Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 30
Grand Line, Acampamento em Woo Pululu (Jogos Piráticos)


Notas iniciais do capítulo

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A luneta ampliando a visão não mentia: a praia da próxima ilha estava cheia, porém não de habitantes normais, e sim de piratas. Os piratas, aliás. Sua respiração ficou travada por alguns segundos, antes de soltar uma sôfrega lufada de ar: por que, dentre todos que navegam pelos mares, estava destinado a encontrar-se com Pieri novamente? Depois de tanto tempo evitando a insanidade dos mares, Hanzo nunca pensou que poderia desejar ficar louco. Tinha certeza de que não a veria tão cedo, já que postergaram na ilha anterior pelo máximo de tempo que puderam, aproveitando para resolver as formalidades da Marinha, receber seu pagamento e, finalmente, cortar seus laços; contudo, cá estavam, há quase um quilômetro de distância — mas isso já era mais perto do que gostariam.

— Me dê essa bosta aqui! — disse Kaze, o empurrando para o parapeito enquanto tomava o instrumento de suas mãos para olhar o além mar. 

Hanzo sentiu o desequilíbrio após o ricochete e também sentiu a idade quase o jogar para o mar, no entanto, isso não foi o bastante para tirar a atenção da praia e ele continuou a espremer o único olho para enxergar melhor. Yun, por sua vez, nem deu bola ao desconforto de seu capitão, e mal teve tempo de vislumbrar a ilha antes que seus olhos fossem capturados pela imagem imponente do Diabo Negro e, sobretudo, pela presença infame de Franz, que tomava sol deitado nas escamas metálicas do submarino. Involuntariamente torceu seus lábios para baixo para evitar o sorriso de genuína felicidade que teimava em se formar. Eles estavam de volta, pensou consigo mesmo: a empolgação de rever seu único amigo era algo que não poderia segurar. 

Finalmente, há alguns passos de distância, Fang jogava paciência na mesa externa, bastante distraído ao que se dava na proa do navio e, no cesto do mastro, Sherikan segurava a própria luneta, analisando a ilha em seus próprios termos. O submarino exuberante brilhava com os raios do amanhecer, mas, ainda mais chamativo que ele, havia ao seu lado uma segunda embarcação ancorada no cais que, ao basear-se nas reações dos piratas do deque, pensou que só ele teve o desprazer de reparar. Não notou bandeira, tampouco velas, entretanto teve certeza de que não era abandonado quando, ao longo do píer, viu além de Pieri uma outra garota correndo em polvorosa, sendo escoltada por mais alguns tripulantes de roupas de inverno. Não era preciso de muito para perceber que eram igualmente forasteiros: ele não precisava colocar os pés lá para saber que, seja lá onde estivessem, se tratava de outra baía tropical e usar roupas tão quentes era o equivalente ao suicídio (e, diga-se de passagem, qualquer imbecil era capaz de reconhecer turistas quando os viam, então não havia porque comemorar mérito em ser medíocre).

Passando por isso, e ainda de olhos nos desconhecidos, Sherikan se atentou àqueles que conversavam já na praia: uma mulher de cabelos curtos e negros cumprimentava de maneira bastante incisiva Yolanda, segurando suas duas mãos e ameaçando beijar cada uma delas, enquanto um homem loiro conversava com Apollo, oferecendo-lhe algo. Não teve jeito: ao observar aquela cena, sem nem pensar duas vezes, apoiou seu tronco ao parapeito e berrou descomedido aos confrades: — Fang! Encontramos seus namorados! E estão paquerando os dois!

No que lhe diz respeito, o navegador apenas levantou os olhos, revirando-os, e com um suspiro pesado, abandonou as cartas na mesa: estava a algumas rodadas de finalizar o jogo, porém não poderia deixar que Sherikan continuasse a falar besteiras no convés. O garoto estava empoleirado como uma galinha e os cabelos brancos e soltos tapavam boa parte de seu rosto por causa do ângulo, mas não era o bastante para esconder o sorriso maroto de quem espera por uma resposta. Que mal tinha manter contato com Yolanda e Apollo?, Fang amaldiçoou para si mesmo, crispando os lábios ao lembrar-se que deveria ter sido mais cuidadoso quando usava o caracol comunicador de Yun para contatar os amigos, sobretudo perto do espadachim, que se tornava um conhecido fofoqueiro quando estava por tempo demais no mar.  Era erro dele, afinal. No mais, além de ser alguém bastante seletivo com amizades — o que por si só era motivo o bastante para deixá-lo em paz quando achava alguém que se identificava —, era um peixe especialmente livre; adulto, dono de suas próprias barbatanas e que, claro, poderia fazer o que bem entendesse de sua vida sem dar satisfações a ninguém... mas quem disse que uma explicação lógica dessas era o suficiente para sanar as dúvidas de uma mente entediada? 

— Iremos atracar nesta ilha, capitão? — questionou o navegador, tentando mudar o assunto. 

Na verdade, haviam alguns motivos especiais para querer desembarcar, afinal, no melhor dos cenários, poderia descansar por um tempo e beber chá com os amigos pierrôs; enquanto, no pior deles, só pegariam os mantimentos necessários e iriam embora, mas estava tão certo de que Hanzo os faria dormir no navio para não encontrar Pieri que apenas precisou perguntar e fazê-lo dizer explicitamente o que pensava. Contudo, o que Fang não esperava é que, além de não o responder de prontidão, seu capitão ficou completamente hipnotizado por o que quer que fosse o que estava olhando. O navegador ergueu uma sobrancelha, esperando por sua resposta e, por sua vez, o capitão só engoliu em seco, em completo silêncio: o sonoro "não" que diria ficou preso na garganta, já que não desejava de forma alguma se submeter a presença da palhaça novamente, mas não poderia negar seus instintos quando, no meio da praia, sua atenção fora completamente capturada por uma figura que nunca havia visto até então. As palavras simplesmente morreram em sua boca.

Era um rapaz loiro, de corpo definido e que, por uma estranha coincidência, no exato momento em que o olhara através da lente, estava tirando o suéter quente de lã para ficar apenas de regata sob o sol, conversando com mais três pessoas, Yolanda e Apollo, e mais uma mulher que nunca havia visto antes. Estava certo que nenhum desses dois desconhecidos era pierrôs, afinal, apesar de velho e com a visão nublada pelo desejo de vingança na ilha passada, Hanzo jamais se esquecia dos rostos das pessoas, sobretudo quando se tratava de um homem tão austero e, principalmente, semelhante a Lennard em seus tempos áureos. Como diabos poderia ignorar um homem tão bonito?, perguntou a si mesmo, a voz falhando mesmo na mente, e então, com uma relutância que nem sabia que tinha, disse para seu navegador o "sim" mais fraco que dissera em sua vida, acompanhado de um "Vamos desembarcar" retumbante o bastante para que todos os cães o olhassem de olhos arregalados.

Estava ficando louco, sim, e nisso todos concordavam. Mas ele não era o bastante para deixar essa oportunidade passar.

Iriam desembarcar de qualquer forma.

Em contrapartida, do outro lado do reencontro, Pieri nem de longe estava achando aquela situação interessante e, se Hanzo pudesse ouvir sua voz irritadiça (e seus gritos de descontentamento) onde quer que estivesse, certamente ele consideraria uma segunda vez dar meia volta e retornar ao oceano. Na ilha, a capitã estava tão fula que seu corpo inteiro tremilicava em estado de pane, e seu imediato, zelando por sua saúde ao seu lado, estalava os dedos em completa ansiedade a cada légua marítima que os antigos aliados avançavam. No momento em que encontrara com Poyo, seu humor não poderia estar melhor, já que, além de sua pequena aliada estar viva — algo que, mesmo com muita fé, uma parte de si duvidava que iria acontecer —, tinha como promessa um saboroso jantar oferecido pelo simpático cozinheiro dos aliados que, por uma ironia do destino, conversava com Apollo, não obstante, agora todos os seus planos haviam sido jogados ao chão e pisoteados por palhaços raivosos, porque, de minuto em minuto, os cães aproximavam-se mais do cais e sua ansiedade subia às alturas.

— Eles estão vindo para cá. HYA! — ralhou Pieri, estapeando as costas de Kristian com uma das mãos, enquanto com a outra segurava a luneta. — Capitão mendigo desgraçado!

O zumbi revirou os olhos, percebendo a movimentação que se formava ao redor deles; era fato que a própria tripulação demonstrava certa empolgação, isto é, Yolanda até mesmo interrompera a conversa que tinha com a jovem guerrilheira para observar sorridente a bandeira que a cada minuto se tornava maior no horizonte e Franz desde o momento que a capitã o chamara estava chacoalhando os braços para sinalizar sua posição ao navio, porém os tripulantes de Poyo os encaravam com as sobrancelhas franzidas, sem entender o motivo de tamanha comoção. Kristian bocejou. Sentia-se preguiçoso demais para dar-lhes explicações, mas certamente era melhor que o fizesse antes que Pieri resolvesse começar a falar.

— Auxiliamos temporariamente esse bando; o barco deles era um lixo — comentou brevemente, não fazendo questão de citar a batalha contra as aves — Pieri não suporta o capitão e eu também não.

— E daí? Que se fodam eles! Eu estou aqui agora — pontua Poyo, enchendo as bochechas. Não suportava a ideia de não ser mais o foco das atenções de sua tão estimada amiga pirata.

O imediato deixou um riso nasalado escapar ao ver os bracinhos cruzados da menininha. — Tem razão. E daí que eles estão aqui, Pieri? — disse a sua própria capitã, juntando-se a Poyo no ato de emburrar-se com os pés batendo no chão de madeira do cais.

— Não precisa ficar com ciúmes, Kristoph. O senhor mendigo já é um velho, hya-hya-hya! — a capitã respondeu com um sorrisinho debochado, enquanto, com um dos braços, puxava a cabeça de Poyo e lhe dava um cascudo.

— Eu certamente sou mais velho que ele — contrapôs o imediato e, neste momento, os braços cruzados e a face emburrada já não pareciam tão irônicos quanto anteriormente.

— Não muda o fato que o Hanzo é um decrépito! — ela gargalhou alto, debochando junto de Poyo (que, na verdade, não estava entendendo nada, mas adorava rir da cara dos outros) do companheiro enquanto colocava de volta luneta ao olho. Dessa vez, eles estavam perto demais.

Já há poucos metros de distância, o grande Sol Nascente se aproximava do píer com uma presença impressionante: os reparos de Shari não só foram o bastante para deixá-lo mais rápido e forte, mas, nos dias em que ficaram na ilha anterior, os cães aproveitaram para retocar o verniz do casco e também trocar as velas; antes em um tom encardido de bege, agora as auxiliares tinham um formato peculiar de barbatana e eram vermelhas-carmesim, enquanto a principal tinha os dois imensos cães-leões de boca aberta e fechada, o símbolo do bando. Nem de longe parecia o navio pirata que haviam encontrado algumas semanas atrás e, por um segundo, Kristian se perguntou se eles estiveram mesmo na mesma ilha que os Pierrôs após a partida da ilha dos pássaros (quer dizer, a toca primaveril que se enfiaram nos últimos dias nem de longe parecia habitada por gente, quem dirá comerciantes navais).

— Olá, confrades!

A voz de Hanzo se fez presente e sua postura por si só foi o bastante para fazê-los perder a força das mandíbulas. Diferente de como o conheceram, agora sua pele tinha um brilho mais saudável (não que Kristian entendesse muito disso, estava meio morto, no fim das contas), seu cabelo já não tinha o mesmo aspecto seboso, as bochechas não pareciam tão ossudas e, principalmente, as roupas tinham um caimento completamente diferente em si. Isto é, ainda vestia a mesma túnica, mas agora, invés de bem fechada com o cinto, uma parte de seu peito estava propositalmente exposta, evidenciando os poucos pelos que tinha e o peitoral que, diga-se de passagem, não era lá muita coisa (afinal, não treinara por seis anos inteiros, como poderia ficar forte de uma semana para outra? Era inviável). Nesse instante, o imediato, incrédulo, apenas girou sua cabeça, encontrando o olhar de Pieri que, da mesma forma, já o encarava com as sobrancelhas arqueadas e a mesma expressão de pura dúvida.

— Pelo meu picadeiro... — ela disse ao vento; a voz começando a morrer pelo tamanho do choque. — O que, em nome de todos os palhaços desse mundo, aconteceu com você? — gritou ao homem, desafinada como uma gaita.

— O Hanzo tomou banho e fez a barba! — Yun berrou em resposta de dentro do navio.

E então, como um passe de mágica, Bertruska, que até então estava numa estranha tentativa de se enturmar com a mulher de bigodes, capturada pela menção do nome, de repente virou sua cabeça para o navio que se aproximava e nesse exato momento flagrou o capitão franzindo as sobrancelhas e apertando os olhos amendoados de maneira sedutora para seu único amigo homem. O corpo da ex-marinheira pareceu trincar. Projetou-se para frente e, com os punhos cerrados em fúria, os pés tremeram na areia e os músculos tencionaram, mas, quando ia se mover, a mão de Flint a segurou pelas costas.

O cozinheiro nada disse, apenas balançou a cabeça negativamente, encarando-a sério e de sobrancelhas apertadas. Bertruska, resignada, fechou os olhos, suspirou e assentiu.

— Uau! — gritou Poyo, dando um saltinho onde estava — Que barco irado! E que cara legal!

Pieri a encarou, brava, mas não teve tempo de lhe dar um outro cascudo, porque ao mesmo tempo a enorme embarcação colidiu lento com a madeira da ponte, fazendo toda a estrutura (e também quem estava nela) tremer. Em seguida, uma imensa corda foi jogada em sua direção para que desse um nó apertado nos pilares e, de soslaio, percebeu a sombra de Yun passar ao seu lado, caminhando para o que pensou que seria a corda, mas na verdade era o médico de sua própria tripulação, que há alguns bons minutos pulava no topo do Diabo-Negro com um sorriso de orelha a orelha. A pierrô suspirou, dando a corda para que Kristian a amarrasse: que se foda, pensou ela. O que ela precisava mesmo era bater um papinho com aquele capitão folgado.

≈≈≈

Hanzo não demorou quase um segundo para saltar do navio ao píer, seguindo firme em direção a única coisa que se importava naquela ilha: o reflexo de seu passado e, cruzando os dedos, sua passagem só de ida para um futuro melhor. De todos os lados, a voz de Pieri soava, aguda e irritante como sempre, mas não era devastadora o suficiente para que conseguisse impedir suas botas de caminhar, ou que sequer desviasse sua atenção daquele homem.

— Está indo para onde, mendigo-hya? — Pieri questionou, com uma das sobrancelhas arqueadas e um dos pés batendo ao chão. Hanzo havia realmente ficado maluco?, se perguntava. Naquele ponto, a garota não sabia dizer se o capitão estava prestes a chamar Flint para uma briga ou para jantar. E, diga-se de passagem, todos os cenários pareciam igualmente tenebrosos.

— Estou ocupado, conversamos depois — disse ele, tentando ultrapassá-la sutilmente, porém Pieri havia parado exatamente em sua frente para impedi-lo de passar. Como um mangusto, Hanzo se esticou para tentar ver o que acontecia na praia (afinal, o cozinheiro não estava sozinho por lá) e, sem prestar muita atenção, diz: — Sou um diplomata, não poderia ignorar a outra tripulação...

— HYA! Diplomacia de cu é rola, Hanzo! — a capitã bateu o pé outra vez, abrindo os braços para pará-lo — A gente vai resolver isso aqui, e agora! Eu mandei não cruzar meu caminho novamente, seu cuzão!

Por fim, ele parou.

— E por que eu deveria obedecê-la, garotinha? — inquiriu, cruzando os braços e erguendo uma sobrancelha.

— Porque eu e meus subordinados salvamos o seu rabo! — Pieri respondeu, extremamente grossa e enfática, empurrando o peito do homem com o indicador. — E eu não te cobrei nada. Consertei seu navio de graça e, veja como sou benevolente, te salvei da morte mais vezes do que você pode imaginar! Eu até matei os macacos que iam te atacar!

— Eles não me atacariam, se você não tivesse matado o líder deles! — Hanzo a empurrou de volta. Ao lado dos dois, Poyo parecia pronta para se enfiar na briga.

— Pois, pro seu governo, eles iam atacar. Estavam nos espreitando desde que entramos na clareira e eu só me defendi! Acha mesmo que eu mataria a família do Shari por um motivo qualquer? — pontuou, contendo-se para não puxar uma de suas armas — Eu valorizo meus companheiros e suas famílias disfuncionais!

— Quê...? — a gatuna, que estava próxima do submarino observando tudo, quebrou o próprio silêncio, mas sua voz saiu como um sopro, pois genuinamente não se sentia apta para entender o que estava acontecendo diante de seus olhos (e talvez nem quisesse realmente). Ela não poderia estar mais avulsa naquela situação, afinal, diferente de Poyo, a outra presente naquele absurdo, ela prezava pela lógica e, nesse caso, estava certamente a alguns capítulos de desenvolvimento atrasada na história.

— Não eram minha família, sequer éramos da mesma espécie! — de súpeto, Shari surgiu da escotilha do Diabo-negro, respondendo a capitã com a expressão cansada e, neste momento, tinha não apenas um, mas dois charutos em sua boca. Ele acenou com a cabeça para a gatuna, oferecendo-lhe um trago e, por muito pouco, Belka não pediu um fumo inteiro somente para si.

— Macaco é macaco, Shari-hya! — rebateu Pieri.

— Eles tinham o dobro da minha altura! Eram gorilas!

— E você é meio-ciborgue, deixe de ser preconceituoso! Nós não julgamos as diferenças — disse, forçando uma reação de ofensa. — No meu circo, mesmo o menor dos macacos têm seu lugar! Por isso te adotei, Shari! HYA-HYA-HYA!

Orgulhosa de finalizar o assunto, a risada de Pieri soou como um trompete e, ao passo que reverberava pela praia, uma veia de puro estresse saltou na testa de Hanzo, que se sentiu prestes a esganá-la. Nada o irritava mais do que aquela risada de puro escárnio, zombando não só de si como pessoa, mas também de suas atitudes e, talvez inconscientemente, ela sempre o lembrava da humilhação de ser salvo do seu maior inimigo por uma menininha que quase tinha a metade de sua idade.

Hanzo sentiu vontade de atacá-la; de mostrar do que era feito não só para ela, mas também para mandar seus subordinados e suas amizades frívolas com o outro bando para o inferno, não obstante, no momento em que tocou a espada de sua bainha para iniciar um duelo, sentiu todos os pelos de seu braço se arrepiarem quando, detrás de todos, na praia, uma buzina alta ressoou, seguida de apitos de trem, tambores e trompetes. Todos se olharam incrédulos, procurando a origem do som, mas não havia nada de muito interessante para ser visto até então.

Só que, bem... isso foi por muito pouco tempo.

De repente, detrás da restinga e das palmeiras, surgiu rápido pelas dunas um pequeno automóvel, colorido e brilhante, e então, quando ele parou, uma alta música circense passou a soar.

— FA-FA-FOM! — riu a sonora voz barítona.

Todos os piratas ficaram em silêncio, esperando o que quer que sairia daquela portinha, até que, por fim, uma gigantesca criatura bípede saiu do carro sem aparente dificuldade, com um sorriso de orelha a orelha estampado em seus lábios e um estranho traje de domador de leões. Ele tinha um tom azul acinzentado em sua pele, orelhas gigantes, presas e uma grande tromba enfeitando o rosto. Parecia um elefante, em todos os aspectos — mas nenhum dos humanos queria acreditar que o que viam era, de fato, um animal. O trejeito humano caricato era estranho demais até para Belka e Shari.

— O que está acontecendo aqui, em nome de todos os palhaços de circo? — ele perguntou, simpático até certo ponto, embora visivelmente transtornado com a bagunça na praia. E então, como quem não quer nada, ele direcionou seus passos pesados a Pieri, que o encarava de olhos estalados e boca semiabertas: — Por que raios uma moradora de Woo Pululu está entrando em briga com nossos respeitáveis turistas, fa-fa-fom?

— Estamos juntos de um morador?! — Hanzo perguntou, mais alto do que gostava de falar, porque a música continuava ligada em volume máximo. Fora isso, tinha a questão de estar um pouco aturdido por ter de esticar tanto o pescoço para falar com aquela criatura, mas isso ele tentou ignorar (independente das inseguranças que tinha para com sua própria altura, nesse caso mesmo os mais altos de suas respectivas tripulações tinham de olhar para cima, então ele não tinha com o que se preocupar).

— Oras, a palhacinha que discutia com o senhor, nobre turista! Lhe garanto que isso não é algo frequente, não se preocupem!

— Hya! — Pieri cruzou os braços, fechando os olhos em consternação — Eu não vivo nessa ilha e não me chame de palhaça; eu sou uma Pierrô! Tanto quanto os demais, sou uma turista!

— Não é possível, fi-fi-fom! — disse uma quarta voz, dessa vez um soprano, e de súpeto saiu do carro um segundo elefante, cinza-amarelado e usando uma maquiagem pálida de palhaço com grandes cílios postiços. Nem pareceu tão estranho depois do primeiro, os piratas pensaram. A elefanta continua: — Eu nunca vi uma palhacinha tão woopulululense quanto você! — comentou, apertando as bochechas da pierrô e as esticando, como se quisesse provar que estava vendo alguém de verdade. — Como é bonitinha! Venham ver, irmãos!

Agora já nem um pouco surpreendente, mais três elefantes saíram do carro-de-palhaço, do maior para o menor e, respectivamente, um verde, um vermelho e um rosa. Todos foram para cima de Pieri, enquanto Poyo, de cenho franzido, partiu em direção ao que parecia ser o mais velho (era o mais alto, afinal!).

— Que é woopuludense? — perguntou ela para o elefante azulado.

— São os moradores de nossa ilha-fa-fom! — ele respondeu, com a voz empostada, repleta de orgulho — Caso não tenham percebido, somos uma ilha circense!

Poyo soltou um "Ah, tá" baixo, e antes mesmo que pudesse continuar com mais alguma estupidez, Hanzo a interrompeu: — Quer dizer que todos são palhaços nessa ilha? — indagou, com o cenho franzido. Nunca havia visto nada do tipo e, se o perguntassem, diria que deveriam ficar atentos, porque esses elefantes pareciam um tanto suspeitos (eram hospitaleiros, animados e fofos demais para não serem uma distração).

— É claro! — respondeu o primeiro elefante. — Digo, alguns não se interessam pelos caminhos da palhaçada, então temos trapezistas, domadores de criaturas e algumas outras atrações; não é mesmo, irmãos?

Os demais bichos levantaram as próprias trombas e, depois de um bramido uníssono, todos soltaram uma sonora risada e puxaram, sabe-se lá de onde, algumas bolas de malabarismo e monociclos, transformando o cais em seu próprio picadeiro. O capitão sentiu o queixo pender. A cena a sua frente já era inusitada por si só, mas para complementar a esquisitice da situação, todos ao seu redor reagiram positivamente ao show, oferecendo palmas e pequenos assobios de apoteose, como se tudo fosse normal (inclusive, Hanzo até mesmo poderia jurar ter ouvido a voz de Kaze no meio da exaltação, mas por fora preferiu apenas ignorar, porque isso sim seria pior do que cinco elefantes dançarinos). O capitão se sentiu, por um breve instante, um péssimo líder. Afinal, despistando estarem em território desconhecido e perto de seus inimigos, todos os seus subordinados dançavam e comemoravam de guardas baixas e, inclusive, nem mesmo a razão de estar ali para começo de conversa parecia compreender tamanha perda de tempo, visto que o homem loiro dava pequenas palmas e mantinha um pequeno sorriso nos lábios (algo que, aliás, o faria entrar em parafuso, se fosse em um momento mais oportuno). Deu um suspiro pesado. Apesar dessa leveza contradizer um pouco a visão de homem firme que havia dado a ele, isso apenas o aproximava mais do que esperava em alguém e, finalmente, algo em especial nele lhe chamou mais atenção do que os risos frouxos: volte e meia Flint trocava pequenos olhares com a mulher de cabelos negros que vira antes e também com a pequena garotinha loira, incentivando-as a bater palmas e aproveitar o show.

Será que...

— Que babaquice... — o capitão sussurrou consigo mesmo, incrédulo e sentindo-se ridículo por seus próprios pensamentos; afinal, era impossível que um homem tão jovem como aquele não só fosse casado, mas também pai de uma adolescente como aquela... ou será que não era?

Por um instante, sentiu as próprias sobrancelhas pesarem, lembrando-se que ele próprio noivara cedo e, não somente isso, já tinha Kaze em seu encalço a cerca de quatro anos. Se seus cálculos estivessem corretos, seu interesse atual não parecia ter trinta anos, e decerto essa idade não era o bastante para ter aquela menininha como filha, mas em caso de uma adoção por consideração — ou dívida, que seja; Kaze tinha palavras estranhas para coisas simples —, não seria inviável. Mas é claro que isso não poderia ser o caso. Pois, se fosse, o destino seria zombeteiro demais, pareando-os dessa forma...

No entanto, seus devaneios não puderam continuar, uma vez que um grito abrupto de Pieri o fizera acordar de supetão.

— Tá olhando o quê, mendigo-hya? Perdeu o cu na minha cara? — ela gritou.

Um segundo depois, a palhaça estava colada em sua frente, a ponta do nariz extremamente vermelha próxima de si e o gatilho apontado diretamente para a sua têmpora; a música fora interrompida e os elefantes, com exceção do primeiro, encaravam os capitães assustados. O show havia terminado.

— Quê!—Eu nem estava olhando você! — Hanzo respondeu no mesmo tom, gesticulando para tomar sua arma, mas antes que o fizesse, Pieri desviou o cano para a mão que a empunharia e atirou na areia sem pensar duas vezes.

— O próximo é na sua testa — ela disse, voltando a mira para o rosto do capitão. — Isto é, se não aprender a me respeitar — a pirata colocou o dedo sobre o gatilho uma segunda vez e arqueou uma sobrancelha, lançando um olhar de desprezo ao homem, que não titubeou.

— Quero ver você conseguir — ele a desafiou, dessa vez colocando a mão direita sobre a bainha da espada e a puxando.

— Ei, ei! — o elefante se colocou no meio dos capitães, os afastando e colocando cada uma de suas grandes patas sobre suas costas de maneira carinhosa. — Nós não podemos resolver isso de outra maneira?

— Olha, Elefantão, eu bem que gostaria, mas acredito que a melhor forma de acabar com um cuzão é na bala-hya! — a pierrô afirmou, olhando fixamente para o dito inimigo.

— E quem foi que disse isso? — disse o apaziguador. — Pirata que é pirata, não se deixa levar com esse tipo de laia. Especialmente uma como você, Pierrô.

— O que você quer dizer com isso? — ela ergueu a sobrancelha, virando-se para encará-lo.

O ar que tomava o píer era tão denso que quase podia ser tocado com as mãos. Todos os presentes se encaravam sem compreender a real afirmação do elefante, e embora Pieri também não soubesse ao certo o que ele queria insinuar, ela já tinha total certeza de que o que viria em seguida não seria fácil de se recusar. Aquele bicho tinha uma aura caótica que apenas a abraçava.

— O que você acha que eu estou prestes a propor? — o elefante sorriu. — Uma batalha-fa-fom, é claro. Mas uma batalha pirata.

As sobrancelhas de Pieri se juntaram formando um único arco, e assim também estavam as de Hanzo, que já conseguia compreender onde ele queria chegar. Aquela certamente não parecia uma boa ideia, além de não parecer muito distante do que a palhaça propunha anteriormente com sua arma, ao menos em questão de honra. Entretanto, talvez pela loucura, ou só pelo orgulho mesmo, os dois tinham tanta certeza de que poderiam ganhar que simplesmente não conseguiram esconder o sorriso que se formava em seus lábios. Era sim uma ótima ideia. A humilhação de seu inimigo era o único prato que os dois concordavam em provar.

— Certamente vocês já ouviram falar de uma Davy Back Fight, não estou certo? — O elefante pontuou, colocando ambas as mãos na barriga num riso simpático.

Hanzo tsc'ou, orgulhoso. — Óbvio, somos piratas! Mas, veja bem, acredito que esse desafio não seja justo, nesse caso. A Pieri é jovem demais.

Por fim, o ar que já era escasso pareceu se acabar. O tom de Hanzo não era jocoso, muito pelo contrário, era repleto de parcimônia e, principalmente, de uma sabedoria que não lhe cabia. Naquele instante, o pirata se colocou em um pedestal e, ao observar sua rival com soberba, afirmou sem vergonha alguma que lhe faltava experiência. Yun, que  passara a observar a progressão da discussão desde o momento que Pieri puxou a pistola, após ouvir tamanha burrice, não conseguiu conter o ímpeto de estapear com força a própria testa, desejando não ter levantado da cama naquela manhã. Como um homem havia de ser tão estupido?, perguntou a si mesmo. Ao seu lado, o companheiro médico lhe deu um olhar benevolente; ele mesmo poderia deixar a preguiça em segundo plano e estapear a cara do velho capitão depois daquilo, considerando tudo que haviam feitos pelo bando Komainu (sem cobrar nem mesmo um mísero centavo) até então. Era muita ousadia, senão pura sacanagem, tratá-la como uma incapaz. Isto é, se tinha algo que Pieri era, isso era ser indiscutivelmente capaz.

Contudo, para a surpresa de todos, quando a pirata dos pierrôs tomou a arma uma segunda vez, não foi para Hanzo que ela mirou. Em vez disso, e abrindo um sorriso muito presunçoso, ela atirou ao ar, apertando os olhos desafiadora ao passo que entregava a pistola para o rival. — Achei que gratidão fosse um preceito samurai — ela disse, cuspindo no chão. — Quando você criar bolas para atirar, começa, seu babaca.

Seus olhos queimavam como fogo. Impassível, Hanzo pegou a arma de sua mão, retribuindo o olhar frio da garota com um igualmente severo, e então sentindo a empunhadura e cano quentes, levou o dedo ao gatilho, levantou a mão e...

Atirou.

Mas dois disparos foram ouvidos.

O clima de tensão que pairava era tanto que, nem mesmo por um segundo, um daqueles tantos infinitos piratas prestou-se para observar a feição retorcida de Poyo, que a cada segundo aumentava sua careta feia e batia mais rápido seus pés na madeira. Não importavam os motivos do porquê aqueles dois tinham aquela relação; apenas não era de seu agrado que aquele homem roubasse Pieri de si e, antes da segunda interrupção do elefante, a garotinha torcia internamente para que a aliada só atirasse de uma vez na cara do homem e acabasse com aquela palhaçada para que pudesse voltar a dançar. Mas, se antes já não estava satisfeita com ele, ao ouvir dele não só um insulto para com sua pirata favorita de todo mundo, mas também a sugestão de um desafio para uma batalha unicamente pirata onde ela, a melhor pirata de todos os tempos, seria ignorada, já não havia mais nada que importasse a capitãzinha — e daí se não conhecia um "Davy back Fight"? Era muito mais pirata do que o mendigo jamais fora! Por isso, e sem pensar duas vezes, ela puxou a própria arma do coldre e aceitou.

— NÃO! — ao gritarem em uníssono, os olhos de Flint e Pieri se encontraram, completamente arregalados.

— SIM-FA-FA-FOM! — o elefante berrou e, junto de seus irmãos, passou a dançar, puxando os instrumentos musicais e os monociclos novamente. — Três capitães e uma batalha! Teremos uma grande festa, meus camaradas! É o início da mais inesquecível Davy Back Fight!

O som da música parecia mais distante do que nunca. Aqueles que sabiam o que havia se iniciado, quase não podiam evitar o instinto de querer gritar. 

≈≈≈

Se cinco elefantes coloridos fazendo malabarismo não eram estranhos o bastante, então aquela ilha cumpria esse papel. Uma vez que o desafio foi oficializado, os irmãos ofereceram ajuda para descarregar os suprimentos de cada um dos navios, além de apresentarem um imenso pátio onde poderiam montar suas tendas e se hospedar o tempo necessário para finalizar a competição, bem como esperar a virada do Log Pose. Por sua vez, o tal pátio era um imenso círculo com padrão de espiral preto e branco, e os arredores, como era de se esperar, mais pareciam uma festa do que uma cidade por si só. As casas eram desiguais de maneira extrema; algumas altas demais, outras muito baixas; às vezes o teto estava no chão ou as paredes pareciam uma grande ilusão de ótica. Os postes eram enrolados em si próprios e, todas as placas tinham formatos geométricos confusos e cores gritantes e espalhafatosas que, por algum motivo, iam além da sinalização, estampando tudo que havia por perto, das paredes aos moradores.

Mas, é claro, a esquisitice não se limitava somente a cidade. Todos nos arredores, sem exceção, eram no mínimo igualmente estranhos ao bando da Pierrô, se não infinitamente piores. Homens palhaços de três metros cumprimentavam as pequenas famílias de bebês leões que saíam para tomar sol, da mesma forma que faziam os trapezistas de dedos longos, esticando-se pelas ruas ou fazendo acrobacias em conjunto. Dizer que parecia um circo não era exagero algum: tudo era temático, não havia sequer um cidadão que não estivesse a caráter e nem mesmo um comércio que não fizesse parte do show. No fim do dia, parecia que eles, os ditos como "normais", é que eram os estranhos daquela história toda.

Finalmente, depois de algumas horas montando as tendas (e, pasmem, recebendo figurinos, uma vez que os trajes eram assegurados por lei), faltavam apenas algumas coisas a serem buscadas nos navios para que estivessem prontos para a largada e, nesse âmbito, apenas alguns poucos ainda trabalhavam na montagem do evento, como Flint, que se juntara aos cozinheiros de Woo Pululu para o banquete de abertura, e os capitães, que discutiam questões diplomáticas antes que, de fato, fossem reapresentados as regras. Os menos ativos, como Yolanda, Fang, Apollo e, por mais estranho que pareça, a imediata de Poyo, já se enturmavam entre si com um bom carteado e uma porção de drinks, rindo alto e despreocupadamente, e, aos que não se incluíam as atividades tradicionais, certamente haveriam de encontrar algo para fazer entre as estranhas ruas tortas porque havia de ser inventado o que não tinha para ver naquela tão estranha ilha.

Quando o sol do meio-dia esquentou suas cabeças, o maior dos elefantes foi ao palco da praça principal, ao norte do acampamento, batendo os imensos pratos de percussão e bramindo com sua tromba para chamar a atenção de todos que aguardavam o banquete ser servido. Nesse ponto, estavam todos sentados nas imensas mesas expostas ao ar livre e esperando uma merecida refeição, conversando em tom alto e rindo exageradamente, sem se preocupar com o barulho.

— Fa-fa-fom! — chamou o elefante uma segunda vez. E então, todos ficaram em silêncio. — Respeitável público! Me chamo Baru e serei seu anfitrião nessa festa. Em algumas horas, após nosso aclamado banquete, nossos campeões irão iniciar sua batalha. Três tripulações e dezoito piratas, uma Davy Back Fight como há tanto tempo não víamos em Woo Pululu!

A plateia urrou em resposta.

— Antes que iniciemos o ritual, irei explicar algumas regras, fa-fom!

O elefante retirou uma pequena lista do bolso, junto com um par de óculos minúsculos para o próprio rosto e, com um grande sorriso, passou a ler uma a uma as regras, sem qualquer pressa: — Um integrante ou bandeira roubada só poderá ser recuperada em uma nova Davy Back Fight; ao ser roubado, deve jurar imediatamente lealdade ao novo capitão; e, por fim, bandeiras roubadas não podem ser erguidas nunca mais pelo time perdedor, isto é, a menos que ele tome-a novamente vencendo uma batalha.

Após isso, ainda que parecesse óbvio para o anfitrião, tomou algum tempo para explicar no que consistia o jogo e, não por menos, a multidão celebrava a cada sentença finalizada. A Davy Back Fight era, sem sombra de dúvidas, um jogo de honra e era exatamente por isso que o elefante estava sempre observando furtivamente os piratas viajantes, aguardando o momento em que poderia instigar uma emocionante briga de egos. Contudo, Baru não se considerava um elefante mau em sua essência, ao passo que não era pelo entretenimento próprio que o fazia: seu povo, a plateia da cidade, aclamava pelo absurdo, e como é que ele não poderia atender os pedidos de um tão caloroso público? Era neutro, para todos os efeitos, mas isso não excluía o fato de ser de seu feitio apreciar a energia caótica que emanava a cada show, sobretudo a competitividade que crescia nos olhos daqueles que começavam a perder e precisavam virar o jogo.

— Uma salva de palmas para nossos capitães! — pediu Baru, levantando os braços como indicador de animação.

Detrás da cortina, Poyo, Hanzo e Pieri, já trajados com suas novas roupas coloridas (o que, diga-se de passagem, fazia o cão se sentir um tremendo idiota), marcharam ao centro, levando os moradores a completa apoteose. Suas vozes eram uma turba de emoções, gritando e urrando de alegria. As piratas riam soltas, achando a fama um máximo; mas o capitão, contudo...

— Quanto às provas, meus caros — iniciou novamente Baru — Em prol da quantidade díspar de membros e número de participantes, trabalharemos com cinco provas no total, todas separadas por times pré-definidos aqui, e agora.

— Mas como vamos escolher, se a gente não sabe o que competir? — perguntou Poyo, interrompendo o elefante e coçando a nuca.

— Mas essa é exatamente a dificuldade, garotinha-fa-fa-fom!

— Hya-O capitão-mendigo não tem quase ninguém no bando dele, não seria injusto? — a capitã pierrô retrucou, forçando o melhor sorriso inocente que conseguisse; era fato que não se importava minimamente com Hanzo, mas não poderia perder a chance de usá-lo ao ser favor; se soubessem as provas, maiores seriam as chances de ganhar e, principalmente, de impedir que Poyo colocasse tudo a perder. Ela não podia perder o jogo.

— Fa-fa-fom... Você está correta, Pierrôzinha... — Baru se pôs a pensar por um breve instante, olhando de soslaio para seus irmãos que, da coxia, erguiam os braços como quem diz "fazer o quê?" — Certo, estamos mesmo em uma batalha diferente! As escolhas serão feitas após a revelação da prova, entretanto, todas as demais regras serão mantidas, sem alterações.

— Eu não preciso da sua colher de chá, seu... — Poyo começou a dizer, mas Pieri tratou de tapar sua boca com as mãos.

— Obrigada, Baruzinho-hya! — ela disse, animada e cumprimentando-o com uma reverência de saia imaginária para que a torcida a visse como artista. Os gritos se tornaram mais altos, e Hanzo revirou os olhos (estava entrando em desvantagem com o público, mas isso de pouco importava: fizera seu passado de habilidades, não fama).

O elefante sorriu largo, antes de guardar sua lista e seus pequenos óculos no bolso do paletó, soltando um novo bramido com sua tromba: — Agora, as moedas!

Baru gesticulou ao público, mostrando suas mãos vazias por um longo instante e sinalizando que não havia nada dentro de suas mangas. Os tambores ressoaram ao fundo e, de repente, cinco moedas surgiram entre seus dedos: duas na mão direita, e três na esquerda, douradas e brilhantes, e que foram prontamente jogadas ao ar e desapareceram outra vez. O capitão cão sentiu seu queixo cair. Como? Quando? Onde?, ele se perguntava. Por outro lado, Poyo batia palmas, encantada com o show enquanto Pieri, já acostumada (e especialmente exibida), tratou de tirar de dentro de sua roupa uma flor que, com um sopro, fez se transformar em água.

— Uhul! Essa é minha capitã! — Franz berrou da plateia. Yun quis esconder se embaixo da terra, mas, em falta disso, riu comedido.

Com o fim do espetáculo, fogos de artifício foram ao céu e, mesmo que nenhum deles tenha sido realmente visível, apenas o som fez com que o clima se tornasse mais leve do que nunca. Finalmente, os cozinheiros trouxeram o banquete em suas cloches: eram alimentos diversos, com decorações coloridas e um cheiro inebriante de comida caseira que só poderia ter origem de uma grande assembleia de avós e mães. Tudo parecia delicioso, e não levou muito tempo para que os pratos e travessas estivessem refletindo o céu de tão limpos que ficaram. Comeram até as barrigas doerem e, ainda assim, comeriam mais por pura gula, especialmente os piratas, que por tempo viviam com a escassez rotineira de estar à deriva no mar. Na mesa principal, enfim, junto dos companheiros piratas, Flint bebia uma cerveja com tranquilidade após todo o trabalho que tivera com as panelas: seus braços doíam pelo trabalho pesado, mas os roncos de boa alimentação eram o bastante como pagamento (e para esquecer a ansiedade que estava, é claro).

— Rango bom, cozinheiro-hya! — comentou a capitã Pierrô, tirando um pedaço de carne de seus dentes com um palito — Mas ainda pretendo cobrar o jantar que Poyo me ofereceu. Comida boa nunca é demais, hya-hya-hya!

Por fim, Pieri mostrou a língua para Apollo, que, sentado próximo deles, murchou o beiço, prestes a chorar. Yolanda, ao seu lado, colocou a mão sobre a sua coxa para acalmá-lo, e mesmo Fang olhou de cenho franzido para a capitã aliada: não permitiria esse desrespeito com seu amigo, ainda mais quando estava em sua folga. Flint, no que lhe concerne, apenas sorriu pequeno, levantando a caneca em direção à aliada. Ainda que não tivesse feito tudo sozinho, aceitou o elogio com humildade; na maior parte do tempo não via grandiosidade em sua comida, entretanto estava realizado apenas pelo seu pequeno feito. Cozinhar era realmente algo que amava fazer, pensou consigo mesmo.

De gole em gole, terminou uma cerveja e deu início a outro caneco, afogando suas preocupações com álcool e com o clima ameno que se instaurara depois da cerimônia de abertura. A brisa de verão refrescava a chegada da tarde; um cenário de tamanha tranquilidade que certamente não comportava sua vida pirata — especialmente quando ele era o único de sua tripulação a entender o fardo que sua capitãzinha havia lhe jogado nas costas. Flint não desejava ficar bêbado por ora; mas bebia mesmo assim, tentando manter a calmaria próxima de si enquanto pudesse. Já havia algum tempo que sentia um incômodo quase físico, como um pequeno sentimento de mau agouro que crescia no peito a cada segundo e apenas transbordara no momento em que Poyo atirou para o céu. Contudo, de que adiantava se preocupar, sobretudo agora? O leite já estava derramado, e os jogos viriam mesmo que não quisesse. Isto posto, mesmo infeliz, o que lhe restava era aproveitar o tempo restante antes das cagadas de sua capitã respingarem em suas costas.

≈≈≈

Por volta das duas da tarde, uma grande parcela dos moradores de Woo Pululu estavam cochilando após o banquete e, os que não estavam, se preparavam para, daqui duas horas, assistir à primeira competição entre os piratas. Dessa forma, por incrível que pareça, a praia da ilha estava mais barulhenta do que a própria cidade e, na Carniça, haviam duas pessoas sendo arrastadas a contragosto para fora do covil.

— Chega! — gritou Poyo, dando um tapa no rosto de Merin para repreendê-la. — Estão todos em silêncio agora, e você não está doente!

— Mas eu ouvi explosões... — a navegadora disse em um muxoxo, engolindo o choro e apertando o braço de Morgan, que, talvez pela primeira vez em toda sua vida, preferia estar à sós com Merin a largar seu consultório destrancado naquela ilha cheia de piratas. E isso porque ele nem sabia o real motivo de Poyo precisar dos dois na ilha...

— Que explosão o quê! Eram fogos de artifício-hya! — disse Pieri, dando um pisão forte que estalou como um canhão. Merin, mais uma vez, voltou a chorar. — Puta merda-hya... Eu desisto! Poyo, estarei com Shari e o mendigo do lado de fora!

A pierrô, tão farta de tudo que parecia capaz de soltar fogo pelas ventas, saiu batendo a porta do castelo de proa, deixando os três gatos sozinhos na cozinha. Poyo estava de braços cruzados alguns passos adiante do vestíbulo, enquanto Morgan estava sentado no bar, com Merin ao seu lado e encarando sua capitã com a postura de quem está redondamente certo. — Em Loguetown, você e Flint foram deixados, e em Wintery mais uma vez. Por que não podemos continuar aqui agora? — ele perguntou. — E a Merin está doente... — nesse instante, a navegadora forçou uma tossida, sabendo que era necessário para o plano funcionar.

— Meu cacetão que está! — Poyo rugiu, e os dois deram um pulo na banqueta. — Eu preciso da tripulação inteira dessa vez! Mesmo que vocês dois estejam morrendo, vão vir se arrastando! Agora!

— Você já tem quatro subordinados lá fora... por que precisa de mais–

— Calado! — a capitã bateu na parede divisória, fazendo com que o quadro de barco que ficava pendurado tremesse e Morgan se calasse de súpeto. — Se vocês dois me fizerem perder a autoridade na frente da minha amiga, eu juro que vou...

A faceta sorridente de Poyo havia sido completamente trocada por um semblante assustador, vermelho como um pimentão e com as sobrancelhas juntas em um vinco que daria inveja nas carrancas de Flint e Belka. Ela não completou a frase, mas sequer precisava; sem outra escolha, os dois se levantaram das banquetas, endireitando suas roupas e tomaram a bolsa transversal de Morgan, posteriormente a seguindo para fora sem mais dizer uma palavra — porque, de outra forma, sabiam que ela tiraria a arma. Não eram tempos fáceis para os gatos desde que Hiroshi se juntara.

Do lado de fora, Pieri estava sentada em cima de um grande caixote de madeira com uma separação exatamente no meio e pintado com a silhueta de um corpo sem cabeça ou pernas, os esperando pacientemente ao mesmo tempo que Shari batia o pé na madeira de forma ritmada e Hanzo, um pouco distante dos dois, estava encostado no Diabo Negro, fumando seu longo cachimbo de Wano. Quando todos estavam próximos, ele iniciou para a capitã.

— Não me disseram que vocês vinham buscar outro homem. Eu não precisava ter vindo, então — reprovou Hanzo, visivelmente descontente.

— Não induza força pelo gênero, mendigo-hya — pontua Pieri, erguendo-se do caixote e espanando a areia dos calções com as mãos. — Belka disse que estávamos vindo atrás de um peso morto, e ela não parecia errada nesse aspecto — e então olhou para Morgan com um só olho aberto, analisando-o de cima a baixo. 

No que lhe diz respeito, ambos os gatos nem de longe pareciam preparados para os jogos que estavam por vir, tampouco para o clima tropical da ilha em que desembarcaram. Diferente de todos os piratas, que estavam vestidos a caráter pelas leis de Woo Pululu, eles usavam roupas escuras em grande parte, bastante formais e aparentemente bem quentes: Merin usava um longo vestido rendado preto, com um imenso chapéu de aba larga e véu com furos para que seus chifres saíssem e um guarda-sol de babados, enquanto o médico estava de camisa preta, casaca, calça bem alinhada e lenço, como pronto para um funeral. Nenhum deles parecia disposto e, na verdade, nem sequer pareciam cientes do porquê estavam para sair.

— Podemos ir embora? — perguntou Shari.

— Sim, estamos todos aqui! — disse Poyo, sentando-se no caixote e enxugando o suor da testa, exausta.

— Então, avante — completou Pieri, se sentando ao lado da capitãzinha.

Shari se posicionou a frente do caixote de madeira, preparando-se para erguê-lo, mas ao ver que Hanzo nem se mexeu, tratou logo de objetar. — Veio até aqui só para passear?

— Estou esperando o príncipe fazer as honras e me ajudar. Não vou arrebentar minhas costas sendo que, às quatro, já terei que lutar — reclamou Hanzo, com uma sobrancelha arqueada. Morgan olhou-o como quem vê merda embaixo do sapato e deu de ombros, andando de cabeça erguida com Merin abraçada ao seu braço. O capitão franziu o cenho.

— Pare de drama e vamos logo! — gritou Pieri.

E, então, eles foram.

O caminho para a cidade era tortuoso, visto que a restinga se estendia por alguns bons metros antes de se juntar às árvores tortas do ecossistema local, e mesmo dentro do bosque, que já era povoado por pequenos chalés tortos e igualmente coloridos, os tijolos que levavam ao acampamento não eram bem posicionados, ou ao menos não para passarem com uma carga grande.

Hanzo se sentia especialmente desconfortável em erguer não só a caixa de madeira, como também ambas as capitãs, que estavam sentadas e conversando despretensiosamente sobre qualquer coisa, não obstante, ele seguiu em silêncio, ajudando o chimpanzé enquanto observava, alguns passos a frente, o estranho casal de urubus caminhando leves, como se o mundo pudesse desabar. Se permitisse a si mesmo o direito de reclamar, diria que se sentia um burro de carga; o escravo de dois nobres antipáticos como os que por muito tempo teve de servir nos anos em que ele e Kaze trabalharam de caçador de recompensas, além das duas menininhas, que tinham pelo menos duas décadas a menos que sua idade. Era ridículo; quase uma insolência. Ele nunca suportou a burguesia — especialmente os que esbanjavam de luxos triviais em lugares impróprios como aqueles dois — no entanto, como já havia dado sua palavra de que ajudaria o bando, não tinha o que fazer senão morder sua língua e continuar seguindo em frente, ouvindo de longe a conversa paralela e também o baixo cantarolar da mulher de chifres que, suspirante, apertava firme o braço do rapaz moreno, sem nem desconfiar o que lhes aguardava daqui algumas horas.

O bando daquelas crianças estava prestes a colapsar, o capitão pensou consigo mesmo, e só agora percebia que estava prestes a tirar o doce da boca de uma menininha. Porque, querendo ou não, apesar de se denominar capitã do próprio bando e estar na Grand Line, aquela menina não tinha nada a ver com a briga dele com Pieri, e mesmo assim ele estava pronto para derrotá-la, já que desejava tomar seu cozinheiro com todas as suas forças.

Não era de seu feitio esse tipo de coisa — em situações normais, revogaria sua participação, já que a honra de não lutar com uma criança falava mais alto do que ouvir de alguns piratas que era fraco. Entretanto, algo naqueles imensos olhos de bola de gude o traziam um sentimento estranho; um pequeno desconforto que, de alguma forma, o fazia ter um pé atrás. Será que, como fizera com Pieri, estava subestimando aquela garotinha? Ela não parecia especialmente perigosa; era baixa e de bochechas arredondadas, além de sorrir abestalhada para onde quer que olhasse. Nem de longe tinha o mesmo poder que sua rival exalava; mas estava na Grand Line, de qualquer forma. Como haveria de ter chegado até lá, se não era minimamente capaz?, ele se perguntou. E foi nesse instante que notou em seu braço esquerdo uma tatuagem bastante peculiar sobre uma grande cicatriz: a marca do gato, sorridente como a mancha de sangue que, nas bandeiras de um navio qualquer, estampavam as capas dos jornais há algumas semanas atrás.

Os seis chegaram à tenda principal dos pierrôs, onde depositaram o caixote.

— Por que você precisa disso aqui mesmo? — perguntou Shari a Pieri, que imediatamente abria os cadeados da caixa com a chave que guardava dentro de sua camisa.

— É meu atelier, hya — ela explicou, dando de ombros ao finalmente abrir o baú acolchoado e com um imenso espelho dentro. — Como você gostou do meu, Poyo, eu resolvi fazer um para você. Ainda não está pronto, mas antes de sairmos, vai estar! Considere um presente da sua aliada, hya-hya-hya!

Por fim, Pieri retirou de dentro do caixote um imenso chapéu de pirata, similar ao seu próprio, mas com a exceção de parecer um pouco inacabado. O capitão dos cães sentiu uma imensa vontade de golfar. Nos olhos da capitãzinha, o fogo das reportagens crepitava, e então ela recebeu o chapéu com um sorriso tão largo quanto o gato da tatuagem. Lembrou-se num instante de quando estavam na ilha dos macacos e sua rival lhe contara sobre a aliança com um bando promissor: assassinos mercenários, que, durante as madrugadas, invadiam navios e marcavam os mortos com um gato de escárnio, e enfim fugiam, como ratos, para que a Marinha nunca os encontrasse.

Eram covardes — e do pior tipo, Hanzo pensou. Sem mais delongas, o entendimento de que a marca da menina não se tratava de sobrevivência, e sim de puro orgulho, veio a sua cabeça e, por mais que se relutasse a acreditar, ele percebeu: aquela criança era o próprio diabo. 


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