Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 29
Grand Line, alto-mar (Jogos Piráticos)


Notas iniciais do capítulo

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No momento em que decidiu viajar com aqueles estranhos, Hiroshi não fazia ideia de que um bote furado poderia ser mais seguro que uma caravela burguesa.

— ANDE AGORA, SEU BOSTINHA! VOCÊ ACHOU QUE EU ESTAVA BRINCANDO? — A voz estridente soou por todo o convés. Atrás de si, a capitã tremelicava o olho direito, furiosa, enquanto erguia uma pistola em sua direção e o forçava a caminhar mais e mais para um caminho sem volta: a ponta da prancha de um navio pirata.

Hiroshi, encurralado como um porco no matadouro, sentiu uma gota de suor passar por toda sua coluna e uma onda forte de ansiedade tomou todo o seu corpo. Seria aquele o fim de sua jornada, subjugado por uma garotinha maluca em um oceano distante e sem nenhuma perspectiva ou sonho realizado? Poderia chorar e implorar sua vida, contudo não daria esse gostinho a Poyo mesmo que esta fosse a única chance de sobreviver. Até poderia dizer que, em toda sua vida, se arrependia de algumas coisas (uma das primeiras da lista sendo se juntar àquele bando, é claro), mas a decisão de caçoar da capitã em nenhum momento estaria nela. Sobretudo, em retrospecto pelo que havia vivido naquele dia, poderia dizer que, sem dúvida alguma, não se arrependia de nada — ou, ao menos, nada que se lembrasse… 

Vejamos, no dia de hoje, havia…

Naquela manhã espremeu os olhos para analisar seus arredores como se o sol fosse os queimar e, ao notar-se dentro de um cômodo, não poderia se sentir mais deslocado. Tudo naquele quartinho lhe era estranho, em especial o fato de não haver nenhum item pessoal do cozinheiro, quem havia lhe cedido a cama, com exceção de uma besta presa à parede que assumiu não ser do médico. Na prateleira principal, havia potes com alguns dedos embalsamados, e até alguns ossos de animais distintos, presos ou jogados pelas prateleiras; nada que fosse normal de se ter em um quarto. 

Em outros momentos de sua vida, aquilo seria o suficiente para desaparecer sem deixar qualquer rastro, mas na atual situação em que se encontrava, não poderia fazê-lo, uma vez que estava muito longe na Grand Line e, após quebrar seu Log Pose durante a luta com os castores, não havia a menor chance de se aventurar sozinho: morreria antes que pudesse terminar a frase “malditos castores”. Sem escolha, e já sentindo a cabeça pulsar pelas decisões erradas, se levantou do beliche fazendo a menor quantidade de barulho possível, a fim de não chamar atenção do esquisito que não tivera coragem sequer de perguntar o nome. Mas, no fim das contas, nem foi preciso tanto: Morgan havia o notado, sim, contudo não estava interessado em puxar assunto e, para todos os efeitos, decidiu continuar quieto enquanto o garoto se esgueirava nas pontas dos pés até a porta que o levaria para o quarto das mulheres. 

Do outro lado, o quarto ainda permanecia silencioso e escuro e, com exceção da mulher de tapa-olhos, todas ainda ressonavam. Ele não fazia a menor ideia de que horas eram, mas tinha certeza de que, mesmo que fosse meio-dia, todas permaneceriam na cama por pura preguiça: mesmo que já estivessem se afastando de Wintery, as nuvens densas e os ventos frios os acompanhavam oceano adentro e, sendo assim, o clima era próprio para dar uma desculpinha e continuar atarracado em meio às cobertas. Por um minuto, Hiroshi perguntou a si mesmo se não deveria abortar os planos e retornar a dormir, mas as imagens aterrorizantes dos ossos e o crescente ronco que surgiu em sua barriga o impediram de voltar atrás: estava completamente faminto (e, sinceramente, cagado de medo).

Atravessou o corredor e subiu as escadas íngremes devagar e silencioso, bastante inseguro sobre o caminho que tomaria e com medo de ser traído pela própria memória. A Carniça não era um grande navio; era uma caravela tradicional, com um porão, um deque interno onde os quartos, salas e banheiro principal se encontravam e, por fim, um castelo de proa que comportava a cozinha e um pequeno lavabo. Porém, já acostumado com a vida em canoas, para Hiroshi aquele lugar parecia um suntuoso palácio. Não conseguia deixar de temer o que nunca tivera — e o quarto onde dormira corroborou com a imagem de que, se abrisse a porta errada, poderia se deparar com algo que não queria de forma alguma encontrar. 

Ao menos, quando abriu a portinhola que o levaria para o andar de cima, não se deparou com ossos e vidros estranhos, e sim com a mulher de tapa-olho, levantando um peso maior que sua cabeça e, principalmente, com um cheiro delicioso de comida que vinha da cozinha.

— Ah, é só você! — a mulher respondeu em um susto, voltando a segurar o peso que havia devolvido ao chão com enorme rapidez no momento em que chegara. — Ei, garoto! Por acaso o Morgan está acordado?

Hiroshi pensou por um segundo, não havia nenhum outro homem na tripulação além do cozinheiro e este estava a alguns passos de si, então sobrava somente o esquisitão do andar de baixo como opção. Disse: — Estava sim, quer que eu o chame?

Fazendo um sinal com a mão, Bertruska deixou um “hum” escapar pelos lábios e nariz. — Não, muito obrigada. Prefiro evitá-lo o quanto possível — afirmou, caminhando até o balcão e dando três batidinhas na banqueta ao lado como indicativo de que deveria se sentar também. O garoto não pensou duas vezes em obedecê-la: se ela era capaz de levantar aqueles pesos, nem conseguia imaginar o que poderia fazer com sua cara. — Flint, manda um rango para nós!

— Você está bem animada para quem acabou de perder o olho — o cozinheiro brincou para a marinheira, sem se virar do fogão. Em suas mãos, empunhava uma frigideira cheia com um refogado de ovos, além de uma grande espátula de madeira que usava para virar a omelete em um dos pratos.

— Se eu o quisesse, não teria arrancado eu mesma! — deu uma risada alta, batendo de leve na mesa e não se importando com a face de Hiroshi, que se contorceu em uma careta assustada. Flint olhou de cara feia para Bertruska, que apenas deu de ombros sem desmanchar o sorriso sacana de seus lábios.

— Vai assustar o moleque desse jeito — ele afirma, se aproximando da bancada para servir ambos os pratos. O garoto, pálido como papel, apertava o rosto para conter o pânico enquanto olhava de rabo de olho para a ex-marinheira como se procurasse um resquício de piada em sua face, e sabendo que ele não encontraria nada, o cozinheiro tratou de continuar: — Coma enquanto ainda está quente. Eu espero que goste — e deu um sorriso tímido.

Ainda com o pescoço travado, ele abaixou sua cabeça para olhar o prato já montado em sua frente. Haviam três porções de arroz de tamanhos diferentes: um grande oval no centro, coberto até metade com o ovo mexido e, acoplado em suas laterais, haviam mais dois pequenos círculos e uma meia lua de ponta cabeça na parte de trás. O que ficava para fora da “capa de ovo” estava decorado com algas e legumes: seis bigodes espelhados, um rostinho de olhos de ervilha e um pequeno monóculo de cebola.

— O que é isso, um cachorro? — perguntou Bertruska, já dando uma colherada generosa bem no rosto de sua criaturinha. Flint sentiu seu coração quebrar por um segundo ao presenciar o assassinato a sangue frio de seu filho, mas engoliu e a respondeu, sereno:

— Uma foca — explica. — Tinham algumas na praia da última ilha em que estivemos, você não deve ter reparado…

— Eu vi! — Hiroshi interrompeu: como o cozinheiro bem suspeitava, um tapa de sua comida era o bastante para acordá-lo do choque e, dessa forma, o medo havia se esvaído no mesmo segundo em que o cheiro lhe estapeou a face. — Eram bem bonitinhas, mas pareciam meio burras, ficavam deitadas no gelo sem fazer nada.

Flint deixou escapar um risote baixo. Burras por escolherem a vida mansa?, pensou consigo mesmo; em sua concepção, pareciam animais muito inteligentes, afinal, enquanto os castores trabalhavam entregando cartas e encomendas, elas permaneciam deitadas, apreciando o mormaço e apenas levantavam quando sentiam fome. Se pudesse escolher entre um e outro, certamente se juntaria a elas em um banho de sol… Mas ele bem sabia que, ao menos nesta vida, havia sido destinado a trabalhar como um castor. O mundo podia ser bastante injusto quando queria. 

Finalmente, o estampido de Belka esmurrando o alçapão foi o bastante para tirá-lo de suas reflexões de reencarnações melhores, e então a viu subir de cenho franzido, analisando o ambiente com seus olhos semiabertos e como se estivesse pronta para saltar na garganta de alguém.

— Quem foi que fechou essa porra? — perguntou, ácida. O cozinheiro não precisou de dois segundos para compreender que, ao subir, Hiroshi havia batido a porta com força demais e, por consequência, havia emperrado a portinhola. Deu um suspiro, logo dizendo:

— Desculpa, eu devo ter esbarrado nela — assumiu a culpa, para evitar que o novato fosse assolado pelo terrível humor de Belka logo tão cedo. No que lhe diz respeito, a gata, não podendo ir contra seu preferido, só “tsc”ou e seguiu mal humorada pelo andar, prontamente sendo escoltada pela pequena capitã, que surgia ainda com a face cansada e não parecendo atenta à discussão. Hiroshi não se deu ao trabalho de agradecer ao cozinheiro; em vez disso, aproveitou a oportunidade para debochar da menininha:

— Bom dia, capitã! — falou em um tom alto e alegre, intencionalmente querendo chamar a atenção de Poyo, mas direcionando tanto o cumprimento quanto o honorífico a gata.

Belka crispou os lábios e o olhou de rabo de olho com desdém, logo acomodando-se na banqueta que, anteriormente, Bertruska se sentava. — O que você quer? Eu não sou mãe de ninguém, então não me venha pedir nada. Flint, café — ordenou, amarga e retórica — Se vire, frutinha.

O garoto sentiu o beiço murchar e a força de vontade se esvaiu enquanto sussurrava o apelido a si mesmo. O que significava aquele apelido e, principalmente, o porquê dele ter sido direcionado a si, eram mais duas coisas para a lista das que não compreendia naquela tripulação. Isto é, desde que chegara, mal havia conversado com os demais, e mesmo assim já dispunha de um deboche próprio? Havia percebido a tendência de Belka de criar apelidos maldosos, mas não imaginou que fosse cair em seu desgosto tão cedo. De toda forma, não teve tempo de perguntar o significado, uma vez que seu raciocínio fora interrompido por um forte soco em suas costas.

— Bom dia, subordinado! — Poyo grunhiu, encarando-o com os olhos cerrados e um sorriso bem apertado. Havia a ofendido completamente.

— Bom dia... pirralha — retrucou a ela, notando nesse instante que não havia lhe perguntado formalmente sobre seu nome. Agora já havia perdido a deixa, pensou.

— Você dormiu bem? Hoje vai trabalhar feito uma vaca para mim — alerta, sentando-se na cadeira da mesa principal. — A começar pelo meu café da manhã, que quero que traga. Agora! — enfatizou.

Da cozinha, Flint, que entregava uma xícara de café com leite e muito açúcar para Belka, sentiu sua sobrancelha erguer involuntariamente. Nunca havia visto Poyo dessa forma: quer dizer, ela sempre foi mandona, mas não o bastante para transformar um subordinado que acabara de conhecer em escravo. Por um instante, pensou que a gata estivesse a influenciado a algo — mas, de qualquer forma, resolveu não dar muita bola. Existiam problemas maiores para se lidar naquela situação.

Hiroshi, por sua vez, resolveu que o melhor a se fazer era não responder.

— A comida estava ótima — disse, agradecendo ao cozinheiro. — Eu vou subir o mastro agora. É quase hora dos jornais e eu preciso…

— Ca-fé da man-nhã! — Poyo bradou, batendo na mesa ao ponto dos talheres pularem, mas o olhar feio do cozinheiro a fez baixar a bola, ao passo que suas sobrancelhas se apertaram novamente e a raiva voltou de imediato quando notou em Hiroshi um risinho lúgubre a se formar nos lábios.

O garoto, satisfeito, se levantou de cabeça erguida e por muito pouco não bateu a porta em despeito: o dia mal havia começado e já poderia sentir a comida descer como um tijolo, porém, naquele ponto do dia ainda não tinha ideia do quão indigesta ela iria se tornar. Orgulhoso, ele bate no peito:

— Não vou! — rebate, fazendo uma careta de língua para fora — E, da próxima vez que quiser fazer o Hide um subordinado, lembre-se de ser a capitã do próprio bando primeiro!

— Eu quero mais é que essa sua entidade vá para a casa do caralho! — dessa vez, esmurrar a mesa não era o bastante para definir a força que a capitãzinha bateu com os joelhos na madeira. — Você está realmente querendo um tiro na fuça, não está?

Hiroshi semicerrou os olhos, apalpando os próprios bolsos e procurando entre eles sua própria pistola, porém, antes que pudesse encontrá-la, uma risadinha maldosa tirou completamente sua concentração.

— Procurando isso? — Poyo continuava a sorrir, contudo naquele momento o garoto percebera o quão diabólico era aquele sorriso; sua respiração fora cortada pelo nervosismo. Em que momento aquela maldita havia o roubado? — Deveria tomar mais cuidado com seus bolsos, alguns de nós fomos ladrões antes de sucumbir a pirataria! — Cantarolou, segurando uma pistola: a sua pistola. 

Hiroshi havia pego-a para caso ocorresse uma emergência, visto que sua cimitarra era grande demais e poderia gerar suspeitas para os demais piratas, mas agora não poderia se importar menos com a opinião alheia; tudo que mais queria era ter sua lâmina em mãos e destruir o sorriso afrontoso da pequena “capitã”.

— Piratas são sempre ladrões, bebê — a voz de Bertruska pôde ser ouvida aos fundos, seguidos de uma alta gargalhada. O garoto encarou-a como se pedisse benevolência, implorando para que qualquer um dos outros interferisse, mas a ex-marinheira só deu de ombros, enquanto Belka e Flint nem se davam o trabalho de assistir o que acontecia. Poyo também revirou os olhos.

— Você acha que eu meteria um soco nas suas costas à toa? — balançou novamente a arma, encarando-o no fundo dos olhos. — Eu não tolero esse tipo de tramoia. É traição, e, nos mares, esse tipo de comportamento só tem um fim...

O espadachim, um pouco desnorteado, apertou o cenho, querendo perguntar o que ela realmente queria dizer com aquilo, mas não o fez, porque Poyo não demorou muito para decretar sua sentença final. — Esse tipo de traição tem pena de prancha — ela disse.

— Prancha? — perguntou, com uma sobrancelha levantada. Esse tipo de coisa realmente acontece?

A garotinha então puxou a trava e forçou o dedo sobre o gatilho, ameaçando atirar. A verdade é que, se estivesse do lado de fora, certamente teria atirado para cima, entretanto, não só porque Flint estava presente e iria lhe matar se o fizesse, tinha como princípio não destruir sua Carniça por qualquer motivo, ainda por um moleque qualquer, ela não o fez.

— AGORA! — A capitã bradou.

Não houve outra escolha senão resignar-se. Num silêncio absoluto, Hiroshi caminhou pesaroso para fora do castelo de proa, sendo prontamente seguido pelo cano da pistola em sua nuca e, por fim, o trio de adultos foi deixado à sós na cozinha, todos alheios de propósito à vindoura execução. Quando a porta de saída bateu forte, Bertruska deixou escapar um suspiro.

— Belka, vá ver o que a Poyo foi fazer com o garoto — disse, ao mesmo tempo que tomava de volta o peso do chão.

— Eu não dou um foda para ele — Belka retruca — Vá você.

— Não posso me estressar. São ordens médicas!

O sorriso ladino da mulher quase fez a gata hiperventilar. Bertruska estava de volta com um peso em suas mãos que parecia igual — senão maior — à calota de uma bicicleta, mas, para todos os efeitos, era sim uma mulher em tratamento, e sobre isso não poderia argumentar. Vendo-se sem saída, Belka deixou escapar um muxoxo, derrubando as sobrancelhas para dirigir-se ao cozinheiro e...

— Nem fodendo — ele respondeu, sem deixar de olhar os pratos — Você deixou o moleque ficar, o problema é seu.

Belka murchou o lábio, derrotada e, também sem escolhas, tomou seu caminho em direção ao convés.

≈≈≈

Ao sentir o sol bater em sua pele, Belka quase considerou olhar para trás e implorar para que outro alguém resolvesse o problema, contudo a expressão irritada de Flint não demorou para aparecer em sua cabeça e colocá-la no lugar. 

Arrastando as patinhas pelo chão de madeira, caminhou em direção às crianças, que ainda berravam, como se o mundo estivesse perto de acabar. O clima ainda estava péssimo desde que entraram na corrente de Wintery e, mesmo que a luz incomodasse seus olhos, nada era realmente pior do que os ventos glaciais que, naquele ponto, já eram o bastante para fazê-la desacreditar na existência de tempos quentes e melhores. A água deveria estar tão gelada quanto fatal: se Poyo seguisse como planejava, Hiroshi naquela mesma noite já seria uma oferenda aos deuses porque, além da correnteza extremamente forte que não o permitiria voltar ao navio, quando a noite chegasse, a hipotermia não daria chance à inanição. 

Não havia dúvidas que o destino daquele jovem pirata estava em suas patas. No entanto, como não poderia ser diferente para ela, Belka sentiu no mesmo segundo o desejo latente de deixar sua capitã terminar o que pretendia a tomar por completo, afinal, não seria infinitamente melhor se Hiroshi apenas desaparecesse? Não que tivesse algo contra ao garoto em especial e, inclusive, poderia se divertir vendo-o irritar Poyo (a pirralha tinha uma vida mansa demais, nada mais justo que uma pedrinha em seu sapato), contudo, ele não poderia viver enquanto carregava aquilo que mais desejou por todos esses anos. 

Desde o momento que acordara na sarjeta e observou pela primeira vez seu reflexo peludo numa poça de água nojenta, Belka sonhou com o dia que encontraria a cura para o seu problema e, agora, após tanto tempo, a imagem gloriosa de uma fruta do diabo surgiu diante de si, trazida por uma criança burra e despreocupada, que não tinha pretensão alguma de usá-la ou vendê-la. Dessa forma, como solução óbvia, nada mais justo que deixá-lo dormir com os peixes, certo...?

Errado. Não importava o quanto olhasse para aquela situação, seus quase trinta anos faziam ter completa noção de que a solução de seus problemas nunca vinha “tão fácil assim”. Quer dizer, era só olhar para alguns dias atrás: da última vez que seus problemas se resolveram sozinhos, tiveram de eliminar toda uma tripulação de piratas promissores como preço e isso era algo que não poderia arriscar, ou ao menos não por agora, enquanto tinham a marinha em sua cola. As notícias da queima de arquivos em Pulvereta se espalhavam como torpedos, e a bandeira de gato estivera por dias estampada em todos os jornais. Nesse ínterim, mesmo que as chances fossem mínimas, o que fariam se, por acaso, ele sobrevivesse a fúria dos mares e contasse sobre seus rostos? Ele não precisava saber o que eles fizeram antes de recrutá-lo para lembrar-se da bandeira e os denunciar. Na pior das hipóteses, seriam todos fichados e presos na próxima ilha; e, na melhor delas, teriam nas costas a morte de um moleque qualquer que fora jogado à deriva porque não se deu o trabalho de pensar que já haviam sido vistos juntos na ilha anterior. O encontrariam, e os ligariam, sem dúvidas — e daí seria o fim da linha de qualquer forma. Não tinha jeito; o fácil era algo que os pobres deveriam descartar. Nada vem fácil demais, pensou consigo mesma, e por mais que dissesse internamente que fazia parte de sua benevolência, bem no fundo ela sabia (e até se orgulhava) que nada daquilo tinha a ver com a moralidade, e sim com a praticidade e sobrevivência do mais forte. Hiroshi sobreviveria, por hoje.

Com um suspiro pesado, Belka observou a prancha estendida e a face desesperada do garoto que já caminhava metade de sua extensão, pousando delicadamente as patas na cintura. Tudo seria tão mais fácil..., amaldiçoou a si mesma, antes de, vestindo-se da raiva habitual, iniciar:

— POYO! — berrou, chamando a atenção de subordinado e capitã para si — VAMOS PARAR COM ESSA PORRA?

— EU SOU A CAPITÃ, VOCÊ NÃO MANDA EM MIM!

A garotinha rebateu, puxando a arma e dando um tiro para o alto. Por um segundo, Belka sentiu seus ouvidos gatunos apitarem, a sensibilidade era tanta que quase agradeceu mentalmente por Merin estar fortemente medicada, ou teriam que lidar com mais de um assassinato naquela manhã. Precisou respirar fundo, em outra ocasião apenas bateria em Poyo com seu rabo até que calasse a boca, mas não estava lidando somente com a personalidade infantil da capitã e sim com seu insuportável orgulho. Se a humilhasse, apenas deixaria aberta a possibilidade do garoto provocá-la novamente e, dessa forma, a cena da prancha continuaria a se repetir infinitamente.

— Então haja como uma, Pirralha — retrucou e, neste momento, a atenção de Poyo fora completamente fisgada — Se encontrarem esse moleque, e vão encontrá-loeles vão nos achar.

— Então nós lutamos com eles também, oras! Somos fortes.

Um vinco se formou nas sobrancelhas. Poyo não poderia estar mais errada, porém este tópico não seria discutido naquela conversa.

— Merin está doente, Bertruska está se recuperando de um ferimento e o Morgan é um inútil — pontuou, citando os membros e contando-os com as patas — Flint e eu morreríamos em segundos.

A capitã pareceu ponderar por um breve instante.

— Eu posso lutar — ela disse.

Nesse instante, Belka não hesitou em bater com o rabo para jogar a arma para longe de suas mãos. O revólver rodou pelo convés por pouco mais de dois metros. — Você ainda é só uma criança, não é forte o suficiente — respondeu irritadiça, abanando as patinhas nos ares — Por acaso está dizendo que eu e Flint somos fracos? Se nós perdemos, você morre, pirralha.

Poyo congelou. Na prancha, a expressão de Hiroshi havia mudado diversas vezes durante a discussão: antes completamente paralisado pelo temor, agora parecia completamente confuso observando a dinâmica de toda aquela cena. Quer dizer, em que ponto ela havia deixado sua sede por autoridade de lado para realmente ponderar sobre as melhores formas de comandar? Ela parecia perdida, sim, mas de alguma forma parecia que algo dentro de si havia se encaixado e destravado certa maturidade. Concluiu, com certo temor, que era um esboço de capitã, mas, ainda sim, capitã — e isso era aterrador. 

— Nossa única chance é que a marinha não sabe quem somos. Quanto antes você colocar isso em sua cabeça, melhor irá nos comandar — Belka continuou, olhando a capitã de cima de um pedestal, mas se aproximando para alisar sua mão como um pequeno consolo. Suas patinhas eram quentes e macias, e a menina não pôde evitar de pensar que, apesar do que dizia, sua imediata parecia conter as palavras para não humilhá-la mais. Até ela, que era burra, havia percebido isso — Entre e vá comer. O Flint ameaçou chorar porque você ignorou a comida dele.

Um sorriso fraco se esboçou no rosto da menininha; tímido e pouco demarcado, é verdade, mas decerto era melhor do que o que antes usava para ameaçar o garoto. Estranhamente quieta, ela lançou um último olhar em direção a Hiroshi, apertando os olhos em arrogância e, sem dizer propriamente, pontuou para ele que era sua última chance de se comportar, ou voltaria para empurrá-lo; em seguida, ela partiu saltitante em direção ao castelo de proa, leve como uma pena. O garoto ainda teve tempo de ver sua silhueta no reflexo da escotilha antes de, no canto de sua visão periférica, notar uma movimentação estranha na gata, que se levantava para encará-lo com um olhar penetrante e, mais preocupante que isso, com a arma que havia tomado do chão em suas patas.

— Escute aqui, frutinha — ela inicia em tom seco, mas sem apontar a arma, talvez porque soubesse que não era preciso. Dessa vez, o apelido pareceu ressoar mais carregado em seus ouvidos, com uma porção de asco. — Antes que você resolva fazer merda de novo, quero que saiba que, assim como você não quer ficar, nenhum de nós te quer aqui. Não vamos te matar porque não é conveniente fazê-lo, mas isso não significa que você não está envolvido até o pescoço com a gente. Se você ousar fazer uma gracinha; se contar para qualquer um o que fazemos aqui ou quem somos, nós vamos voltar para te buscar. Você não é o primeiro a sumir nas nossas mãos e não vai ser o único. Fique esperto.

E então, sem mais, nem menos, Belka jogou a arma em direção ao mar, encarando-o em seguida. Naquele instante, não só a postura que assumia ser a verdadeira para um capitão como também toda sua elegância humana havia se esvaído, sobrando apenas um vazio sólido e um par de olhos que não carregavam brilho algum. Ela sorriu largo, mas não como o gato da bandeira, que debocha; sua face estampava o alienado, demente: um olho indo para cada lado e os dentes, tão afiados, evidenciavam seu instinto primal. Não importava o quanto olhasse, não era humana — não mais. Hiroshi sentiu uma forte vontade de vomitar.

— Entendeu? — ela requere, a voz um tom mais baixa do que o habitual, em chantagem.

Hiroshi anuiu, mas só teve coragem de retornar o caminho da prancha quando a gata voltou para dentro do barco. De uma hora para outra, tudo que sabia sobre aquele tão peculiar bando pareceu evaporar. O medo e a incerteza eram os únicos sentimentos que conseguia confiar.

≈≈≈

 Após o susto que tivera ao caminhar sobre a prancha com uma arma apontada em sua nuca, decidira que era sábio restringir ao máximo sua presença e por isso permaneceu o máximo em silêncio no cesto do mastro, observando o mar por sua luneta e esperando com pouquíssima paciência a passagem do tempo; era fato que a vida de pirata não lhe cabia, ao menos não a daqueles piratas, porém, mesmo assim estava ali, porque sabia que não tinha outra escolha. O destino era sempre o mesmo para si: terminaria sua jornada solitário e sem nenhum objetivo senão seguir em frente com a única coisa que o verdadeiro Hiroshi deixara para si.

Desde que começara sua jornada — ou melhor dizendo, desde que nascera naquele mundo, nunca teve qualquer propósito senão a própria sobrevivência e, até pouco tempo, era isso que bastava. Seus pais nunca o quiseram mais do que queria o One Piece: o largaram por aí, da mesma forma que fariam com barris avariados, e desde então, o mundo nunca foi gentil porque, para os civis, tinha sangue de bandido, e aos piratas, não servia nem para limpar os canhões. Era um estorvo, apenas isso; e por isso que sabia que tinha de seguir sozinho.

Em todos os quinze anos de sua existência, viu muitos saírem para buscar o inestimável, mas, diferente deles, não tinha a menor intenção de encontrá-lo: o que fazia um pai largar seu filho não era de seu interesse de forma alguma porque aprendeu com quem teve pena de si que nada era mais importante que o amor. Os piratas ao seu redor, todos eles, saíam de casa com o queixo erguido e deslumbrados pelos encantos da Grand Line, mas, para ele, que desde sempre estivera preso no quinto mar, sair de casa era muito mais um passo para conquistar a própria independência do que de pura coragem, e a pirataria só caiu em suas mãos porque não teve outra escolha senão essa.

Afinal, se fosse de outro modo, como teria conseguido seguir sozinho? Se Hiroshi — não a alcunha, o verdadeiro — desejava ver o fim, então era sua obrigação segui-lo, apenas porque não era de sua ossada decidir o que realmente gostaria de fazer. Como era de se esperar, quando o garoto cujo nome deu origem a sua única identidade lhe estendeu a mão para um mundo melhor, sua amizade se confundira com a absoluta carência de alguém que sempre esteve sozinho e, com medo de perdê-lo, foi complacente até o fim, sendo insincero consigo mesmo e seguindo rumo que nunca quis buscar, ao passo que, quando ele se foi, tornar-se “Hiroshi” e roubar seus sonhos fora apenas uma questão de tempo, já que a única pessoa que em algum momento valorizou seu nome estava morta e nenhuma de suas lágrimas o traria de volta.

Completamente só, a única lembrança que tinha de seu capitão era a maldita fruta do diabo e, verdade seja dita, se ela — a coisa — falasse, tinha certeza de que não perderia tempo em segui-la como se fosse sua nova líder. Quer dizer, poderia tê-la comido quando a recebeu, mas que diferença faria? Não tinha a menor ideia do que ela faria com seu corpo e, mesmo que soubesse, a manteria intacta junto de si porque sabia que as frutas do diabo nunca pereceriam ao tempo, independente de quanto tempo a deixasse presa dentro de sua mochila. Parafraseando e corrigindo o que Poyo lhe dissera, aquela era sua “entidade”; nunca perderia o brilho e nunca o abandonaria, diferente de uma memória, que com o tempo perderia sua cor e som. Aquela fruta era o fragmento que jamais seria destruído pela efemeridade do tempo e, enquanto estivesse com ela em seu encalço, Hiroshi jamais estaria morto.

Ou, ao menos, era isso que esse "eu" pensava. Até agora. 

Talvez fossem as ondas do mar, ou quiçá a força das lembranças, mas enquanto estava perdido em seus próprios pensamentos, esqueceu-se por um breve instante que ainda estava enjoado e, de repente, sentiu-se afogado por um refluxo de bile que quase saiu, mas voltou. Mesmo após algumas horas, o aperto no estômago não o deixava descansar em paz e, finalmente chegando ao seu limite, não teve outra opção senão descer o cordame, temeroso e com os olhos atentos, e ir em direção a cozinha. Dentro do castelo de proa, a meia luz era escassa. 

— Tomou um susto daqueles hoje, garoto — disse o cozinheiro, que quase o fizera bater a cabeça no teto de tão alto que pulara. Flint, ao notar o que fizera, deu um riso nasalado e soltou um "foi mal" baixo. — Quer um chá? — ofereceu. 

Antes de respondê-lo, Hiroshi observou os arredores para garantir que não havia ninguém perigoso por perto. Não que acreditasse na inocência do homem, muito pelo contrário, mas era inegável que sua personalidade era a mais tranquila daquela tripulação 

— Por favor! — respondeu, mais alto dessa vez, e não perdeu tempo para acomodar-se na bancada e deixar o corpo descansar entre as mãos. Flint tirou a chaleira da boca do fogão e, assim que lhe serviu uma caneca (uma xícara não parecia o suficiente para o garoto pálido como papel), o garoto sentiu um alívio imediato ao tomá-lo — Muito obrigado. Já me sinto um pouco melhor.

— Não tem de quê — respondeu o cozinheiro com um sorriso fugaz em seus lábios. — A primeira viagem em um navio sempre desestabiliza aqueles que estão acostumados com um chão firme sob os pés.

Hiroshi deu mais um gole: o chá era de boldo, amargo, mas preferiu não pedir açúcar porque temia insultar a única pessoa que lhe inspirava o mínimo de segurança. Finalmente, o enjoo parecia ir embora. Sentia-se mais próximo de si mesmo. — Não é minha primeira viagem. Eu estive no mar a minha vida inteira, na verdade.

— Compreendo — Flint levantou as sobrancelhas surpreso — Já viajou com piratas anteriormente?

O garoto hesitou por um momento e pensou em alguma mentirinha que pudesse contar, contudo optou por apenas falar a verdade, pois já não tinha mais nada a perder. Disse:

— Só com meu capitão, mas já estou a algum tempo sozinho. — explicou, cabisbaixo. Em voz alta, o assunto era ainda mais sensível. — Nos… separamos.

— Vocês passaram sozinhos pela Montanha Reversa? — Flint não pôde evitar de arquear uma das sobrancelhas em completa descrença: já havia conhecido muitos mentirosos em sua vida, e ele próprio poderia ser considerado um ponto fora da curva quando se tratava de acontecimentos extraordinários, mas nunca pensou que fosse ver alguém tentando enganá-lo dessa forma. Aquilo era tão descarado que, de certa forma, até pensou que poderia ser verdade.

— N-não! — se corrigiu, balançando a cabeça e as mãos e deixando escapar um riso desconfortável. O cozinheiro quase deixou um risote fugir com a hipótese de tê-lo constrangido com a própria mentira, mas não o fez, porque antes que pudesse, o garoto já estava falando: — Não sou capaz disso, nem que eu quisesse muito ir até o fim da Grand Line. Eu nunca passei pela montanha; estive por aqui desde que nasci, contudo.

— É um nativo? — perguntou.

— Quase isso. Meus pais eram do South Blue, segundo o que me contaram, mas eu nasci em meio a suas viagens — contou — Nunca vieram para me buscar, então não faço ideia de como é “lá fora”. Se eu quiser sair daqui, minha única chance é ir até o fim.

— Mas você acha que vale a pena?

— O que exatamente?

— Se esforçar para sair — pontuou o cozinheiro, enquanto acendia um cigarro e se sentava junto na bancada — Não acredito que haja algo realmente tão bom além do final e, mesmo que tenha, a jornada me parece excessivamente sacrificante. Em seu lugar, talvez eu buscasse uma ilha com um bom clima para viver, ao menos por um tempo.

— Você não deseja o One Piece? — indagou surpreso, acreditava que todo pirata tinha a obrigação de sentir esse desejo.

— Não dou a mínima — deu uma longa tragada e soltou a fumaça em direção ao chão, longe do rosto do garoto — Acho que nunca cheguei nem mesmo a considerar essa possibilidade. Sequer planejava sair do East Blue, mas, por causa de Poyo, estou aqui. Veja bem, não reclamo, mas às vezes me questiono se não valeria a pena ter optado por uma vida mais mansa.

— É ela quem deseja ver o fim, eu suponho, então.

Flint deu mais uma tragada. — Os desejos da capitã são um mistério para mim. Ela, mais cedo do que eu, percebeu que não há propósito em viver atrás de metas. Acho sinceramente que só está buscando a mais ordinária vida pirata.

— E isso é possível? — questionou em um fio de voz.

— Claro que é — a voz do homem era despreocupada e, para alguém tão apegado a detalhes como o Hide, ouvir alguém tratar do próprio destino com tamanho desapego era como um soco no estômago — É verdade que posso tê-lo feito errado por todo esse tempo, mas essa é a única forma que sei viver e, com isso, asseguro: a vida não precisa ser grandiosa, somente precisa ser seguida em frente. Isto é, nem todos precisam de motivos extravagantes para abrir os olhos de manhã; meus desejos costumavam ser uma boa bebida, cigarros e sorte na pesca.

O garoto não o interrompeu, apenas balançou a cabeça e após uma tragada, Flint prosseguiu. — Agora, eu só desejo que Poyo consiga realizar o que quer que seja.

— Por quê?

Perguntar sobre razões não era de seu feitio, talvez porque não tinha o costume de conversar, ou então porque nunca questionou as ações de alguém antes, todavia, a dúvida sobre o porquê de alguém ativamente querer seguir Poyo era algo que não poderia deixar para trás, então sua voz simplesmente saiu, como se não o pertencesse. Não conhecia sua tripulação, suas motivações e tampouco fazia ideia do mal que os Gatos causaram aos piratas do East Blue e outros da Grand Line, mas... mesmo sendo um completo ignorante; um idiota que deu sua vida à um qualquer que lhe dissera que não o deixaria sozinho, mesmo ele, tinha certeza de que nada de bom seria atraído para aquele bando e, dessarte, não havia porque se aproximar. 

Por meses, desde que Hiroshi morrera, Hide estivera sozinho nos mares com a única companhia de sua fruta do diabo, mas em nenhum momento se sentiu tão sozinho quanto se sentia agora. As paredes da Carniça tinham ouvidos e ele não tinha coragem de respirar fora do tom porque tinha certeza que, dali, não fazia parte.

Flint parou por um segundo, o cigarro havia chegado ao fim e após amassar a bituca no cinzeiro, puxou outro do maço, acendendo-o. — Poyo me tirou da execução, e por isso eu estou atrás dela. Por enquanto, esse desejo me basta, mas, se algum dia ele deixar de fazer sentido, provavelmente voltarei a pescar. Ademais, não há nada mais que eu precise na minha vida — disse.

Os piratas, todos eles, eram monstros sem moral alguma; e Flint estava disposto a comprar aquela vida porque, para ele, não importava. Nada importava, aliás. 

Se precisasse, o mataria naquele mesmo instante; não havia dúvidas de que o faria, e mesmo assim ele lhe servira um chá para enjoo, afinal, enquanto não estavam em lados opostos de uma mesma moeda, não tinham o que fazer senão confraternizar.

Essa liberdade e desapego, por fim, lhe pareceu encantadora.

Com um sorriso amargo no rosto, agradeceu pela bebida e em silêncio deixou seu lugar, caminhando em direção ao quarto masculino em passos arrastados e retornando a cama com seus olhos marejados e um nó na garganta. Morgan já havia ido se deitar, e tudo estava mais escuro do que antes. Sem muita força, ele puxou a mochila para perto do peito e então, prometendo que aquela seria a última vez, chorou baixinho por todas as desgraças de sua vida: pela fruta, que silenciosamente o amaldiçoava, pelo Log Pose, que havia o jogado naquela tripulação e, principalmente, derrubou todas as lágrimas que restavam para seu capitão. 

Aquele certamente não seria o caminho escolhido por Hiroshi, mas decerto talvez fosse o que o “Hide” iria querer.

Finalmente, o cansaço o embalou ao sono.

≈≈≈

Os dias foram mais rápidos depois de que tomaram a correnteza de Wintery, muito provavelmente porque realmente eram menores que o normal. Não foi fácil sair das nuvens de inverno: fazia uma semana e poucos dias que as noites eram geladas como um freezer e o soalheiro mal tinha forças para derreter a geada das manhãs. Com o tempo, acordar com o deque branco já havia se tornado normal e mesmo a peste que antes os acometia parecia ter se dissipado. Estavam todos bem, na medida do possível — e, com exceção de Hide, que não tinha o costume de falar mais do que o estritamente necessário, era de comum acordo que nada, nem mesmo o clima hostil, poderia os afetar. Sentiam-se leves, avançando dia após dia para os confins da Grand Line.

— Se tudo ocorrer como o planejado, chegaremos na próxima ilha dentro das próximas horas, ao amanhecer — disse Merin a Fionnula, que estava sutilmente sendo erguida pelos braços esticados da moça.

Morgan, Belka, Flint e Bertruska estavam sentados em sua frente, mas era definitivamente com a galinha com quem ela falava. Isto porque, senão seu morceguinho (ao menos em seus delírios), a navegadora tinha certeza de que ninguém prestava atenção no que ela falava, e por isso já faziam uns dias que fizera a galinácea sua melhor confidente. Muito animada, então, ela explicava à bichinha sobre o que pretendia fazer assim que chegassem em terra firme, e com cacarejos tão confusos quanto empolgados, ela só assentia porque não tinha outra escolha senão concordar. Merin nunca mudava — e, para o bem da saúde mental do médico, pelo menos agora ela tinha alguém não consciente para incomodar. Há males que vêm para o bem, pensou consigo mesmo.

 — Por que você está falando com a galinha? — Belka indagou, provocativa, com uma sobrancelha arqueada e meio Martini em suas mãos — Você já deixou a selva a muito tempo, pode interagir com os outros humanos.

— Bertruska está ocupada com o tricô e, como eu sou educada, não irei interromper a conversa do meu morceguinho com o cozinheiro — Merin pontuou ácida, devolvendo o olhar jocoso para a gata. — E, entre os bichos dessa tripulação, Fionnula é a mais simpática.

Observando a cena, Flint e Morgan apenas se encararam por alguns segundos, voltando-se em seguida para aquela cena tão absurda: a navegadora sorria presunçosa; já havia algum tempo que dava sinais de sua nova personalidade sarcástica, muito provavelmente por conta do tempo que convivia com o bando e, especialmente, com seu noivo, mas ainda assim não deixava de ser surpreendente a ousadia que tinha ao se direcionar a imediata. Ela, por sua vez, cerrava os punhos embaixo da mesa enquanto a encarava de rosto franzido. 

— Pensei mesmo que fosse impossível de você agir como uma humana normal — a felina rebate, depois de alguns segundos de incredulidade. — Até levei um tempo para responder porque meu cérebro não conseguiu compreender seus “ugabugabus”.

— Ou talvez tenha sido porque você tem pouco cérebro? — Merin ergueu uma sobrancelha, desafiadora — De todo modo, eu não sou defasada: logo de casa consegui traduzir seu rosnado — e piscou.

A chama que transcorria dos olhos era quase visível agora. Belka parecia capaz de saltar da cadeira a qualquer momento para retalhar o rosto arrogante de Merin, da mesma forma que ela, debochada, estava pronta para rir de sua cara, caso perdesse a compostura desse jeito (estaria comprovando seu ponto e, como todo bom humano, ela adorava estar certa). Finalmente, percebendo que a briga não levaria muito tempo para extrapolar do verbal para o físico, Morgan, que não era bobo nem nada, tomou sua posição no lado que supunha ser o vencedor caso o pior ocorresse e, sem pensar duas vezes, disse:

— Se acalme, minha larvinha — cuspiu o apelido, quase ouvindo o riso de Flint atrás de si — Ela não merece sua irritação. Não tão perto de desembarcarmos, de qualquer forma.

Merin levou uns segundos para compreender o que acabara de ser dito, e mais outros dois para conseguir, com muito esforço, deixar de olhar Belka com os três olhos semicerrados para voltar-se ao morceguinho. Foi mais ou menos nessa hora que Fionnula fugiu da mesa para se esconder atrás do sofá, também — ela não suportava aquele clima de guerra. A sua frente, por fim, Morgan a encarava com um singelo sorriso de canto, o máximo que poderia fazer para consolá-la e, bem no fundo, até ela, com toda sua loucura, sabia que ele não buscava muito além de provocações para com a imediata. Gostava de se iludir, mas não tanto assim. Sabia, no entanto, que não adiantava discutir e, de qualquer forma, torceu o lábio e anuiu a contragosto.

Tudo pareceu se acalmar depois disso e a calmaria voltou a reger o barco. 

Hide, que estava sentado na bancada esse tempo todo, apesar de não participar ativamente da primeira discussão, continuou como espectador da cena até terminar o cereal que havia em seu pote. Seus olhos não saíram da colher cheia de leite e flocos em nenhum momento, mas seus ouvidos estavam atentos à conversa e, a cada fala, parecia mais envolvido com toda a briga, absorvendo para si o que servia de tudo aquilo. Aquelas pessoas… elas não eram completamente assustadoras, pensou consigo mesmo. Eram humanos, com todas as suas falhas — mas isso não era o bastante para se acostumar. Ainda não estava em seu lugar. Assim que terminou de se alimentar, levantou-se e foi ao cesto do mastro, sua posição predileta em todo aquele barco (talvez porque não estivera tão alto em sua vida). Mesmo que fosse por um breve momento, quando ouviu dos confrades que em breve estariam em uma nova ilha, um sorriso genuíno se estampou em sua face, sobretudo porque, independente do quão inóspito fosse o local e de suas decisões posteriores, sentia-se pronto para começar uma nova etapa de sua vida e, como primeiro passo dessa jornada, deveria devolver ao mar o que os deuses haviam lhe dado: era hora de se livrar, de uma vez por todas, de sua fruta do diabo. 

Quer dizer, posto de maneira mais prática, é claro que poderia agora mesmo jogá-la fora nesse mesmo instante, contudo, em respeito a Hiroshi, sabia muito bem que não poderia fazê-lo dessa forma: era seu sonho que carregava e, mesmo que decidisse ser mais desapegado a partir de agora, não poderia se livrar dela de uma maneira tão leviana. Não desejava um grande ritual ou cerimônia, mas o mínimo sabia que era capaz de oferecer e, destarte, depois de tantos dias cabisbaixo, não poderia estar mais empolgado. Jurou a si mesmo que não iria voltar a pensar sobre o assunto, não obstante, quando notou o coque loiro de Poyo balançando aos seus pés, correndinho para ir ao parapeito do navio, apenas não conseguiu evitar: a diferença era tão discrepante que, em comparação ao seu antigo capitão, mesmo que ela tivesse o ameaçado de morte, continuava sendo apenas uma criança brincando de pirata. Seus subalternos regiam seu entorno enquanto ela crescia como um parasita; um botão florescendo às custas dos outros, mas criança, ainda assim.

Um dia, talvez, ela haveria de brilhar, Hide pensou. Contudo, ele não queria fazer mais parte daquele colorido doentio. Dessa forma, quando a ilha começou a cobrir o horizonte, evitou ao máximo se conectar com os demais, permitindo a si mesmo um último momento de Hiroshi antes de, para sempre, assumir-se de novo.

O sol, tão rápido, emergiu do leste e...

— O SUBMARINO IRADO!

O grito estridente de Poyo fora responsável por trazer, um a um, os piratas ao deque; como uma pequena reunião.

— Nós precisamos parar aqui — ela disse.

— Iríamos de qualquer forma — Merin contra-argumentou, mas sua opinião não era realmente importante. Poyo continuava com a palavra.

— O macaco prometeu que faria o enfeite de proa, é o momento ideal para cobrá-lo — explica, com um sorriso largo no rosto.

Os olhos de Hide se arregalaram por um segundo e por mais que estivesse curioso quanto a natureza desse macaco e, principalmente, o motivo dele dever algo tão banal quanto um enfeite de proa para a infame capitã, apenas se calou e torceu para que ao menos um daqueles indivíduos estivesse tão perdido quanto ele.

— Macaco? — Bertruska perguntou, e o garoto comemorou internamente.

— Shari, o macaco do bando da Pieri, nossa aliada. Não lembram? — Poyo respondeu, dando de ombros — O Flint ficou encarregado de fazer um banquete para ela. O melhor de todos eles!

— Eu não me lembro de ter prome... — O cozinheiro inicia, mas é interrompido:

— Eles não estavam aqui. Estavam na montanha reversa e você prometeu sozinha— pontua Morgan.

— Onde você deveria estar, também — Belka retruca.

— Eu estava dormindo...

— Não estava! — todos, com exceção de Hide e Merin, o repreenderam, em uníssono. O médico se encolheu no próprio corpo, como o bom rato que era.

Após isso, a conversa pouco a pouco se dissipou e, à distância, Hide apenas pôde observar a navegadora direcionando o leme em direção à ilha, enquanto Flint, Morgan e Bertruska discutiam sobre levar um outro soco no meio da fuça e Belka, desistindo de prender Poyo e Fionnula, voltava para dentro do castelo de proa. Não era de seu interesse, disse a si mesmo. Seu único desejo era que as ondas o levassem mais rapidamente em direção ao cais.

Quando o mar começou a se tornar mais claro e a embarcação se aproximou mais da terra firme, um estranho burburinho no porto começou a alcançá-los, mesmo que isso não fizesse muita diferença, já que não entendiam uma palavra do que era dito com exceção da estridente risada de Pieri. Por outro lado, para quem estava de pé sobre o caís — em especial, Shari, Pieri e Kristian —, a conversa parecia até alta demais:

— SHARI! — Pieri berrou, com a luneta em seu olho direito. O símio ergueu uma sobrancelha em resposta. — ESTÁ VENDO O QUE EU ESTOU VENDO, HYA?

— CAPITÃ PALHAÇA! SOU EU! — Poyo gritou, lá de longe, com o corpo apoiado na madeira do deque e balançando os braços sem parar.

— POYOZINHA! HYA-HYA-HYA — a capitã palhaça devolveu o grito no mesmo tom, levantando seu chapéu com a mão disponível e balançando-o em direção ao navio.

O imediato sentiu vontade de se estapear: eles bem que queriam se manter escondidos pelo menos por algumas ilhas depois do que ocorreu na ilha dos macacos, mas isso nunca acontecia mesmo, não sabia porque ainda tentava se enganar. Agora, com uma capitã tão histérica em seu encalço — uma mão na cintura e a outra lhe dando breves tapinhas nas costas —, não haveria outra forma de passarem despercebidos por aí. Pieri vencera: ia ser do jeito dela. (Mil bélis para Yolanda, e outros dois para Shari).

— EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊS ESTÃO AQUI! — Pieri gritou, como se fosse uma conversa normal. — ESTAVA ONTEM MESMO ME PERGUNTANDO SE VOCÊS TINHAM MORRIDO, HYA!

— A GENTE ESTAVA NUMA ILHA DE NEVE! EU VI UM YETI! — Poyo gritou de volta.

Com ajuda dos equipamentos sofisticados de Shari, a Carniça não levou quase tempo algum para ancorar, entretanto, antes mesmo que isso acontecesse, a capitãzinha já se encontrava de pé no cais, encharcada como um pinto e conversando em um tom estridente com a pierrô. (Ela era uma boa nadadora).

— Era gigantesco! Três– não, dez metros! — a capitãzinha gesticulou, com muita ênfase. Pieri também balançava os braços, tão empolgada quanto, mas interrompendo seus gritos afobados de reencontro e seus muitos “hya-hya-hyas”, Belka de repente saltou ao lado das duas para, sem nem pensar, dar um tapa na nuca de Poyo:

— Poyo! A educação! — ralhou. Justamente porque não confiava na palhaça que queria manter sua aliança o mais segura possível, sem correr o risco de ofendê-la de forma alguma.

— Ah, é! — Poyo bateu com um punho fechado em cima da outra palma, como se tivesse se lembrado de algo genial — Shari! Cadê meu enfeite de proa?! — inquiriu, apontando o dedo primeiro para si mesma e depois para o mecânico, soltando uma risadinha atrevida.

Belka quis se estapear; mas ao menos não estava sozinha nessa: Kristian estava lá para se juntar no autoflagelo.

— Não se preocupe! — o macaco apenas riu e soltou uma cortina de fumaça após tragar seu charuto, não parecendo nenhum pouco afetado pela malcriação da capitã (muito provavelmente já estava acostumado com gente pouco educada) — O projeto está quase concluído, então irei acelerar a produção, para que possam sair da ilha com estilo.

— OBA! — Poyo gritou, dando um saltinho. — Mal posso esperar!

— De todo modo, — Kristian inicia. — não pensei que fôssemos nos ver antes de Sabaody–

— Na verdade, ele apostou que não nos veríamos nunca mais! — Pieri o interrompeu, dando outro tapa, dessa vez forte, nas costas do imediato. — Depois que vimos os jornais, ele disse que não durariam muito tempo vivos!

Kristian, dessa vez, sequer sentiu o ímpeto de dar um tapa em sua própria cara: sua vontade era de esfolar a si mesmo com um ralador de queijo mesmo. A vergonha era tão sólida que o rosto nem enrubesceu. Fechando os olhos e involuntariamente franzindo o cenho, contou até três mentalmente, a conversa de Poyo e Pieri foi ficando cada vez mais distante de sua cabeça e, conectando-se ao seu cantinho especial, tomou a luneta do retrátil de sua capitã para olhar além mar, talvez em busca de sua salvação. Nada chamou atenção em primeiro momento: viu Yolanda quarando as roupas na cauda do submarino, alguns dos Gatos afronhando as velas do próprio navio e, por fim, havia uma terceira embarcação se aproximando no horizonte: a bandeira creme onde dois imensos cães-leões, serenos, um de boca fechada e outra aberta, olhavam respectivamente para a direita e esquerda em cima de um padrão de ondas circular que se assemelhava um sol balançava ao vento, para frente e para trás, vindo em direção a ilha. Na ponta da proa, um homem baixo de cabelos negros observava com seu único olho o telescópio.

— Puta que pariu — praguejou o imediato, mais alto do que gostaria. Pieri no mesmo segundo parou sua conversa para tomar a luneta de suas mãos e, olhando na mesma direção, deixou um alto e pesaroso suspiro escapar no mesmo instante que viu Yun empurrar seu capitão com força para pegar o telescópio e olhar diretamente para eles. 

A capitã sentiu seu pé começar a tamborilar o chão em ansiedade. — Era só o que me faltava, hya... — expressou, desgostosa. Kristian sorriu torto, colocando a mão em seu ombro para consolá-la, mas ela não levou um segundo para, com um olho tilintando, virar-se em direção a praia e gritar: — FRANZ! É teu namorado chegando. O bando dos sem-teto 'tá de volta. 


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