Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 32
Grand Line, prefeitura de Woo Pululu (Jogos Piráticos)


Notas iniciais do capítulo

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Depois de terem seu cozinheiro roubado, os gatos se recolheram cabisbaixos à própria tenda, tentando buscar alento em conjunto e se preparar com mais cuidado para a prova seguinte, que, para aumentar seus temores, aconteceria dentro de algumas horas. Não havia humor para que conversassem sobre estratégias; a despedida de Flint fora completamente devastadora e, mesmo agora, depois de uma hora e meia de luto, nenhum deles parecia disposto a se levantar e ir em direção ao próximo stand de apresentações para se preparar para o novo jogo: queriam que o mundo acabasse ali mesmo, porque haviam perdido a razão de viver. Nem mesmo quando Merin acordara de seu desmaio tiveram o trabalho de ir vê-la. Ela, sozinha, veio da tenda de primeiros socorros com os dedos juntos em ansiedade, preocupada com o clima estranho do acampamento, até que, quando chegou aos confrades, ouviu a grande notícia.

— O Flint... — Poyo começou, puxando o catarro do nariz e ainda com a voz chorosa. — Ele se foi!

Por um segundo, Merin olhou para seus arredores, tentando entender se aquilo era uma pegadinha. 

As coisas do cozinheiro ainda estavam na barraca, mas os olhares perdidos de Belka, Bertruska, Hiroshi e Fionnula indicavam que, talvez, a chorona estivesse certa. Sem perceber, um sorriso involuntário se formou em seus lábios. Morgan não estava lá, mas era compreensível; eles eram amigos, afinal — e ela daria eu melhor para ajudá-lo a superar sua perda (até porque, naquele instante, tinha felicidade para dar e vender). 

Não podia acreditar... O Flint tinha mesmo morrido? Se esse fosse o caso então, depois de seu casamento, aquele certamente era o melhor dia de sua vida. Não só teve Morgan escolhendo ficar com ela a sair do navio durante a tarde, como também retirou a maior pedra de seu sapato! Por fim, antes que pudesse ser questionada pelas mulheres, a navegadora fechou os lábios e anuiu friamente para a capitãzinha — ainda chorando —, deixando seu corpo ficar transparente e em seguida saiu da barraca: ainda que estivesse esbanjando alegria, não poderia comemorar antes de ver a verdade com seus próprios olhos (e, também, havia ouvido falar que os humanos tinham de sentir tristeza nos funerais, portanto não era inteligente mostrar seu sorriso a todos).

A praça onde instalaram seus alojamentos estava iluminada pelos postes e a tênue luz do pôr-do-sol, agora já bem mais roxa do que laranja. Poucos piratas caminhavam além das barracas; avistou Kristian tomando um copo de suco enquanto assistia Pieri treinar socos no ar para descontar a ansiedade e, um pouco mais a frente deles, notou Nicholas tentando se aproximar do capitão do outro bando, Hanzo, que naquele momento estava afiando sua espada, como sempre fazia naquela hora do dia. Não havia nenhum sinal de Flint; tudo ocorria de acordo com o plano. Próxima da barraca dos cães, enfim, Merin notou uma frequência cardíaca familiar, que a fez parar tudo que estava fazendo para a seguir. Vinha de trás de um arbusto, à direita da tenda principal do bando rival e, atravessando a relva, sentiu seu próprio coração parar de bater e todos os seus sonhos serem esmigalhados.

— Eu-hic... Eu tinha comprado em Wintery e não pre-hic, pretendia entregar... — choramingou Morgan, seu amado morceguinho, com os olhos marejados e a voz rouca de tanto chorar. — Agora que você vai embora, eu preciso...

— Você sabe que eu não morri, né? — disse Flint, dando um sorriso compassível e colocando a mão no ombro do amigo para consolá-lo. — Vocês ainda podem me recuperar.

Merin trincou os dentes, apertando a foice na mão e sentindo o olho pulsar de raiva. Era bom demais para ser verdade mesmo: além de vivo, ainda tinha chances dele voltar.

— Eu sinto-hic, muito... Foi minha culpa! — mais uma vez, Morgan voltou a chorar alto — Só-sozinho eu não consigo, hic...

— Cala a boca — ele colocou o indicador sobre os próprios lábios, franzindo o cenho em consternação e fazendo sinal para que ficasse quieto — Ainda não sei qual é a do capitão mauricinho, vai que me acusa de motim nas primeiras horas! Não quero esse estresse — explicou, coçando a nuca, nervoso — Vamos dar um jeito, Morgan. Não se preocupe.

E soltou um sorriso tão irritante que poderia fazer Merin vomitar naquele mesmo instante. Como o cozinheiro, agora inimigo de sua tripulação, ousava sorrir daquela maneira para o seu morceguinho? Ora, eles nem mesmo deveriam estar conversando, eram rivais agora! Aquilo era... ultrajante!

— Agora, vá ajudar a tripulação, não deixe que Poyo e Belka façam alguma cagada! — indicou, puxando a carteira de cigarros e oferecendo um ao médico, que aceitou de bom grado. — Obrigado pelo presente.

Flint deu as costas, passando a alguns centímetros de distância de Merin para contornar o canto escuso e retornar a sua nova barraca (ela considerou, mesmo que por um breve segundo, o que aconteceria se o degolasse ali mesmo... mas não o fez, em respeito ao morceguinho). 

Em contrapartida, Morgan ficou parado, retorcendo o lábio em descontentamento, porque, bem no fundo, tinha completa noção de que de nada adiantava se estressar. Haveria de dar um jeito, pensou consigo mesmo. Os gatos sempre davam um jeito de se safar — restava a ele ser otimista agora (mesmo que não fosse de seu feitio). Cansado, o médico por fim soltou um suspiro tão entristecido que, se não fosse destinado ao mais infame dos cozinheiros, teria deixado o coração de Merin em frangalhos e então, secando as lágrimas com as mangas a fim de disfarçar a humilhação de estar tão derrotado, murmurou para si próprio: — Hora de voltar ao trabalho.

Ao fundo, os alto-falantes repetiam o novo local onde os competidores deveriam se encontrar e alegremente convidavam a população a acompanhar o último jogo da noite. Dessa vez, os piratas desceram até a prefeitura da cidade de Woo Pululu e lá encontraram a figura curiosa, e aparentemente simpática, da elefanta amarela que os aguardava com um sorriso largo em sua face e dando pulinhos de alegria. Ela era consideravelmente menor que Baru e Shake, mas não o suficiente para parecer proporcional no pequeno palco onde dançava, tampouco para que suas roupas, largas em demasia, porém reveladoras, parecessem mais equilibradas.

— Vamos, vamos! Junte-se aqui! — disse ela, chamando os participantes com suas grandes patas enquanto sorria de orelha a orelha. Nesse ponto, os gatos avançavam como se estivessem mancos, enquanto os pierrôs forçavam uma faceta vitoriosa. — Vamos começar nosso show-fi-fom!

Sem mais delongas, Pretzel, a elefanta, depois de se apresentar, começou a dissertar sobre as preparações daquela prova, mas sem dar indícios sobre o que se tratava. Seria uma competição conjunta, liderada por um campeão e com o auxílio de outro tripulante a escolha do bando. Logo ficou decidido que os competidores seriam Kristian, Merin e Flint e, como ajudantes, Apollo, Bertruska e Hanzo, respectivamente.

— FI-FI-FOM! Vemos que o participante Flint está com tudo, duas provas e dois bandos! — a torcida urrou ao ouvir o comentário da elefante, que dava piruetas no palco — Agora, como as decisões foram tomadas, irei explicar as regras!

A elefanta sorriu, puxando dois bastões de suas costas e, rapidamente, acendendo-as em um lampião que havia ao lado do púlpito onde discursava e, com sua tromba, soltou uma gigantesca lufada que espalhou o fogo em uma nuvem de pirotecnia.

— Espero que estejam de barrigas vazias, pois nessa prova, iremos aproveitar o melhor da vida: comer e sair sem pagar! — a torcida soltava gargalhadas e batia palmas, apreciando o show. — Nossos campeões devem preparar um magnífico banquete e, para definir o vencedor, será somada os pontos de nossa comissão de jurados e do público!

Os piratas se encararam e, Pieri, que até então sustentava uma feição confiante, fora a primeira a cair ao chão, soltando um guincho desesperado e sendo prontamente amparada por Kristian, que posicionou-se exatamente em sua frente para escondê-la. — Nossa capitã está muito feliz, escolhemos nosso cozinheiro! — ele disse, tentando sorrir o mais convincente o possível e sentindo as lágrimas da capitã molharem o seu pescoço e um "u" prolongado e mudo de puro desespero escapar de seus lábios. Estavam completamente fodidos, pensou consigo mesmo. Não havia como escolher uma dupla pior, posto a incapacidade de Apollo de acertar sabores e o fato dele não poder auxiliá-lo em nenhum aspecto, afinal, não tinha papilas gustativas.

— OBA! JÁ ESTÁ NO PAPO, NÉ, FLINT?! — a capitãzinha berrou, levantando ambos os braços para o ar, antes que o choque de realidade tomasse seu corpo e, igualmente como a aliada, fosse ao chão, gritando ainda mais alto. Merin lhe deu um tapa na nuca para que parasse de chorar: ela era melhor que Flint na cozinha, tinha certeza dissoTinham chances.

No que lhe concerne, Hanzo apenas sorriu contido e grato; havia colocado o novo tripulante para competir de maneira estratégica e, mais do que nunca, a sorte estava a seu favor. Um cozinheiro nunca viera tanto a calhar.

— FI-FI-FOM! Mãos à obra, cavalheiros e donzela! E que vença o melhor cozinheiro!

≈≈≈

A grande ampulheta de carvão começou a contar o tempo e, parado em frente a bancada, Flint começou a rapidamente anotar os ingredientes que Hanzo deveria buscar no armazém, localizado a alguns consideráveis metros de distância da cozinha improvisada. No momento em que deixou o palco, já sabia o que desejava cozinhar e, ainda que desejasse retornar ao próprio bando, não tinha forças para sabotar a si mesmo, porque além de sua maior qualidade, a culinária era possivelmente a única coisa que sabia fazer. Era seu único orgulho — e, mesmo que fosse para perder, tinha que honrar seu maior princípio e ao menos tentar. Finalmente, e com um suspiro pesaroso escapando por seus lábios, entregou o papel nas mãos de Hanzo, que o encarou com a face completamente confusa.

— O que diabos está escrito aqui?

Uma dor de cabeça atingiu o cozinheiro e, com ambas as mãos massageando as têmporas, observou a ampulheta, percebendo que não haveria tempo para escrever uma nova nota. 

Foda-se o planejamento, disse a si mesmo, cansado.

— Preciso de caranguejos — ele encurvou-se para colocar as mãos no ombro do homem, que deu um sobressalto em sua própria estrutura. Flint era muito alto. — O resto, foda-se. Pegue qualquer merda que desejar, eu me viro.

Ao observar a figura de Hanzo já distante, Flint percebeu que era hora de colocar as mãos na massa e, após colocar uma grande e pesada panela de água no fogão para que não demorasse a atingir fervura, olhou de soslaio para a pequena trouxa dobrada que Morgan havia lhe entregado mais cedo. Por instinto, olhou para o médico, na plateia, que apertou as sobrancelhas como quem diz "não se atreva" e, dando de ombros, o cozinheiro abriu o avental, deixando um riso troncho escapar.

— Eu não pareço esse bicho... — murmurou baixo, observando a figura centralizada no peito em um bonito bordado. Era bonitinho, não poderia negar; um castor de Wintery com um chapéu de chefe casualmente fritando bacons em uma frigideira, mas certamente não estava em sua compreensão se Morgan desejava elogiá-lo ou ofendê-lo. Não tinha nada de semelhante com aqueles bichos, certo?

Já vestido e com as mãos devidamente higienizadas, notou a bancada ser preenchida com uma infinidade de alimentos e Hanzo se aproximou de si, carregando uma rede de pesca distante do corpo, lotada de caranguejos. Puxando a rede para si, não perdeu tempo antes de colocá-los em um recipiente com água salgada — a panela ainda não havia atingido a fervura necessária para que pudesse cozinhá-los propriamente.

— Precisa de ajuda com algo? — o capitão questionou, com a voz empostada e observando a bancada com olhos curiosos, talvez inseguro das maluquices que havia escolhido no armazém.

— Temos vinho branco e arroz arbóreo, então irei preparar um risoto de caranguejos. Trouxe algum tipo de queijo?

— Eles têm um bisão... — disse Hanzo, apontando para Merin, que recebia de Bertruska um animal desacordado e sendo arrastado pelo pé. A navegadora olhou para Flint com um sorriso diabólico. — Deseja que eu vá à caça? Podemos encontrar uma boa ave!

— Esta maluco? Aquilo vai demorar horas para cozinhar e é um completo exagero, não quero desperdiçar ingredientes!

— Mas...

— Busque queijo parmesão e cogumelos, por favor. Eu sei o que estou fazendo, pode confiar.

Com um acenar de cabeça, o capitão retornou a corrida em busca de ingrediente e Flint, torcendo para que realmente estivesse certo, puxou os caranguejos para escalá-los. 

Na bancada ao lado, Kristian, o imediato dos Pierrôs, já estava decorando o segundo prato; ele não compreendia muito bem as ordens de Apollo e algo dentro de si gritava que berinjelas não combinavam nem um pouco com cravos e bicarbonato, entretanto, o cozinheiro era extremamente convincente e lhe jurava que o sabor ficaria indescritívelBom, certamente seria algo a se lembrar, pensou o imediato. Mas infelizmente não tinha como contrariá-lo, porque, de outro modo, não conhecia nada que pudesse consertar: para ele, um pão tinha o exato mesmo sabor de uma pedra de barro. Nenhum.

— Apollo, isso vai ficar bom? — questionou, olhando para o halterofilista, que fazia sinais positivos com ambas as mãos e tinha os olhos brilhando como os de uma criança esperançosa.

Kristian deu de ombros. Isto é, apesar de saber em seu íntimo que aquele plano não daria certo, Pieri era, de fato, mais inteligente que ele, e ela tinha certeza de que sua estratégia poderia funcionar. Um pouco antes do cronômetro ser disparado, ela o instruíra a cozinhar o máximo que conseguisse, sem se preocupar com o gosto ou desastre da cozinha: se aumentassem a porcentagem de alimentos, com sorte preparariam ao menos um prato decente na tiragem e, acima disso, poderiam desestabilizar os concorrentes pela velocidade.

— Se a Pieri tiver um ataque, a culpa é sua! — respondeu, dando de ombros e voltando a bater um creme de aparência agradável, porém de ingredientes questionáveis: melancia e pimentão não tinham sabores antagônicos?

Fosse como fosse, já estava tão certo de que seriam derrotados que nem se importava mais, contudo, ao observar a figura de Hanzo passar correndo por sua bancada carregando uma quantidade generosa de cogumelos e uma gigantesca peça de queijo, apenas não pôde evitar e desejou por um breve instante que o capitão mendigo estivesse mais fodido que eles, trazendo junto dos ingredientes uma enorme Amanita muscaria. Isto é, sabia que Flint era cozinheiro da tripulação de Poyo e era bastante aclamado, mas, e se, por acidente, a burrice do capitão fosse capaz de contaminar o resto dos alimentos? Dessa forma — e só dessa —, teriam uma chance de ganhar. Sua comida seria horrível, mas ao menos não mataria ninguém. Não custava sonhar.

— Aqui está! — o capitão avisou sua chegada, colocando os ingredientes sobre a bancada e chamando a atenção de Flint, que retirava uma forma do forno. Hanzo não sabia definir o que estava ali, mas o cheiro era maravilhoso. — Cogumelos e queijo! Inclusive, que prato é este na sua mão?

— Que diabos! De onde você tirou esses cogumelos? — Flint indagou, soltando uma pequena risada. — Se eu cozinho isso, você vai ter um encontro com Deus hoje mesmo!

Como os cogumelos do armazém pareciam pequenos demais para seja-lá-o-que que Flint pretendia fazer, Hanzo decidira que deveria surpreendê-lo e, por um instante, a decisão de pegar alguns que cresciam no entorno do tronco de árvore derrubado pareceu óbvia. Não obstante, ao basear-se na reação do cozinheiro, já não sabia dizer se aquela havia sido a escolha certa. Nem se o rosto do cozinheiro era bom ou ruim. — Devo trocá-los? — perguntou, embaraçado.

— Não temos tempo. Vou ficar só com o queijo, por ora — pontuou, voltando sua atenção para o fogo, após deixar a forma descansar sob a bancada e logo em seguida puxando a pesada panela de caranguejos, despejando a água fervente dentro da pia — Respondendo sua pergunta, na forma são alhos cozidos. Irei preparar uma sopa com eles e as cebolas. Pode experimentar, se quiser.

— Não, obrigado — ele abaixou a cabeça. — Precisa de mais alguma coisa?

O cozinheiro apenas meneou negativamente com a cabeça e continuou a trabalhar com os caranguejos, utilizando um martelinho para quebrar a carapaça e separar as partes comestíveis das demais partes do animal. Em seu encalço, o capitão espiava o que ele cozinhava como um fedelho, curioso quanto o preparo e especialmente tentando entender como diabos ele conseguia fazer comida cheirar tão bem. Quer dizer, Hanzo fora responsável pelo próprio alimento desde muito novo, e até que Kaze chegasse em sua vida, nunca sequer se preocupou em cozinhar para outra pessoa além de si mesmo. Para ele, comida era combustível e apenas isso; não tinha que ser cheirosa ou bonita, apenas dar energia para seguir um longo dia e esquentar a barriga quando estava frio demais. Porém, quando viu Flint cozinhando, todas as suas crenças pareciam ter sido postas à prova. Sentia uma curiosidade imensa ao observá-lo, não somente por sua beleza — algo que, para o homem, era hipnotizante —, mas também pela sutil satisfação estampada em sua face: isto é, estava longe de seus companheiros de bando e há algumas horas não demonstrava reações quando inquirido pelos novos confrades, contudo, enquanto cozinhava todos os maus sentimentos pareciam ter desaparecido por ora e o sorriso que esboçava parecia tão genuíno que não poderia significar outra coisa senão a mais pura representação de felicidade.

Hanzo sentiu as sobrancelhas afrouxarem, e as palavras de Kaze naquele dia mais cedo pareciam mais distantes do que nunca. — Avental legal — comentou, tentando puxar assunto com o homem, que por um breve instante desviou o olhar em direção às arquibancadas, sussurrando algo que não conseguiu compreender. — Você... tem certeza que não quer ajuda com nada?

— Não, estou bem sozinho — ele responde, depois de um suspiro pesado.

— Você cozinha desde quando?

— Que clima doido, não? — o cozinheiro desconversou, apontando para Bertruska, que passava pela estação com dois troncos de árvore sobre os ombros e soltava um pequeno rosnado ao encarar Hanzo de perto. — Espero que não chova, elas estão montando uma fogueira...

— Você quer que eu mande o Fang jogar água lá?

— E comprar uma briga contra a Bertruska? Sou burro, mas nem tanto. Desde que ela perdeu o olho, acho que não tenho mais força para vencer — ele deixou sair uma risada sincera, e o capitão sentiu um aperto no peito ao conseguir reparar uma intrínseca tristeza vinda de sua voz; eles pareciam bastante próximos, pensou consigo mesmo. Talvez estivesse mesmo destruindo uma família. Por um instante, Hanzo sentiu que estava sobrando naquela equação; mas despistou seus pensamentos ruins.

— Você fala como... — o capitão começa a dizer, mas é interrompido por uma súbita batida de Flint na bancada.

— Eu não acredito! — esbravejou, chacoalhando a cabeça para ter certeza se era aquilo que estava vendo mesmo. — Não acredito mesmo!

— O que foi? — perguntou Hanzo, arregalando os olhos e já colocando a mão em sua espada.

— Aquela filha da puta!

O que chamara atenção de Flint não fora um animal gigante prestes a atacar ou um assassinato ao vivo como Hanzo imaginara, e sim Merin, que, na estação em frente à eles, estava despejando em um pote uma mistura alaranjada com uma consistência muito parecida com a massa de um bolo. Não foi difícil de entender o que estava acontecendo: ao notá-la salpicando algumas notas de licor de café na massa, reconheceu de imediato sua receita.

— Vagabunda azul! — grunhiu, alto o bastante para que a navegadora desviasse os olhos da comida por um milésimo de segundo, encontrando-se com os olhos semicerrados de Flint. Ela lhe mostrou a língua em deboche. — Aquela vaca roubou minha receita!

— Como assim? — o capitão perguntou, não compreendendo o que uma receita tinha de tão especial e tampouco a irritação que tomava a face do cozinheiro, mas antes que pudesse continuar sua indagação ou receber uma resposta mais concreta, Flint berrou a concorrente de volta:

— Eu que te ensinei essa merda! Você não sabe salgar a porra de um bife e está usando a minha receita para competir comigo!

— O aprendiz sempre supera o mestre! — Merin gritou, descabida e lhe mostrando o dedo do meio enquanto equilibrava a bacia entre o antebraço e o peito.

— Só por cima do meu cadáver, vagabunda! — Flint gritou de volta, deixando o vapor sair de seu nariz como um boi enfurecido.

Como resposta, a navegadora só apertou os três olhos com uma expressão de despeito e então deu de ombros, voltando-se a Bertruska, que nesse momento girava o bisão espetado como um peão para a pele dourar de maneira homogênea. Flint não conseguia acreditar no que estava vendo; quer dizer, lutar contra o próprio bando não era difícil o bastante? Como ela podia ser tão escrota? Naquele instante, sua vontade era quebrar os chifres de Merin e usá-los como palitos de dente-de-elefante, mas se conteve, concentrando-se no creme de sua sopa que estava começando a engrossar. Tinha de fazer um doce, também..., pensou consigo mesmo, olhando de rabo de olho para Apollo, que instruía Kristian no quinto prato de seu banquete. Eles eram rápidos demais! 

E não apenas rápidos; seus pratos eram estonteantemente bonitos e elaborados também. Certamente o pierrô era alguém muito bem estudado, porque Flint sequer havia visto algo do tipo em toda sua vida de cozinheiro medíocre e, ao observar o banquete adversário, a decisão de não aceitar a ave gigantesca oferecida por Hanzo pesou em sua mente. Não que choramingar fosse resolver o problema. De qualquer forma, continuava fodido e em outra tripulação, então, se não cuspissem em sua comida estaria no lucro.

— Farei a melhor sobremesa dessa competição — pontuou, levantando ainda mais as mangas já na altura dos cotovelos e, direcionando um olhar desafiador para Merin, ajeitou o avental em seu corpo. — Que se fodam os castores e que se fodam igualmente as focas! Eu não vou perder!

≈≈≈

Nas próximas dezenas de minutos, o cozinheiro ignorou completamente seu instinto de perdedor e as provocações que ocorriam ao seu redor, concentrando-se apenas em terminar sua refeição de maneira bem feita. Quando a ampulheta despejava suas últimas partículas de carvão, ele notou de relance Pretzel se aproximar com uma tocha acesa para acender o pavio e entendeu no mesmo segundo que faltava pouco mais de um minuto para que seu tempo acabasse e o relógio fosse consumido por chamas. Em sua visão periférica, notou que Kristian enfeitava os últimos pratos e colocava-os juntos dos demais, soltando um pequeno suspiro de desânimo ao receber a instrução de adicionar raspas de laranja no topo de um prato cheio de queijo gratinado que tinha certeza de que era salgado (não tinha a menor chance de algo como aquilo ficar saboroso) e Merin, por sua vez, estava terminando de enfeitar o bolo de cenoura, satisfeita com o próprio serviço. Ele também havia terminado de cozinhar, e estava exausto. Tudo que queria era um bom cigarro e, se pudesse, um litro inteiro de álcool.

Deixou-se relaxar.

Apoiando os braços sobre a pia vazia, pendeu a cabeça para baixo, sentindo o suor escorrer da testa e o sentimento de pura satisfação por seu trabalho. Havia feito seu melhor. Contando os últimos segundos em sua mente, observou a elefanta levantar de seu lugar e tomar a dianteira frente aos competidores com seu gigantesco sorriso e, por fim, a ampulheta começou a queimar.

— Larguem os talheres! — Pretzel gritou, e todos os participantes obedeceram.

O público bateu palmas e fez festa por pouco menos de um minuto e, quando parou, Flint pôde reconhecer a voz de Bertruska murmurando no ouvido de Merin, "O bolo dele não era um pouco maior e mais fofinho?"

— Fi-fi-fom! O cheiro está maravilhoso por aqui! — a elefanta levantou sua tromba e soltou um pequeno gemidinho de contenção — Primeiramente, os cozinheiros irão servir seus pratos aos nossos jurados e, após isso, todos poderão se deliciar!

A plateia aplaudiu a apresentadora, soltando assobios e gritos animados e, em uma mesa posta a alguns metros de distância da cozinha improvisada, os jurados sentavam-se lado a lado. Haviam oito cadeiras postas e sete indivíduos sentados aguardando ansiosamente: todos os elefantes com exceção de Pretzel, junto da tigresa que Flint reconheceu como a senhora que auxiliou no horário do almoço, uma criança magrela um pouco menor que Poyo e de cílios postiços quase saindo do rosto pintado e, por fim, um palhaço rechonchudo e trajando terno, com um broche preso ao seu bolso dizendo "degustador de peso".

— Irão apresentar os pratos na mesma sequência em que foram definidos os participantes, sendo a atual tripulação campeã, a última! — explicou, tomando rumo em direção a própria cadeira e sentando ao lado dos irmãos. — Merin, inicie sua apresentação!

A mulher caminhou em direção a mesa e, com o auxílio de Bertruska, serviu um generoso pedaço de carne a cada um dos jurados. A parte interna tinha um tom de vermelho quase tão vivo quanto as roupas chamativas de Baru.

— O prato principal é assado de bisão com purê de batatas e, para a sobremesa, fiz um bolo de cenoura com creme de chocolate — ela ditou, abrindo um sorriso orgulhoso e colocando as mãos atrás das costas para esperar o momento da degustação.

Um a um, os jurados tomaram seus talheres — ridiculamente pequenos para elefantes, a propósito; mas curiosamente os da menininha eram grandes demais — e cortaram pequenas fatias da carne, experimentando em silêncio. Não houveram comentários; ainda não era a hora de dar seu veredito. Merin mordeu os lábios, subindo e descendo da ponta do pé, ansiosa. Em seguida, eles provaram a sobremesa e, novamente, após alguma dificuldade para digerir o doce sem tomar água, não fizeram comentário algum além de pedirem para que deixasse o palco para deixar o próximo competidor passar.

Kristian foi o segundo a ir para a bancada, empurrando um grande carrinho de alimentos.

— Boa noite à todos! — iniciou, enquanto levantava as cloches para expor os pratos que haviam produzido. Especialmente para os jurados, Apollo decidira separar pequenas versões de seus pratos originais, para que assim tivessem a experiência tanto do sabor, quanto do visual de sua obra. — Segurem-se nas cadeiras, pois nossos sabores serão devastadores! Uma experiência culinária que vocês jamais virão outra vez em suas vidas. E isso eu posso garantir — e deu uma sutil piscada de um só olho, fazendo Pieri se esconder de vergonha no banco da plateia ao vê-lo no telão reprodutor. Ela não o perdoaria por sua piada infame, mas não se arrependia de nada.

Os jurados um a um se aproximaram do carrinho, beliscando com os talheres pequenos cada uma das opções servidas pelo imediato e, ainda que para o público geral não pudesse ser notado, Kristian vira de camarote a pequena curvatura de desgosto nos lábios de Baru ao experimentar o assado de queijo e raspas de laranja. Sentiu uma gigantesca vontade de gargalhar e esta sensação aumentava à medida que todos experimentavam os alimentos e tinham micro expressões de puro desespero. Entretanto, sua diversão por um breve segundo foi completamente substituída pela mais pura consternação quando, na hora da sobremesa, serviu o lindíssimo bolo de melancia, com formato de melancia por dentro e por fora, mas que o ingrediente principal eram pimentões. Aquela coisa tinha um cheiro tão forte que mesmo ele poderia sentir.

— Esperamos que gostem de nossa sobremesa, é a especialidade do chefe — explicou. — Apesar de que não posso lhes garantir nada, já que não sinto sabor algum!

O palhaço gordo ergueu uma sobrancelha para ele, não achando muita graça da piada e Kristian entendeu de pronto que ele não gostava de brincadeiras na hora da refeição, por isso se calou. Enquanto servia os pratos, ainda teve tempo de amaldiçoar Apollo mais uma vez por não ser escultor invés de cozinheiro, antes de dizer um "Bon Appetit" e esperar as reações. Nada de surpreendente ocorreu. Não houveram vômitos e muito menos caras de nojo, isto é, os jurados eram realmente profissionais, ou talvez sociopatas para conseguirem ignorar aquela bestialidade em forma de alimento, mas antes que pudesse constatar o mais puro tédio, um pequeno gemido de satisfação vindo da garotinha jurado foi ouvido, seguido de um rápido movimento para cobrir a boca com as mãos, envergonhada por romper a faceta de jurada.

Toda a arquibancada se silenciou e o imediato sabia que, se tivesse sistema nervoso, já estaria sentindo uma gigantesca dor de cabeça. Ao longe, a risada rouca do macaco fumante ecoou pelo silêncio da plateia e, embora tivesse certeza de que esse só estava dentro de sua cabeça, também ouviu o claro barulho do dinheiro de sua carteira batendo as asas e indo embora para longe de si. Macaco rabudo do cacete, amaldiçoou.

— Que venha o próximo participante! — pediu Pretzel, pouco depois de todos terminarem a comida.

Flint, com o auxílio de Hanzo, serviu sua comida à mesa para os jurados. Devidamente empratados e com poucos frufrus, temia perder pontos pela aparência simples, ainda mais depois do deslize da garotinha, que certamente indicava que a comida de Apollo não era só bonita; no entanto, ao menos uma coisa o mantinha firme: da carne crua de Merin não perderia.

— Preparei um risoto de caranguejo e parmesão e, como acompanhamento, sopa de cebola — apresentou os pratos principais, em seguida fazendo sinal para que Hanzo fizesse a entrega tanto do prato principal, quanto do pote de sopa — E, para a sobremesa, parfait de morangos e coco. Espero que gostem.

O sentimento de "seja o que Deus quiser" não saía de seu peito. Suando frio, observou os jurados degustarem os pratos, e até recebeu um sorriso reconfortante da Sra. Tigre antes dela iniciar sua prova, mas nem isso foi o bastante para acalmá-lo, já que, logo em seguida notou em sua visão periférica a juradinha torcer o lábio em determinada repulsa ao sentir o cheiro de seu parfait.

— Pode deixar o palco, Flint — anunciou Pretzel, abrindo o braço direito para apontar a saída. O cozinheiro desceu os poucos degraus com duas pernas de pau, mas deixou a coluna pender quando pisou no térreo. — Nós e os jurados iremos nos juntar e deliberar. Agradecemos a todos os cozinheiros pelos esforços-fi-fi-fom! Agora, para o momento que todos esperavam, nossos ajudantes colocarão uma urna próxima às mesas e entregarão papéis para que votem após a refeição! — afirmou, indicando com suas patas os pequenos palhacinhos que já começavam a trabalhar — Tenham um bom apetite!

Mais tarde naquela noite, quando o último cidadão despejou seu cartão na urna e os piratas retornaram ao palco para ouvir ao vivo a contagem de votos, todos os gatos suavam frio a cada voto de papel, e da mesma forma estava Flint, que mesmo depois de alguns cigarros, não conseguira relaxar (tinha uma vantagem considerável com a população, mas de nada adiantaria se os jurados detestassem sua comida, uma vez que os votos somados dos civis apenas acrescentariam uma vitória). Os pierrôs, por outro lado, já haviam entregado o jogo há algum tempo e agora estavam no palco apenas por educação: ao constatar que não receberiam sequer um voto da plateia, Apollo saíra correndo para chorar na tenda e Yolanda fora consolá-lo, sobrando apenas um quinteto de palhaços desinteressados, que olhavam as unhas esperando o resultado que não vinha logo. Por fim, os cães pareciam bastante confiantes.

— Fi-fi-fom! Finalizamos a contagem dos votos e, com grande vantagem, o participante Flint conquistou o primeiro ponto — disse ela ao microfone, e o público foi à loucura.

Quando chegou a hora dos jurados, nenhum deles conseguia conter os gritos de comemoração pois, no fim das contas, sentiam que suas opiniões haviam sido respeitadas. Shake e Cotton, a elefanta cor-de-rosa, deram seus votos à Merin, enquanto a Froo-froo, a menininha, votara em Apollo. Todo o resto votara em Flint, que mal conseguiu esconder o sorriso quando ouviu o gordo palhaço, o último a votar, sagrá-lo campeão.

— E, pela segunda prova consecutiva, a equipe de Hanzo é a vencedora! — Pretzel anunciou — Meus parabéns ao cozinheiro e agora, cabe ao capitão a decisão. O que irá escolher?

Hanzo deu um passo para frente. — Um participante, mais uma vez.

— Uhul! Está com tudo, não está? — a elefanta comemorou consigo mesma, oferecendo-lhe o microfone. — E quem será o felizardo dessa vez? — ela perguntou à plateia, como uma animadora.

Depois da costumeira baderna, o homem se permitiu um segundo de silêncio para pensar, até que, com um fraco anuir de cabeça para Kaze (que fora respondido com um levantar de braços indiferente), decidiu-se sobre quem chamar.

— Nicholas, da tripulação da capitã Pieri.

Neste momento, não houve choradeira. Ainda que a despedida contasse com um caloroso abraço de Franz, alguns tapinhas nas costas e um cumprimento formal do imediato, Nicholas deixou sua posição, passando por último pela capitã e curvando-se em sua direção em um último sinal de respeito, antes de tomar seu lugar ao lado de Flint, agora na tripulação Komainu. Pieri não sabia como reagir. Isto é, não era boba e o pequeno sorriso de Nicholas ao cumprimentar Sherikan não passou despercebido de seus olhos ágeis; apesar de demonstrar respeito a sua posição, o garoto não se conteve e parecia bastante contente com sua mudança, sobretudo quando se juntou ao lado do mendigo com um semblante orgulhoso. Ou ele estava levando muito a sério a regra de jurar lealdade ao novo capitão, ou então ele parecia ter se encontrado, disse a si mesma.

Mas isso era completamente secundário agora. Independente de sua segunda derrota, naquele instante, a única coisa que conseguia pensar era que, além de presunçoso, orgulhoso e mendigo, o capitão Hanzo era um completo idiota.

≈≈≈

Da mesma forma que quando saiu do bando pela primeira vez, o momento de juntar suas coisas e se mudar para o acampamento rival causou extrema comoção a tripulação de Poyo, que se arrastou atrás dele como em uma caminhada fúnebre e por pelo menos dez minutos ficaram plantados em frente da tenda como gatinhos abandonados até que Yun os expulsasse com uma vassoura. De volta à privacidade, por fim, Fang e Sherikan prepararam uma fogueira no descampado atrás de sua barraca para que pudessem aproveitar o do lado de fora; as noites de Woo Pululu eram inesperadamente geladas, porém o céu era limpo e repleto de estrelas. Tudo parecia bem demais para aquela atmosfera taciturna.

— Preparei algumas bebidas — Flint disse, resolvendo se juntar aos demais com uma jarra de limonada.

Ele não pretendia se envolver demais com a nova tripulação, já que desde o início sabia o que continuar com eles indicaria: teriam de matá-los em breve. No entanto, ao perceber que não conseguira pregar os olhos naquela noite (ao menos não com Hanzo por perto), a simples ideia de permanecer deitado o incomodou profundamente, e por isso decidiu que, embora não fossem seus amigos, era melhor preparar-lhes algo do que continuar na melancolia do chão desconfortável.

— Não precisava nos preparar nada, mas muito obrigado, Flint — o homem peixe agradeceu, puxando uma cadeira e oferecendo-a ao cozinheiro para que se juntasse a eles. Ele aceitou de bom grado, ficando a direita de Fang e a esquerda do homem que lhe fora apresentado pelo capitão como Kaze. A sua frente estavam Hanzo e Nicholas. 

Já confortável, puxou a carteira de cigarros, acendendo um e dando uma longa tragada. Não haviam muitos, uma vez que gastara os que tinha na espera do resultado da competição, mas generosidade nunca era demais. — Aceitam? — perguntou, oferecendo o que tinha na caixa. Kaze hesitou por um momento, mas, sabendo que seu capitão não lhe ofereceria um trago do kiseru, o seu cachimbo, resolveu que não tinha nada a perder.

— Obrigado — disse em resposta. Flint sorriu tênue, e logo desviou os olhos, fugindo do olhar cortante de Hanzo, que o olhou feio por um milésimo de segundo porque detestava ver seu pupilo fumando (ainda mais cigarros tradicionais). O cozinheiro entendeu no mesmo instante que ele se recusava a ver o médico como um adulto.

— O que você veio fazer na Grand Line, Flint? — perguntou Sherikan, dando um gole no suco.

— Não posso dizer que sei com certeza; meu único desejo era seguir Poyo até agora — explicou cabisbaixo, ficando em silêncio para dar mais um trago.

— Se tornou pirata a pouco tempo, então? — a voz de Fang se fez presente, junto de um pequeno gemido de satisfação após experimentar a bebida. Poderia facilmente se acostumar com aquilo.

Flint riu, soltando uma nuvem de fumaça. — Quem dera! Estou no mar há muito mais tempo do que me lembro; apenas não tive vontade de deixar o East Blue antes disso.

O capitão arqueou uma das sobrancelhas, tirando o cachimbo de sua boca para ouvir atentamente o que ele tinha a dizer.

— De que parte do East Blue você é? — Sherikan indagou, pensando que não fazia muito tempo desde que voltara para a Grand Line, mas que mesmo assim já sentia falta da calmaria dos Blues: precisava se encontrar com sua irmã logo, ou nunca se sentiria em casa.

— Do noroeste, perto da Red Line. Eu não me lembro da ilha, não era um local grandioso — devolveu, apagando a bituca de cigarro no solado de sua bota.

— Eu estive no arquipélago de Conomi antes de vir para cá — o espadachim colocou a mão no queixo — Fora isso, não conheço nenhuma ilha naquela região. Sua ilha não deve ser uma ilha muito grande.

— Não, não era mesmo — Flint deu um sorriso de canto, e então se calou, como sinal de que não queria continuar aquele assunto. Sherikan compreendeu o recado, mas seu capitão, não.

Hanzo iniciou, olhando-o de cima a baixo. — Não sentiu vontade de voltar para casa? — E então lhe ofereceu o cachimbo para que desse um trago, mas Flint recusou, apontando que ainda havia um cigarro em sua caixa.

— A vida pirata é bastante interessante e dificilmente sobra tempo para pensar coisas desse tipo — Flint puxou um trago para acender o outro cigarro — Mesmo no East Blue, acredito que nunca vi a mesma paisagem duas vezes–

— Eu nunca deixei de pensar em casa. Nem por um segundo — o capitão o interrompeu, a voz soando seca e áspera.

O cozinheiro se encolheu em si mesmo, porém, antes que o clima pesasse ainda mais, uma luz surgiu em sua mente ao lembrar-se que aquele cara tinha algo a ver com os algozes de Bertruska e que aquela era a oportunidade perfeita para tirar algo dele sobre o assunto. Afinal de contas, se Hanzo não tinha vergonha em tentar retirar na cara dura informações sobre seu passado, que mal haveria de pagá-lo com a mesma moeda?

— Você não apareceu no jornal recentemente? — indagou, capcioso.

Hanzo sentiu a fumaça engasgar em sua garganta e o olhar dos companheiros pesou por suas costas. — Apareci — respondeu. — Eu ajudei com a captura de um bando.

— Com a Marinha, você quer dizer — Flint interpelou rapidamente, e antes que o capitão abrisse a boca, ele continuou, afiado: — Você é um corsário?

Um silêncio mórbido pairou no acampamento. Kaze sentiu todo o sangue de seu rosto descer e ao olhar para o capitão, notou seus olhos mais arregalados do que nunca. Nenhum dos dois teve forças para levar o fumo de volta à boca. Por sua vez, Sherikan e Fang ficaram em silêncio, e Nicholas também não disse nada, mas parecia mais interessado na conversa agora, despistando seu cansaço.

— Quero dizer, — o cozinheiro voltou a falar, agora em meio a uma risada forçada de quem está contando uma piada — Não que eu tenha algo em especial contra os corsários, não me importo mesmo. Mas veja que, estando sobre os meus sapatos, é um pouco estranho você ter escolhido justamente um pirata de recompensa para trazer ao bando, né? Sendo corsário.

A risada de Flint indicava humor, mas a verdade é que todos os quatro cães precedentes puderam notar, mesmo que apenas por um segundo, um sorriso de puro desdenho estampado em seus lábios quando mencionou a última palavra da frase. Não tinha um pingo de decência e parecia até mesmo refletir certo nível de insanidade. O imediato da tripulação não teve reação. Sentiu um tijolo descer por seu estômago, e não precisava ver os olhos de Hanzo para saber que ele pensava no mesmo. Os dois espadachins e o homem peixe não sabiam, mas, naquele momento, estavam todos encurralados. Eram vacas caminhando para o abate.

— Nós... temos contatos — desconversou Fang, de olhos fechados. Em sua cabeça, repassava pequenos recortes de seu passado, quando ainda roubava para viver e, junto de Lilac, eram temidos por todos. Nessa época, ele viu muita injustiça da Marinha e de todos aqueles que se diziam "pela lei". No entanto, a vida atual parecia confortável o bastante para não querer voltar a ser visto como um criminoso.

Kaze apertou os olhos, titubeando em responder.

— Eu o matei — Hanzo interrompeu, afirmando com a voz empostada — O líder deles. Eu o matei — nesse instante, seus olhos vacilaram ao encarar os do cozinheiro, passando a fitar as mãos inquietas do médico. — Mas prefiro abrir mão dos créditos. Não desejo qualquer fama.

Mentiroso filho da puta.

— Você é procurado a muito tempo? — questionou Nicholas, que até então observava a cena em silêncio. Era um pirata a pouco tempo e ainda sim nunca tivera contato com alguém procurado.

— Creio que uns três ou quatro anos. Talvez cinco — explicou.

— Você não se lembra? — o capitão agora batia a perna no chão, ansioso.

— Sendo sincero, não. Acho que nunca me importei. Isto é, não houve uma linha entre ser bom ou mau para eu ter o discernimento de quando, exatamente, mudei; apenas fiz o possível para viver.

— Todos os piratas pensam dessa maneira? — questionou Hanzo, que nesse momento já sentia o estomago doer em ansiedade.

— Não sei. Você não é um pirata também? — rebateu, dando uma longa tragada em seu cigarro.

Hanzo engoliu em seco, sentindo o olhar do cozinheiro pesar sobre si como se soubesse mais do que lhe dissera. Seus olhos eram frios; encarava-o sereno, ainda fumando calmamente enquanto o sondava sobre seus maiores erros. Ele parecia saber que mentia sobre a Ilha dos Pássaros. Na verdade, parecia saber até mais do que isso.

Ficou em silêncio. Não só porque ele parecia pescar cada palavra de suas falas para usá-las de arma, mas também porque, dessa forma, sentia-se mais seguro. Ele não podia ler sua mente, e se protegendo, sabia que poderia também proteger os outros ao seu redor.

— No fim, a vida pirata está intimamente ligada aos desejos egoístas e a necessidade de sentir-se livre — pontuou Flint, soltando uma lufada de fumaça — Mesmo aos que velejam com boas intenções, bastam alguns contratempos para que o mar os transforme em completos desafortunados. Não tem gente "boa" quando se passa pela fome e pela doença.

Como todos continuaram quietos, o cozinheiro decidiu prosseguir.

— Como pirata, acredito que abri mão da plenitude e paz da vida ordinária; jamais poderei descansar ao sol, tal qual uma foca, da mesma forma que tenho certeza de que não acordarei sequer um dia sem pensar que posso morrer porque alguém disse que minha vida não era a certa. Eu já saqueei para comer e já fui pego e apanhei da Marinha também. Aprendi a não ter medo da morte porque não tive outra escolha senão essa — em meio a uma tragada e outra, soltou um pequeno sorriso travesso. — Mas, capitão, se tem algo que posso lhe garantir é que, mesmo com tudo isso, se eu voltasse atrás agora, eu não mudaria absolutamente nada.

Hanzo sentiu o kiseru quebrar em dois. Não conseguiu conter a força.

— Droga — disse baixo, levantando-se de uma vez só. — Irei caminhar um pouco e trocar isso aqui! — apontou o cachimbo quebrado, dando um riso forçado. — Aproveitem a noite sem mim.

E saiu com um acenar de cabeça cortês, mas não sem notar que, no momento em que deixou a fogueira, a conversa voltara a acontecer normalmente, sem o mesmo tom fúnebre de antes. 

Entendeu de imediato que ele era quem os sufocava.

≈≈≈

— Mas, Belka, não podemos permitir isso!

Após alguns minutos aproveitando o próprio silêncio e usando suas últimas forças para afastar seus pensamentos ruins, Hanzo fora completamente capturado pela voz da capitãzinha, que, perto da praia onde os navios estavam ancorados, conversava intensamente com sua imediata, ao ponto de socar a madeira de seu próprio barco.

Uma pequena parte de si avisou no mesmo segundo que não queria ouvir o que quer que dissessem ali; que se arrependeria se desse o benefício da dúvida de que não haveria nada de mais, contudo, sua curiosidade era certamente uma de suas maiores falhas, sendo superada apenas pelo seu latente orgulho e enorme senso de justiça — e, diga-se de passagem, naquele caso todas essas suas características estavam interligadas.

— Podemos e vamos, pirralha! — Belka bateu o pé, apontando a pata no rosto de sua capitã. Hanzo estava a vendo de costas, mas sabia que sua feição deveria estar franzida. — Você que decidiu participar desse jogo idiota sem nem mesmo saber do que se tratava ou nos pedir consentimento. É um juramento, não podemos sair cagando e andando.

— Que se foda os julgamentos! Nós já matamos gente dessa antes — ela respondeu — Metemos bala em quem não gostar e depois metemos o pé, como sempre!

Os olhos de Hanzo por muito pouco não saltaram para fora de órbita. Estava certo desde o princípio.

— E sua amiga? Não acha que ela irá aceitar isso calada, acha? — Belka perguntou, depois de pensar por um segundo. — Ela parecia bastante certa do que fazia quando atirou ao céu. Parece estar levando esse jogo a sério.

— Eu gosto da Pieri, mas se ela se opor a gente, então que se foda ela também! Posso invadir sua tenda agora e atirar na sua testa, se você achar problemas demais. Mato a cidade inteira, se for necessário!

— Pare com essa merda, agora! — respondeu a gatuna, dando um tapa forte no rosto da garotinha, que colocou a mão na própria bochecha, olhando-a com os olhos pegando fogo. — Se está querendo nos matar, então vamos pegar uma corda e nos enforcar agora mesmo, sua imbecil.

Suspirando, Belka bateu com a cauda no chão, enraivecida. E então sua voz acalmou um pouco.

— Nós iremos jogar esses jogos de merda e seguir as regras como foram feitas, porque precisamos lidar com as suas cagadas. Então nem pense em fugir ou arranjar planos secundários. Você é a capitã, mantenha sua palavra e arque com suas decisões!

— Belka...

— Cale a boca e me escute — estalou o chicote no chão. — Não iremos matar ninguém e não ouse foder com a única aliança que temos. Eles são mais fortes que nós e estão em maior número agora. Seja inteligente, se decidir fazer uma guerra, não poderemos te proteger.

— Eu não preciso de proteção! — afirmou, com os braços cruzados em frente ao corpo.

— Se não precisa, Poyo, então por que todas as vezes que você se perde alguém tem que ir te salvar? Por que você continua nos metendo em coisas que não quer resolver? E, principalmente, por que, da última vez que você saiu sozinha, trouxe para a gente uma bomba relógio? — Belka censurou, a voz mais alta do que nunca. Por sua vez, Poyo ficou em completo silêncio, sentindo seus olhos começarem a se marejar — Aquele moleque não tem nada a ver com a gente, e é uma questão de tempo para descobrir o que fizemos com a tripulação antiga do Flint, com aquele barco da Marinha e também com os velhos do East Blue. Se ele contar, já era. Ele sabe a nossa cara.

Hanzo então levantou as sobrancelhas, ainda mais interessado. A princípio a faceta infeliz do garoto o chamara a atenção, mas em nenhum momento imaginou que ele sequer estava ciente das atrocidades comandadas pela garota e gato demônio.

— Ele não falaria...

— Ele não falará, pois não irá descobrir, capitã. Isto é, no momento em que ele desconfiar, farei questão de que ele jamais abrirá a boca.

— Então por que você não mata ele agora, antes do pior acontecer?

— Você percebeu quantas pessoas nos viram junto do garoto? Nós seríamos os primeiros suspeitos, pirralha — respondeu, colocando as patas sobre a cabeça — Não irei matá-lo à esmo. É burrice. Mas, de fato, quanto antes, melhor.

— Mas e se ele for para outra tripulação, Belka? — Poyo perguntou, pela primeira vez tendo consciência do problema que estava em suas mãos. O problema que ela ocasionara.

— Vamos ficar bem, se ninguém mais souber quem somos — a gata disse, virando-se de costas para a capitã e, por consequência, de frente para Hanzo. Sua esclera parecia escura como o breu, sem brilho aparente, mas a íris tinha um tom fluorescente de azul, da mesma forma que a ponta do rabo brilhava uma chama-fátua.

Sentindo um arrepio em sua coluna, o capitão dera um passo involuntário para trás, assustado com a névoa arrasadora que emanava envolta daquelas duas. No entanto, ao pisar no mato, um pequeno farfalhar pôde ser ouvido. Belka no mesmo segundo mexeu suas orelhas, abrindo a cauda em duas e buscando o inimigo com os olhos, mas após averiguar brevemente, fechou-a, imaginando tratar-se apenas de algum roedor ou animal perdido. Hanzo, por outro lado, sentira uma gota gelada de suor descer por toda a extensão de suas costas. Nunca se sentira tão próximo da morte; nem mesmo quando estivera de joelhos, a mercê da espada dourada de seu maior rival, se sentira tão assustado. A morte já não parecia libertadora, e sim inevitável. Seu peito pesou como se estivesse sendo esmagado por uma rocha.

Aquele gato diabólico, como nas antigas lendas, não demoraria meio segundo para cortar sua garganta e comer seu corpo para usar a pele. Naquele instante, ele até podia ver uma segunda lua no céu — o corpo em frangalhos, o vermelho refletindo a luz bifurcada do fogo fantasmagórico que emanava de sua cauda. Estaria disposto aos vermes e nunca, nunca seria encontrado, porque sequer sentiriam sua falta. Como um bakeneko, ela vestiria-se de sua imagem e andaria com os humanos como se não fosse um monstro; falaria com eles e agiria como eles; moldaria seu caráter como os dos demais e, sedutoramente, faria com que todos ficassem encantados com sua postura para, por fim, matá-los enquanto dormia.

Um bakeneko, matando para assumir o lugar de todos que os encontravam; sugando suas coisas e indo embora para outro lugar.

Todos naquela tripulação eram, sem sombra de dúvidas, fragmentos diabólicos de malfeitores que se apoiavam em uma lenda tola, sobrevivendo de carcaças como vermes. Sentiu a cabeça girar e uma avassaladora náusea tomou seu corpo, precisando cobrir a boca e engolir em seco para impedir que todo o jantar fosse ao chão. Não restava uma parte de si que não estivesse tomada pelo ódio e, principalmente, pelo ressentimento de ter falhado em impedir o mal de se alastrar.

Por culpa de suas fraquezas, não pudera dar aos seus algozes o destino que lhes era merecido. Todavia, agora mais experiente e mais sábio, não cometeria o mesmo erro duas vezes. Deus havia lhe dado a chance de se recompensar.

Estava cercado, mas não por muito tempo. 


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