Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 34
Grand Line, arena de Woo Pululu (Jogos Piráticos)


Notas iniciais do capítulo

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Não muito tempo depois, Cotton retornou ao palco com um grande sorriso em seu rosto e um algodão doce ainda maior em mãos, e anunciou no microfone o início da última apresentação da manhã. Os jurados já encontravam-se sentados em seus lugares e, talvez assustados pelo espírito competitivo da tripulação anterior, Baru segurava um guarda-chuva fechado sob a axila e sobre as mesas descansavam lustradas tampas de panelas, para caso precisassem de escudos. Era fato que não tinham muito tempo de caos, visto que faltavam apenas uma tripulação para se apresentar e pouco mais de meia-hora de palco, mas não custava ser precavido — suas roupas eram elegantes e caras demais para virar um prato à bolonhesa.

De todo modo, e independente dos temores dos jurados, Franz passou pelas coxias com sorrisos largos, uma postura invejável e, sem qualquer timidez, desde o primeiro momento começou a interagir com o público, alinhando a cartola em sua cabeça e demonstrando seu carisma. A alguns passos atrás de si, Kristian se posicionou perto das cortinas escuras, mesclando-se com o cenário enquanto olhava o colega com uma feição curiosa; as sobrancelhas arqueadas, a cabeça tombada a esquerda... observava os arredores com uma atenção caricata, buscando a direção de onde vinham os sons como se a plateia não estivesse ali desde o princípio. Até o momento, ninguém ria ou sequer parecia entender a apresentação.

— Audiência difícil, não? — o mágico iniciou, rindo torto enquanto enxugava o suor da testa (vestir-se de pinguim sempre lhe dava calor, dado que, normalmente, nem roupas usava). Com um suspiro, ele tirou a cartola da cabeça e se inclinou para posicioná-la no chão, mas antes que pudesse enfiar as mãos dentro do acessório, notou a fileira de jurados se encolhendo — Oras, não se preocupem, felizmente não trouxe tomates em meus bolsos. Mas talvez eu encontre algo que possa me ajudar no meu chapéu, né? — brincou. 

Mesmo com o silêncio da plateia, Franz retirou as luvas brancas, colocando-as dentro dos bolsos antes de posicionar os joelhos ao chão e, um a um, retirar os itens de sua cartola. No momento em que o primeiro coelho saltitou pelo palco, Kristian pulou no próprio local, olhando abismado em direção ao médico e cobrindo a boca aberta com as mãos, embasbacado com o pequeno truque: sua função, como mímico, era atuar como um telespectador e, ainda que os cidadãos não se impressionassem com os truques a princípio, ao menos poderiam se divertir com suas reações exageradas e outras palhaçadas. Contudo, quando do chapéu saiu um aspirador de pó, ele nem precisou atuar de verdade, porque realmente perdeu o equilíbrio das pernas. Algumas risadas soaram pelo ambiente e então, sentindo-se mais confiante, o imediato se trajou com uma feição arrogante e ajeitou seu colarinho invisível, lançando beijos e gracejos para a plateia, enquanto Franz continuava a insistir no velho truque do chapéu. Coelhos, pombos e até mesmo um cabide foram retirados e em seguida deixados descansando sobre o palco, mas os holofotes estavam apenas no mímico.

— Gente, eu entendo que sou um belo mágico, mas não compreendo o que há de tão engraçado! É apenas um truque de chapéu — Franz levantou, limpando suas roupas e soltando uma risadinha amarela, colocando ambas as mãos na cintura e observando a audiência com atenção. O mímico, por sua vez, posicionou-se atrás do médico, imitando sua pose e exagerando na expressão o máximo que conseguia. A este ponto, as risadas tornavam-se ainda mais altas. — Será que... Meu rosto está sujo?

O mágico desesperou-se e, largando a cartola no chão, correu para fora do palco para puxar um enorme espelho de corpo inteiro que refletia a audiência, posicionando-o no centro dos holofotes em um ângulo de ¾. Finalmente, ele se aproximou do objeto para procurar qualquer imperfeição em seu rosto, mas ao invés de ver a si mesmo do outro lado, Franz deu de cara com seu mímico, que imitava suas posições. Kristian então, após colocar uma expressão desesperada em seu rosto, lançou-se de joelhos ao chão, apontando para o próprio ombro e movendo os punhos em frente aos olhos, como em um choro desenfreado.

— Pobrezinho! Como vocês podem rir de um pobre palhaço? Vocês são terríveis — Franz constatou, colocando a mão sobre o peito em um sinal de indignação e encarando a plateia com um olhar julgador. Atrás de si, Kristian sorria vitorioso e apenas retornava a forçar seu choro silencioso quando o mágico voltava os olhos em direção a si. — Mas não se preocupem. Eu conheço um médico completamente capacitado que poderá cuidar disso!

E saiu de cena, retornando alguns segundos depois empurrando uma enorme caixa de madeira pintada — a mesma que Pieri usava para guardar chapéus — sobre um carrinho de carga, uma maleta de ferramentas e trajado com um jaleco hospitalar. Kristian arregalou os olhos em direção a plateia, que nesse momento já compreendia o show e apenas apreciava a dinâmica da dupla.

— Eu mesmo! —  Franz abriu os braços, como se indicasse o óbvio. — Vamos, palhacinho, deite-se sobre a maca e me diga o seu nome, assim poderei te examinar!

O mímico, ao se aproximar dos artefatos do médico, encarou a estranha caixa por um breve segundo e então desenhou com as mãos o formato de um retângulo, depois apontando para o próprio peito com expressão de dúvida.

— Sim, é para você entrar — Franz respondeu, como se fosse óbvio. — Afinal, sr. Mímico, temos um caso extremamente grave aqui!

Kristian simulou um pequeno desmaio, rodopiando pelo palco enquanto fingia que poderia cair a qualquer momento e tentava a qualquer custo controlar uma pequena risadinha que por pouco não fugia de seus lábios. Isto é, havia mantido o profissionalismo até o presente momento, mas os gritos indignados de Pieri na plateia, os acusando de furto, fora mais do que poderia aguentar.

— Pode entrar! Vai ficar tudo bem. Mas seu caso de mimísmo é gravíssimo! — enfatizou Franz, olhando para a plateia e piscando com um de seus olhos, soltando um sorriso ladino — Temo não poder resolver seu problema sem cirurgia!

Kristian ameaçou correr para longe dele, mas seus passos em falso não o permitiram sair do lugar, dando tempo para que Franz o pegasse pelo colarinho e o lançasse para dentro do caixão, trancando-a em seguida. Com o tronco preso e apenas o rosto exposto pelo buraco oval da parte de cima, ele encaixou sua face no buraco e fez contato visual diretamente com a plateia, arqueando as sobrancelhas e arregalando os olhos em um pânico encenado enquanto a caixa era deitada sobre a tartaruga.

— É apenas um pequeno procedimento, não se preocupe! Irei lhe dar alguma anestesia — o mágico afirma, fazendo com que a expressão do mímico acalmasse alguns segundos. — Ó, não, como sou bobo! Você já está dentro da caixa! — O mímico balançou a cabeça, indignado com a afirmação.

— Bom, vamos começar a te examinar — Franz deu continuação, puxando o mecanismo do carrinho para que a caixa subisse na altura de seu quadril. A essa ora, Kristian já havia posto suas pernas e braços para fora dos buracos que compunham a lateral do caixão, mas sua cabeça não parava de olhar de um lado para o outro, como se procurasse ajuda em algum lugar. — Suas pernas e braços parecem ok — disse o médico-mágico, enquanto tocava um a um dos membros expostos pela caixa e mexia as folhas de seu bloco de notas. No entanto, no momento em que ele chegou no braço direito, o último deles, sem mais nem menos, o antebraço esquerdo despencou ao chão como uma fruta madura.

— Céus! — o médico ganiu, olhando a plateia de olhos arregalados. Todo o público parecia pávido, e Franz quase não conteve o sorriso de satisfação.

O antebraço decepado de Kristian então se ergueu sobre a mão, começando a perambular pelo palco como uma aranha armadeira e, ao ser notada "passeando" pelo médico, prontamente começou a fugir dele, visto que Franz, com um sorriso nervoso pintado em sua face, viera atrás para acabar com sua brincadeira. No caixão, o mímico se debatia de maneira exagerada, movendo a caixa pelo palco com a força de seu corpo para futilmente tentar olhar o que estava acontecendo.

— Te peguei! — disse Franz, ao tomar o braço-vivo em suas mãos, e o abraçou em comemoração. Todavia, sua festa fora silenciada por um audível tapa, seguida de um dedo apontado a sua cara, como se estivesse recebendo uma bronca da mão. De pronto, o médico se calou, fazendo um biquinho. — Por que...

Antes que terminasse de dizer, a mão-fantasma lhe deu outro tapa, e dessa vez formou uma pinça com os cinco dedos, como um pequeno fantoche de meia, e começou a simular uma conversa. — Entendi... — Franz murmurou, chateado. O dedo da mão fantasma apontou para o mímico, ainda deitado.

— Oras, se entendeu mesmo, então coloque-o no lugar! — Kristian rompeu o próprio silêncio, fazendo o médico dar um pulo no lugar, correndo em sua direção.

A plateia não conteve a alta gargalhada. 

Em uma marcha caricata, Franz se aproximou do colega com o braço em mãos e uma expressão resignada, e então, como um passe de mágica, ele o encaixou de volta no lugar, soltando um riso orgulhoso ao abrir a caixa misteriosa para que o paciente pudesse sair. O mímico, olhando pelos arredores com uma feição desconfiada, ignorou a pompa do mágico, que gritava que havia o curado, e caminhou um pouco pelo palco, retornando ao próprio silêncio enquanto mexia os braços em um rápido alongamento de quem acaba de acordar. Não obstante, quando os esticou para cima, o antebraço esquerdo despencou ao chão, fazendo com que o médico se virasse de súpeto, olhando-o de olhos arregalados.

— Meu trabalho por aqui está pronto! — gritou Franz, recolhendo suas coisas do chão com pressa. Kristian foi para cima dele, mas antes que chegasse, o mágico jogou uma bomba de fumaça no palco e, quando o gelo seco se dissipou, ele havia sumido. O mímico olhou para os arredores, indignado, e o público soltou um "uau" em uníssono.

Por fim, uma segunda bomba de fumaça fora jogada no palco pela coxia, e nesse momento Kristian sumiu, dando espaço para Franz nos holofotes, que voltara de braços abertos e um sorriso resplandecente, mas dessa vez completamente pelado. Quem comia algo, certamente se engasgou pela surpresa; a plateia inteira perdeu o fôlego. As cortinas começaram a ser fechadas e uma terceira bomba fora jogada, desaparecendo com o mágico e trazendo de volta o mímico, agora segurando o antebraço com a mão direita e acenando para a plateia. 

O palco se fechou. Estavam todos em choque.

Alguns segundos depois, Cotton veio ao palco com suas bochechas rosadas e, quando perceberam que o show havia mesmo terminado, todos os telespectadores woopululenses se levantaram para aplaudir de pé, encantados com o carisma da dupla pirata. Na segunda fileira, Pieri não conseguia conter as lágrimas de emoção, sentindo-se mais orgulhosa que uma mãe ao ver seu filho dar seus primeiros passos; isto é, de fato havia os ensinado tudo que sabia sobre shows, mas aquilo... aquilo tudo era da conta deles. Não tinha a menor influência em seu mérito. Mais do que nunca, sentiu em seu peito tamborilar forte e, no momento em que fora chamada ao palco, subiu certa de que receberiam o prêmio da noite, afinal, por mais que não negasse que todas as tripulações haviam realizado um excelente trabalho (mesmo aqueles sem qualquer experiência, como os subordinados de Poyo, que dependeram unicamente da aleatoriedade do showbusiness), Franz e Kristian certamente estavam em outro patamar; não apenas surpreenderam a todos no picadeiro, como a si mesma, que não tivera qualquer acesso às informações e fora deixada às cegas na plateia.

Todo o estresse valeu a pena por aquele momento sublime, pensou consigo mesma, no momento em que ouviu a elefanta chamar o nome dos capitães. Não lhe importava mais que Hanzo estivesse na liderança e tampouco suas falhas tentativas de compreender o que se passava na mente de seu rival; Pieri sentia-se uma vencedora e só isso era o bastante, despistando a insegurança de antes e também os olhares corrosivos que recebia em suas costas. O estresse ficaria para o futuro. Por ora, deixou que apenas a imagem de Cotton rondasse a sua mente; os pulinhos engraçadinhos da elefante e as palavras que tanto aguardava soaram como uma música maravilhosa, da mesma forma que a plateia em polvorosa, que gritava o nome de seu bando com louros e aplausos.

Eram os vencedores, não importava o que dissessem. (Só faltavam os resultados). 

Ao ouvir-se proclamada vencedora, sua mente se tornou branca e, num impulso súbito de comemoração, puxou o imediato pelo colarinho, dando-lhe um beijo tão firme que quase o deixou descadeirado, mas antes mesmo de repará-lo desnorteado em sua própria postura, partiu em direção do médico-mágico, que retribuiu com um sorriso ladino e uma piscada de olho, puxando-lhe pela cintura e a beijando antes que pudesse agir. Pieri mal teve tempo de fechar os olhos, mas conseguiu ouvir com clareza a gritaria dos espectadores.

— Fo-fo-fom! Meus parabéns aos vitoriosos! — A elefanta, com as bochechas um tanto coradas, soltou uma pequena risada constrangida, parecendo um pouco surpresa com a natureza da comemoração, mas não necessariamente abalada (na verdade, parecia de certa forma fascinada).

Foram alguns segundos de silêncio por parte dela, somente regidos pela euforia do público que ainda estava preso na estranha demonstração de carinho dos pierrôs. Finalmente, ela retomou a postura de apresentadora e tornou a falar: — Não obstante, capitã, não temos muito tempo para pensar. Chegamos na parte mais difícil do jogo: é hora de escolher quem você levará para sua tripulação!

Todos — com exceção do batucar dos tambores, que se intensificou de imediato — ficaram em silêncio por um instante, aguardando ansiosos a escolha da capitã. Retornando aos sentidos, Pieri passou a encarar a decisão que tinha pela frente, isto é, era óbvio para todos o que deveria acontecer a seguir e não havia motivos para que perdesse seu precioso tempo em um palco enquanto poderia ir comemorar com todos os companheiros a primeira vitória que obtiveram em toda a competição, contudo, uma pressão em seu peito indicava que algo parecia errado. Encarou o horizonte por poucos segundos, tentando absorver a mensagem que suas tripas tentavam lhe passar e então, com um pouco mais de coragem, passou seus olhos pelas demais tripulações, deixando-se demorar um momento nos olhos tensos de Hanzo (não o escolheria a este ponto da competição, mas não poderia deixar de imaginar o quão divertido seria colocar o mendigo a suas ordens) e, por fim, buscou em meio a tantas faces pouco conhecidas, a única em que algum momento pôde reconhecer como parte de sua tripulação: Nicholas, que há pouco parecia ter perdido a cor de sua face, agora a encarava tênue pelo canto dos olhos, e ao vê-la encará-lo de volta, de pronto desviou o olhar, preferindo o chão a ver sua cara.

A capitã entendeu no mesmo instante e semicerrou os olhos.

— Trarei para minha tripulação Flint-hya, da tripulação Komainu.

Embora sua voz tenha soado decidida, não foi segredo para ninguém que a capitã permitiu-se sentir um fio de tristeza, afinal, havia sido traída, e enquanto o cozinheiro se aproximava de seu bando, ela reparou de relance que mesmo Nicholas estava mordendo os lábios, inseguro com sua escolha. Respirou fundo, olhando pela última vez para o garoto que acolheu em seu submarino e deixou que usufruísse da vida pirata ao lado dos melhores companheiros de todos os mares. Era ele quem estava cavando sua própria cova, disse a si mesma. E, é claro, ela não acolheria de volta alguém que cospe no prato em que come — deixá-lo partir sem pagar o preço era caridade o bastante.

≈≈≈

Uma breve garoa começou a pingar sobre suas cabeças ao fim da prova.

Mais tarde, quando todos estavam em seus acampamentos designados, Pieri se sentou dentro de sua tenda com um peso gigantesco em suas costas e pôs Flint a sua frente, aguardando pacientemente os demais tripulantes retornarem. O clima parecia espesso, e a chuva, agora mais forte, não corroborava com a situação. Quer dizer, estava certa de suas decisões, mas isso não apagava a ciência da decepção de seus subordinados; ninguém havia questionado, tampouco ido contra sua escolha, todavia estavam cabisbaixos, amuados e, mesmo que não dissessem explicitamente, todos tinham a mesma dúvida: por que ele, e não Nicholas? 

Isso não era exatamente algo que Pieri queria responder. Entretanto, ela sabia que devia isso a todos e por isso esperava sentada que todos os pierrôs chegassem de seus afazeres para que dessem início a reunião: no momento, Apollo e Yolanda preparavam um café silenciosos na cozinha improvisada, enquanto Kristian e Franz foram junto de Shari ao Diabo Negro, a fim de trocar as roupas sujas e costurar o braço do imediato. A capitã e o novo cozinheiro eram os únicos aguardando, mas não se olhavam ou conversavam, talvez porque eram os únicos a saber desde o início o que aquela jogada queria significar.

Decerto Flint transmitia uma aura familiar a Pieri, que, desde a primeira vez que o viu, sentiu de longe seu inconfundível cheiro de peixe — um que ia além da velha pescaria, diga-se de passagem. Não havia sobrado tempo para que pudesse reparar na fisionomia do homem, isto é, trocaram algumas palavras durante as refeições, mas até então esteve ocupada demais com estratégias e preocupando-se em estar um passo à frente de Hanzo para desvendar o que estava diante de seus olhos: muito antes de Poyo e mesmo anteriormente a vida pirata, o pescoço de Flint estava sob recompensa nas docas onde passara toda sua primeira infância e, diferente do que era esperado, não era um criminoso que procuravam, e sim um civil.

— Você está longe de casa, não está?

As palavras de Pieri cortaram o silêncio, e Flint a olhou de sobrancelhas arqueadas, sentindo sua própria voz morrer na boca. A saliva secou imediatamente.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou, defensivo.

— O East Blue — a capitã apertou os olhos, analisando-o de cima para baixo — Está longe daqui. Você não tem saudades de casa?

— Estou a pouco tempo na Grand Line e, sinceramente, não vejo mais tanta diferença de  para . O oceano é sempre o mesmo.

— É claro que é — a capitã assentiu com a cabeça, cruzando os braços sobre o peito e soltando uma risada, um tanto nostálgica — Mas, mesmo em embarcações elegantes e acostumados com a vida fugitiva, nós nunca abandonamos os peixes. Tampouco o odor deles, que está entranhado na nossa carne.

Flint então levantou-se, sobressaltado, sentindo uma gota de suor cair de sua testa e as mãos tornarem-se geladas. Ele sentiu que o peso de seu corpo havia ido inteiro aos pés.

— Não se preocupe. Eu não tenho seu cartaz de desaparecido para te entregar, apenas queria matar minha curiosidade, Flint-hya — a capitã completa, dando de ombros levemente — Os que encontrei pelas ruas, geralmente serviam-me de coberta durante a noite. Eu sequer me lembro do seu nome; Flint está de bom tamanho.

O cozinheiro engoliu em seco, retornando ao sofá. Sua face ainda estava pálida, mas parecia aos poucos retomar a antiga cor e não demorou para Pieri retornar ao assunto.

— Há quanto tempo deixou aquele local? — Pieri perguntou.

— Quando eu tinha catorze.

— E quantos anos você tem agora?

— Vinte e seis — respondeu, abaixando a cabeça para desviar o olhar. A capitã sorriu pequeno.

— Eu fui embora com dez. Um pouco mais corajosa-hya — brincou, soltando um longo suspiro — Eu achei que ia morrer, se ficasse por um dia a mais por lá. Consegui uma boa carona para me mandar.

Flint levou um segundo para tomar coragem antes de continuar a falar e fechou os olhos enquanto pensava em suas opções. — Você não teve medo que tentassem encontrá-la? — perguntou.

— Não tive ninguém para me procurar — Pieri respondeu, de pronto. — Diferente de você, que a deixou para sempre à sua procura. Você sabia que mesmo quando fui embora, eu ainda vi seu pôster de moleque? Acho que ela continuou postando até que o dinheiro acabasse. É de se admirar.

Flint então ajeitou sua postura na cadeira, suspirando com pesar. A algum tempo não deixaria nem mesmo que a garota terminasse a frase; era fraco, instável e, sobretudo, desejava que todas as maldições caíssem sobre seu passado, restando apenas um futuro incerto e todo ressentimento que pudesse carregar, mas isso já não era o suficiente agora. Ainda viveria o futuro, isto é certo, mas não poderia mais apagar cada mínima ponta de seu passado com a morte: era hora de crescer. E, se para que pudesse ser livre precisasse discutir com uma pirralha, discutiria. Problemas resolvidos com a ponta de uma lâmina eram infinitamente mais fáceis, contudo preferia que uma compatriota de sua cidade conhecesse suas razões a explicá-las para seus companheiros de embarcação. Eles não viveram as docas para compreendê-las.

— Você é jovem demais, Pieri. E por isso irei sanar suas dúvidas, ainda que não seja de minha vontade.

Um sorriso zombeteiro se formou nos lábios da capitã.

— Sendo uma criança e vivendo nas ruas, acredito que os pescadores não conversavam muito contigo, estou correto? — indagou, e a garota assentiu com a cabeça, cruzando as pernas e se ajeitando para escutá-lo melhor. — Pois bem. Eu imaginei isso porque, se tivessem conversado, você saberia que Ela não era a pobre mulher que imaginou e, tampouco, a mãezinha que lhe faria chocolate quente e biscoitos. Nem todas as prostitutas são bonitas e ela era certamente a mais feia de toda a ilha.

A feição da capitã se fechou em uma expressão pesarosa. No princípio, apenas desejou alfinetar o cozinheiro, imaginando que sua fuga tratava-se apenas de um capricho adolescente vindo de um mimadinho que desejava descobrir o mundo além dos barcos de pesca e dos bares mau cheirosos, no entanto, a cada palavra que ouvia dele, pouco a pouco passava a se arrepender mais de ter aberto a própria boca: havia tirado a suas dúvidas, mas há que custo? Durante todos os anos em que viveu como uma sem teto abandonada pela própria mãe, Pieri observava aquele maldito cartaz e amaldiçoava a existência daquele garoto, que tinha tudo nas mãos, enquanto ela comia restos do lixo para sobreviver, mas agora, de frente àquele homem, só desejava voltar atrás e deixar a si mesma sem dentes de tanto apanhar. Era estúpida por pensar que havia um lugar seguro naquela ilha e a burrice não a levaria até a grandeza que almejava.

— Mas você quer saber por que realmente eu fugi? — ele inquiriu. Pieri acenou com a cabeça, ouvindo com atenção — Não foi porque eu ia morrer, muito menos porque eu iria matá-la. Eu era um covarde, ainda sou um covarde. Porém, não há mais arrependimento em mim; minha covardia me trouxe até aqui e foi exatamente a sua covardia que te tirou da sarjeta.

Pieri soltou a respiração, nem mesmo havia percebido que havia a segurado por tanto tempo.

— Não se engane, Pieri, ter partido jovem não lhe faz corajosa; você foi embora porque tinha medo de enfrentar quem quer que te deixou lá e nada pode mudar isso. Não adianta exaltar o que deixamos para trás agora que vemos a figura inteira. Agradeça pela criança que a tirou daquele inferno porque sem ela você não estaria aqui hoje, mas nunca se esqueça dos frouxos que somos, ou de outra forma não vai sobreviver — Flint acrescentou, não com um tom jocoso, muito pelo contrário; sua voz soava amena, repleta de compreensão. — A coragem é imprudência, e se a humanidade caminhou até aqui, é porque teve um rato covarde que resolveu se esconder na caverna invés de ir caçar durante a noite. Todos nós somos fruto do desespero e, como deve imaginar, resta aos abastados a bravura para fingir que são melhores que nós. Mas eles não vão ver o amanhã.

Logo após terminar de dizer, e antes que Pieri pudesse continuar aquela conversa, Shari voltou a tenda, adentrando pela abertura da frente, sozinho. A capitã chacoalhou a cabeça, retornando a postura que havia perdido em meio às palavras duras do homem à sua frente, que, sereno como um rio, apenas abriu um sorriso deferente; simpático. Seu coração pareceu pulsar fora do compasso — uma ansiedade sem tamanho tomou conta de seu corpo e, ao ver o símio partir para a cozinha improvisada para tomar um café sem prestar atenção no que acontecia na antessala, por um instante sentiu-se desprotegida, como se as palavras de Flint fossem capazes de lhe agredir mais do que emocionalmente.

A saliva ficou presa no nó de sua garganta; preferia que ele tivesse a ameaçado formalmente invés daquilo.

— Você tem mais alguma coisa para me perguntar, capitã? — Flint indagou, enfatizando o honorífico enquanto sutilmente mirava com os olhos a cortina que dividia a parte em que estavam da cozinha e, com o gesto, Pieri imediatamente se lembrou que Yolanda, Apollo e agora Shari estavam ouvindo sua conversa do outro lado. Decidiu se calar.

— Estou bem por hoje-hya. Tenho mais problemas para resolver — disse, levantando-se de onde estava sentada. Precisava fazer seu sangue circular outra vez.

— Pois bem — ele se levantou também.

Alguns minutos depois, Yolanda adentrou o cômodo segurando uma bandeja com duas xícaras de café que serviu a eles e, em seguida, Shari voltou com Apollo e um maço de cigarros escuros, oferecendo a Flint para que fumassem em comemoração a sua chegada no bando, mas ele recusou de momento, pois não estava com vontade de ir tomar chuva do lado de fora. Por sua vez, apoiada de costas para a mesa, Pieri continuou quieta observando a chuva de verão se tornar mais fraca do lado de fora, esperando calmamente que Franz e Kristian retornassem para iniciar sua reunião, no entanto, embora quisesse muito, sua cabeça não conseguia se focar em nada a não ser nas palavras que o cozinheiro lhe dissera.

Agradecer ao seu passado sem enaltecê-lo, repetiu baixo a si mesma, a conversa paralela dos quatro subordinados crescendo em seus ouvidos, mas sem uma palavra fazer sentido em sua cabeça. Parecia uma dicotomia, mesmo quando visto de fora. Os dias que passou naquela ilha cinza em sua primeira infância quase sempre retornavam antes de dormir, não obstante, revê-los em suas memórias não era o bastante para compreendê-los ou alinhá-los: era jovem, não comia e as poucas noites onde tinha uma cama para dormir eram interrompidas por sua mãe, que não pensava duas vezes antes de expulsá-la de casa a tapas e pontapés. Não havia sequer uma boa lembrança de seu passado e se fosse preciso listar as mais toleráveis, as dez primeiras de sua vida foram vividas junto dos mendigos da cidade, procurando moedas para uma refeição quente e colecionando cartazes de piratas procurados que encontrara pelas paredes e ruas. Não tinha o que agradecer e enaltecer, mas o fazia, porque queria sair de lá o quanto antes e ter ido embora com suas próprias pernas era seu único orgulho antes de formar um bando só seu. Isto é, desde que entrara na vida pirata, estivera junto de milhares de trastes; alguns fortes, outros imbecis, mas no momento em que encontrou os melhores companheiros que poderia imaginar, toda a sua jornada pareceu se encaixar e tudo o que restou para com ela foi a imensa gratidão.

A covardia que fosse para o caralho, pensou Pieri. Talvez Flint estivesse certo em dizer que estava fugindo de quem a criou, mas não acreditava nem por um momento que era de seu direito diminuir toda a sua vitória em sair de lá por conta própria, afinal, por mais que ela, sua mãe, não tenha a procurado — não queria ter de pagar a vida toda por algo que fizera em uma noite só —, o simples ato de sumir de sua casa ia além de uma atitude de momento resultada de uma surra ou fracasso. Ela quisera ir embora por todos esses anos; estava esperando o momento certo, não o sentimento certo. Ao passo que pôde encontrar felicidade em sua miséria, se de alguma forma isso a tornava uma covarde, então ao menos uma coisa era certa: haveria de superar esses sentimentos inconclusivos um dia, assim como superou todas as barreiras que lhe foram impostas; encarando de frente as adversidades e devolvendo ao mundo o melhor de si.

≈≈≈

Faziam alguns minutos desde que o quarto irmão elefante havia recebido os nomes dos três campeões para a penúltima prova e desde então Bertruska observava entediada a plateia se juntando nos assentos da arquibancada enquanto aguardava com pouco ânimo a chuva dar trégua. Estavam todos na arena de jogos de Woo Pululu, um ambiente aberto, chão de mato (e lama) e linhas brancas demarcando cada metro, mas por mais que a atividade para a qual fora designada por si só parecesse interessante (afinal, nunca perderia a oportunidade de mostrar seus músculos para quem desejasse vê-los), com exceção da oportunidade de dividir alguns drinques com Yolanda na barraquinha de comidas depois da competição, nada além disso poderia lhe agradar, afinal, os participantes que enfrentaria eram Yun e Flint, dois homens que sinceramente não tinha vontade de bater — ou ao menos não agora.

Como se perdê-lo não fosse o suficiente, amaldiçoou a si mesma, observando distante de si o capitão Komainu, culpado daquilo tudo, agora mais derrotado do que antes e sentando-se na primeira fileira com as duas mãos apoiando a testa e uma aura de pura desesperança. Bertruska queria matá-lo ali mesmo, no entanto, sabendo que se simplesmente o matasse se tornaria tão suja quanto o próprio, tinha para si mesma que precisava esperar o momento certo para que sua vingança fosse colocada em prática e, dessa forma, apenas o observava de cima, torcendo internamente para que um raio o atingisse agora.

— Não vá arrancar mais nenhum olho, hein!

A voz zombeteira do cozinheiro a acordou do próprio transe, e, aproximando-se de si com um guarda-chuva, Flint cobriu os dois e bagunçou seus cabelos, tirando o excesso dos pingos de chuva. Bertruska não pôde evitar de desviar os olhos com o gesto: não gostava de ser subjugada por um homem, mas ao mesmo tempo sentia-se feliz em ter alguém por perto.

— Yun fará o primeiro lançamento, podemos observar antes de ir para nossos lugares — acrescentou o cozinheiro, com a voz claramente cansada e soltando uma lufada de ar.

— Achei que fossem esperar parar de chover — disse a ele, serena.

— É isso, ou a competição vai durar mais um dia — suspirou, qualquer coisa lhe parecia mais agradável do que mais uma noite naquele local — Ao menos tenho certeza que não iremos perder para o garoto!

Então a ex-marinheira observou a figura esguia de Yun, que, do lado dos elefantes e embaixo da marquise, tinha a face amarrada em uma carranca tão feia que fazia as ressacas de Belka parecerem refresco. Ela riu comedida.

— Talvez estejamos o subestimando! — caçoou. — Mas certamente não é páreo para mim. Nem você é! — e bateu no peito, olhando-o orgulhosa enquanto via Flint abrir um sorriso sincero. Ele estava feliz em vê-la mais calma.

— É minha terceira prova, eu também apostaria em você. Estou morto

A conversa morreu por um breve segundo, as gotas batendo no guarda-chuva e a plateia fazendo barulho ao fundo. O jogo não tardaria a começar.

— Algo interessante lá? Digo, na sua antiga tripulação — questionou Bertruska, com um tom jocoso, mas na espera de algo que pudesse lhe ser útil.

— O capitão é um desgraçado. E ele — meneou com a cabeça para onde Yun estava — odeia o capitão — completou, com um asco transparecendo em sua voz ao mencionar, mesmo que brevemente, sua esperança no bando de Hanzo.

— O elefante? — ela riu, debochada.

— Vai se foder — Flint riu de volta. — Acho que o Hanzo não é um capitão tão bom quanto finge ser. Mas parece muito confiante em suas habilidades. Os outros rapazes que o seguem são todos mais novos que eu e acreditam firmemente que ele está certo.

— Você acha que os outros também participaram daquilo? — interrompeu. O cozinheiro sabia do que estava falando, por isso não se deu o trabalho de explicar.

— Se participaram, não devem ter a menor noção do porquê. Com exceção de Yun, todos pareciam segui-lo sem questionar muito. Até Nicholas, o recém-chegado.

— Você também o seguiria, se tivesse o encontrado antes de nós?

Flint levou um segundo para responder, olhando-a de olhos apertados em genuína preocupação. — Sendo sincero, não compro batalhas que não posso vencer. Acho que eu inventaria alguma bobagem e ficaria na embarcação, preparando o jantar. Eu não sou o tipo de cara que aparece nos jornais.

— E, no entanto, estamos nós dois por lá.

— Nas recompensas. Não é bem a fama que ele estava almejando pro bando dele — riu Flint.

— Ele soube que você é procurado?

— Eu contei.

— Por quê?

— Eu queria que ele me odiasse — respondeu simples, dando de ombros. — Não confio em corsários — e abriu um sorriso dissimulado, piscando um só olho para ela.

A sensação de receio que Bertruska sentiu foi quase palpável; seu olho se arregalou, a boca secou e, ao compreender o que Flint queria dizer com aquilo, seu coração pareceu se esfarelar. Não queria que ele se arriscasse desse jeito: ela não merecia aquela dedicação. Num murmúrio, tentou dizer qualquer coisa que fosse, entretanto, antes que pudesse deixar sua voz sair, um súbito grito vindo do centro do campo a interrompeu; era Candy, o elefante verde de roupas de contorcionista e líder daquela prova, que havia começado seu discurso de iniciação no estrado improvisado na extremidade direita do campo de esportes. Sua cara estava sendo reproduzida no telão e, ao seu lado, Flint, assim como todos os telespectadores da plateia, se levantou para ouvi-lo falar.

— RESPEITÁVEL PÚBLICO! — cumprimentou ele, dando um salto de pernas abertas sobre o palanque que fez Bertruska se sentir mal por torcer firmemente que ele escorregasse e morresse. Mas, pensando melhor, sempre teria um palhaço otário para o substituir, acrescentou para si própria.

— O tempo não está querendo colaborar com nossa magnifícia competição-fu-fom, mas o show não pode parar, afinal, de açúcar eu só tenho o nome! — continuou Candy, colocando a mão na barriga para conter a gargalhada alta, rindo como se fosse a melhor piada que já ouvira em toda sua vida. Os moradores o acompanharam de pronto, impedindo-o por longos segundos de continuar. — Para narrar nossa competição, como não poderia faltar já que estarei participando, contaremos com a ilustrícia presença de Artúlio, nosso amado repórter! Uma salva de palmas!

— O"oooooo"brigado, Candy! — a zebra disse alto, saltando para seu lado e tomando o microfone de sua mão em meio aos gritos eufóricos do público. Ele usava um paletó xadrez de largas ombreiras e os mesmos óculos do dia anterior. — Público querido, palhaços patrocinadores e, é claro, participantes entusiasmados, assim como ontem, eu continuo me chamando Artúlio, e eu serei o apresentador dessa prova!

Um urro coletivo ecoou nas arquibancadas e, embora estivessem um pouco longe para ter certeza, Flint e a guerrilheira tiveram a impressão de ouvir Poyo gritando para que Bertruska estourasse algo. Decidiram ignorar.

— O desafio dessa vez consiste em uma prova de força, cujo título de vencedor será dado ao homem — olhou de soslaio para Bertruska, oferecendo-lhe uma piscadela galanteadora — ou mulher, que arremessar seu elefante por mais metros. Vejamos, — ele começou a olhar os papéis de regras que tirara do bolso de seu paletó — serão três rodadas de pontos cumulativos, cada metro multiplicado por cem; a distância será calculada apenas da linha de início até a marca de queda, isto é, sem contar qualquer passo ou deslize dado além de onde caíram; e, por último, mas não menos importante, caso qualquer participante ultrapasse a linha de partida antes ou durante o arremesso, ou então machuque, suborne ou humilhe seu designado elefante, sua pontuação será dada como zero! Agora, vamos ao primeiro participante, Kaze, do bando Komainu!

— Posso me dar como perdedor? — Yun levantou a mão. Ao seu lado, Baru estava de braços cruzados e cenho franzido.

— Não! — gritou Hanzo, da arquibancada, mas foi completamente ignorado por Yun, que só continuou a olhar suplicante para Artúlio.

— Algum motivo para essa desistência tão prematura? — questionou a zebra.

— Cá entre nós, eu daria tudo para perder e sair do meu bando, não é segredo para ninguém — responde, dando de ombros — Mas o motivo verdadeiro é que não consigo levantar meu elefante designado.

— Quer dizer que, se fosse um dos meus irmãos, você conseguiria? Está me chamando de gordo? — perguntou Baru, o olho direito tilintando de raiva.

— Eu... — o médico engoliu seco — Eu duvido que consiga levantar qualquer um de vocês!

— Agora você está chamando os meus irmãos de gordos? 

O tom de voz de Baru, que já era grosso a princípio, agora parecia absolutamente ameaçador. Hanzo bateu com a palma da mão em sua testa e Fang colocou a mão em suas costas, consolando-o.

— Não é nada disso, sr. Baru! Apenas tenho braços fracos... — Yun disse, dando um passo para trás.

— Eu estou vendo uma humilhação de elefante aqui? — perguntou Artúlio à plateia. — O candidato deve ao menos provar sua capacidade, estou correto?

A plateia aprovou, gritando em uníssono para que Yun ao menos mostrasse alguma proatividade. Por sua vez, o médico assentiu com as bochechas enrubescidas e já foi logo em direção a linha de partida, entretanto, agora quem estava com a face amarrada era Baru, que não parecia minimamente disposto a ser levantado pelo homem que o acusou de estar acima do peso. Fora necessário que outro de seus irmãos tomasse seu lugar na competição, mas isso também foi em vão, porque mesmo o menor deles não pôde ser levantado por Yun e, dessa maneira, sua desclassificação foi aceita pelo júri e população.

— Bom... — o narrador iniciou, um pouco desconcertado (e desanimado) — Iremos então passar para o próximo competidor! Bertruska, tome seu lugar, por gentileza.

Bertruska deu um olhar cúmplice a Flint, sorrindo desafiadora antes de levantar-se do banco com a coluna ereta e a postura de uma vencedora, e então caminhou a passos rápidos em direção ao lugar anteriormente ocupado por Yun e que agora, já preparado e trajado com os devidos materiais de segurança, Shake a aguardava, de quatro no chão e com uma das patas traseiras levantada para que ela o segurasse. Ela deu um riso contido ao ver a situação: aquilo era bizarro demais, até para ela. Sem pensar duas vezes, a ex-marinheira ignorou a pata, segurando-o pela tromba e imediatamente tomou impulso com um giro para arremessá-lo o mais longe que pudesse. O elefante mal conseguiu gritar. Voou pelo campo, aterrizando a metros de distância na lama e, de alguma forma, o susto de ser domado pelo nariz tão repentinamente não pareceu espantá-lo, dado que, no mesmo segundo em que levantou, bramiu alto em comemoração, levantando os braços e correndo em direção a Bertruska para cumprimentá-la com um "toca aqui" e um abraço apertado. Tudo foi tão rápido que Artúlio não conseguiu dizer uma palavra até que a mulher estivesse retornando ao banco.

— E-espere! — pediu, num grito alto e levantando a mão em sinal de pare. — Vamos, palhaços, meçam a distância! Agora!

— Supere essa, homem fraco! — Bertruska caçoou para Flint, que seguia com um sorriso bobo na face, indignado com a audácia de desafiá-lo dessa forma.

— E o que eu ganho, se eu for melhor que você? — perguntou, enquanto se aproximava da linha de partida.

— Um murro fraco na cara — ela riu alto. — Se você perder, contudo...

— 530 pontos! — Artúlio interrompeu com seu grito — Meus parabéns a dama! Agora, próximo competidor, posicione-se na linha!

Flint não pestanejou em seguir para sua posição. Dessa vez, quem o aguardava na linha era Candy, o responsável pela prova, de pé e com os braços cruzados sobre o peito. O cozinheiro fez uma pequena mesura ao encontrá-lo, e ofereceu a mão para cumprimentá-lo com um riso embaraçoso depois de ouvir dele um "Vamos mostrar pra essa mulherzinha como se faz". Que falta fazia conhecer a Bertruska de verdade, pensou consigo mesmo, rindo internamente. Em seguida, quando Candy se posicionou para ser erguido, pegou-o pela pata traseira e sentiu as costas chiarem quando tentou erguê-lo de princípio.

— Tudo bem aí, grandão? — perguntou o elefante. — Vai na fé, eu faço isso sempre — e fez um positivo com a mão direita.

Sem respondê-lo, Flint, sentindo uma veia dilatar em sua testa o rosto avermelhar-se, puxou-o com mais força e finalmente o tirou do chão; em seguida, ele o girou por meia volta no ar e então o arremessou para o mais longe que pôde, tirando o suor de sua testa ao observar Candy terminar sua parábola no ar para pousar de pé e braços esticados meio metro à frente da marca de quatro metros.

— Mesmo com os impressionantes 450 pontos de Flint, Bertruska continua na largada! — Artulio anuncia, e a plateia vibra na arquibancada. O cozinheiro sentiu um tapinha debochado em suas costas; era a guerrilheira — Finalmente esse jogo está começando! Bertruska, é sua vez de brilhar! — continuou a zebra.

Bertruska fez um muxoxo zombeteiro, puxando Shake pela tromba, mas antes de iniciar seu lançamento, olhou em direção ao cozinheiro e com tom de deboche o alertou: — Veja e aprenda!

Após mais um lançamento, a zebra não poderia estar mais chocada e, se antes gritava, agora podia-se observar suas bochechas ficando cada vez mais vermelhas a cada urro de comemoração. A desistência de Yun havia os colocado em um padrão excessivamente baixo, mas Bertruska e Flint mostraram-se completamente diferentes de seu rival: eram realmente fortes.

— 490 pontos, totalizando 1020 pontos! — anunciou. Bertruska ainda mantinha seu sorriso vencedor, não havia pontuado tanto quanto na primeira rodada, mas ainda se mantinha à frente do cozinheiro — Flint, posicione-se!

O cozinheiro olhou para o elefante designado, que olhou-o de volta com os olhos queimando em ambição. — Vamos lá! — disse Flint, tomando-o pela perna. Dessa vez, Candy voou alto o bastante para dar uma pirueta no chão e aterrissou, mais uma vez, de pé. Artúlio pareceu perder o equilíbrio no lugar.

— Por essa vocês não poderiam esperar! 600 PONTOS! — a zebra urrou, jogando o corpo para frente e deitando sobre o balcão, estava certo que a mulher seria coroada a campeã antes mesmo que iniciassem a terceira rodada. — Totalizando 1050 pontos, Flint assume a liderança!

— ISSO, FLINT! — na arquibancada, a voz de Morgan destoou das demais, em um urro de comemoração a vitória do amigo.

Bertruska fechou as sobrancelhas em um vinco mal humorado ao ouvir a traição de seu próprio bando, mas não precisou jogar nada na plateia, visto que Poyo, ao seu lado, não hesitou em dar uma cotovelada em sua virilha. Sorriu vingada e, antes que Artúlio indicasse que deveria voltar a posição de arremesso, ela se posicionou atrás de Shake, que ofereceu a tromba outra vez e flexionou os joelhos a sua espera.

— MEU DEUS DO CÉU! — a zebra gritou, uma vez que o irmão caiu sentado na lama — 610 PONTOS!

— Você não vai conseguir ultrapassar essa — Bertruska sorriu vitoriosa.

— Você que acha — Flint provocou.

No entanto, apesar de ter tentado, não teve jeito: o cozinheiro não conseguiu ultrapassar sua antiga marcação, finalizando a rodada com 570 pontos. Artúlio balançou os braços, sinalizando o fim da prova. Os gatos haviam vencido pela primeira vez e, incrédulos, desceram até o estádio em comemoração, abraçando Bertruska e gritando a plenos pulmões, sem se importar com os ouvidos sensíveis de Merin (aliás, mesmo ela pareceu esquecer da dor, afinal não era todo dia que ganhavam alguma coisa). Flint, mesmo que saindo como perdedor, sorria pela vitória da amiga, afinal, nunca desejou vencer, e mesmo que não pudesse negar que fora a primeira vez que se divertira em toda a competição (não conseguira relaxar na prova de cozinha, uma vez que Hanzo fazia questão de não tirar os olhos de si nem mesmo por um segundo e isso era algo que particularmente o assustava), sentia-se muito mais feliz pela conquista em si do que se sentia amuado por perder. No fim das contas, dentre todos os capitães que teve nos últimos dois dias, algo bastante incomum para qualquer pirata, ter a certeza que voltaria para sua tripulação primária era reconfortante o bastante para que uma parte considerável de seu estresse fosse embora.

Ainda no campo, ele procurou com os olhos Pieri e sorriu gentil a ela, cumprimentando-a com a cabeça, pois, apesar de seu interrogatório mais cedo, não poderia descartar o potencial que a garota demonstrava e o que ela arriscara para trazê-lo de volta, caso nada tivesse dado certo. Era uma exímia capitã, no fim das contas, pensou consigo mesmo, feliz por tê-la como aliada. 

≈≈≈

A garoa havia finalmente parado quando as três tripulações foram reunidas no estrado depois de um longo momento de comoção e, em decorrência dos leves ferimentos de Shake e Candy, Baru se viu obrigado a assumir a escolha de bandos. Não obstante, não houve mistério na hora da decisão: no momento em que perguntada, Poyo não se deu o trabalho de dizer quem queria e, em vez disso, correu em direção a Flint e o abraçou firme, sinalizando que o traria de volta. Pieri, a capitã lesada, não conseguiu conter o pranto dessa vez — reencontros eram seu fraco, embora se relutasse a assumir.

— Muito bem, fa-fom! — o elefante mais velho bateu com as palmas em frente ao microfone — Flint, sem sombra de dúvidas, foi o competidor mais disputado que já vimos por aqui! Fa-fa-fom!

O cozinheiro sorriu torto, preso no plural da afirmação — afinal, quantas vezes esses elefantes já haviam mediado um jogo daquele porte? Por fim, depois de secar o rosto de Poyo e a colocar sobre seus ombros, ele olhou aos arredores e, para sua felicidade, Hanzo não parecia estar presente na situação para incomodá-lo. Tudo parecia caminhar para um bom desfecho, agora. Seguiu de volta para sua tripulação.

— Bem, antes de anunciarmos a prova final, nós temos um pedido especial às tripulações, é hora de tirar nossa foto de recordação! — avisou o elefante, animado, caminhando sobre o palco e deixando-o antes mesmo que pudessem o questionar: não desejava qualquer reclamação, visto que, após tantos jogos celebrados pelos irmãos elefantes, a foto era um item essencial. Antes de sair andando, ele se voltou a todos uma última vez: — Não deixem o estádio antes do nosso fotógrafo retornar. Eu vou preparar tudo-fa-fom! Até logo.

Baru então se foi, saltitante e sorridente, quase fazendo a grama tremer a cada passo que dava. Depois disso, os demais piratas foram deixando o palco um a um, dispersando-se em pequenos grupos no gramado molhado. O clima estava mais leve que o normal, contudo, apesar de todos parecerem razoavelmente revigorados do cansaço, Hiroshi, um pouco longe de sua tripulação, observava pesaroso todas as conversas paralelas que aconteciam ao seu redor, não conseguindo se encaixar em nenhuma delas. Isto é, Flint estava de volta agora, mas ele parecia tão entretido com o bando que nem se lembrava de sua existência; era mesmo seu direito interrompê-lo para conversar? Ele sabia muito bem que não faria parte daquele grupo, nem que tentasse muito — e, de certa forma, isso já não o incomodava tanto assim.

Mais a frente, Pieri conversava com seus subordinados com os olhos marejados e apoiada sobre o peito de Kristian, repetindo alto o quão grata estava de ter participado, mesmo que minimamente, de uma reunião de família daquele porte e que estava muito orgulhosa de cada um deles, por terem lutado por ela. Também não poderia interrompê-los dessa maneira, pontuou Hiroshi, dando um suspiro cansado. Por último, depois de tantas pessoas ocupadas, reparou que o bando dos cães estava completamente afastado, e, tal qual um radar de solitários, a presença do médico, encostado com as costas no palco e com uma expressão cansada em sua face, pareceu apitar em seus olhos e, sem demora, tratou de se aproximar.

— Yun — Fang chamou, se aproximando a passos rápidos e desajeitados do médico, que meneou com a cabeça para ele. Hiroshi parou de andar no mesmo segundo.

— Onde o Hanzo foi parar? — ele perguntou, sem demora.

— Exatamente disso que eu vim falar — respondeu, cruzando os braços sobre o peito — Ele teve uma situação durante a competição e acabou apagando.

— Como exatamente ele apagou? — Yun questionou, que ao contrário de Hiroshi, não parecia minimamente confuso com a afirmação de Fang.

— Ele não lidou bem com sua performance...

— Ah — revirou os olhos. — Eu bem pensei que fosse ser assim.

— Certamente não imaginou do jeito que aconteceu — Fang riu alto. — Ele...

— Ei, o que você está fazendo aqui?

De repente, uma voz vinda por trás interrompeu a fala do homem peixe e, como se não bastasse, o dono dela encostou a mão no ombro de Hiroshi, que deu um pulo no lugar, virando-se de pronto. Era Sherikan, acompanhado de Nicholas e Hanzo, que parecia desnorteado, embolado em um cobertor de alumínio.

— E-eu... — o menino começou, levando um segundo para assimilar a pergunta e formular uma resposta — Eu estava de passagem, não queria incomodar...

O espadachim sorriu mínimo, dando um tapinha em suas costas, em um convite silencioso para que se juntasse aos demais. Mesmo envergonhado, Hiroshi, ciente de que aquela seria a melhor proposta que receberia, seguiu-o em direção ao restante do bando, assistindo a conversa agora mais de perto.

— Você está acabado — disse Yun ao capitão.

— Muito obrigado, eu não teria percebido sem você me dizer — retrucou. — Quem venceu a competição?

— A Bertruska — Nicholas informou — O Flint voltou para o bando deles — indicou com a cabeça para Hiroshi, que estava calado em seu canto.

— Que dia, meus companheiros — lamentou. — Que dia de cão. Puta que pariu.

A conversa continuou depois disso e Hiroshi, em segundo plano, observou em completo silêncio, internamente compreendendo a tristeza de Hanzo, afinal, Flint era sem sombra de dúvidas um bom pirata e uma ótima pessoa para se ter em uma tripulação. Não sentiu vontade de opinar ou sequer conversar; a realidade era que não fazia parte daquele bando, mas, por desejar o melhor para seu cozinheiro favorito, o menino desejou desde o princípio para que Bertruska perdesse e, principalmente, lamentou o momento em que ele foi tirado da companhia dos cães. Não que tivesse algo contra a capitã Pieri, mas tinha certeza que ela permitiria que ele voltasse a se tornar um subordinado de Poyo no momento em que os jogos terminassem e isso, sem sombra de dúvidas, era a pior coisa que poderia acontecer. Estar sem Flint era devastador, não tinha ninguém para conversar, todos o evitavam como se transmitisse alguma peste e a comida preparada por Merin não era nada agradável comparada a do cozinheiro, contudo, não tinha capacidade de desejar que ele retornasse ao bando, porque, em seu interior, Hiroshi desejava que Hanzo vencesse e, por algum motivo, o escolhesse como seu novo subordinado.

Ele não queria mais ter de servir os gatos. Não era de seu feitio ir contra as regras piratas; sabia que havia jurado lealdade a sua capitã e tinha noção de que seria caçado, caso os largasse, no entanto, apesar de não ter a menor noção do que eles faziam além de vagabundear nos mares, Hiroshi sabia desde o princípio que daquele bando não extrairia nada além de infortúnios e, por isso, a ideia de viajar ao lado dos cães não poderia parecer mais acolhedora agora. Isto é, ainda não tivera a oportunidade de conversar com todos individualmente, mas nenhum lhe causava o mesmo arrepio na espinha que sentiu nos dias preso na carniça, e isso já era o bastante para fazê-lo ponderar sobre uma vida melhor. Os cães eram corteses, não pareciam buscar brigas por qualquer motivo e, embora não pudesse dizer ao certo, tinha a impressão de que, ao lado deles, estava caminhando pelas rotas certas — algo que nunca sentia perto dos gatos. Ademais, Hanzo lhe transmitia determinada proteção e, ainda que seu comportamento da manhã parecesse esquisito a princípio, ele fora completamente justificado ao ver a maneira com que tratava seus subordinados, dado que parecia se importar genuinamente com eles e apenas não tinha delicadeza para lhes contar a verdade.

Podia estar errado, mas estava disposto a apostar; não só porque queria se livrar de Poyo, mas sim porque, por mais que doesse admitir, Hanzo, bem no fundo de suas memórias, parecia próximo demais do Hiroshi que um dia conheceu. Afinal de contas, seu antigo capitão era difícil de lidar, mas nem mesmo por um momento deixou de se importar consigo; era nobre, amável e orgulhoso, um homem íntegro apesar da pouca idade, e, se sua vida não tivesse sido cruelmente ceifada, certamente sua postura atual seria tão firme que até mesmo um homem como Hanzo o admiraria. Eram similares dessa forma, e é por isso que queria se espelhar.

Pela primeira vez em anos, Hiroshi sentia vontade de ser Hide de novo. E esse sentimento que nenhuma Poyo poderia estragar.

— Atenção, piratas-fa-fom! — chamou Baru, retornando correndo com um Artúlio, que agora trazia consigo um enorme caracol-fotográfico em cima de um tripé desengonçado.

De súpeto, Hiroshi e os cães foram amassados pelos irmãos elefantes, que os empurraram até a frente do palco para que pudessem posar junto dos demais bandos. Nenhum dos participantes parecia muito contente com a ideia, mas não se opuseram, pois sabia que não iria adiantar — Baru era um elefante muito insistente.

— Essa vai para minha coleção pessoal de Davy Back Fights! — disse, dando um salto no lugar. — Digam "x"!

Depois do "click", a foto escorregou da boca do caracol e a zebra não tardou em abraçá-la, mais sorridente do que nunca.

— Você tem outras dessas? — Hanzo perguntou a Baru, erguendo a sobrancelha.

— Oras, muitas, fa-fom! Toda semana recebemos um bando novo para brigar e, da mesma forma, tiramos uma fotografia para me lembrar — ele parou por um breve segundo, como se pensasse — Embora, devo admitir, essa é a primeira vez que me lembro de uma foto tão grande...

— Vejam a foto! — Artúlio interrompeu, entregando ao elefante a grande folha de papel recém-cuspida.

Era uma imagem de cores foscas, com pouco mais de cinquenta centímetros de largura e trinta de altura, onde todos os tripulantes, com exceção de Hiroshi, que se manteve próximo aos cães, mantinham-se próximos de seus devidos capitães, como se tivessem orgulho das equipes que faziam parte. Ao redor de Pieri, Apollo e Yolanda se juntaram em um abraço apertado, cada um em uma lateral do corpo da capitã, levantando-a do chão e, embora a garota ainda carregasse o semblante de choro de outrora, os três sorriam alegremente para a fotografia, enquanto, à sua direita, Franz fazia pose segurando sua cartola de mágico, perto de Merin e Morgan, que estavam escondidos sob a sombra de uma sombrinha e com a mulher o segurando pelo braço. Pretzel, a elefanta amarela, estava colada aos três, encantada com a magia do médico. Mais distante deles, Shari e Kristian, talvez menos interessados na fotografia, estavam trocando um montante de dinheiro, provavelmente de alguma aposta e fazendo fronteira com o resto dos gatos, que, por sua vez, estavam amontoados no canto; Bertruska e Flint faziam pose um ao lado do outro, com um dos joelhos levemente flexionados para dar espaço a Shake e Candy — que estavam logo atrás deles —, mas não baixos o bastante para serem cobertos por Poyo e Belka, logo a frente, posando com Fionnula em seu colo e a gata evitando mostrar a face. No canto oposto, por fim, o bando Komainu parecia mais compacto e, dessa forma, menos próximo dos demais participantes: estavam todos, com exceção de Fang, que sorria abertamente, com as feições fechadas e em poses mínimas, sobretudo Sherikan, que parecia esconder-se por detrás de Hiroshi, embora também pudesse parecer que ele só estava tentando ser gentil e dando lugar ao garoto. Nenhum deles parecia muito fotogênico, especialmente Hanzo, que ainda não havia se recuperado de seu mal estar e também não parecia muito confortável com a elefanta rosa acariciando sua cabeça com a tromba.

— Ora, é uma ótima fotografia, posso até dizer que estou mais magro nela! — Baru afirmou, olhando diretamente para Yun enquanto falava, levantando o peito e puxando o ar para esconder a barriga. Ele era o centro da foto, à frente de Pieri, que estava levantada.

— Sem dúvidas, você ficou muito elegante! — respondeu Yun, engolindo em seco. Mesmo sem intenção, havia ferido a honra de um elefante particularmente inseguro.

— Somos os piratas mais bonitos que já passaram por aqui, Yunzinho! — o mágico afirmou, passando as mãos pelo próprio cabelo e soltando um sorriso ladino, ganhando um alto suspiro vindo de Pretzel — Deveríamos tirar mais fotos juntos!

Franz constatou e, com um único puxão, tirou Yun do meio da multidão em busca do fotógrafo. Ninguém se intrometeu, afinal, mesmo se tentassem, o mágico certamente não daria a mínima.

— Homens tolos! Não há como ser mais belas do que nós, Fionnula! — a ex-marinheira afirmou, rindo alto e fazendo um carinho sobre a cabeça da galinha, que cacareja em concordância. Poyo apertou as bochechas, com ciúmes.

Por fim, ninguém mais comentou sobre a fotografia e, enquanto alguns procuraram o fotógrafo a fim de guardar mais algumas memórias — afinal, não é todo dia que encontram um fotógrafo disposto a fazer o trabalho sem lhes cobrar um tostão —, o resto optou por dispersar-se pelo campo e, principalmente, descansar para a prometida prova dos capitães. Baru havia lhes dito que, dentro de duas horas, depois de um intervalo merecido, eles deveriam se encontrar no penedo leste, ponto mais alto da ilha, onde seriam instruídos para a prova final. 

Poyo mal podia esperar — estava receosa quanto às consequências daqueles jogos, visto que seu desempenho não fora nem de longe o que imaginara, contudo, tinha a esperança de que a última prova seria sua chance de se redimir de seus pecados, sobretudo porque, quanto antes saíssem de lá, mais cedo voltariam para a sua rota habitual e esqueceriam dos erros do passado.

Não era hora de fraquejar.

A vida pirata daquele jeito não era como imaginava, mas estava pronta para enfrentar seus adversários e mostrar para o seu bando que não era apenas mais uma pirralha insolente. E, se para isso precisasse massacrar quem estivesse ao seu redor, então o faria, porque estava pronta para lutar. 


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