Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 28
Grand Line, Guarida Postal dos Castores Gigantes (Wintery)


Notas iniciais do capítulo

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Não foi necessário perguntar por aí ou pesquisar em uma biblioteca, pois a dúvida sobre o que eram os “castores” que Yutu havia mencionado anteriormente foi respondida sozinha, quando, no cais, depararam-se com uma criatura peculiar sentada pacientemente na beira da ponte de madeira, com as patas balançando sobre o mar. Assemelhava-se ao animal comum, isto é, era exatamente igual aos castores comuns, mas com uma pequena exceção: além de bípede, aquela criatura era gigantesca.

Entediado, o bicho os encarou com os olhos apertados por um breve momento; sua feição entregava que já aguardava há algum tempo, da mesma forma que faziam suas sobrancelhas franzidas, o uniforme de carteiro já amassado e a boina um pouco suja de neve. Ele guardou o livro que lia no bolso da frente de sua bolsa transversal, e então abriu o bolso principal, iniciando uma busca pelos inúmeros papéis. 

— Que merda é essa… — Morgan sussurrou para si mesmo, entreabrindo os lábios e encarando-o de cima a baixo enquanto, instintivamente, ameaçava dar uns passos para trás para usar Merin de escudo. Não obstante, o mensageiro (imaginavam que essa era sua posição em decorrência das roupas) sem se importar com o medo do rapaz, estendendo de pronto um papel em direção a ele enquanto soltava um pequeno bocejo. Ao segurar a mensagem, mal teve tempo de ler antes que a imediata lhe perguntasse azeda sobre o que se tratava. Revirando os olhos, respondeu: — É uma mensagem de Yutu, pedindo as medidas de Flint.

— Por que ela não nos entregou isso ? — perguntou Belka, erguendo uma sobrancelha, mas Merin, ainda radiante com suas novas roupas e a atenção que estava recebendo de seu Morceguinho, não se importou em cortá-la: 

— Certo! Vamos entrar e pegar isso logo! — ela determina, prontamente segurando Morgan pela mão e caminhando a passos largos na frente, à caminho da Carniça. A gata deu um suspiro sôfrego: não suportava mesmo romances. 

Ao passo que Belka iniciava sua caminhada atrás dos dois parasitas, o barulho de passos pesados atrás de si chamou sua atenção e, ao girar o pescoço na direção oposta de seus tripulantes, percebeu que o castor os seguia em silêncio, encarando-os de cima com o pescoço um tanto torto. Era um bicho bastante… fofo, se permitiam dizer. Mas não o suficiente para aceitá-lo de bom grado, principalmente quando ele os seguia para dentro de casa. Cogitou pedir polidamente para que ele os aguardasse do lado de fora, entretanto, no momento em que adentrou a cabine, um gosto tão amargo surgiu em sua boca que esqueceu-se totalmente da presença da criatura.

— Quando ele cuspiu no prato, me subiu uma raiva tão forte que eu não tive outra reação senão puxar uma das minhas facas e apunhalar a mão do infeliz — explica Flint a ex-marinheira, certamente dando continuidade a um diálogo que há muito havia se iniciado — Após isso, ninguém teve coragem de desperdiçar comida na minha frente. 

— Pois você fez muito bem! Desperdiçar comida no mar é o pior crime que um pescador pode cometer! — Bertruska dá um soco na mesa, parecendo bastante empolgada com a história, mas o cozinheiro fez um sutil sinal com as mãos, apontando seus pés (onde jazia um amontoado de cobertores) e pedindo para que abaixasse o tom. No mesmo minuto, ela deixou escapar um riso tímido e voltou a sentar-se para costurar, mas sem tirar o sorriso dos lábios — De qualquer forma, eles não tentaram revidar? 

— E você por acaso achou que eu desenvolvi o costume de não dormir por capricho? — ele retruca, dando risada. 

Foi nesse instante que Belka caiu, praticamente espumando, para cima do Castor. Era fato que torcia para que nenhuma tragédia acontecesse no período em que deixaram o navio, mas nem por um segundo imaginou que o cenário atual poderia ser tão assustadoramente pacífico: em vez de brigarem, ou não trocarem olhares, como normalmente faziam, Bertruska e Flint estavam conversando.

O cozinheiro estava em frente ao fogão, mexendo nas panelas e preparando sabe-se lá o que, enquanto a  mulher permanecia sentada e apoiando suas linhas de tricô no balcão. Riam despretensiosamente, como se a noite não fosse vir, ou então sabendo que o dia de amanhã logo iria raiar. Quando é que imaginariam que isso poderia acontecer? Flint e Bertruska se toleravam normalmente; ou melhor dizendo, apenas ignoravam a existência um do outro a maior parte do tempo e isso sempre fora o suficiente para uma convivência pacífica, mas agora, de uma hora para a outra, todas as desavenças pareciam ter se findado. 

Nenhum dos recém chegados poderia acreditar no que seus olhos mostravam.

— Um visitante? — Flint indagou, percebendo a chegada dos companheiros e animal. O homem não pareceu se abalar nem por um momento com a imagem do castor, muito pelo contrário, apenas serviu em silêncio uma xícara de chá de canela e deixou-a no balcão, indicando ao mensageiro que poderia sentar-se confortavelmente. O bicho o cumprimentou com um aceno de cabeça e um sorriso de canto na bocarra; reconheceu-o como um bom homem e, acima disso, como amigo de sua espécie. — Vão ficar parados aí? Fechem a porta logo, está um frio insuportável!

Para o Castor, não foi necessário dizer duas vezes: prontamente deixou seu chapéu no cabideiro e foi desinibido em direção à bancada para sentar-se. Em contrapartida, os verdadeiros donos da embarcação permaneceram parados à porta, com a feição assustada e sem dizer uma palavra sequer. Isto posto, bastante farto de esperar, Flint andou em passos rápidos até a porta, fechando-a com um dos pés, enquanto com as mãos empurrava os imbecis para dentro. Oras, o pobre forno estava se destruindo para aquecer o cômodo e eles se achavam no direito de acabar com seu esforço? Não em seu turno!, pensou — ao mesmo tempo que constatou a si mesmo que estava passando tempo demais com Poyo, já que dera face e humanidade para objetos inanimados. Era algo que teria de resolver futuramente, ou se tornaria um tremendo lunático.

— Quem é o grandão? — Bertruska questionou, interrompendo o silêncio e deixando o tricô de lado para olhar os recém-chegados. Ela se referia a criatura, mas foi Morgan quem pareceu voltar aos eixos com a pergunta, talvez porque sua voz, sempre tão imponente, era assustadora o bastante para tirá-lo de qualquer transe (ainda mais quando tinha certeza de que ela não poderia estar falando tão grosso depois de ter seu olho extraído). 

Ele chacoalhou a cabeça e, a ignorando, partiu em direção ao alçapão que o levaria para o segundo pavimento: precisava buscar papel e caneta para as medidas. Merin foi logo atrás, como um rabo — tudo parecia se estabilizar, finalmente. 

— Cadê a Poyo? — perguntou Belka, de sobrancelha arqueada.

— Dormindo ali nos pés do Flint — a ex-marinheira aponta ao chão por cima da bancada, onde a pilha de cobertores respirava devagarzinho, em repouso, e, quase desaparecendo, um pequeno tufo de cabelos loiros se perdia nas penas de Fionnula. Ela volta a perguntar: — Quem é você, grandão? — enfatiza, agora direcionando-se diretamente à criatura, já que seus companheiros não pareciam dispostos a respondê-la. 

O castor, como o esperado, não respondeu, apenas apontando uma das patas para o uniforme que vestia e meneando com a cabeça em direção a mulher; não teria como saber se ela compreendeu ou não e, na realidade, pouco se importava, já que o chá de canela quentinho que tinha em mãos era tudo que desejava (e precisava). Bertruska então suspirou alto. Não era uma das mais espertas, mas era fácil compreender a função que o animal exerce, mesmo que não dissesse o porquê de estar ali e, principalmente, o quê ele era. Contudo, nenhum deles teve tempo para ficar ruminando por um longo tempo, uma vez que a presença de Morgan retornando a cozinha passou a ser o centro das atenções.

Ele coloca a caderneta aberta em cima da bancada. — Preciso anotar as medidas de Flint para enviar à costureira — explicou, direcionando-se ao amigo.

— Costureira? — inquiriu Flint. Não demonstrou, talvez porque seu rosto já estava um tom mais vermelho que o normal por conta do frio, mas sentiu-se constrangido com a ideia de mandar roupas para fazer, pois nunca havia gastado dinheiro dessa forma e sequer tinha essa vontade. Para ele, parecia um tremendo desperdício (e cheirava às ideias mirabolantes da Belka).

— Sim, não tinham roupas para o seu tamanho. Todos nessa ilha tem o tamanho da Belka — Morgan respondeu, debochado, enquanto sem pestanejar já começava a tirar a medida dos ombros de Flint com uma fita métrica e as anotava rapidamente no papel. A gata observou a cena com o cenho franzido, querendo ralhar, mas como era um fato que, se falasse algo, apenas atrasaria o processo ainda mais, manteve-se calada. O médico logo completa: — Qual a sua altura?

— Da última vez que chequei, era pouco mais de um metro e oitenta, mas já fazem uns dez anos — o cozinheiro pensou por um segundo, apertando as sobrancelhas — Não deve ter aumentado muito.

Morgan torceu seus lábios no mesmo instante, revirando os olhos. Desejava ironizar a fala de Flint, porém o homem disse com tanta naturalidade (e convicção) que aquilo certamente não se tratava de uma piadinha: era uma genuína falta de noção — e, por que não, ignorância sobre os números. Suspirando, pediu para que ele se encostasse em uma das paredes do arco que levava a cozinha e colocou a ponta da fita nos pés do cozinheiro, demorando meio segundo para constatar o óbvio: a fita era pequena demais para medi-lo. Guardou o número em sua mente e marcou o ponto onde ela acabara com um lápis, então posicionou a fita novamente, esticando-se para alcançar o topo de sua cabeça. 

Desgraçado, murmurou a si mesmo.

— Parabéns, você usou uma fita métrica e meia, seu Yeti. Você tem um metro e noventa e oito centímetros. E meio. — Morgan resmungou, não exatamente de mal humor, porém, ao ouvir uma tosse forçada vindo da direção onde o castor descansava, o médico logo se desfez da carranca habitual e se calou: não estava disposto a criar qualquer inimizade, especialmente com uma criatura tão peculiar (e que poderia matá-lo em um tapa). Que sua própria insegurança fosse para a casa do caralho.

— Caramba! Nunca havia dado atenção a isso — o homem respondeu surpreso, deixando escapar um riso nasalado.

Daí em diante, não demorou muito para que o resto das medidas fossem tomadas e o Castor se aprontasse para voltar ao seu trabalho. Além das roupas planejadas, Morgan anotou as regalias dos tripulantes, como botas sob medida para Belka e, claro, um tapa-olho respeitável para a ex-marinheira, que dizia não suportar o curativo cirúrgico. O médico também tratou de fazer alguns pedidos especiais, já que considerava boa parte do dinheiro da tripulação seu e um único colete não era o bastante para viver com conforto, mas, como já anoitecia do lado de fora — e eram apenas cinco da tarde! —, entregou sua carta sem muitas especificações nos pedidos, já que o pobre animal precisava voltar a trabalhar. Torceu aos céus para que Yutu entendesse o que ele queria dizer; estava em suas mãos agora. 

Finalmente, no exato segundo que a porta fora aberta, uma corrente de ar gélido invadiu o castelo de proa e Flint, quem estava menos vestido entre todos, deixou um sonoro espirro escapar. Todos os piratas se calaram e encararam-no. 

— O que foi? — perguntou.

O médico, mais uma vez, apertou as sobrancelhas, e da mesma forma fez Belka, que o olhou preocupada. Bertruska, no entanto, não se afetou e fez da situação uma enorme piada:

— Você é humano, então! — ela brincou.

— Oras, tinham alguma dúvida sobre isso? — Flint ralhou, esfregando o nariz com as costas da mão esquerda, estava começando a sentir um pouco de fraqueza e isto não era nada bom. — Vou colocar a Poyo na cama, acho que ela já esquentou o suficiente. 

— Em primeiro lugar, por que diabos ela está dormindo no chão, Flint? — a gata perguntou, sarcástica, fitando o cozinheiro com uma feição de deboche descabida em sua tenra altura. Flint titubeou em responder, mas antes que o fizesse, Bertruska, longe do que sua condição indicava, praticamente se teletransportou ao seu lado, dando-lhe um tapa bem dado na nuca (era impressão sua, ou ela havia pulado a bancada?). Ela diz:

— Poyo ficou um pouco resfriada, então após um banho, uma canja e um dente de alho, colocamos ela para dormir em frente ao forno, para evitar uma futura febre. Deve ficar boa depois de uma boa noite de sono — ela afirma, chacoalhando levemente Poyo para que acordasse. Morgan ergueu uma sobrancelha, preso ao “dente de alho”. Bertruska continua: — E, você, Flint, vai descansar. Agora — ordenou. 

O homem a encarou contrariado e, depois de um suspiro sôfrego, meneou a cabeça em direção da sacola esquecida próxima a porta, quase que imediatamente recebendo em seu rosto um suéter felpudo que Belka havia arremessado em sua direção. Não coube perfeitamente, porém o manteria bem mais aquecido que a regata que vestia. — Eu vou descer, logo depois que eu… 

— Agora! — Belka, Bertruska e Morgan repreenderam, em uníssono. 

Flint não teve outra escolha senão assentir como um cãozinho. E, mesmo que quisesse ficar e organizar os suprimentos, não poderia ir contra, pois sua cabeça girava e os olhos ardiam. Talvez a melhor coisa a se fazer fosse dormir um pouco. Assim que ouviu a porta do alçapão se fechar, Bertruska cutucou novamente a capitã adormecida e, como nada aconteceu, se prontificou a carregá-la, não obstante, fosse a dor que sentiu em todo o crânio ou o grito de Morgan, não fora permitido a mulher mais do que um leve abaixar de joelhos.

— Está maluca? Você também precisa descansar, Bertruska! — bradou o médico, cruzando os braços e sentindo uma gota de suor descer por suas costas. Com quantos malucos teria que lidar ainda hoje? — Temos que trocar esse curativo o quanto antes! Belka, acorde a Poyo, eu avisarei para Merin subir o quanto antes para te ajudar. E, acima de qualquer coisa, não encoste no fogão

Sem dar chances para uma recusa, Morgan saiu empurrando Bertruska para fora da cozinha, se aproveitando de sua fraqueza momentânea e finalmente a imediata foi deixada sozinha na sala de jantar, junto de uma porção de sacolas que precisavam ser desembaladas, um fogão ligado e uma criança desacordada. Ah, claro, e também da porra da galinha abusada.

≈≈≈

Ainda que suas moléstias não fossem as mesmas, o marasmo cortante do dia anterior atingiu cada um dos piratas indiscriminadamente e, por consequência, uma terrível onda de febre os obrigou a aceitar de bom grado o conforto de suas próprias camas, deixando as panelas sujas sobre o fogão da carniça e um deque vazio a se limpar sozinho. Mal viram o amanhã chegar, de tão derrotados que estavam. Poyo, por sua vez, por ter sido a primeira a se acometer da doença e se beneficiar dos tratamentos rápidos de Bertruska e Flint no dia anterior, foi a única a se salvar de fato e, quando o relógio marcou exatas sete da manhã, nem precisou de um alarme para levantar: um grande dia a aguardava.

Caminhou silenciosa pelo quarto, tomando as roupas quentes designadas para si e partiu sem perder tempo ao banheiro para se trocar, afinal, se quisesse mandar no próprio nariz e fazer exatamente o que quisesse, precisaria ser o mais furtiva possível para não acordar seus confrades. Quer dizer, sair com seus com seus subordinados não era de todo ruim, eles compravam coisas para si e de vez em quando participavam de suas ideias mirabolantes, mas isso não era nem um terço do que queria fazer de verdade!

Com isso em mente, se perdesse aquela oportunidade, quando de novo poderia sair para explorar? Era agora, ou nunca — até porque, segundo Merin, não levariam muito para sair daquela cidade. Dessarte, segurando as botas de neve nas mãos e uma touca felpuda na outra, subiu pela escada íngreme que a levariam para a cozinha, observando sutilmente os arredores e, ao não ouvir nenhum som vindo da sala, empurrou a portinhola e ergueu o corpo como uma pequena lebre saindo de sua toca. Não notou ninguém por perto. Por fim, correu em direção a porta, na ponta dos pés para não fazer barulho, já sentindo o gosto de sua liberdade e... 

— Você vai aonde? — A voz baixa de Merin perguntou, afiada como uma faca e dilacerando toda a aventura diante de seus olhos brilhantes. A menininha não teve forças para tocar a maçaneta, mas se virou devagarinho, finalmente notando a navegadora que, durante todo esse tempo, estivera com uma pilha de papéis estudando na sala de jantar. Nunca teve chances de escapar. Seu coração desabou.

— E-eu… — diz a capitã, as sobrancelhas mais baixas que um cão pidão. Nem as desculpas escorregadias pareciam vir à sua língua. 

— Pretendia explorar a cidade, eu suponho — soprou a navegadora, sem se dar ao trabalho de encarar a menininha e, após dar de ombros, retornou a trabalhar no Log Pose que tinha em mãos. — Pode ir, eu não me importo. 

— Mentira! — Poyo gritou sussurrando — Você só quer que eu vá para me entregar depois!

— Pois se não acredita em mim, fique aqui e apodreça. Estou cagando e andando para você — retrucou, sem emoção em sua voz, e ainda absorta ao mapa a sua frente. — Mas, se você realmente se importa com minha opinião, saiba que estou falando a verdade: não contarei para ninguém, desde que não me incomode enquanto trabalho.

Nesse instante, Poyo soltou uma lufada de ar que mais parecia um ronco de um dragão furioso. Merin estava mesmo ousando desafiá-la? Isto é, que marmelada! Se não fosse por sua benevolência, ela nem estaria naquela tripulação para início de conversa! Teria continuado “apodrecendo” para sempre no East Blue como um fantasma sem nome, sem Morgan, e sem amor. Quem era ela para lhe tratar desse jeito? O certo seria estar de joelhos e agradecendo naquele instante por todo o bem que fizera! Ultrajada e com a face retorcida em uma expressão de raiva , a capitãzinha saiu porta afora feito um raio e, se não fosse o desejo de permanecer discreta, faria questão de bater a porta com todas as suas forças mais de uma vez — e talvez todas as janelas também; o que fosse preciso para ter sua raiva notada! 

Mas seu ódio não durou mais do que alguns segundos quando o vento invernal estapeou sua face e, ainda que estivesse vestindo roupas quentes, não pôde evitar de sentir um arrepio passando por toda a coluna. A imensidão branca daquela ilha parecia querer a engolir.

Sem dúvida alguma, a neve era um fenômeno mágico que jamais havia imaginado presenciar anteriormente, contudo isso não a deixava mais quentinha e fácil de se lidar — muito pelo contrário, aliás! Quando ouvia de Apricot sobre a neve, ela parecia gostosa de se brincar e de se comer, mas agora que percebera que não tinha gosto de nada senão sujeira, seu interesse por ela havia diminuído bastante e... que seja! Isso não vinha ao caso. Efetivamente, as únicas coisas que importavam de seu passado agora eram seus conhecimentos de sobrevivência e que, enquanto vivia na fazenda, não existia nada além de pasto e os raios de sol ardendo sobre os ombros, portanto, que a coriza fosse para a casa do cacete! Estava pronta para superá-la e seguir em frente, defrontando um belíssimo e novíssimo desafio. 

Ao se afastar completamente do cais, soltou um pequeno muxoxo de decepção ao perceber que os comércios ainda estavam fechados, impedindo-a de realizar uma de suas pegadinhas favoritas: comer e sair correndo. Não se deixou abalar por isso, é claro; se a cidade não estava pronta para abrigá-la, certamente era porque havia algum lugar ainda mais divertido onde pudesse perder seu tempo e, com esse pensamento em mente, seus olhinhos praticamente foram puxados para uma criatura gigantesca que caminhava tranquilamente com uma vara de pesca cheia de peixes em suas costas, disfarçando-se entre a neve com sua pelagem branca. Ele era tão grande que Poyo simplesmente não conseguia tirar os olhos, esfregando-os para ver se aquilo era verdade. 

Tinha dois Flints inteiros de altura... Empilhados.

Aquilo era grande e fofo demais para que pudesse deixá-lo em paz! 

Sem nem titubear, a capitã deixou cair a touca que segurava e saiu andando atrás da criatura, hipnotizada com seus passos rebolativos e a maciez de seus pelos, não conseguia acreditar que tinha tirado uma sorte tão grande ao deixar o navio; saiu em busca de uma aventura e, se possível uma traquinagem que a deixaria sorridente por dias, e invés disso os céus haviam lhe presenteado com o único pet que seria digno de uma capitã do seu porte! Isto é, é claro que amava Fionnula, mas acreditava firmemente que mesmo ela tinha consciência que era básica demais em comparação àquela coisa!  Sorriu animada com a própria ideia, e então, o mais sorrateira possível, andou pela neve como um rato, seguindo as gigantescas pegadas que levavam em direção à costa e soltando pequenas risadinhas de empolgação que eram prontamente cobertas por suas luvas: estava animada demais para se conter completamente e, talvez por isso, não percebera que estava deixando a cidade cada vez mais para adentrar em um novo território. 

O barulho das ondas matutinas eram o único som que poderia ser ouvido além dos passos que disfarçava com os dele. 

A Praia dos Castores, como os dizeres talhados na madeira indicavam, era um fiorde deserto de areia escura com montanhas mais íngremes e mais altas que já encontrara em todo o East Blue, daquelas capazes de fazer Poyo sentir-se especialmente diminuta entre elas, mas não o suficiente para deixar o bicho de lado, uma vez que ele, também, não era nada comparado a grandeza do mundo exterior. Isso e também o fato de que estava se sentindo especialmente orgulhosa naquele dia porque tinha certeza de que estava se escondendo como uma verdadeira espiã super secreta e não havia a menor possibilidade do Monstro das Neves saber de sua presença. Quando ele menos esperasse, bam! O atingiria em sua cabeça de surpresa e o arrastaria para fazer parte de sua tripulação! Ou, bem, ao menos era esse seu plano, enquanto não encontrava uma rede forte o bastante para agarrá-lo. Flint ficaria muito orgulhoso em vê-la voltar com todos os peixes daquele bichano — ele nunca pensou que ela poderia pescar, já que não tinha paciência, mas não desconfiaria quando a visse com uma vara de pescar... Era mais burro que ela, afinal! 

Finalmente, o destino final de seu bicho era uma caverna úmida que fazia de lar. Por um instante, Poyo sentiu que estava fazendo uma boa ação a ele, livrando-o de um buraco frio como aquele, da mesma forma que fizera com Merin há algumas semanas, mas ao esgueirar-se pelas pedras para observá-lo entrar sem ser vista, o viu preparando o fogo em um amontoado de pedras e lenha já colhido, logo abaixo de um caldeirão negro pendurado. Aquilo era… estranho, pensou consigo mesma. Poderia ser um bicho consciente de suas próprias ações e, sobretudo, capaz de cozinhar? Pois então, se era o caso, seria exatamente melhor do que imaginava em primeiro lugar! Afinal, ele seguiria suas ordens, como um subordinado qualquer (e Poyo adorava mandar!). Já poderia imaginar: um Flint, só maior e mais fofinho do que o Flint que tinha agora! — Haveria como estar em um cenário melhor? Animadíssima, mal conseguia conter seus “huhus” maléficos, esperando o momento certo para atacar, até que…

Bam!

Sua visão se escureceu. O feitiço — ou estratégia — havia voltado para o feiticeiro. 

≈≈≈

Poyo acordou em um único pulo e ainda de olhos fechados soltou um grito mudo ao sentir um estranho calor próximo aos seus pés, tendo a completa certeza de que, se abrisse os abrisse, haveria uma fogueira abaixo de si. Não que temesse a morte — na verdade, a única razão por se negar encarar o destino era sua descomedida teimosia —, mas se houvesse de fato sido pega e seu destino fosse virar jantar de bicho, que fosse ao menos na frente de todos os seus conhecidos para que sua morte fizesse algum sentido: não adiantava morrer sem uma boa plateia e, sobretudo, ainda não conseguia aceitar que seu plano genial fora para as cucuias.

 Ei, você acordou?— uma voz sussurrou ao pé de seu ouvido e então a capitã obrigou-se a abrir os olhos, talvez ainda não estivesse na fogueira.

— Não, estou dormindo ainda — respondeu em tom baixo, crispando os lábios e cuspindo um “Babaca” murmurado. Por que diabos esse merdinha me deixou dormir?, pensou consigo mesma, sentindo uma onda de irritação passar por seu corpo ao encarar a face do outro garoto que a olhava divertido, parecendo não se importar com a ofensa (finalmente estava começando a entender o que Flint queria dizer com “pontada de estresse na testa”). 

— Então vou ficar quieto, para não atrapalhar seu sono de beleza! — debochou e, nesse instante, a capitãzinha ficou tão brava que toda a confusão que a impedia de enxergar seus arredores pareceu se esvair: estalou os olhos, franzindo as sobrancelhas para fazer uma cara feia ao menino que estava ao seu lado e…

Foi quando percebeu o que realmente estava acontecendo ao seu redor.

Estavam presos em uma jaula; sim, uma maldita jaula, feito porcos antes do abate e, como se isso não bastasse, podiam enxergar as próprias armas jogadas em uma mesa a poucos metros de distância. Um verdadeiro disparate, para não dizer uma tremenda putaria! O inimigo certamente não os temeu por momento algum, e nem mesmo sentira um leve medinho ao vê-los armados até os dentes; no fim das contas, apenas roubaram suas únicas fontes de defesa e os jogaram em uma gaiola de metal, sem qualquer corda ou corrente que os segurassem, iguais a dois filhotes de coelho inofensivos, reclusos a um pequeno espaço para roerem os sapatos ou a mobília em exibição aos gigantes que, em contrapartida, tinham toda uma caverna bastante confortável para viver, com um macio sofá vermelho, almofadas felpudas e até quadros pendurados na parede acima do que a princípio acreditou ser uma fogueira, mas na realidade tratava-se de uma lareira de pedras. 

Por que diabos seu Monstro das Neves precisava de tudo isso para viver?, Poyo se perguntou. Além das facilidades claramente humanas, só que em uma escala maior — tamanho de monstro, é claro —, havia uma grande quantidade de armários de madeira escura empilhados e encostados às paredes, todos marcados com um brasão branco que nenhum dos dois prisioneiros saberia reconhecer senão como o mesmo que estampava um escudo perto da lareira; cartas saindo para fora de algumas das portinhas; e, por último, havia no aparador da lareira uma porção de caracóis comunicadores de olhos fechados, com exceção de um que, por coincidência, começara a gritar. 

Do fundo da caverna, um vozeirão monstruoso grunhiu com descontentamento, seguido de passos pesados no chão úmido de pedra. Por um segundo, Poyo e o sujeitinho debochado pensaram em se virar para ver o que se aproximava deles, mas não tiveram coragem, e como num acordo silencioso, ambos fecharam os olhos e deitaram a cabeça um no outro, fingindo dormir. Somente quando o caracol parou de fazer seus "purupurus" que eles tiveram coragem de, timidamente, abrir um dos olhos para espiar: 

— O que, você está vindo aqui? Agora? — e então, para o estampo dos prisioneiros, a criatura falou, em língua humana, com um tom de voz bestial, meio rouco e irritadiço, batendo o comunicador no pobre caracol enquanto caminhava de um lado para o outro, soltando grandes lufadas de ar. 

— Mas que porra foi essa?! — o garoto sussurrou para Poyo, segurando o braço da garotinha em um reflexo e agora a encarando com os olhos arregalados. — Será que ele está puto porque vai dividir a refeição? 

A capitã revirou os olhos, o garoto era sem sombra de dúvidas um fracote, ele estava realmente escondendo-se atrás de si? Oras, estava se borrando de medo, mas tinha um orgulho a respeitar e não iria se amedrontar tão facilmente, principalmente para um desconhecido. Nesse momento, inflou o peito e lhe respondeu com uma feição debochada: — Qual refeição? Não estou vendo nada! 

— Nós! Sua burra! — ralhou, chacoalhando o braço em desespero. 

Levou pouco mais de um segundo para que Poyo assimilasse o que havia acabado de ouvir e, por fim, se empalidecer também. Estava tão ocupada julgando a fraqueza de seu companheiro de cela, que havia esquecido completamente da natureza do sequestrador: isto é, não poderiam ter certeza do que monstros das neves se alimentavam, mas não poderiam estar presos ali à toa, certo? 

— Meu Deus, Meu Deus! Nós vamos morrer! — se desesperou, virando-se de frente para o garoto e segurou suas mãos, apertando-as enquanto sentia algumas lágrimas descerem de seu rosto; seu orgulho estava ferido, mas ao menos não fora a primeira a chorar. — Eu vou morrer junto com um babaca!

 O Hide te disse, sua estúpida! — fungou o garoto, devolvendo o aperto e, no entendimento da capitã, já estava tão desesperado que começou a nomear entidades desconhecidas.

Neste momento, ouviram um grunhido alto ecoar por toda a caverna e uma criatura menor do que o Bicho de Neve, porém igualmente grande, adentrar após retirar o excesso de neve das patas no tapete disposto na entrada. Qualquer dignidade que tinham anteriormente havia se esvaído por suas narinas e bocas arreganhadas agora. Quando o monstro apontou a pata em direção a gaiola, grunhindo na mesma língua que o novo visitante, ambos se abraçaram bem forte e embalaram-se em um choro desesperado. 

— Se nós sairmos dessa, vamos beber uma cachaça juntos! Não importa se não temos idade ainda! — O garoto falou, embargado e em meio a soluços. 

— Eu te levarei para o meu barco, vamos viajar o mundo juntos se sua entidade nos poupar, eu prometo! Renasceremos juntos! — Poyo, contendo a vontade de gritar, fechou seus olhos com força enquanto sentia seus lábios tremer pela espera impaciente e injusta de sua morte.

— Vocês dois querem parar de gritar? Estou conversando aqui! — a criatura ralhou, soltando um suspiro cansado, e neste momento sua voz já não soava tão animalesca. — Ninguém vai morrer aqui! Agora fiquem quietos. 

De súpeto, todo desespero do inevitável fim pareceu evaporar, deixando-os em um silêncio constrangedor que prontamente foi interrompido pela volta de murmúrios entre o monstro das neves e as demais criaturas. Nem Poyo, nem o garoto e tampouco a entidade, o tal de “Hide”, disse uma palavra sequer. Não até que a conversa terminasse, ao menos. Então pacientemente o maior dos bichos caminhou até os dois, abrindo a gaiola para que saíssem. 

— Por que vocês atacaram um castor? — inquiriu, batendo sonoramente uma das patas no chão enquanto cruzava ambos os braços sobre o peito. Os pirralhos ficaram sem resposta, com as bocas caídas e sem conseguir formular uma resposta — É compreensível que sejam forasteiros e não conheçam nossas terras ou leis, mas é um crime grave atacar um castor por aqui!

— Ei, eu não ataquei nenhum castor! — Poyo se defendeu, ficando um pouco emburrada. É verdade que seu plano era de fato atacar alguém, mas em nenhum momento seu alvo foi um dos castores (já tinha seu bicho de dois metros, por que trocaria um por outro igual?). 

— E por que raios a mocinha estava espreitando a Guarida Postal, então? Meu subordinado disse que você estava escondida entre as pedras logo na entrada da gruta!

— Oras, eu vi um bicho grandão e fiquei curiosa! Não posso?— respondeu, em tom alto e como se pudesse impor respeito sobre aquela coisa que tinha quase o triplo de sua altura. 

O garoto quase lhe deu uma cotovelada bem dada nas costelas, contudo, antes que o fizesse, notou que, por incrível que pareça, a sua estratégia (burra) de sua colega pareceu surtir efeito sobre o bichão, que deu um passo para trás, afrontado com suas sobrancelhas franzidas e bracinhos cruzados. As crianças de outras ilhas são bastante assustadoras, pensou consigo mesmo, por conseguinte olhando incrédulo para a capitãzinha por um breve instante, até, muito esperto, decidir comprar sua briga para se safar de seus próprios crimes também: 

— É! Eu também não tentei atacar nenhum! Só estava os seguindo! — disse de peito inflado. Não obstante, a criatura mais baixa, o castor, deu um alto grunhido de reprovação, como se o chamasse de mentiroso. O garoto sentiu seu peito murchar como um balão. — Certo, eu te ataquei, mas sinto muito! Estava escuro e fiquei com medo... 

Em resposta, o castor murmurou insatisfeito, passando a pata na região da barriga e olhando com o canto dos olhos para o garoto, como se estivesse afirmando que suas feridas ainda estavam abertas, sendo que não havia nada ali. Talvez tivesse o ferido no coração — quem sabe? 

— Ora, eu nem consegui te bater, você me espancou com a vara de pescar antes mesmo de eu puxar minha arma! — a face do castor se comprimiu em uma careta e continuou passando a mão na barriga, resmungando — Eu te dei um soquinho, mas você me chacoalhou de cabeça para baixo, estamos quites! E eu já pedi desculpas, se não fosse pelo escuro, eu não teria me assustado! 

Dessa vez, o Monstro das Neves decidiu intervir, olhando em desaprovação para o subordinado. — Que bom que entendeu — disse ao castor, que revirou os olhos e pegou um envelope que havia no balcão, seu chapéu de carteiro e casaco do uniforme, então não tardou a sair da caverna. — Personalidade difícil. Você teve azar, garoto. Teria alguns castores mais simpáticos que poderia ter atacado. 

— Existem mais? — O garoto perguntou, quase esganiçando a voz (talvez temesse criar inimizade com outro castor, ou que a fofoca estivesse espalhado e agora fosse um inimigo da espécie). 

— Claro, eles são os verdadeiros habitantes da ilha. Nós, os humanos, só pegamos emprestado! Gao-gao-gao! — e riu alto, colocando a mão na barriga. Parecia mais simpático agora; um enorme monstro de pelos, mas simpático.

— Você nem humano é… — Poyo respondeu sem pensar, cruzando os braços e fazendo uma expressão pensativa. Mas dessa vez o garoto ao seu lado decidiu realizar seu “aviso”, isto é, pisando forte em seu pé. — Ai! Por que isso, seu merda?! — gritou.

— Pare de faltar com respeito! Ele acabou de nos salvar! — ralhou ele. 

— Ele salvou a sua vida! Eu não fiz nada, e conseguiria me safar sozinha — Poyo dá de ombro, arrebitando o narizinho com uma feição arrogante: havia se esquecido completamente do medo de antes e, acima disso, peitava o menino com um desdém desnecessário enquanto ele a encarava incrédulo. — E, só para você saber, mesmo que eu estivesse fodida de verdade, eu tinha minha tripulação para me salvar! — Por fim esnobou, enfatizando tanto sua posse quanto o palavrão, já que queria se mostrar mais velha e com a total permissão de usar palavras de baixo calão (coisa que não tinha, aliás; Flint só havia desistido de corrigir). 

— Sua? E eles sabem que você está aqui por acaso, pirralha? — o menino desdenhou, cuspindo as palavras uma a uma.

Quando finalmente a briga pareceu que iria extrapolar do verbal para o físico, o Monstro das Neves resolveu intervir: 

— Ei, meninos, não precisam brigar! Fiquem calmos! — interrompeu, mexendo uma das mãos em um movimento despreocupado enquanto sorria incômodo — Não estou ofendido com isso! Podem me chamar de Wanillo, por favor!-

E antes que fosse continuar,  uma quarta voz então invadiu a conversa:

— Maninho! Você não vai acreditar no quanto eu faturei hoje! É minha semana de sorte! — gritou uma menina de cabelos brancos, óculos redondos e uma imensa mochila nas costas (especificamente, maior do que ela) que adentrara a caverna saltitante enquanto balançava uma porção de notas de dinheiro em suas mãos. Assim que ela percebeu as visitas, sua cenho franziu e sua animação foi contida — Eu não sabia que você estava atendendo turistas agora — enfatizou, afinal, mal passava das dez da manhã. 

— Yutu! Esses dois estavam procurando por você! — disse Wanillo, empurrando os dois para a frente, como quem joga os problemas para debaixo do tapete. 

— A mim? — ela se pergunta, olhando-os de cima para baixo para ver se os reconhecia de alguma forma, mas nada parecia acender em sua mente, até que… — Ah! Por acaso você não é a menina mais alta que eu que a Gata-Cor-de-Rosa mencionou ontem?

— Belka? — Poyo perguntou sem esperar uma resposta, afinal não se encontrava um gato rosa e falante em qualquer esquina. 

— Isso mesmo! Lembro de ouvir o cara irritan– digo, o outro cliente chamá-la assim! — Yutu se corrigiu, batendo o punho que segurava as notas fechado em cima da outra mão, aberta — Eu estava justamente vindo entregar suas roupas.

— Entregar aqui? — a capitã questionou, estavam muito distantes do cais. Porém, antes que Yutu pudesse respondê-la, foram surpreendidos com um grito do garoto:

— Que diabos! — exprimiu, apontando o dedo em direção a um homem que, até então, não se encontrava na sala. Por sua vez, Poyo sentiu uma pontada na cabeça; já havia visto habilidades estranhas, como a de Merin, que permitia atravessar paredes e ficar invisível de vez em quando, mas não imaginava que teletransporte fosse uma possibilidade. 

— Onde está o Sr. Yeti? — a menina questiona, coçando a cabeça em confusão e mais para si mesma do que para alguém. Porém, o garoto prontamente lhe retruca:

— Ele é o Yeti, burra! Como você não percebeu? — Poyo então semicerrou os olhos, observando a figura pequena com confusão; como aquele baixinho poderia ser aquela majestosa criatura das neves?  

O homem que estava a sua frente —  e que segundo o colega prisioneiro se tratava do gigante Monstro das Neves, surpreendentemente — era exatamente de sua altura, e das presas, chifres e pelo branco fofinho que antes esculpiam uma carranca assustadora, sobrara apenas o mesmo sorriso, mas agora em um rosto jovial, de olhos fechados em completa serenidade e com uma barbicha branca quase rala saindo somente do queixo. Seus cabelos eram parecidos com o de Yutu: lisos e brancos, mas, diferente dela, o corte escorrido tinha a adição de esparsas mechas ruivas que quase nunca iam até o fim de seu cabelo, como se saíssem da raiz de uma cor e, no meio do caminho, mudassem de ideia. Poyo pensou que aquilo era um pouco estranho, já que nunca havia visto um cabelo com vontade própria antes, mas em comparação com a transformação que não viu (infelizmente), “isso” estava bem dentro dos seus parâmetros de normalidade. 

— Respondendo sua pergunta, menina, — Yutu começa, rindo frouxo da surpresa dos dois fedelhos — Eu os enviaria pelo castores, como fiz com minha carta ontem. Aqui, na Guarida Postal, enviamos toda a correspondência da cidade! — ela ergueu os braços para apontar os armários, sorrindo de orelha a outra, muito orgulhosa e então, muito provavelmente para si mesma, fez questão de completar em tom mais baixo: — e, como tudo nessa cidade, nossa família é quem manda — riu baixo. 

— Como isso, se eles nem falam sua língua? — perguntou o rapazinho aos irmãos. Embora tentasse se manter respeitoso (já que havia visto o bastante das jaulas dos povos da neve por aquele dia e poderia dizer com propriedade que não eram confortáveis), sua curiosidade era mais forte do que o medo naquele momento e, acima disso, muito estranhamente a burrice da menina ao seu lado estava lhe trazendo confiança para agir de maneira idiota também. Era até reconfortante.

Dessa vez, Wanillo foi quem tomou a palavra. — Desde que eu adquiri a habilidade de conversar com os castores, nossa vila assinou um tratado com eles para findar os confrontos e agora dividimos Wintery em harmonia. Eles trabalham para nós e, em troca de sua ajuda, além de pagarmos com equipamentos de lazer e pesca, nós os protegemos de turistas desavisados, como vocês dois, e das tempestades de neve que volta e meia aterrorizam nossa bela cidade. 

— E, no entanto, você bem mencionou que havia uma lei que proibia o maus tratos a eles… — ele começa a dizer, mas Poyo o interrompe, achando que era de bom tom adicionar: 

— É! Eu não faço a menor ideia do que é lei e o que não é, mas essa cidade parece grande demais para ter tão pouco tempo! — infla o peito. 

— Você lá sabe o que é uma lei? — o prisioneiro pergunta a ela, baixinho. Mas é ignorado. 

— E quem disse que ele é tão novo? — Yutu retruca, indo até seu irmão para colocar as mãos em suas costas — Wanillo, meu irmãozinho, tem exatos quarenta e cinco anos de idade. Isso tem mais de vinte anos agora! — riu alto. 

— Então como vocês viviam antes do tiozão virar Yeti? — questionou Poyo, sem papas na língua.

— Nossa vila se encontrava atrás das montanhas, mas com o clima instável, não conseguíamos plantar alimento algum e, na maior parte das vezes, nossos antepassados precisavam passar furtivamente pelos castores para conseguir alimento — a mulher soltou outra risadinha — Dissemos que é por isso que somos pequenos! 

— Ah, tá… — a menina torceu o lábio para baixo; em sua mente, a história parecia mais interessante do que era realmente.  

— Grosseira! — o garoto a cutucou e sussurrou ao pé do ouvido, não se importando com a cotovelada que recebeu logo em seguida. 

Nesse ponto, mesmo que os visse se bicando, Wanillo desistira completamente de impedi-los de brigar: era pacifista, sim, mas aquilo estava muito longe de sua ossada. Por fim, os adultos cruzaram um olhar ao perceber que o ponteiro maior do relógio quase chegava ao décimo segundo dígito, e sabendo que era hora de voltarem aos seus postos de trabalho, trataram imediatamente de dar brechas — bastante explícitas — aos seus visitantes que era hora de ir embora. 

— Bom, chega de folga! Vamos voltar ao trabalho — disse Yutu, bem alto e se espreguiçando — Irei fazer a entrega para sua tripulação eu mesma, já que não há nenhum castor disponível para a entrega. Vocês dois desejam uma carona? — pergunta com um sorrisinho nos lábios: a realidade é que estava morrendo de preguiça e desejava voltar o quanto antes a sua casa quentinha, mas quando teria oportunidade de ver o homem do tamanho de um castor? No fim das contas, fora consumida pela curiosidade daquele tão estranho grupo de viajantes.

— Sim! — ambos os jovens responderam em uníssono, porém, ao perceber que não havia sido a única a dizer, Poyo irrompeu com sua voz estridente: 

— Você não vai junto! 

— Como não? Você prometeu que me levaria se a gente sobrevivesse e, veja bem, estamos vivinhos — retrucou, olhando-a desafiador. A capitã ia retornar a gritar, porém o menino pensou mais rápido e com os olhos cerrados, completou: — Você não é uma capitã? Se não me deixar ir junto, vou pensar que você estava mentindo para mim. 

Poyo ficou em silêncio, sua face estava vermelha e, se estivesse com sua arma em mãos, certamente aquele moleque já estaria sem miolos. E ele, sem amor algum a própria vida, prosseguiu: 

— Talvez eu deva falar com o verdadeiro capitão…

O assobio de Yutu, do lado de fora da caverna e já montada em seu trenó de renas, soou como uma corneta do apocalipse — o aviso de uma guerra que iria estourar a qualquer momento.  Foi quando se deram conta que não havia mais tempo para discussões e correram em busca dos próprios pertences. 

Então, com a arma em mãos e uma expressão azeda, Poyo apontou o cano da pistola na direção do garoto e berrou: — VAMOS LOGO! É melhor obedecer, ou estouro seus miolos. 

≈≈≈

Merin foi a responsável por todas as tarefas do barco naquela manhã, e por mais que não gostasse de servir os outros — afinal, ser humana trazia um pouco de orgulho em sua habitual faceta selvagem —, não poderia estar mais feliz aquele dia. Em primeiro lugar, a embarcação estava em completo silêncio, já que conseguira se livrar de Poyo cedo e, ainda mais gratificante que isso, os planos que haviam dado errado no dia anterior haviam voltado com todas as forças quando descobriu que seu Morceguinho também acordara doente e, dessarte, seu cuidado havia caído por completo em suas costas. O que era melhor do que ter seu homem indefeso totalmente em suas mãos? Infelizmente, ele não estava doente o suficiente para negar tratamento aos demais tripulantes — isto é, Belka e Flint não morreriam se aguardassem um dia ou dois, afinal já estavam doentes e não seriam algumas horas que os matariam; mas seu bom morceguinho era benevolente e, por mais que não a agradasse, estava disposta a aceitá-lo dessa maneira. 

Sob as instruções de seu marido, então, a navegadora usou sua manhã para exatas duas coisas: impedir que Flint se levantasse para limpar o barco ou cozinhar, e preparar uma canja de galinha que era receita de sua falecida e amada sogra — ou de outro alguém da família de Morgan, não tinha certeza porque no meio da conversa havia se distraído observando seu rosto —, no fim, o que importava era que a sopa precisava ser feita.

Normalmente não era permitida a tentar pratos elaborados na cozinha, mas como assumiu para si mesma um caldo não era algo difícil de ser feito, apenas despistou os gritos de desespero do cozinheiro no andar de baixo (ele não se esquecera do homúnculo que os confrades haviam criado na última vez que estiveram sozinhos em sua cozinha) e subiu para cortar os legumes e a carne em cubos mesmo assim, colocando-os na panela com água para que o fogo fizesse seu trabalho. Já havia visto pessoas fazendo pratos semelhantes na floresta, utilizando-se apenas uma panela e o fogo de uma fogueira, então não havia como isso dar errado! Sorriu orgulhosa: estava se tornando uma humana exemplar. 

Enquanto o caldo incorporava, desceu as escadas cantarolando; iria ajudar Morgan a medicar os companheiros e depois levaria todos ao andar de cima para que pudessem se alimentar. A humanidade nunca havia lhe parecido tão próxima e, na verdade, sentia-se superior aos da mesma espécie que si, uma vez que era a única que não fora afetada sequer minimamente pela gripe. No andar de baixo, por fim, Merin não demorou para colocar os remédios nos copinhos e distribuí-los igualmente entre os piratas, mais uma vez agradecendo por sua força, visto que o xarope tinha um odor extremamente desagradável e preferia sequer imaginar seu gosto. Entre os companheiros de viagem, Flint e Bertruska não lhe causaram problema algum, já que medicaram-se por contra própria e sem nenhuma reclamação ou cara feia; por outro lado, Belka e Morgan pareciam estar dispostos a testar sua paciência: não teria problemas em usar força física contra a gata, mas jamais imaginara que seu amorzinho poderia a irritar tanto ao ponto de desejar apagá-lo por alguns minutos — quer dizer, não era ele próprio um médico? Não deveria estar acostumado com medicações e coisas do tipo? Felizmente, precisou somente puxar a foice para que ambos tomassem o xarope com lindos sorrisos no rosto! Era exatamente isso que queria, o respeito mútuo entre humanos normais. Era uma humana que fazia coisas humanas normais. 

Contudo, como nada poderia ser perfeito, mesmo em seu momento feliz, a mera menção a capitãzinha era sempre capaz de tirar seu sorriso do rosto e, nesse caso, foi perto da hora do almoço que seu nome veio à tona: 

— Você deu remédio para a Poyo? — pergunta Belka, em meio a algumas tossidas, enquanto tentava futilmente segurar a colher de maneira elegante com suas patinhas trêmulas de fraqueza. 

Ora, era só o que faltava!, praguejou. Quando finalmente havia conseguido arrastar todos para o andar de cima para degustar sua caprichada sopa, Belka vinha para cima de si com a única pergunta que não estava disposta a responder! Sem paciência, Merin sequer hesitou em anuir com a cabeça. — Sim. Ela está brincando no cesto do navio agora — mentiu. 

— Ela não pode ficar brincando no convés nesse frio. Chame-a aqui para co– — tenta adicionar Morgan, mas antes que pudesse terminar sua fala, a navegadora aproveitou a boca aberta para enfiar uma colher cheia de canja em sua boca e calá-lo. 

Ninguém foi capaz de dizer mais nada depois disso. O médico, por sua vez, somente engoliu de olhos fechados, tentando decifrar se era seu paladar que havia sido afetado ou se era a sopa que estava mesmo insossa, e quando finalmente sentiu o calor do caldo aliviar sua garganta inflamada e esquentar seu esôfago, ele também não teve vontade de continuar aquela conversa. Era como se, de comum acordo, todos dissessem um tão silencioso quanto retumbante “Que se foda a Poyo”, e esses maravilhosos minutos de silêncio regidos apenas pelo barulho lento da alimentação de Flint e Belka, os baixos roncos de Bertruska, que depois de rapidamente comer havia se deitado para repousar no sofá, e o sentimento gratificante de poder servir seu morceguinho na boca eram doces demais para Merin. Estava exultante, quando...

— Aye! Cheguei! — gritou Poyo, escancarando a porta do castelo de proa e voando pelo vestíbulo sem sequer cogitar em tirar suas botas sujas de neve. 

A colher que Merin usava para dar de comer para Morgan foi derrubada no prato. 

Logo atrás dela, vinha um rapazinho que deveria ser pouco mais velho, mas tão irritante quanto (poderia sentir em seus batimentos cardíacos) e, como não poderia faltar, a mulher do dia anterior, que observava de cima toda a sala de jantar: uma mulher usando roupas de sua boutique desacordada no sofá, a mulher azul dando de comer para o mauricinho insuportável, a gata desmaiada sobre o prato de sopa e, por último, mas não menos importante, um homem loiro, de ombros largos, que encarava o vazio com a colher cheia em mãos, sem força para levá-la a boca e, acima disso, muito alto. Especificamente, do tamanho de um castor. Não levou um segundo para tomar postura, correndo até seu lado e ajeitando os cabelos atrás da orelha e óculos: 

— Você deve ser o homem gigante, não é? Eu terminei suas roupas! Não parei de trabalhar ontem a noite! — disse, rapidinha, enquanto puxava de sua imensa mochila um par de calças que havia, estrategicamente, deixado por cima. (Ela não quis dizer que forçou seus funcionários a dormir na atelier aquela noite para finalizar o projeto porque isso definitivamente não importava).  

Flint, do lado oposto da situação, mexeu sua cabeça com a mesma velocidade que uma tartaruga saindo para espiar para fora da casca, e de agradecimento deu um sorrisinho de canto e acenou com a cabeça: o máximo que suas forças atuais permitiam — uma canja deveria ser o suficiente para levantá-lo, mas certamente não uma tão chocha quanto aquela. 

Yutu sentiu uma pontada em seu coração. Uma boa pontada. — O frio o pegou de jeito, não pegou? Pobrezinho! — e se aproximou para tocar-lhe o rosto, mas antes que o fizesse, Belka levantou do pote de sopa num pulo, miando alto e arisca com os pelos e bigodes grudados. A vendedora entendeu no mesmo segundo que se aproximado demais. Deu um risinho descomedido — Vou deixar as roupas para vocês, então. 

— Obrigada pela carona, Yutu! — disse Poyo, bem alto, quando a mulher estava prestes a sair pela porta. Ela deu mais uma risada e, antes de ir, acenou de volta. Nenhum dos piratas pareceu notar que o garoto não havia a acompanhado para fora, isto é, com exceção de Belka, que, depois de uma crise de ciúmes, estava bem acordada. 

— Tô morrendo de fome! Quem cozinhou hoje? — continuou a garotinha, agora se sentando e tomando em mãos tanto o prato quanto a colher suja que Bertruska deixou na mesa. Belka imediatamente tomou-o dela, olhando feio para ambas: a capitã e Merin. 

— Eu pego um prato para você... — A Navegadora suspira enquanto se levantava. Sua paz havia terminado. 

— Quem é seu amigo, pirralha? — sonda Belka. O garoto deixou um riso frouxo escapar ao ouvir o “pirralha” da frase, pois isso confirmava sua hipótese, mas engoliu qualquer gargalhada habitual por causa do olhar frio da menininha. 

— Eu o conheci por aí. Vai ficar com a gente agora — ela responde de prontidão, logo após receber o prato quente em sua frente. Em seguida, Poyo leva uma boa colherada de sopa à boca e, depois de degustar por alguns segundos, diz, como a maior especialista de todas: — Tá sem sal, Merin! 

— Está na sua frente, capitã — Merin diz em deboche. Nesse instante, a menina abriu um sorriso fugaz ao garoto, que só ergueu uma sobrancelha, entendendo imediatamente o que ela estava fazendo.

— Ah, claro — a menininha completa, pegando o saleiro. — Sente-se conosco, hum… como é seu nome mesmo, pirralho?

Ele torce o lábio em uma expressão de desgosto, deixando sua grande mochila, ainda aberta por causa do incidente dos castores, no chão. — Meu nome é Hiroshi, capitã — e cuspiu o honorífico em tom sarcástico, retribuindo com um risinho fácil para menina, claramente mais nova, mas que o tratava como um moleque

— Hum… E, Hiroshi, quem é “Hide”? — atirou a capitã. 

Hiroshi no mesmo instante sentiu o corpo travar. Não sabia dizer se era pela vergonha, pelo medo de ser descoberto, ou então um pouco dos dois, mas o fato foi que, no exato segundo em que a pergunta foi disparada, a memória de um pouco mais cedo veio à tona, quando, além de sem querer ter falado em terceira pessoa (um hábito que o envergonhava muito), havia usado seu nome real, invés da alcunha que estava acostumado. Como diabos poderia ser tão idiota? Hide burro! Burro!

— É… — ele olhou para a mochila enquanto pensava, como se buscasse um subterfúgio para fugir. Belka, muito esperta, notou sua ação e direcionou seus olhos à mochila também, reparando logo de cara em algo que capturou sua atenção: uma fruta do diabo. Quase engasgou. 

— Quem se importa, pirralha? — interrompeu batendo na mesa, e afobada se levantando na cadeira: a doença parecia ter desaparecido completamente agora. — Não é interrogando que se mantém uma amizade. Ainda mais quando se trata de uma passageira como essa!

— Ah, Belkinha… — Poyo dá uma risada maldosa — Ele não é meu amigo. Muito menos passageiro! É meu novo subordinado! 

Merin sentiu seu corpo congelar e a pele ameaçou desaparecer; e Flint e Morgan, que ainda comiam, interromperam-se no meio da mastigação. Toda a embarcação foi tomada por uma quietude, tanto mórbida, quanto excruciante e, instintivamente, todos que não eram Poyo e Hiroshi olharam para Belka, que estava quieta e ainda de pé na cadeira. 

— Ele… pode ficar — disse ela, seca.

Sua voz não tinha emoção alguma.


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