma coisa, digo, antes de zarpar com sua nova tripulação?

— Bem, sim, na verdade — Hide tirou a mochila das costas, colocando-a em frente ao corpo. — Como você me deu algo importante, gostaria de deixá-la contigo!

— A mochila inteira?!

— Sim! Pode jogar as roupas fora, mas tem algumas coisas que podem ser úteis — ele sorriu — Hide viveu sozinho por muito tempo, sabe? Tem uma vida inteira de descobertas aí dentro! Alguns mapas bons, outras quinquilharias e, se olhar no bolso esquerdo, encontrará o meu maior tesouro.

— Se é tão importante assim, quer mesmo deixá-la comigo?

— Era meu último recurso, caso um dia viver no mar não fizesse mais sentido pra mim — respondeu, deixando a mochila nas mãos de Flint e, por fim, sorriu largo antes de dar as costas ao cozinheiro. 

— Não esqueça de procurar por mim nos jornais! — o menino gritou.

Flint então encarou a mochila, soltando uma risada sem graça e colocando-a em suas próprias costas. O peso imediatamente o puxou para trás; Hide poderia não parecer, mas era um garoto forte em muitos aspectos, pensou. Não sentiu culpa por tê-lo enganado por todo esse tempo, mas, por outro lado, sentiu-se leve porque ele saiu. Não queria envolver mais ninguém nas escolhas que ele mesmo fizera.

— Se adotar mais alguma criança, eu juro que farei com que ande na prancha, Flint! Não haverá misericórdia! — a gatuna o avisou, levantando de seu lugar e tomando o rumo em direção a carniça; por um segundo, Flint imaginou ter visto nela um sorriso suspeito, mas, por hora, acreditou que o mais seguro era não questionar.

Finalmente, quando o cozinheiro pretendia subir para começar a preparar o pagamento da dívida de outra pessoa, a voz imponente do capitão dos cães impediu que qualquer um se movesse, como se a gravidade os puxasse para o chão.

— Pieri, — Hanzo chamou — estamos partindo. Você não pretende se despedir de Nicholas?

A capitã, que até então estava conversando com Merin, virou a cabeça devagar para olhá-lo, demonstrando-se desinteressada. — Eu não quero nada com ele, sinto muito — deu de ombros. — Você gostou do meu cabelo novo, hya? Achei que ia cair bem — e piscou, colocando as mãos na ponta das madeixas curtas, na altura de sua orelha.

— Se assim desejar, não irei me opor — respondeu firme, fechando os olhos e cruzando os braços.

Curioso, Flint manteve-se sentado observando a tensão que se criava entre os capitães; os dois se encaravam e embora Pieri mantivesse seu sorriso jocoso estampado em seus lábios, Hanzo não parecia se afetar e, de outra forma, ainda se deu o trabalho de encarar o cozinheiro por meio segundo, acenando com a cabeça antes de virar-se em direção ao próprio navio e tomar seu caminho de partida. Atrás de si, Nicholas, que não conseguia olhar diretamente a antiga capitã — mas sabia bem que ela não estava prestando atenção em si —, apenas abaixou a cabeça uma última vez, virando-se para subir ao navio.

Mas, então, Flint percebera e não precisou de meio segundo para notar que Pieri também havia visto: Nicholas hesitou. 

Com os olhos baixos, encarou pela última vez a figura imponente de sua antiga capitã e, dessa vez, ela não o ignorou: em um movimento rápido, tomou a foice de Merin em suas mãos e, com uma destreza assombrosa, correu em sua direção e o atingiu diretamente em sua face de baixo para cima, fazendo um do queixo até próximo do olho esquerdo e ainda raspando o supercílio. Nicholas caiu de joelhos na ponte que ligava o navio ao cais, gemendo de dor. As vozes ao seu redor pareceram sufocadas, e mesmo a voz de Hanzo, que gritou ao lado para que Kaze viesse, pareceu longe demais para prestar atenção.

— Nicholas, não acha que está abusando de minha misericórdia? — a capitã abaixou a foice, observando o antigo subordinado de joelhos em sua frente — Teve minha permissão em nos deixar, mas não permitirei que se arrependa.

O espadachim não respondeu, permaneceu com os joelhos colados ao chão e a cabeça baixa, não ousando encarar a capitã. A mão firme de Hanzo em suas costas parecia confortável, bem mais do que a de Pieri, ao menos, no entanto não conseguia criar forças para se levantar sozinho, então o capitão tomou a frente e o ergueu pelo ombro, carregando-o para dentro da embarcação.

— Para um desertor, fui benevolente o bastante para não fazê-lo pagar! — gritou, chutando a ponte que ligava o Sol Nascente ao cais, no momento em que Hanzo e Nicholas embarcaram — Considera isso um lembrete! Nunca, nunca volte atrás!

O bafo quente soprou forte nas velas e os cães foram embora — de cabeça erguida, mas com o rabo entre as pernas.

≈≈≈

Flint não levou muito tempo preparando todos os alimentos e, apesar de não ter conseguido cozinhar nada demorado demais, os convidados se distraíram com as bebidas e petiscos e, no fim das contas, o banquete pareceu agradar — ou, ao menos, seus convidados eram muito convincentes em seus elogios! 

Todos os pierrôs eram, sem exceção, extremamente sociáveis e extrovertidos, e não levou muito tempo para que se entrosassem na tripulação, dançando em meio ao convés ao som das canções tocadas por Shari (com algumas participações de Franz, já nu, e também de Yolanda, completamente bêbada). 

Além do que era habitual para a norma de conduta, aqueles que compartilhavam das mesmas ocupações trocavam conhecimentos entre si, aprendendo novas técnicas para se aprimorar. Merin, por exemplo, foi convencida por Pieri a trocar os mapas conquistados nas ilhas que estiveram pelos que ela ofereceu na entrada da Grand Line, da mesma forma que Morgan insistiu muito para que o médico pierrô fosse ver seus materiais de estudo, mas Flint prontamente os impediu, dizendo que o quarto estava bagunçado demais por conta da mudança. (Ambos os médicos, ainda que consternados, não resolveram insistir).

Um pouco afastado da mesa principal, Shari fumava seus charutos sem preocupação, aproveitando o último momento de descanso antes de retornarem para o oceano; como sempre, seu trabalho seria alimentar as máquinas e cuidar do Diabo Negro durante a noite toda, logo, todo descanso era válido e, em conjunto a ele, juntava-se as bebidas de Bertruska, que estava sentada no chão com as costas apoiadas ao no parapeito, bebendo suas cervejas enquanto Fionnula descansava tranquila em uma almofadinha no chão. Não levou muito tempo para que Flint deixasse a boca do fogão e se juntasse aos companheiros de trago, trazendo consigo uma garrafa de rum de boa qualidade e uma cadeira para se sentar.

— O céu quase não tem estrelas numa cidade tão iluminada — comentou para os dois, abrindo a rolha da garrafa e colocando-a no chão. — Não conheci muitos lugares assim.

— Na minha cidade, o céu era sempre estrelado — Bertruska disse, sorrindo pequeno — Meus pais se guiavam pelas constelações muitas vezes.

— Já eu nasci depois da idade média — Shari brincou, dando um gole na garrafa de rum e então passando para a mulher. — Como foram seus dias de cão, Flint? — olhou para o cozinheiro.

— Os da minha infância, ou os que passei agora? — Flint arqueou uma sobrancelha.

— Oras, os de sua infância! Não gostou de visitar a tenda do capitão mendigo?

Flint engoliu em seco, puxando um charuto para si e acendendo-o; precisava de um fumo para revisitar essas memórias, fossem as de Hanzo, ou as de sua infância.

— Estava com medo de ser coagido a visitar outras tendas em minha estadia — confessou, dando um gole na cerveja sem tirar o charuto da boca. Precisava dos dois.

Num instante, Shari cuspiu tudo que gorgolejava e caiu na gargalhada. Bertruska, por outro lado, apenas encarava a cena com o queixo um pouco caído e os olhos arregalados.

— Achei que fosse impressão minha que ele queria te comer! — Shari gargalhava, dando tapas na própria coxa, tentando recuperar o ar.

— Eu não estou ficando louco, estou?! — perguntou o cozinheiro, acompanhando-o na risada. — Tentei conversar com os tripulantes dele, mas eu não tive brecha para perguntar. No fim das contas, eu achei que eu estava vendo coisas por estar sozinho com um bando de estranhos...

— Pobrezinho — o macaco apertou sua bochecha, fazendo um bico debochado, e então voltou a rir alto. Flint também perdeu as estribeiras, chegando a tossir pela fumaça do charuto.

— Que homem maldito! Como ousou dar em cima do meu amigo? Francamente! Você é coisa demais para aquele cara.

— Isso foi um elogio? — perguntou o cozinheiro

— Se for, eu vou embora. Quem sou eu para interromper isso — Shari levantou a cerveja, dando uma piscada debochada.

— Vai se foder — Bertruska ergueu as sobrancelhas, abrindo um sorriso maldoso — E, Flint, isso é o mais próximo que um homem receberá de elogio de mim. Considere-se grato — por fim, ela se levantou para levar Fionnula ao quarto.

Quando a lua estava passando de seu ponto mais alto, Pieri pediu um minuto de silêncio para seus companheiros, erguendo seu copo de uísque ao céu para brindar a passagem de mais uma ilha em sua jornada pela Grand Line. Todos concordaram em se juntar ao brinde sem pestanejar.

— Hya! Caros companheiros, finalizamos nessa noite um período demasiadamente complicado, mas não há dúvidas que saímos dessa ilha mais vencedores que antes, sobretudo por nos livrarmos, hic, da nossa maior pedra no sapato — Pieri parou para um segundo, olhando nos olhos de cada um dos piratas embriagados, gravando o momento em sua mente para que o álcool não o levasse. — Aos nossos aliados, a tripulação dos Gatos, sinto-me grata em afirmar que pretendo manter viva nossa aliança, apesar da clara tentativa de assassinato — e apontou o próprio queixo, rindo descomedida ao ver Poyo corar em seu canto, envergonhada por tê-la machucado.

— Mas, devo salientar, — ela continuou — ainda haverão outras pedras no sapato que precisaremos eliminar. Eu não posso garantir por quanto tempo eu e meus companheiros continuaremos na escuridão, mas garanto a vocês que, enquanto não houverem marinheiros em nossas colas, sempre abriremos portas para que possam afogar as mágoas em nossas cachaças! À nossa aliança!

Após o discurso, não demorou muito para que ambas as tripulações erguessem os copos ao céu, brando em uníssono de "ahoy" e virando o shot, posteriormente voltando à festa. Mesmo Poyo teve permissão de experimentar o álcool dessa vez, visto que era uma ocasião especial, no entanto, no momento em que Flint ia lhe servir mais um copo, notou de pronto que ela parecia mais bêbada que só de um, por isso resolveu deixar quieto. (Não era um segredo para Merin e Morgan que a garotinha estava roubando bebidas desde o início da festa, uma vez que sobrava a eles ampará-la durante o mal-estar, mas, para o cozinheiro e ex-marinheira, vê-la daquele jeito foi um absoluto choque).

Por último, os pierrôs resolveram tomar seu rumo após a falha tentativa de Poyo em selar o acordo de sua aliança com um beijo — isto é, o plano poderia funcionar com maestria, se não fosse a presença sóbria de Kristianque puxou a capitãzinha pela blusa como um cachorro sem dono, devolvendo-a aos seus subordinados enquanto resmungava sobre não poder tolerar isso duas vezes no mesmo dia — e então Pieri partiu bêbada e risonha em cima dos ombros do imediato, acenando pela última vez para os gatos antes de entrarem pela escotilha e, poucos minutos depois, desaparecerem no horizonte. Com exceção de Flint e Bertruska, os mais sóbrios e únicos com a capacidade de navegar durante a madrugada, os demais deixaram a cabine principal, descendo em direção aos quartos com a promessa de uma boa noite de sono. 

Poyo fora a primeira a dormir, no momento em que tocou a cama, seu corpo relaxou por completo e, abraçada a Fionnula, recuperava seu corpo dos poucos danos sofridos durante os jogos. Em seguida, Merin também não demorou para descansar, ainda que desejasse acompanhar seu morceguinho durante uma noite de estudos, tamanha festividade havia atordoado seus ouvidos e, como se não bastasse, ainda tinha de absorver as informações dadas por Pieri anteriormente, então não adiantava postergar. Por fim, Morgan fechou-se no quarto pouco depois de tomar uma caneca de café, aspirando anotar o que havia aprendido com o filho-da-puta-sortudo-que-nunca-estudou-porra-nenhuma da outra tripulação, mas, no fim das contas, nem mesmo a cafeína foi capaz de mantê-lo em pé, e ele adormeceu com lágrimas nos olhos na mesa mesmo, deixando a luz acessa sobre a escrivaninha.

Embora todos estivessem no navio, não havia sequer um deles que não estivesse absolutamente exausto e, dessa forma, nenhum deles percebeu o momento em que a gatuna desviou-se do caminho em direção aos quartos, caminhando sorrateira em direção a escotilha que a levaria ao porão: seus olhos arregalavam-se em meio a escuridão, fazendo bom uso de sua habilidade felina e brilhando junto de suas presas brancas, que escapavam de sua boca devido ao sorriso gigantesco estampado em sua face. Sua expressão era animalesca, mas não por muito tempo, afinal, segurava em suas mãos a chave para sua felicidade: ela havia conquistado a fruta do diabo.


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