Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 33
Grand Line, anfiteatro de Woo Pululu (Jogos Piráticos)


Notas iniciais do capítulo

{O programa de comentários ácidos da Entidade das Notas está suspenso nesse site}



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/791492/chapter/33

Hiroshi acordou em um sobressalto sobre o colchão improvisado sem saber ao certo onde estava. Não saberia dizer exatamente quando pegou no sono, mas no momento que abriu os olhos, teve certeza que não descansara por sequer um segundo e, se fosse para ser sincero consigo mesmo, talvez dissesse que estava mais cansado do que quando foi dormir. Estava miserável — e essa sensação de desamparo se repetia muito ultimamente, uma vez que faziam dias que não conseguia dormir sem ser atormentado por pesadelos e sonhos inconstantes, ou então pelas tão frequentes discussões dos demais tripulantes daquela estranha embarcação. Às vezes, também, era Poyo quem o acordava, dando-lhe uma bem-dada travesseirada apenas porque podia fazê-lo e, em síntese, ele não poderia fazer nada, pois, contra a palavra de sua capitã, sua voz não era nada.

Mais do que nunca, Hiroshi sentia-se a um passo do retrocesso de agarrar-se ao seu único bem: a mochila que por tanto tempo o acompanhara. Sabia que não poderia depender de um objeto para conseguir se manter firme no chão, ainda mais depois de ter aquela conversa com Flint sobre desapego, entretanto, nos últimos dias a vida andava tão difícil que ele não via problemas de, de vez em quando, sentar e conversar com o verdadeiro Hiroshi — o que ficara preso na fruta do diabo — e pedir-lhe conselhos de como sair daquela situação. Daria tudo para nunca ter entrado ali, dizia a ele; mas a Fruta não o encorajava a ir embora. Não tinha para onde ir, o outro Hiroshi respondia. E é por isso que tinha de se acostumar e ficar. 

Finalmente de pé, e sentindo um peso insuportável em suas costas, Hiroshi caminhou pelas pontas do pé para fora da barraca, temendo acordar qualquer um dos tripulantes enquanto o fazia, porque os momentos que passava a sós consigo mesmo eram os únicos que ainda prezava em sua vida. O desejo de tomar a mochila e sair andando até que alguém o encontrasse passou outra vez em sua mente, mas com medo de não poder explicar-se caso fosse encontrado antes de concluir seu objetivo, preferiu tomar um ar antes de tomar decisões sérias, e por isso seguiu ao acampamento com a cabeça quase tombada aos próprios passos, partindo sem rumo para qualquer lugar onde pudesse pensar em silêncio. 

O dia ainda não havia amanhecido, mas já tinha uma coloração mais clara que a noite e o vento não era insuportável o bastante para voltar e buscar um casaco. A passos firmes, passou por cada uma das tendas, imaginando se os demais tripulantes já estavam acordados numa hora dessas e se, por acaso, Flint não estaria por aí em vez de dormindo como sempre fazia no navio, mas logo dispersou esse pensamento de sua cabeça, lembrando a si mesmo que de nada adiantava procurá-lo agora, dado que não estavam mais no mesmo bando e nada se resolveria se apenas ficasse se lamentando e pedindo ajuda desse jeito. No limite de sua estabilidade emocional, pôs para si mesmo que tinha duas opções: ou caminhava pelos próprios passos até conquistar o respeito do resto do bando, ou então dava um jeito de ser repescado para outra tripulação — e, diga-se de passagem, nenhuma dessas opções contemplava ir atrás do cozinheiro. Não agora, ao menos.

Quando alcançou o limite da cidade e o caminho tortuoso que o levaria até o porto dos barcos, por fim, Hiroshi sentiu o peso sair de seus ombros e parou por um breve segundo para ver e ouvir o mar. Tendo vivido a maior parte de sua vida em um pequeno barco, ele não pensou que passar dias na gávea lhe faria tão mal quanto fizera realmente, mas apenas alguns passos do lado de fora o fizeram compreender que, de fato, estava muito errado em pensar assim. Como aquela liberdade e solidão lhe faziam falta..., disse a si mesmo. Isto é, já não podia dizer que estava sozinho, uma vez que fazia parte de uma tripulação, contudo, em comparação ao que vivera anteriormente, estar com os Gatos era o mesmo que se estar exilado: estava preso com pessoas que não gostava de conviver, sem poder sair de um minúsculo cesto ou deixar de se sentir amedrontado, e a cada dia que passava, temia ainda mais estar mais próximo de sua morte.

Hiroshi não fazia ideia do porquê aquele bando parecia tão aterrorizante, entretanto tinha completa noção de que não poderia viver mais lá. Do jeito que estava, seria executado a qualquer momento e ninguém sequer se lembraria dele, agora que Flint fora embora. As coisas estavam tão ruins que simplesmente não conseguia ver como poderiam piorar. Talvez fosse hora de...

Um repentino farfalhar na relva interrompeu seus pensamentos e, apavorado, o espadachim sentiu sua pressão ir ao chão. 

Era a hora, disse internamente. Seria morto ali mesmo.

— Por favor, não me mate! — disse, abaixando-se de cócoras por instinto e cobrindo sua cabeça. Esperou uma espada o cortar ou a bala de um revólver lhe penetrar, mas ela nunca veio. Invés disso...

— Desculpe-me! Estou apenas retornando ao acampamento! — respondeu a voz de um homem que, ao olhá-lo propriamente, Hiroshi percebeu de pronto se tratar de Hanzo, o capitão da outra tripulação. Fitou-o por alguns segundos, ainda concebendo a ideia de que não seria assassinado e, em seguida, reparou que o homem não parecia o mesmo que havia visto na competição a algumas horas atrás; sua feição estava devastada. Torceu o lábio, e o capitão continuou a falar, ao notar quem encarava: — O que faz perdido a essas horas, garoto? Não devia estar com sua tripulação?

— Não estava conseguindo dormir — explicou, encarando o chão desviando o olhar — E o senhor, capitão Hanzo? Está tudo bem?

O capitão ficou quieto por alguns segundos, ponderando o que estava estranho em si para fazê-lo perguntar, mas deu um riso constrangido ao lembrar-se que, no dia anterior, não estava vestido como o habitual. Quer dizer, para quem o conhecia, de fato não havia muita diferença em sua aparência atual; estava com a barba por fazer, o cabelo longo despenteado e as olheiras salientes; mas isso era o normal. 

Por um instante, achou engraçado a ideia de alguém realmente se preocupar com sua forma desleixada.

— Estou melhor, obrigado. Também não pude dormir; havia de arrumar meu navio para receber os novos integrantes — mentiu, semicerrando os olhos com um sorriso gentil e lhe oferecendo a mão. O garoto não precisava saber o que realmente fizera na noite anterior; certamente havia sofrido demais com seu bando.

— Caramba! Que gentil da sua parte — respondeu Hiroshi, surpreso, e não pôde deixar de lembrar que, se não fosse a gentileza do cozinheiro, nem mesmo teria uma cama agora. Conteve uma pequena contração na boca ao lembrar-se que agora aquela cama seria apenas dele, e então se levantou com a ajuda do capitão. — Obrigado.

— O mínimo não é gentileza. É só o mínimo — Hanzo pontuou.

— Uau, você deve ser um cara bem legal! — disse, sorrindo genuíno. — No meu caso, acho que meus padrões estão baixos. Se não fosse por Flint, eu não teria nem uma cama para dormir!

— Ele se ofereceu para dormir na rede em seu lugar?

— Não, no sofá. Embora eu nunca tenha o visto dormir, para ser sincero.

Hanzo se sentiu amuado com aquela informação, lembrando-se de que havia o deixado sozinho com o resto da tripulação. Com sorte, ele não faria nenhuma besteira se não tivesse contato com seu antigo bando — ou ao menos era nisso que queria se apoiar, pois a ideia de chegar em um campo destruído o assustava demais. Talvez tudo aquilo fosse planejado para tirá-lo do acampamento. Talvez aquele garoto pulasse em seu pescoço agora. Talvez...

— Quer tomar um café? Ainda há algum tempo até que os jogos retornem — pergunta o capitão, tentando afastar os temores de sua mente. Sabia que não era correto confraternizar com o inimigo, porém não conseguiria evitar a culpa, caso não o ajudasse: ele certamente não comeria junto de sua tripulação.

— Não precisa, não quero incomodar — recusou, balançando as mãos de maneira constrangida. — Eu só precisava tomar um ar.

— Não está me incomodando — interrompeu — Quem acorda cedo, precisa se alimentar bem, ou não aguentará o dia inteiro.

Hiroshi hesitou ao ver Hanzo caminhar em sua frente, ficando parado onde estava.

— Venha — o capitão chamou outra vez. Dessa vez, foi.

≈≈≈

Ao adentrar a barraca, Hanzo soltou um suspiro de alívio ao deparar-se com seus subordinados — em grande maioria — ainda ressonando no chão. Não era de seu feitio ser tão temeroso por eles, isto é, sabia que já tinham idade o bastante para se virarem sozinhos e defender a tripulação, caso necessário, mas depois do que ouvira no cais na noite anterior, nada parecia muito certo. Contou as cabeças por cima, constatando que faltavam duas e, nesse momento, seu coração disparou: os desaparecidos eram, nada mais, nada menos, que os membros que ingressaram recentemente a tripulação. Eles não poderiam o trair tão rapidamente, poderiam? pensou, sentindo suas mãos começarem a soar. Hiroshi, muito atento ao capitão do bando rival por conta de suas próprias inseguranças — temia ser um incômodo para alguém tão gentil —, logo notou que sua postura havia encolhido.

— Você tem certeza de que está bem, sr. Hanzo? Deveria descansar um pouco antes da prova... Eu posso ir embora... — disse a ele, abaixando o tom na última frase, mas antes que tivesse uma resposta, Nicholas, o espadachim recém recrutado, adentrou pela saída dos fundos da barraca com uma xícara em sua mão.

— Bom dia, capitão — ele fala, com uma expressão cansada. Nicholas então o cumprimentou com uma mesura polida e por fim tomou um lugar na mesa improvisada. — O café da manhã ainda não foi preparado, mas posso preparar uma xícara de chá, se quiser.

— Onde você estava? — perguntou Hanzo, com as sobrancelhas juntas.

— Tomando um chá do lado de fora, pensei que tomar um ar me ajudaria a descansar mais um pouco — explicou. — Quero dizer, eu costumava viver em um submarino, então meu relógio biológico não funciona muito bem.

O capitão deixou escapar um "ah" baixo, sentindo-se constrangido por ter desconfiado dele, quando, na verdade, Nicholas estava fazendo algo plenamente normal. Mas isso não era o bastante para livrá-lo da suspeita. — Flint estava com você? — perguntou.

— Ele saiu a algum tempo para pescar — Nicholas pontuou, sorvendo com tranquilidade o líquido em sua xícara e o capitão sentiu seus olhos se arregalaram involuntariamente.

— Pescar? — ergueu uma sobrancelha. Flint não estava no cais, ele tinha certeza.

— Ele faz isso às vezes — Hiroshi contou, embora algo de si já soubesse que aquela preocupação toda não parecia muito natural. — Digo, fazia, enquanto estávamos no mesmo bando...

Sem terminar de ouvir o que o garoto tinha a lhe dizer, uma gota de suor frio já escorria pela nuca de Hanzo, que de prontidão buscou com os olhos as armas que o cozinheiro havia trazido na noite anterior. Com exceção de sua besta, estavam todas ali — e isso não poderia ser menos tranquilizante. Quem precisava de uma besta para ir pescar?, se perguntou, já fechando os olhos para pensar com mais clareza. Caso Flint estivesse se encontrando com o bando dos gatos, faria sentido que Hiroshi fosse retirado da tenda, já que, pelas palavras da gata monstruosa, estavam afastando-o ao máximo de todas as informações. Entretanto, a ideia de que Belka e Poyo estavam blefando sobre o garoto não ter conhecimento algum sobre seus feitos ainda não saía de sua cabeça. Engoliu em seco.

— Nicholas, você pode ir atrás dele? — pediu, sentindo os dedos das mãos tremerem e a voz vacilar, soando um pouco mais esganiçada do que desejava. Se Hiroshi estivesse com eles, teria o matado quando o encontrou no caminho, em vez de esperar chegar até ali, onde haviam mais pessoas, pontuou a si mesmo, se tranquilizando. Enfim, adicionou uma explicação à ordem: — Logo irei acordar os demais para que possamos discutir sobre os jogos. Todos têm que estar aqui.

Nicholas, por sua vez, apenas meneou com a cabeça, calçando um par de sapatos e deixando a tenda sem qualquer preocupação. Hiroshi olhou para o capitão.

— Você tem certeza que está bem? — insistiu.

— Sim, estou.

O tom de voz do homem fez com que Hiroshi congelasse, logo endireitando sua postura e sentindo-se mal pela gafe. Por que era sempre tão inconveniente?, se perguntou. Contudo, ao contrário do que imaginara, o capitão não pediu para que saísse por desrespeitá-lo e, em vez disso, foi em direção à cozinha improvisada, colocando duas xícaras sobre a mesa e uma chaleira no fogão para borbulhar. Ele o convidou para se sentar enquanto fazia o café da manhã.

— Talvez eu esteja sendo intrometido em perguntar, mas o senhor não vai esperar o Flint para cozinhar para você? — perguntou Hiroshi. — Quero dizer...

— Por que eu esperaria? Ele saiu porque quis — o capitão interrompeu, a voz seca e direta, e quando notou o silêncio, começou a lavar o arroz.

— Porque ele é o cozinheiro, eu acho... — Hiroshi responde, a princípio baixo, mas lembrando-se que Flint fora o único a ajudá-lo nos árduos dias em que estivera no mar junto dos gatos, decidiu que valia a pena defendê-lo dos cortes do homem. — E, veja, ele é um dos bons! A comida dele é a melhor que comi em muito tempo! — acrescentou.

Hanzo parou de mexer a peneira, deixando a água corrente descer pelos grãos sem intermédio. O silêncio da tenda parecia ensurdecedor. Por um instante, pensou em respondê-lo; quer dizer, era fato que havia esquecido completamente da posição do novo integrante, mas isso não mudava o fato de que não tinha a menor necessidade de esperá-lo para fazer sua comida. No fim das contas, durante seus trinta e seis anos de idade, desde que aprendera a mexer com fogo, era ele quem cuidava da própria alimentação e, destarte, tinha plena capacidade de preparar combustível para quem quisesse e na hora que quisesse. Chegava a beirar o ofensivo tê-lo de esperar! Porém, antes que pudesse expressar o que pensava, seu raciocínio fora interrompido pela figura de Nicholas adentrando a tenda, sozinho.

— Mas oras! Eu não mandei que buscasse Flint? — exaltou-se ao espadachim recém-chegado. O garoto mal havia sido arrebatado para a tripulação e já estava negando suas ordens diretas? Sentia-se ultrajado.

— Eu não precisei trazê-lo, nos encontramos na metade do caminho — respondeu friamente, sem qualquer temor em seu tom de voz. Isto é, após tanto tempo viajando com Pieri, gritos eram algo que não lhe diziam nada a respeito, mas não pôde deixar de sentir um estranhamento pelo esporro que estava prestes a receber, já que, de fato, não estava fazendo nada de errado e ainda assim o capitão parecia encará-lo como se estivesse o desrespeitando. Será que conviver com os pierrôs havia o feito mal educado de alguma forma?, Nicholas se perguntou.

No entanto, por qualquer motivo que fosse a bronca, ela não pôde ser iniciada porque, antes de começar a falar, Flint adentrou a tenda com sua besta presa nas costas, as calças puxadas até os joelhos, uma vara de pesca em mãos e um grande cooler abraçado pelo outro braço. Ele havia realmente ido pescar. O capitão arregalou os olhos.

— Você mandou me chamar? — perguntou o cozinheiro, parecendo um pouco atordoado com o semblante obtuso do homem e, sobretudo, por notar Hiroshi sentado na mesa improvisada. — Está tudo bem com você?

Hanzo não conseguiu responder. Estava sem palavras.

A água na chaleira apitou no fundo e ele foi desligá-la.

— Dando uma volta, Hiroshi? — Flint continuou, sereno, aproximando-se do menino e colocando a caixa térmica sobre a mesa.

— Encontrei com o sr. Hanzo agora pouco, próximo do cais. Eu não estava conseguindo dormir por causa dos roncos.

— A Bertruska parece um animal selvagem quando bebe, não é? — o cozinheiro riu — Por que acha que havia lhe dado minha cama?

Dispondo lentamente a água em uma panela, o capitão levantou as sobrancelhas, sentindo uma oportunidade.

— Como não o vimos pelo cais? — indagou, sério.

— Pelo cais? — Flint repetiu, colocando a mão no queixo para pensar por um breve segundo.

— Eu estive lá a noite inteira e não vi nenhum sinal seu. Como isso seria possível, se você não estivesse mentindo para mim agora? — acusou, sem mais delongas, e por fim bateu com o pulso na mesa para fazer barulho. Hiroshi e Nicholas deram um pulo no lugar, mas Flint somente arregalou os olhos e arqueou as sobrancelhas, genuinamente intrigado com aquela desconfiança toda. Antes que ele respondesse, no entanto, algo deixou as camas improvisadas, pisando em passos duros.

— Será que... — resmungou a voz da sombra, logo se revelando como um Yun bastante irritado: seus olhos estavam semicerrados, os longos cabelos negros cobriam o rosto de modo a não permitir a luz e a boca estava esticada em um risco de desprezo. — ... não seria porque essa ilha tem um cais em cada direção cardeal? — completou, colocando a mão no ombro de Hanzo.

O capitão se calou de pronto, engolindo o próprio orgulho.

— Não sei qual das docas era. Fui um pouco além de onde estávamos ontem, na competição de nado — disse Flint, dando de ombros — Não precisa acreditar na minha palavra se não quiser, não te peço confiança, mas garanto que os peixes falam mais alto que minha voz — e, então, abriu o cooler que carregava, revelando seu conteúdo.

Eram peixes, sem dúvida. Alguns até se debatiam.

Os homens presentes não sabiam ao certo o que dizer. Yun, em especial, olhava para Hanzo de maneira presunçosa.

— Pesquei para nosso almoço, como sempre faço — completou Flint, cruzando os braços sobre o peito. — Se não se importam, eu gostaria de tomar um banho agora.

— Onde, no navio? — Hanzo interpelou. — Nem pensar. Você não pode ir sozinho até o navio.

Flint arqueou as sobrancelhas e soltou um suspiro sôfrego, contando até dez em sua cabeça. Aquele homem... não tinha jeito, disse a si mesmo, e, por fim, falou:

— Então deixe-me fazer o café da manhã, ao menos. Este é o meu trabalho, no fim das contas.

≈≈≈

O palco que sediaria o próximo jogo era o mesmo da noite anterior, em frente a prefeitura da cidade. Temendo em se atrasar — e talvez por não conseguir dormir depois de perder um aliado —, Pieri se direcionara o mais cedo possível naquela manhã e, por volta das nove da manhã, quando os woopululenses começaram a aparecer na arquibancada, toda a sua tripulação já estava sobre o palco, entretendo-os com algumas piadas e passos de dança treinados por Yolanda e Apollo (eles queriam se redimir com o público depois da apresentação anterior). Era empolgante e, após uma noite tão conturbada, a capitã não podia deixar de se sentir aliviada com a diversão de seus subordinados, que, mesmo estando perdendo de maneira humilhante para um bando de piratas novatos, sorriam vitoriosos como se nada os abalasse e, dessa forma, conquistavam o favoritismo do público desejado.

— Bom dia, capitã — cumprimentou Shari, aproximando-se da garota, que estava apoiando os cotovelos de costas ao gargarejo do palco. Ele não havia dormido com o resto da tripulação porque temia deixar seu bebê (o Diabo Negro) exposto ao mar, e por isso havia chegado um pouco depois dos demais subordinados.

— Achei que todos já deveriam estar aqui numa hora dessas, hya — respondeu Pieri, olhando para os grandes alto falantes que, há alguns minutos, haviam pedido para que todos se aproximassem. Por não terem retornado ao chão ainda, ela assumiu que outro recado seria dado. — Como foi sua noite?

— O Hanzo perdeu as estribeiras no barco — o macaco explica, saltando para se sentar na ponta do palco e tirando um charuto de seu colete.

— Como assim, hya? — ela indagou, torcendo o lábio.

— Surtou — deu uma tragada para acender o charuto. — Quando cheguei para dormir depois de bebermos, ele estava jogando coisas pela janela e gritando com as paredes do próprio navio. Parecia transtornado.

— Ele estava dentro do Diabo Negro? — ela arqueou uma sobrancelha.

— Claro que não. Do barco deles — soltou uma risadinha pelo nariz — O faria dormir com os peixes se encostasse no meu bebê.

— Hya! Estão por que você está me contando? — respondeu com a cara amarrada — Eu já odeio esse cara, Shari. Não quero que você me dê mais motivos para odiá-lo!

— Bem, foi especialmente engraçado. Você ia rachar o bico — ele deu de ombros — Olha a expressão de fodido no rosto dele.

Então, o mecânico apontou com seu charuto e, ao observá-lo, Pieri deu de cara com um grupo particularmente estranho; os cães chegavam ao palco e, após ignorar completamente a face amarga de Flint e a presença do garotinho da tripulação de Poyo caminhando junto do restante do bando, a capitã observou com cuidado a face de Hanzo e então compreendeu o que o macaco tentou lhe dizer desde o princípio. O homem estava um caco. Talvez até pior do que como era no primeiro momento que o conhecera.

— HYA! 

A pequena gargalhada, que mais soou como um guincho, fora involuntária.

— Eu te falei — Shari colocou a mão em seu ombro, dando um tapinha gentil antes de sair andando para longe com um passo ritmado e o charuto nos dedos.

Pieri não sabia o que dizer. Nem mesmo quando Kristian parou ao seu lado, perguntando o porquê dela parecer tão pálida, ela soube como dar uma resposta concreta. Mesmerizada com a figura capenga do homem, que no dia anterior parecia dar seu melhor para impressionar os outros, ela apenas meneou para seu imediato em incredulidade, tentando entender o que o fizera mudar tão drasticamente uma segunda vez em tão pouco tempo. Não conseguia entender. Hanzo não parecia ser um homem vaidoso, mas aquilo ia além da modéstia.

— Uau, o capitão voltou com tudo para as vacas magras — debochou Kristian.

— O Shari disse que ele gritou com as paredes a noite inteira. Algo deve ter acontecido na sua tripulação.

— Certamente é porque ele está forçando um Romeu e Julieta entre os nossos bandos. Quer dizer, não tem o menor motivo dele erguer os muros pra gente, senão para impedir o mascote dele de se envolver com o nosso — apontou para Franz com o polegar, que estava distante deles e um tanto amuado em seu canto. — Tenho tanta certeza que Franz é o primeiro amigo de Yun quanto tenho que o céu é azul e que pedra tem gosto de sal — riu.

— Não mesmo-hya — Pieri olhou para o médico por cima do ombro, e depois voltou-se a Kristian, passando a encará-lo com uma sobrancelha erguida — Para as duas afirmações, aliás. Com exceção da do céu, que é a única certa — murmurou. — De qualquer forma, não posso dizer que estou de todo zangada-hya. Afinal, nosso Franz não merece receber migalhas de atenção quando tem um público inteiro aqui, pronto para amá-lo! — e abriu o braço para indicar os cidadãos de Woo Pululu, que, cada vez mais em peso, assistiam o show de Apollo e Yolanda.

O Circo dos Pierrôs era adorado por onde passava e se apresentava, mas, por algum motivo, naquela pequena ilha da Grand Line, era especial. Talvez fosse porque falavam a mesma língua deles. Na plateia, o povo assistia a dança sincronizada do casal halterofilista com tanto vigor que alguns até imitavam seus passos. Seus subordinados eram incríveis, pensou a capitã, muito orgulhosa do que havia ensinado. Tinham sempre de sorrir em apresentações enquanto seu macaco batia algumas carteiras. Um pouco mais distante, observou uma segunda vez a figura cabisbaixa de Franz que, além da distância de seu novo amigo, ainda se acostumava com a ausência de Nicholas. Estava mais tristonho do que o habitual, e isso a preocupava — queria mesmo que ele estivesse com seu amigo, mas infelizmente não havia nada para ser feito sobre o assunto enquanto Hanzo continuasse agindo como uma pedra em seu sapato.

— O capitão mendigo é lamentável, meu caro Kristoph! — ela atirou, prestando atenção mais uma vez nos cães que se aproximavam. Todos eles tinham uma expressão frígida, e não pareciam dispostos para mais um jogo, embora estivessem vencendo.

— Concordo plenamente — respondeu uma voz firme vinda de seu lado. Pieri e Kristian se viraram de supetão, levando um susto com a presença repentina da guerrilheira da tripulação aliada, que casualmente havia parado apoiada ao palco como eles estavam, apenas para ouvir a conversa dos dois. — Eu poderia afundar aquele nariz empinado com um soco!

— OK... — o imediato franziu o cenho, contraindo o rosto em genuína incerteza. Ele não fazia ideia de quando ela havia chegado ali, tampouco o que Bertruska queria dizer com seu desejo de espancar o mercenário, mas assumiu para si mesmo que era apenas uma necessidade de se expressar. Todos tinham que lidar com isso de vez em quando, concluiu.

Finalmente, os demais gatos juntaram-se a Bertruska e pouco a pouco tomaram seus lugares ao palco, permanecendo em silêncio enquanto observavam a apresentação de Apollo e Yolanda e esperavam a chegada dos elefantes. Com exceção de Poyo, que encarava o bando dos cães com a feição estarrecida, a pierrô notou que sequer um dos demais notou a falta do novo garotinho. Não pareciam estar dando a mínima para ele — e isso não era de todo ruim, já que ele claramente não tinha jeito para a "coisa". Distante deles, notou também que Hanzo continuava solene sobre o próprio bando e também acima de Hiroshi, que olhava-o com admiração no olhar. Eles os ignoravam como se nem estivessem perto do palco, exatamente no centro de seu campo de visão: de alguma forma, o capitão conseguiu impedir que se dispersassem sem precisar dizer sequer uma palavra de ordem.

— Obrigado, obrigado! — disse Apollo, no centro do palco, e fez uma reverência ao público ao terminar sua apresentação.

Como um bailarino, ele segurou delicadamente a mão (de bigodes) de Yolanda e, depois de fazer uma mesura para ela, agradecendo-a por o acompanhar na coreografia, ambos se viraram a plateia e os reverenciaram uma segunda vez. As palmas soaram altas, juntos de assobios e gritos comemorativos que caracterizavam o fim de uma marcante apresentação e, também, o início de uma nova rodada de jogos, visto que alguns elefantes já os observavam da plateia e aos poucos movimentavam-se em direção ao centro da praça. Para aquela competição, toda a estrutura, que se assemelhava a um anfiteatro, havia sido redecorada e agora tinha enfeites e adornos típicos de picadeiro, como bandeirolas penduradas, luzes brilhantes e as cortinas com listras verticais em vermelho e branco. Parecia um sonho de palhaço — e disso os pierrôs entendiam muito bem. Finalmente, depois da salva de aplausos acabar, o casal desceu as escadas do estrado, dando espaço para a silhueta de uma pequena elefanta (ao menos comparada aos demais irmãos), que subiu embaixo de um guarda-chuva envolto por um véu branco-fosco e logo ocupou seu lugar frente ao microfone. Toda a madeira do palco tremeu com seus passos delicados e sua presença se tornou ainda mais marcante quando deixou cair o pano branco que a cobria, revelando um adorável colã rosa-bebê de alça dupla e bordado de flores com um tutu de tule perolado e sapatilhas de ponta bastante pequenas para sua grande estrutura. Ela usava uma coroa de princesa.

— Respeitável público, fo-fom! Estão preparados para o último dia de jogos? — perguntou. Sua voz tinha um tom fino como o de um trompete.

Os palhaços e demais moradores disseram que sim em uníssono, mas os piratas não fizeram questão de se expressar.

— Oras, não façam essas caras! Tenho certeza que irão se divertir muito nessa manhã — falou, soltando um risinho ladino e suas bochechas se avermelharam, um pouco tímida. — Afinal, a melhor anfitriã estará com vocês! A propósito, sou Cotton, a Elefanta bailarina. Espero que possamos nos dar bem — e terminou fitando intensamente o capitão dos cães, piscando os olhinhos, embeiçada. O homem, em resposta, desviou o olhar em visível constrangimento.  (Alguns passos ao lado e fora do campo de visão da apresentadora, Kristian tampava a boca da capitã com uma de suas mãos, impedindo-a de soltar uma grande gargalhada, enquanto ele próprio cobria seus lábios com a outra mão).

— Para essa prova, — a elefanta, fazendo-se alheia a tudo que não fosse seu próprio prestígio, torna a dizer: — preciso que cada competidor escolha um campeão e, para este, poderão designar um ajudante, como da última vez.

A multidão então se calou e os holofotes foram passados para os capitães que, neste momento, subiram ao palco já decididos quanto a quem escolheriam. Posto isso, os nomes foram dados a elefanta sem demora: Belka, Franz e Nicholas e, respectivamente Hiroshi, Kristian e Sherikan.

— FO-FO-FOM! Respeitável público, segurem-se nas cadeiras, pois nessa prova iremos apreciar os talentos de nossos nobres competidores! — Cottom, com as mãos na cintura, soltou uma alta risada, e então cobriu sua boca com a tromba, como se estivesse envergonhada por ter rido alto (o que, diga-se de passagem, parecia bastante falso, dado seu não-tão-disfarçado apreço pelo palco).

— Vocês, piratas campeões, — ela continua, oscilando os olhos entre os seis participantes espalhados que participariam da prova — terão um período de uma hora para preparar-se nos bastidores, enquanto eu e meus irmãos apresentamos um show de abertura aos seus demais confrades e público geral. Em seguida, vocês subirão ao palco um a um, com a ordem determinada a partir de jokenpô pelas duas equipes empatadas. A equipe de Hanzo será a primeira a se apresentar, uma vez que eles abriram vantagem nas duas primeiras competições.

— Mas isso não é justo, a gente que devia estar em vantagem... — Poyo inchou o bico e cruzou os braços, mas, antes que reclamasse mais um pouco, Pieri sussurrou em seu ouvido que era melhor estarem em último lugar nas apresentações, uma vez que teriam mais tempo para treinar. Por sua vez, a capitãzinha assentiu de lábios apertados: ainda estava contrariada, porém sabia bem que não havia ninguém melhor do que sua amiga para lhe dar dicas como aquela.

— Se estamos entendidos, — a elefanta tornou a falar. — Desejo a todos uma excelente sorte. Quebrem a perna!

≈≈≈

No palco, os elefantes cantavam à capela, ao mesmo tempo que mexiam seus quadris e apresentavam suas peculiaridades um a um e, entre cuspidas de fogo e passos de balé, os piratas aos poucos moviam-se em direção às arquibancadas, a fim de aguardar pelo show de verdade. A primeira e segunda fileira de assentos havia sido reservada exclusivamente para eles, uma vez que nenhum deles poderia influenciar o público geral em seus votos, contudo, em vez de se juntarem da maneira esperada — ou melhor dizendo, da maneira esperada por Hanzo e apenas ele —, os grupos não pareciam se preocupar com diretrizes de tripulação ou troca de informações, de forma que se espalharam de prontidão, em vez de esperar as indicações de seus capitães para se concentrar em um só lugar. Estava uma tremenda bagunça, pensou ele, mas antes mesmo que pudesse externalizar sua insatisfação, seu novo cozinheiro roubou sua atenção por completo quando, além de se sentar em qualquer lugar, trocou um olhar de cumplicidade para com o médico de sua antiga tripulação, como se o convidasse para sentar-se ao seu lado. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Apertando o passo, tomou a dianteira, ocupando o lugar ao lado do seu subordinado.

— Bela apresentação, não? — falou ao cozinheiro, levantando uma sobrancelha e olhando pelo canto dos olhos para o médico, que passou diretamente por si sem olhá-los. Parecia que não incomodaria mais ninguém de sua tripulação, mas, por outro lado, Flint também não lhe disse nada. Não se pode ganhar todas, Hanzo pensou, dando um suspiro.

Não obstante, ainda era cedo demais para contar vitória, pois quando estava se virando para assistir o show novamente, a voz do médico da tripulação rival ecoou mais alto do que jamais imaginaria ouvir dele. — Larvinha! — ele exclamou, levantando uma mão para a mulher azul e de chifres, que se aproximava pela direita, na direção do cozinheiro. Hanzo olhou para a moça e, ponderando se deveria dar um jeito de impedi-la de se aproximar, não teve tempo de agir, pois no momento em que oscilou seu olhar para Morgan, o rapaz pergunta a ela de maneira bastante incisiva: — Você vai se sentar ? — apontou para a cadeira ao lado de Flint.

Merin arregalou os olhos, catatônica, enquanto o médico, num ato rápido, tomou seu (ou ao menos o que ele impôs a ela) lugar, convidando-a para sentar-se ao seu lado. Ela acatou sem nem pestanejar, abraçando seu braço direito e cantarolando a mesma canção que tocava ao palco, sorrindo de orelha a orelha e batendo os pés com a batida da música: não poderia estar mais contente. 

O capitão, por outro lado, não poderia se sentir mais impugnado.

— Fli– — Hanzo começa, mas é interrompido:

— Esses elefantes cantam muito bem, é bem impressionante — expressa Fang ao capitão no momento que senta à sua esquerda, no banco anteriormente vago. Agora não havia mais forma de consertar aquela merda toda, o homem disse a si mesmo, contorcendo o lábio sem que o navegador o visse; uma dor perfurante atingiu sua cabeça, pensando que até poderia tentar retomar a conversa com o cozinheiro e, desta maneira, impedi-lo de se comunicar com a tripulação de crápulas, mas já era tarde demais, porque no segundo em que retornou a observá-lo, encontrou somente um pequeno sorriso de escárnio na face de Morgan.

— Que cheiro é esse? — o médico perguntou.

— Minha nova colônia! Le capitaine almofadent — debochou.

No mesmo instante, o médico deixou escapar um riso alto, cobrindo a boca em seguida e encarando o capitão de rabo de olho: havia sido pego tão desprevenido que esquecera de sua presença ali. Finalmente, quando percebeu que Hanzo nem se moveu, sentiu-se seguro a continuar, embora em um tom mais baixo: — Está longe a apenas uma noite, Flint. Foi tão ruim assim?

Hanzo, ainda sem se mover, sentiu sua orelha levantar como um radar: estava a um passo de espumar de ódio e sair dali batendo os pés, mas se conteve, ajeitando-se em seu lugar e escutando com cuidado as palavras que logo sairiam da boca de seu subordinado — isto é, até poderia aceitar piadas de baixo calão e uma ou outra alfinetada, afinal, de fato estavam a pouco tempo em uma mesma tripulação e fazia sentido agir de maneira rebelde a princípio (Kaze nunca deixara essa fase, mesmo depois de dez anos inteiros o acompanhando), no entanto, ele não toleraria comportamentos puramente desrespeitosos e tampouco uma conduta de amotinado. Se preparou para o pior.

— Foi normal, eu acho — respondeu o cozinheiro, rindo de nervoso e um pouco ansioso. — Depois da fogueira, resolvi pescar um pouco, nada fora dos eixos.

— E você esqueceu de tomar banho depois disso? — Merin, ainda deitada no ombro de Morgan, alfinetou, sem se dar ao trabalho de olhá-lo nos olhos. Flint mordeu o lábio, pois era exatamente aquele assunto que queria evitar.

— Meu capitão... — começou, parando para pensar bem nas palavras que iria dizer. Os olhos de Hanzo queimavam em sua nuca — Ele não permitiu que eu retornasse ao meu novo navio sozinho essa manhã. É compreensível, eu não inspiro segurança.

Porém, antes que o próprio capitão pudesse defender-se, um grito consternado os interrompeu.

— Que absurdo-hya! — Pieri, que até então observava atenta a conversa da fileira da frente, se sentiu obrigada a se meter, visto que alguns minutos já se incomodava com um peculiar cheiro de peixe vindo das redondezas e até cheirara sua axila duas vezes para confirmar que não era ela própria quem estava vencida.

— E o que você tem a ver com isso, Pieri? — Hanzo colocou o cotovelo sobre o assento de costas da própria cadeira, virando-se de sobrancelhas juntas para a garota.

— Normalmente, nada, mas o assunto me envolve quando o cheiro do seu cozinheiro ameaça o saneamento público! — ela rugiu, estalando a língua

— Meu navio... — o homem fez uma pequena pausa, respirando fundo antes de retornar a responder a capitã — não está apto para receber meus novos subordinados, ainda.

A capitã então soltou uma pequena risadinha: sabia exatamente o motivo pelo qual o navio dos cães não estava apto para receber visitas, uma vez que Hanzo o redecorara na noite anterior, mas decidiu não se ater a esse aspecto.

— E o que isso tem a ver com o chuveiro? — olhou-o desafiadora, e o capitão apenas entortou o lado direito do beiço em resposta. Pieri deixou-se rir mais alto. — Façamos assim, então: deixe-o ir se lavar no Diabo-Negro agora. Peço para que Shari o acompanhe para não fazer nenhuma bagunça.

Mais uma vez, Hanzo crispou os lábios, hesitando em sua resposta. Contudo, a convivência de seu cozinheiro com os pierrôs era infinitamente mais aceitável que o contato com a antiga tripulação, então, mesmo que relutante, se limitou a um assentir com a cabeça. Com a confirmação de seu capitão, Flint logo se levantou, olhando para a pierrô, que cobria o nariz com a palma da mão.

— Eu posso mesmo, Pieri? — questionou Flint, soltando um suspiro sôfrego (porém aliviado) ao vê-la balançar a cabeça para cima e para baixo rapidamente, quase que desesperada para vê-lo ir embora — Capitão, irei aceitar a oferta. Se me dão licença.

E então saiu, sem olhar para trás, caminhando junto de Shari em passos rápidos. Os pierrôs que restavam na arquibancada, isto é, Yolanda, Apollo e a capitã, de pronto soltaram um suspiro de alívio ao vê-lo partir, finalmente podendo voltar a respirar. (O cheiro da superfície era mesmo muito forte).

Alguns minutos depois, quando a apresentação parecia entediante demais para continuar a observando, Morgan permitiu-se encostar o cotovelo no assento esquerdo da cadeira, derrubando sua cabeça na palma da mão enquanto ainda sentia Merin em seu ombro direito.

— Esses elefantes capricharam no palco, nunca vi uma madeira tão resistente — ele alfinetou para a navegadora, olhando os cinco saltando para os lados e por vezes até por cima uns dos outros em acrobacias que desafiavam a realidade. Aquilo não tinha nada a ver com o que estudou durante sua vida e arriscava quebrar as leis da ciência, mas isso por si só apenas significava que, para ele, de nada aquilo interessava.

— Eu não tenho o menor saco para resolver qualquer osso quebrado resultado de um palco avariado — respondeu Yun, singelo.

Morgan respondeu um "eu também" fraco e sem pensar muito, antes de arregalar os olhos ao notar que, primeiramente, Merin não tinha a capacidade de cuidar de ossos quebrados, tampouco uma voz grossa e, por último, mas não menos importante, que ela, a única presente que estava sentada por perto, ressonava tranquilamente em seu braço direito.

Virou o pescoço tão rápido que podia distendê-lo.

— Eu quero dizer, eu não faço ideia de como cuidar de um elefante. Já basta lidar com o meu capitão, que é um asno — Yun deu de ombros.

Yun então se mexeu desconfortável em seu lugar após receber uma pequena, porém bem direcionada, cotovelada em suas costelas, e posteriormente soltou um sorriso de escárnio com as sobrancelhas levantadas para o outro médico, como se confirmasse o que havia dito alguns segundo atrás. Morgan riu alto, acenando com a cabeça e retornando a prestar atenção no bizarro show dos elefantes; aparentemente, problemas com capitães eram parte do cotidiano de todo pirata e, por um instante, não pôde estar mais agradecido em ter Poyo como sua líder, já que, apesar de suas burrices casuais, ela em momento algum o vedaria de fazer o que quisesse. Deu um suspiro aliviado.

O show continuou no palco por mais algum tempo, mas não demorou muito até que os elefantes fizessem seus devidos agradecimentos, recolhessem as flores jogadas pela plateia e deixassem o palco com largos sorrisos (e a sensação de trabalho bem feito) para que Cotton retornasse ao seu lugar como apresentadora e, finalmente, convidasse a primeira dupla para o picadeiro. Perto da hora em que Sherikan e Nicholas adentraram o palco tímidos, Flint e Shari estavam retornando para seus lugares, juntando-se à última fileira de cadeiras do anfiteatro, onde não havia nem piratas, ou transeuntes. Eles se sentaram quase que no mesmo instante que os dois cães se posicionavam um a frente do outro no centro, e abriram suas latinhas de cerveja precisamente quando o komainu mais experiente tirou suas espadas da bainha. Aquele show prometia ser minimamente interessante, o símio pensou, oferecendo ao cozinheiro, agora de cabelos molhados e roupas limpas, um charuto que guardava no bolso de seu colete. Flint aceitou de bom grado.

No palco, Nicholas e Sherikan pareciam pouco confortáveis com a ideia de se apresentar, no entanto, para o ex-pierrô, que por muito tempo fora obrigado a estar na linha de frente das apresentações junto de Franz, aquele era apenas mais um infortúnio de sua vida e, destarte, coube a ele a tarefa de conduzir a dupla nos bastidores e ensinar ao colega o número que apresentariam. Uma luta encenada de espadas: o ponto neutro em suas duas posições, a de animador e combatente. Posicionados em polos opostos, no momento que a música começou a tocar, era palpável a confiança que ambos sentiam nos próprios movimentos e em suas habilidades, deixando o amadorismo ser ofuscado pelos movimentos e a sincronia falar mais alto que a falta de intimidade. Podiam não ser engraçados (certamente não eram), mas eram muito bons com os movimentos de espadas e com a luta coreografada que apresentavam, e a plateia, por incrível que pareça, parecia entretida com o que apresentavam — sobretudo, estavam todos impressionados com a velocidade que as espadas tilintavam.

Para a direita, Nicholas investia com sua alfanje enquanto era barrado pelas duas espadas de Sherikan, que se defendia sem perder a postura, apenas deslizando para a esquerda com suavidade. O barulho das espadas se chocando era por vezes era mais alto que a música, compondo a melodia com marcações de que deveriam se mover em torno do ringue imaginário enquanto a música crescia do allegretto ao allegro; a cada três compassos, a segunda espada do cão atravessava o campo, sendo arremessada para que, prontamente, seu colega a empunhasse e investisse nos ataques. Quando estavam em presto, os movimentos eram tão rápidos que os telespectadores mal podiam acompanhar. Na plateia, os três capitães assistiam empolgados, isto é, cada um mostrando empolgação de sua maneira peculiar: Hanzo os observava com um pequeno sorriso e os braços cruzados em frente ao peito, Pieri batia palmas e Poyo, a mais empolgada entre todos, estava de pé em cima da cadeira, observando atentamente cada movimento para absorver as técnicas e as replicar quando tivesse a oportunidade. Ela sabia que não passava de uma apresentação forjada, mas nunca havia assistido uma batalha tão verdadeira como aquela. Os olhos dos dois espadachins pareciam queimar, ao mesmo tempo que não tinham uma hostilidade; no alto de sua imaginação, a menininha não podia deixar de imaginar o quão sublime seria aquela lutas se levada a sério. Certamente o perdedor sairia sem cabeça, apostava consigo mesma, torcendo para que sua intuição estivesse certa pela primeira vez — quer dizer, a luta não estaria completa se alguém não saísse com uma cabeça degolada.

— Se o Sherikan se transformasse em bicho, nós venceríamos. O Nicholas poderia montar nas costas dele e "domar a fera", ver quanto tempo aguenta em cima — comentou Pieri a ninguém específico, coçando a ponta do nariz e soltando um pequeno gritinho com a própria ideia (havia nascido para entreter multidões e parecia uma pena guardar seu talento apenas para si).

— Capitã, o Nicholas não é mais do nosso time — respondeu Yolanda, com os olhos um pouco tristes: sentia falta de Nicholas, mesmo com as reclamações e suas longas de lições etiqueta. — E o Sherikan nunca foi de nosso time, em momento algum! 

— Mais importante que isso, eles não estão competindo entre si... — completou Apollo.

— Ah, é-hya! — a resposta veio rápida e seguida de um gritinho de consternação. — Mas a minha ideia é genial. Eu pagaria para assistir, e eu normalmente não pago por nada — deu de ombros. Hanzo tsc'ou baixo, revirando os olhos e não se dando o trabalho de olhá-la de frente.

Pouco menos de um minuto depois, a apresentação acabou e alguns segundos de silêncio se passaram antes das palmas ressoarem altas pelo anfiteatro; extasiados pelo show, a plateia felicitou o trabalho duro dos piratas que os entretinham com louros e gritos, abraçando a apresentação como se fosse, de fato, um espetáculo planejado. Decerto não houveram tantas flores como as que foram lançadas aos elefantes, mas como em nenhum momento desejaram ultrapassar a popularidade dos chefes da cidade, Sherikan e Nicholas se sentiram satisfeitos o suficiente com o que tiveram: era bom o bastante serem respeitados por suas habilidades, sobretudo quando não tinham ideia do que estavam fazendo — eram guerreiros, não artistas.

Após as congratulações, os dois desceram do palco ofegantes e, com pequenos sorrisos de satisfação — afinal haviam trabalhado com garra e persistência até a última nota da música, mesmo certos que não eram os favoritos ao prêmio —, permitiram que Cotton voltasse aos holofotes para apresentar os próximos concorrentes. (Um pouco antes de se sentarem, Nicholas se ateve ao sutil olhar de aprovação que Hanzo lhe lançara, e sorriu pequeno; finalmente, os árduos treinamentos de Pieri haviam servido para algo. Talvez fosse a primeira vez que sentia-se orgulhoso por entender um pouco sobre os palcos).

— Mais uma salva de palmas para os concorrentes! — a elefanta puxou o microfone, sendo respondida por gritos de "Encore!" da plateia. Uma vez que se acalmaram, ela riu descomedida e continuou a falar: — de acordo com o resultado da disputa entre as capitãs, o próximo bando a se apresentar é o comandado pela Capitã Poyo. Peço que preparem suas flores-de-água e tortas cremosas, pois vamos receber agora a dupla de palhaços Belka e Hiroshi!

Antes mesmo que Cotton saísse do palco, o maestro da orquestra de animais indicou aos musicistas para iniciarem o tema circense, iniciando o batuque dos percussionistas e os trompetes. Pela lateral do palco, o garoto foi o primeiro a adentrar, tímido e receoso, encarando a plateia com um gatinho assustado enquanto ajeitava as calças largas demais e caminhava feito um pato com seus sapatos de palhaço. Na verdade, ele se vestia como um palhaço dos pés à cabeça, e, diferente dos demais piratas, para compor seu visual, teve até mesmo de se pintar. Não obstante, apesar do pó de arroz e nariz vermelho chamarem bastante atenção, sua figura foi parcialmente apagada no momento em que a gatuna deixou as cortinas e se juntou ao seu companheiro, revelando seu segundo conjunto de circo, agora, bem mais chamativo que o anterior: usava um paletó largo de ombreiras e com flores no bolso, suspensórios coloridos e, preso a sua saia, havia uma buzina bem maior que suas mãos que balançava enquanto andava. Não parecia em nada com a Belka habitual. E o pior de tudo ainda era a pintura colorida em sua cara.

— Mas que porra é essa...

 Na plateia, Yun falou consigo mesmo, observando o show que se iniciava diante de seus olhos, mesmerizado, enquanto Morgan, logo ao lado, gargalhou tão alto que não demoraria muito para que o homem caísse ao chão; os palhaços ainda não haviam dito sequer uma palavra, mas a tripulação dos gatos não precisava de sequer uma palavra para degustar aquela cena.

— ISSO, BELKINHA! Não tenha vergonha de seus bigodes! — gritou Bertruska, ao fundo, seguida pelo inconfundível cacarejar de Fionnula que, em cima de sua cabeça, cantava em deleite. A gata apertou as sobrancelhas quase o suficiente para sua maquiagem rachar, rosnando em direção a plateia.

Caminhando no palco, Belka centralizou sua imagem para a plateia e então reverenciou a eles, esticando ao máximo o seu rabo e, ao retornar seu corpo ereto, com suas patinhas alinhadas, sorriu malignamente em direção ao parceiro, que a alguns segundos tentava inutilmente fazer malabarismo com os itens deixados no chão. Foda-se o planejamento, pensou consigo mesma, não era uma palhaça e, se dependesse de sua vontade, jamais se humilharia daquela forma novamente, mas enquanto estivesse trajada, faria de seus momentos no picadeiros os mais sublimes possíveis.

— Fuja ou morrerá! — afirmou enfática, puxando a buzina de sua saia e apertando-a com toda força antes de lançá-la em direção a plateia, desejando com todas as forças que aquele artefato acertasse diretamente a cabeça de Bertruska ou Morgan.

De prontidão, Hiroshi pergunta a ela, em um sopro de voz: — Como assim?

— Sobreviva!

Nem um segundo depois, Belka esticou sua cauda e atingiu as pernas do garoto, que como um animal indefeso — ou gato escaldado —, pulou com ambos os pés e lançou uma das bolas que tinha em mãos em direção ao rosto da gatuna, acertando-a em cheio. A vermelhidão de sua face transpassou a maquiagem. Sorrindo amedrontadora, a gata passou a agarrar com suas patas e rabo tudo que encontrava por sua frente, das frutas que Hiroshi deveria equilibrar aos enfeites de cenário, e, sem nem se preocupar com a mira, ela tornou a arremessar um a um para todos os lados, esperando que o novato desse um jeito de seguir sua única ordem: a de sobreviver. Sem ter outra escolha, por fim, o garoto deu seu melhor para rebater o que podia com as mãos (já que não tinha sua cimitarra) e desviar dos itens mais perigosos, saltando de um lado para o outro como uma perereca para que nada o matasse.

— Se esconde, pirralho! — dos fundos do anfiteatro, a voz de Flint soou alta, seguida de um típico soluço de bêbado e um cascalhar escandaloso de Shari, que quase se afogava ao virar mais uma lata de cerveja. Hiroshi sentiu raiva do cozinheiro, mas não tardou em seguir seu conselho, já que, de fato, era o melhor a ser feito. Bastava arranjar um jeito de deslizar para fora do palco e, sinceramente, fugir era um ponto forte de sua personalidade.

— POYO, LARGA ISSO! É PERIGOSO! — Hiroshi blefou, apontando para as costas de Belka em desespero. Instintivamente, ela parou de atirar e olhou para trás, constatando no mesmo instante que não havia nada lá. Torceu o lábio; havia sido pega no próprio jogo.

— SUA BURRA, ELE TÁ FUGINDO! — gritou a capitãzinha, da plateia, apontando para a escadaria oposta.

Quando Belka tornou os olhos ao adversário, contudo, Hiroshi já havia mergulhado em um pequeno arbusto próximo dos degraus e sumido completamente de seu campo de visão. A gata não conseguiu conter seu sonoro tscar. Procurou a princípio com os olhos, mas ao receber uma maçã em sua têmpora direita, percebeu que não deveria continuar parada ou seria um alvo fácil para que ele revidasse. Passou então a correr de quatro para fora do palco, buscando Hiroshi com gritos enfurecidos enquanto era alvejada hora ou outra por bananas e outras frutas que haviam caído para fora do cenário: o filho da puta estava a atacando pelas costas e não tinha nem vergonha disso!, amaldiçoou.

— Covarde! — gritou a gata. — Bichinha covarde!

Belka estava pronta para matá-lo por fazê-la de palhaço. Em contrapartida, na plateia, apesar de terem o peito cheio de adrenalina, todos pareciam adorar fazer parte da patifaria, com exceção de Hanzo, que cruzava os braços, tenso e sobretudo sentindo-se desconfortável com o riso descomedido de Kaze — algo que já não era acostumado —, que parecia completamente entretido pelas piadas de cunho perverso de seu vizinho de assento.

— Volte aqui. Seu frutinha! — a gatuna berrou outra vez, de volta para cima do palco e, aumentando ainda mais as marcas de sorriso pintadas em seu rosto, Belka lançou um tomate em direção a plateia, atingindo a face de Morgan, que ainda gargalhava em alto e bom tom.

— Ei! Eu não faço parte do show, palhacinha! — o médico gritou, ajeitando-se no lugar e limpando o próprio rosto com as mãos. Não era tão engraçado quando ele fazia parte da brincadeira.

— Ele está aqui! — dedurou Poyo, puxando Hiroshi pela gola da camisa para o campo de visão de Belka uma vez que ele tivera o desprazer de passar em sua frente enquanto caminhava agachado pelas cadeiras de plástico. O garoto não teve como idealizar uma nova fuga, visto que um tomate o atingiu diretamente no dorso, seguido de uma pesada bola de bilhar. Belka não estava para brincadeira, mas, por sorte, tudo não passava apenas de uma apresentação, não é mesmo? Logo, não havia porque Hiroshi controlar-se.

Desvencilhando-se com facilidade da mãozinha da capitã, Hiroshi puxou uma fruta de seu bolso, jogando-a com todas as forças em direção ao palco e acertando o alvo com perfeição. Ao vê-la tombar ao chão, desejou sorrir largo e, como um bom palhaço, juntar-se a plateia em uma larga gargalhada, porém, ainda restava algum traço de bom senso em si e, graças a isso, deixaria para alegrar-se com o sofrimento de Belka quando estivesse sozinho — afinal, ainda que isso não representasse sequer uma parcela do que eles o fizeram passar, não poderia deixar de considerar aquela luta uma vingança pessoal. A gata, por sua vez, manteve o sorriso largo no rosto, sentindo a cabeça latejar ainda mais por conta das gargalhadas do povo. Irada, levantou-se e puxou uma porção de lenços coloridos de seu bolso e os lançou em direção ao médico, que passou a puxá-los, como uma corda infinita e, ao fim desses, ela gritou em alto e bom tom: — O show deve sempre continuar!

Um novo tomate foi catapultado pelos lenços, dessa vez mirando diretamente no garoto, que já não podia mais se esconder. Sem ter o que jogar, ele olhou rapidamente para os lados, tomando primeiro o balde de pipoca que Pieri segurava e depois a maçã do amor de Yolanda, mas ambos foram prontamente cortados no ar pelo chicote afiado da gatuna.

— Jogue feito homem, Frutinha! — Belka provocou.

Agora já invadindo as cadeiras dos telespectadores normais, Hiroshi passou a pegar o que quer que lhe fosse oferecido pelos woopululenses para jogar ao alto, de buzinas à monociclos; eles não costumavam ver shows tão bagunçados assim, mas não podiam dizer que desgostavam de fazer parte de um espetáculo daquele porte, então faziam o possível para ajudar. Tortas de creme, bolsas, bebês tigres, a Froo-froo... tudo voava no anfiteatro, e cada vez mais, todos pareciam querer participar do espetáculo, contribuindo com o que podiam para ajudar aquela bagunça a continuar. Ninguém parecia ter senso comum — ou quase. O garoto corria de um lado para o outro pelas cadeiras para pegar mais e mais objetos. 

—'CÊ 'TÁ MALUCO? — Kaze puxou a espada dos braços de Hiroshi e a jogou no colo de Hanzo outra vez, com os olhos arregalados e quase cuspindo enquanto falava.

— Fiquei entretido, era o que tinha em mãos — Hanzo riu amarelo, dando de ombros e prendendo a espada à bainha novamente. Oras, não era sua culpa sonhar! Mas, no fim do dia, Kaze não estava sabendo de nada, então não poderia julgá-lo por tentar pará-lo de dar a arma do crime a um pirata.

Enfim, as parábolas de sapatos começaram a diminuir aos poucos e, por conseguinte, o show teve de se encerrar por motivo maior: não havia mais o que arremessar. Ainda assim, quando Cotton voltou ao palco, chamando Belka e Hiroshi para agradecer o público, não faltaram flores para congratulá-los, embora, dessa vez, o público não tenha pedido para se repetir. Por último, a elefanta pediu alguns minutos para limpar toda a sujeira dos gatos antes que Kristian e Franz subissem ao palco e apresentassem o último número daquela prova e então, sem demora, a plateia se dissipou para o almoço, buscando ávidos os vendedores de lanches e bebidas, que aguardavam ansiosos aos arredores do local onde acontecia o chão.

 

Próximos da barraca de pipoca, Bertruska (e Fionnula) se aproximaram de Flint, que bebia de pé com Shari e começou a conversar.

— A fila está enorme, mas não consegui convencer a Poyo de deixar a comida para lá — a ex-marinheira diz para o cozinheiro, juntando-se aos dois ao pegar uma latinha. Shari ergueu uma sobrancelha para ela e depois para Flint, abrindo um sorriso malandro pouco depois e partindo para deixá-los à sós (mas não sem antes desferir um tapa na bunda do homem enquanto sussurrava um "Vai que é tua, garotão", mais alto do que gostaria).

Flint riu de volta; afinal, o álcool havia inibido a vergonha de ser molestado. — Ela vai roubar de alguém provavelmente — falou.

— Com certeza! Mas é exatamente esse o problema — Bertruska riu, virando a latinha.

Com tanta gente ao redor, as barraquinhas listradas — que não eram pequenas, diga-se de passagem — pareciam prontas para içar voo ou simplesmente sumir. Os vendedores ambulantes pareciam ter mais de dois braços, de tão rápido que serviam as pessoas, mas isso não era o bastante para atender tanta gente faminta assim. No meio das cabeças, Flint e Bertruska notaram Poyo arrastando Pieri e Merin pelo braço para acompanhá-la na fila de algodão doce, e um pouco mais distante delas, Shari se juntava a Apollo e Yolanda, que conversavam calorosamente com Fang e Nicholas. As brigas de tripulação não pareciam os atingir mais. Estavam pacíficos, na medida do possível, e por mais que estivessem em dois bandos distintos e cercados de pessoas gritando, os dois gatos sentiam um sossego reconfortante naquela situação. Era uma calmaria bastante bem-vinda.

— Achei você — interpelou Morgan, ofegante e aproximando-se dos dois. Ele nem sequer perguntou antes de pegar a cerveja que Flint segurava e dar um gole bem dado.

— Fez um amigo? — o cozinheiro meneou com a cabeça para Kaze, e só nesse segundo o médico-gato notou que continuava sendo seguido. (Estar sempre com Merin em seu encalço havia o deixado insensível a esse tipo de contato).

— Ah. Bom, eu suponho que sim — deu de ombros, depois de olhá-lo sem torcer o tronco — Yun também é médico, mas acho que você sabe disso, não? — respondeu sem cerimônia, batendo nos bolsos, procurando algo e não encontrando. — Manda um cigarro, Flinny, perdi meu maço.

O cozinheiro revirou os olhos, entregando o cigarro que acabara de acender nas mãos de Morgan. — Fico feliz que tenha com quem conversar sobre seus negócios.

— Nenhum médico fala sobre os meus negócios. Teria de ser um coveiro — ele argumentou, sorrindo debochado e dando um trago. Flint, por sua vez, já conhecendo a figura, ofereceu a Kaze um cigarro, mas ele apenas recusou com um acenar de mãos.

— Não vai querer um hoje, Yun? — inquiriu sutil ao novo médico, como uma confirmação de que essa era a forma de que deveria chamá-lo. O cão abriu um sorriso de orelha a orelha em resposta.

— Hoje irei dispensar. Se estou certo em pensar dessa forma, suponho que a próxima prova é minha.

— Admiro sua coragem — disse o cozinheiro, dando um suspiro cansado e tomando o cigarro de Morgan para dar mais um trago. — Eu já participei vezes demais para recusar um trago, seja de quem for. E falo isso por toda minha vida — explicou depois de soltar a fumaça aos céus. Bem no fundo, Flint sabia que nenhum cigarro seria o suficiente para acabar com seu sofrimento, mas não custava tentar.

— Já eu, entrei na água depois de fumar — Morgan interrompeu, dando de ombros e fazendo o cozinheiro quase engasgar com a fumaça. Bertruska no mesmo instante deu um tapa na nuca do médico, que a olhou, indignado.

O clima continuou leve e descontraído à medida que os três homens conversavam e compartilhavam algumas piadas, enquanto Bertruska apenas observava, fazendo comentários pontuais e acariciando as penas de Fionnula em seus braços. Não se sentia confortável diante de homens, mas estar com Flint nos últimos dias havia a feito mais tolerante, especialmente porque sua amizade lhe parecia mais importante que o ódio agora — valorizava-o o bastante para não querer perder aquela oportunidade de estar perto dele, visto que não tinha ideia de quando o faria de volta agora que estavam em tripulações opostas. Contudo, quando a sombra de um quarto homem se aproximou do grupo e os cacarejos da galinha soaram mais altos que o bate-papo amistoso dos rivais, sentiu de imediato o ar se tornar mais denso e sua garganta fechar. Era Hanzo que havia parado do lado do cozinheiro e médico-cão, posicionando-se severo e anuindo com a cabeça para cumprimentá-la pessoalmente. Seu coração pareceu despencar.

— Por favor, não impeçam a conversa por minha causa — o capitão contrapôs ao notar a face pálida da mulher e, por conseguinte, os homens ficarem em silêncio. Foi somente aí que Flint e Yun, antes de costas para ele, se viraram para olhá-lo.

— Precisa de alguma coisa, Hanzo? — perguntou Yun, erguendo uma sobrancelha.

— Não, Kaze. Eu só pensei que não era hora de nos espalharmos, visto que a terceira competição ainda não acabou — explicou seco, cruzando os braços sobre o peito. — Fora que me manter ativo na minha tripulação me impede de ser visto como um asno pelos subordinados. Ou ao menos que falem em minhas costas que sou um.

Yun mordeu o lábio contendo um xingamento, e por mais insignificante que tenha sido seu gesto, por ter presenciado o motivo de tamanha hostilidade por parte do capitão pouco tempo antes, Morgan não pôde evitar de notar no companheiro de profissão o desconforto crescer. Isto é, já havia percebido durante as apresentações que a relação do imediato-médico com seu capitão não era de forma alguma afetuosa, no entanto, ele não esperava também que fosse completamente insalubre. Afinal, a feição do homem, que até agora parecia bastante aprazível e simpática, de repente havia se tornado apática, e da mesma forma fizera Flint, que desviou o olhar dos antigos companheiros do bando. Era como se eles não conseguissem — ou não pudessem — continuar a conversa anterior.

Morgan não tinha dúvidas de que Hanzo era um homem bastante dogmático, mas não tinha ideia de que ele era persuasivo a esse ponto. Ou aterrador.

— Bom — iniciou ele, olhando de rabo de olho para Bertruska, que não conseguia se mexer. — Numa hora dessas, Merin já deve estar me procurando desesperada, já que tem tanta gente. Vamos indo, Bertruska? A Poyo com certeza não vai querer esperar muito...

— A capitã de vocês pediu para que se encontrassem? — Hanzo inquiriu, descomedido.

O cozinheiro apertou as duas sobrancelhas no mesmo instante, lembrando-se em primeiro lugar da noite anterior, quando ele fizera várias perguntas indiscretas sobre sua vida, e depois no fato de que Bertruska não podia continuar ali, ou, ao menos, não perto dele. Interrompe: — A Poyo estava na fila para comprar algodão doce e já deve estar chegando nos vendedores numa hora dessas. Eles precisam encontrá-la para entregar o dinheiro.

— Você não precisa responder por eles. Não são do mesmo bando mais — o capitão riu, sarcástico.

A mentira veio a ele sem pensar, e ao ouvir a resposta de seu capitão, Flint não teve outra escolha senão abaixar a cabeça e se calar. Não poderia contra argumentar. Por sua vez, Morgan o olhou de olhos semicerrados, percebendo de prontidão que qualquer resposta que desse a partir dali estaria errada. Respirou fundo, cada músculo de seu corpo se contraindo pelo olhar corrosivo que o cão lhe lançava.

— De qualquer forma, é a verdade. Estávamos apenas de passagem — Bertruska pontuou de súpeto, interrompendo os homens e colocando uma das mãos no ombro do médico. Morgan sentiu-se puxado de volta à realidade, e anuiu rapidamente com a cabeça, tomando Fionnula em seus braços.

Antes que partissem, por fim, Hanzo sorriu, frio.

— Boa sorte com as próximas provas — ele disse.

— Você também — Bertruska respondeu, fechando o único olho. — Isto é, vocês também.

E ela foi embora, com o peito inflado e sem mais dizer uma palavra. 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Prisão de Gato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.