Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 26
Periódico do Komainu, Púlpito (Honra e Equilíbrio)


Notas iniciais do capítulo

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Um breve vislumbre de impotência atingiu o capitão quando pisou na praça central da cidade. Já se sentia pequeno diante da arquitetura de colmeia, apenas um pequeno operário em uma sociedade que crescia parasitando os humanos, mas quando chegou diante do palanque de apresentações, toda a fraqueza de outrora o abateu de uma vez só, se multiplicou e, mais uma vez, se tornou nada. Passado os prédios paralelos, agora de frente para a construção principal do império, notou que a rua em colina não era por acaso; na verdade, agora que estava de frente para o púlpito de discursos, na parte mais baixa da ilha, conseguiu compreender que toda a cidade havia sido projetada como um anfiteatro natural: uma forma de fazer que o que quer que fosse pregado ali ressoasse por toda cidade. 

O som dos homens-corvo em meio a explosões e gritos de Pieri podia ser ouvido à distância, entretanto nenhum deles se sobrepôs ao seu caminho — ignoravam sua presença e partiam em direção aos demais piratas; como em um acordo silencioso, sua passagem era consentida para que ele fosse direto ao líder do bando. Talvez essa fosse a parte mais assustadora daquele lugar: diferente dos primeiros que enfrentaram, na cidadela, havia uma consciência coletiva sobre-humana. Eles não eram operários; pensavam sozinhos e obedeciam porque queriam. Os tripulantes dos Mother Justice, todos caracterizados pela mesma máscara de metal fundido, passavam por ele e lhe abaixavam a cabeça, embora debaixo do disfarce fosse possível identificar um breve riso nasalado, sinal claro do sorriso de escárnio coletivo. Eles confiavam em seu líder cegamente, sabiam desde o princípio que Hanzo seria derrotado por ele, e só por isso o deixavam passar. 

Ao fundo, a fumaça que por tantos anos sujava os céus e contaminava a ilha, parou de se dispersar. A aliança havia desligado o sistema de aquecimento. 

— VAI CONTINUAR SE ESCONDENDO? — Hanzo colocou a mão sobre a bainha e gritou a plenos pulmões para a gigantesca construção, esperando que de qualquer uma das inúmeras janelas saísse em bonança o homem cujos últimos seis anos dedicou, pronto para com ele duelar de forma justa.  

Não aconteceu. 

Por um instante, o homem sentiu seu peito se soterrar na insuficiência — frente a tamanha grandeza, o que ele realmente era? Tinha capacidade, ou acreditou por muito tempo tê-la, mas não podia se definir como nada além de um indivíduo à deriva na própria amargura. Ao menos Lennard havia morrido sorrindo. Já não tinha esperança de que voltaria a vê-lo algum dia, não havia um céu, ou um inferno; porém, da mesma forma que faria se, por um vislumbre que fosse, o pudesse reencontrá-lo, ele tornou a gritar:

— QUEM SÃO VOCÊS? Esse genocídio covarde... QUAIS FORAM AS MOTIVAÇÕES? 

Hanzo poderia desabar por completo a qualquer momento; suas pernas estavam bambas e os olhos quase marejavam, mas não daria ao inimigo o direito de conhecer toda sua fraqueza, então só gritava, o mais alto que havia feito em toda sua vida, arrebentando a voz sem medo de levar uma flecha em seu olho. Havia posto a confiança de que ele apareceria ali para ouvi-lo, porque, de outro modo, mesmo que não acreditasse na honra daquele povo, estaria fazendo da mesma forma. Morreria ali de qualquer forma. 

— Escondidos nesta ilha imunda, exterminando uma população inocente e assumindo esta colmeia como sua… POR QUÊ? Precisa haver algum motivo

Sem dar-se conta, pouco a pouco as explosões findaram-se e, em meio ao campo de batalha, somente sua voz se fazia presente. Nenhum dos piratas deixou de lutar, muito pelo contrário, batalhavam intensamente como nunca o fizeram, entretanto optaram por calar-se o quanto possível, dando a Hanzo o direito de seu monólogo.

— Tantas vidas se perderam. Alguma delas tiveram significado? — sua voz falhou e toda a garganta de Hanzo ardia como o inferno — Desde o East Blue até o início da Grand Line, atuando como ceifadores, até simplesmente desaparecerem. Eu estudei todas as suas vítimas. TODAS. CADA NOTÍCIA, TODO MÍNIMO RELATO E NÃO CHEGO A UMA CONCLUSÃO! 

Respirou. Uma lacerante vontade de vomitar tomou seu estômago, estava entorpecido pelo próprio discurso como se ele exalasse veneno, todavia, como já não restava mais nada em seu estômago para fazê-lo, somente inalar o ar lhe bastou. 

— O QUE AQUELES PESCADORES LHE FIZERAM? — perguntou em súplica — O QUE LENNARD FEZ A VOCÊS? ELE OS ATACOU? ALGUM DELES OS CRITICOU? 

O chirriado de uma coruja se fez presente por um breve momento, alheia ao que acontecia naquela ilha. Espadas tilintavam, mas nenhuma cigarra cantava. Hanzo quis chorar. Dizer o nome de seu noivo em voz alta lhe trazia todo o amargo em sua garganta de volta, mas no momento em que um homem esguio caminhou de peito erguido até o baixo parapeito da janela, tudo secou, e nem mesmo teve forças para tocar aliança de latão que ainda estava em seu dedo para se tranquilizar. A vaidade do ser o alcançava lá embaixo. Ele abriu suas asas e desceu com elegância e bravura, pousando a sua frente sem tirar o capacete de metal de sua face. 

— Silêncio — a voz suntuosa ditou, assumindo sua posição no palanque. 

Hanzo estremeceu em seu lugar, puxando a espada e colocando-a em sua frente, preparando-se para um eventual ataque. Mas, em vez de recuar ou preparar-se para o combate, o pássaro revelou sua face, olhando-o sério com os olhos brancos — cegos, mas que naquele momento tinham não só total noção de onde seu inimigo estava, como também quem era e o que pensava. Ele o via por inteiro sem nem mesmo saber como era sua face. A boca embicada, proeminente para frente e deformada pela genética, sibilava segredos que nem mesmo o capitão sabia sobre si próprio. Estava velho, os cabelos ruivos ficando grisalhos e as marcas de idade denunciavam isso, mas era um homem íntegro; não-humano, pois havia matado muitos até o momento, mas que sem dúvida alguma mantinha no semblante sério características cativantes que quase justificavam a adoração de seu povo. 

— Caros compatriotas, ouçam-me com atenção! Aos demais humanos invasores, acompanhai-vos. 

O silêncio se fez novamente. Devotos do bando pararam de lutar para ouvi-lo falar, mesmo sabendo que isso ocasionaria em suas mortes pelos invasores.

— Ouço suas súplicas, primata. Tenho algumas respostas, todavia, peço que tenha paciência ao ouvi-las, afinal esse será meu último ato de misericórdia. 

Sua voz era sedutora — não continha qualquer sensualidade, entretanto era impossível não desejar ouvi-lo — falava com convicção, perfeitamente alinhado e com uma retórica sem igual; não dava pausas longas e sequer parecia precisar de tempo para medir suas palavras. Tudo que dizia saía com naturalidade, como se seu próprio monólogo já estivesse escrito e gravado a muito tempo em sua mente.

— Primordialmente, quem somos? — pontua, com um sorriso pontudo e ladino em sua face e gesticulando em excesso. — Uma pergunta um tanto existencialista, não acha? Somos piratas, como pode bem ver e, se me permitir repetir o óbvio, pássaros, para todas as causas — parou por um breve instante, fechando os olhos e franzindo suas sobrancelhas com pesar — Embora alguns de vocês prefiram nos nomear de aberrações

Nada foi dito em lugar algum, então o monólogo prosseguiu. 

— Agora, quem nós acreditamos ser? Muito simples, meus caros, nós somos aqueles que dominarão o mundo. — O homem socou a madeira do palanque, premeditando a excitação que o alto barulho ocasionaria em seus leais companheiros. Os que se mantinham vivos, fosse porque seus rivais estavam tão mesmerizados com a situação quanto eles, ou apenas porque não chegara sua vez de morrer, mantinham-se em posição de sentido, ouvindo-o com os olhos de quem vê um futuro brilhante pela frente; almejando por mais.

— Por tanto tempo, o acaso foi o único medidor para determinar os primatas como reis. Vós disséreis que os mares e a terra eram feitos em vosso nome, não obstante, não conseguem transitar de norte a sul sem seus fétidos e putrefatos barcos de madeira. Nós, por outro lado, não nos limitamos a reles troncos de árvore. Atravessamos os Blues e a Grand Line sem raízes sob nossos pés. Cruzamos os céus pois nascemos para governar.

 Os olhos opacos miraram o céu, mas na verdade era o infinito que ele olhava. O capitão pirata, por sua vez, não enxergava nada.  

— Diga-me tu, primata, por que os oceanos são separados, se vossa raça é a que foi feita para governar? 

Hanzo, impassível, respondeu-o de pronto: — A soberba; toda ganância e desprezo pelo semelhante. É isso que nos impede de crescer.

— Engraçado. O último dos vossos a quem perguntei isso de fato tentou defender-se. Mas nem isso tu consegues — ele dá um grasnado de escárnio — Meu rosto enrubesce ao pensar que tu, teoricamente o mais evoluído, tem menos capacidade de formular um argumento do que um macaco de pelo e rabo.

— É por isso que buscou pelos pescadores e os macacos? Só vence o discurso do menos letrado?

Em uníssono, o exército dos Mother Justice solta um alto piado, apontando as lanças e espadas ao céu. Ainda resignavam-se ao rei, contudo, aguardando ansiosamente por sua glória, não puderam deixar de reagir a tamanho afronte. Contudo, o líder deles só sorria disparatado, como se esperasse pelo momento da réplica. Finalmente o homem a sua frente estava tentando vencê-lo. 

— Por qual dos macacos você chorou? — perguntou, descabido. 

Hanzo então travou o maxilar. Suas pernas tremiam e segurava a base da espada com força; poderia avançar naquele momento, utilizar-se de todo o ódio para livrar o mundo daquele mal, entretanto, poderia ele ter alguma paz se o fizesse? Certamente encontraria algo para curar as feridas, mas isto não significava que estaria completo. Ansiava de maneira tão desesperada por respostas que não havia outra escolha senão engolir toda arrogância e, sutilmente, prosseguir encaminhando a conversa pelos caminhos que desejava. 

— Grand Line, já fazem seis anos. Seus soldados passaram durante o entardecer e atacaram os barcos da região, navios pesqueiros. Todos foram bombardeados — pontuou — Com uma exceção. O Sol Nascente. 

Respirou fundo brevemente. 

— O navio de Lennard permaneceu intacto, assim como seu corpo, amarrado à proa como uma rede ou enfeite. Somente seus olhos foram brutalmente feridos — precisou parar novamente — Isso lhe soa familiar?

A criatura sorriu outra vez, lembrando-se dos tempos dourados de conquista, antes de prender-se ao buraco daquela ilha. Gloriosos dias, quando ainda enxergava o pôr-do-sol e, no horizonte, via o que ainda poderia conquistar. Esse tempo não voltaria mais. Estava velho; cego — mas seus filhos, ao menos, poderiam ver o mundo em seu esplendor. 

— Veja os meus olhos, humano, e compreenda a imprevisibilidade do destino. Há seis anos tive o infortúnio de ser ferido por uma criatura torpe e, como punição por minha fraqueza, os deuses me tiraram o outro que restara — ele diz, as sobrancelhas apertadas numa expressão de falsa-pena. Para ele, Hanzo estava longe de ser um guerreiro; era só um coitado. Continua: 

— Naquela época, eu amaldiçoei o destino invés da minha própria fraqueza, mas ao perder tudo que me restava da visão, compreendi a mensagem divina e me rendi em minha própria insignificância; não estava pronto para dominar o mundo ainda e por isso estou aqui, evoluindo e preparando-me para o juízo final. Aumentei meu exército, criei o inimaginável. Eu seguirei sempre em frente, diferente de você, que veio até aqui para findar algo que há anos já estava acabado. Isto posto, humano, rogando para que minhas palavras não sejam de difícil compreensão, se teu conhecido não é da mesma linhagem que os animais que macularam minha visão, então não me lembro de nada. Tomei como exemplo tua raça e nunca me importei de lembrar.

O mundo parou de girar naquele instante. Que viessem uma horda de mil soldados para cima de si; naquele momento, não havia adrenalina, tampouco medo de morrer que se equiparasse ao sentimento de horror que sentiu enquanto ouvia dele que nenhum dos futuros que interromperam tivera o mínimo de importância para sua ordem. Dúzias de pessoas foram brutalmente assassinadas e humilhadas pós-morte; na frente de suas próprias casas, onde antes se sentiam seguras, agora jaziam para sempre em seus túmulos expostos à decomposição. Mas... isso não significava nada. Jamais seriam lembradas ou vingadas, não porque haviam perdido o desejo de lutar, e sim porque não havia sentido em apunhalá-lo agora, sem que soubesse o porquê. Durante anos a fio investigando um mesmo bando, Hanzo tinha certeza de que estava no caminho certo; havia lido mais nomes do que poderia se lembrar, almejando que algum dia pudesse erguer sua espada em nome de cada um deles, no entanto, quando chegou na hora, até ele havia se esquecido. 

Para aquele monstro, as vidas além do que seus olhos poderiam ver haviam deixado de importar. E isso também servia para ele mesmo. As vestes manchadas de sangue, tal como seu rosto e sua espada, tomado pelo cansaço pensou em quantos matou naquele dia sem pestanejar. Como poderia de alguma maneira sentir-se superior a aquela criatura? A memória de Lennard retornou a sua mente e, perdendo as forças, caiu sobre os próprios joelhos, desistindo de seguir em frente. Quantas vezes ouvira do noivo piadas sobre seu coração tolo?, se perguntou. E, afinal, só depois de morto que conseguia entender que as julgou como provocações sem saber que ele sempre esteve certo. 

A honra era um conceito antiquado, sabia disso — mas como era tudo que sabia até então, tinha medo de jogá-la fora. Um “coração fraco”, como ele dizia, não se referia a um defeito, e sim a uma parte de sua personalidade: sua forma de jogar-se de cabeça em tudo e, dessa forma, levar o que fosse para o pessoal. Talvez fosse isso que Lennard gostasse nele. Hanzo era um homem emotivo demais, mas que temia sentimentos acima de tudo. Certamente cômico visto de fora; mas, de verdade, seu noivo o achava encantador de qualquer forma, e era só isso que importava. No fim, não passava de um bebê chorão como qualquer outro, e por isso desejava tanto morrer honrado. Acreditou que viveu estoico até formar laços e então, na beira de sua morte, percebeu que sempre fora mundano. Era hora de ir embora. 

— TESTEMUNHEM, meus filhos! Os primatas que irão padecer sob nossas asas, mesmo aqueles que me desafiaram, são todos pífios perante a nossa magnitude! — a ave deu as costas ao capitão e deu alguns passos adiante da multidão, abrindo as asas e gritou imponente ao seu público, puxando de sua cintura uma longa e dourada espada — Nossa purificação está em cada filhote que nasceu aos nossos cuidados, estará em todo navio de nossa frota e, sobretudo, estará em cada ato de resistência. Longevidade às aves que seguem a mim! — e soltando um longo e extremamente estridente piado, voltou-se em direção ao humano, sorrindo ladino e com a espada empunhada, apontou-a em direção ao desafiante: — TESTEMUNHEM!

O show findou-se ali. 

Um grito irrompeu pelo anfiteatro e então todos souberam que o espetáculo havia finalmente chegado ao fim. O crânio decepado rolou consideráveis metros à frente, tamanha fora a força e precisão do corte desferido, abandonando por completo o corpo que jazia ao chão: o rei estava morto. E parado, mas um pouco ofegante, seu algoz bradava. 

— HYA-HYA-HYA! MORRA, CORUJA RUIVA DO INFERNO! 

Pieri, depois de destilar seu ódio, estufou o peito e deu um grito gutural de guerra. Alheia ao capitão-mendigo e até mesmo aos seus três piratas, que olhavam-na com os olhos arregalados (sem dúvida alguma, o discurso daquele homem era hipnotizante, pois sequer a notaram rastejando até ali), a garota ergueu para o ar a espada que surrupiara do chão justamente para degolar o líder e então caminhou lentamente ao palanque, pondo as mãos sobre a madeira. Sua intenção era anunciar o seu próprio show — o massacre das aves, ou algo desse feitio —  contudo, antes que o fizesse, notou que todo exército, antes ajoelhado em devoção, agora a encarava com expressões vazias, parados estáticos no mesmo lugar.

Não houve alvoroço e nem batalha. Organizadamente, os homens-pássaros marcharam em sua direção, ignorando a presença dos pierrôs. Observando o que acontecia na praça, a capitã titubeou gritar alguma outra coisa, mas a verdade é que nunca havia visto tamanha desolação. Nenhum deles a olhava diretamente: só tinham olhos para cabeça que rolou do pequeno palco, como se não estivesse no mesmo plano que eles. Grasnaram em uníssono, puxando as espadas de suas bainhas e voltando-as em direção ao próprio corpo, então cravaram-nas em seus estômagos; suas bocas sangravam, entretanto aguardavam os segundos com paciência, como em um último gesto de amor ao seu líder. Por fim, grasnaram uma última vez, movimentando os braços para a direita e sfinalizando ali.

— O que diabos… 

A voz da capitã foi morrendo aos poucos e, por um momento, seu vício de linguagem simplesmente sumiu. Estava estarrecida. A espada fora perdida ao chão e, com seus olhos completamente arregalados, buscou respostas nas feições de seus subordinados, mas nada encontrou. Todos encaravam-se mutuamente, sem nenhuma coragem para falar uma palavra que fosse. Poucos instantes depois, Sherikan, Fang, Yun e Franz retornaram da incubadora, deparando-se com as fileiras de corpos agachadas em si mesmas, com as espadas fincadas ao que sobrara dos estômagos dentro do corpo. Parecia um show de horrores. O silêncio perdurou igualmente, até que, com um semblante mórbido, o médico dos cães fechou seus olhos e seguiu a passos firmes até seu capitão, pronto para atendê-lo. 

Yun caminhou em direção a Hanzo sem pressa, percebendo cada detalhe daquela praça e sentindo-se enjoado desde os primeiros passos. Ele, mais do que qualquer outra pessoa, sabia exatamente o que aquele cenário significava e, exatamente por ser o único, não poderia ignorar o capitão — mais que um médico, ele esteve presente desde o princípio e portanto sabia muito bem o que aquela feição apática poderia significar: problemas, na maior parte das vezes (e, numa pequena fração ainda mais perigosa que essa, desfiladeiros).

Por anos o médico vivera como uma sombra, apenas observando suas escolhas e, ainda que não concordasse, manteve-se conivente com suas decisões; esteve tão neutro com a chegada de Lennard, quanto com sua partida, embora, de fato não tenha deixado de se martirizar ao ver aquele a quem devia sua vida se destruindo em álcool, pronto para morrer. Anos mais tarde, quando o capitão mudou da água para o vinho, com Fang em seu encalço e uma gigantesca história sobre reformar o Sol Nascente mesmo que este assunto nunca tivesse sido tocado até então, foi complacente, ajudando-o com todos os planos para voltar ao mar.

O detestava e não deixaria de detestá-lo nem mesmo por um dia, mas não o deixou para trás. E agora, como peso do que anuiu em silêncio, tudo veio à tona e via o homem que lhe salvara derrotado ao chão, olhando-o o nada e coberto pelo sangue que não o pertencia. 

Ele disse, sem dizer, que precisava de ajuda. E Yun o ouviu. 

— Acabou, Hanzo — afirmou ao capitão, sem esperar que ele olhasse de volta para si. 

— Kaze? — perguntou, ouvindo logo em seguida um resmungo do subordinado — Eu devo continuar? 

O médico torceu a face por um segundo, imaginando o que passara pela cabeça do homem nos últimos momentos e sentindo um peso gigantesco sobre as costas. Ele não estava consciente do que realmente acabara de acontecer, mesmo que estivesse presente durante todo esse tempo. Diabos, como ele, que acabara de chegar, poderia saber mais do que ele? Se mataram pelo líder. Todos eles. O jogo havia terminado — era uma vitória.

— Nós vencemos. Agora devemos seguir em frente. 

≈≈≈

O último suspiro dos pássaros pôde ser ouvido por toda ilha e Shari e Apollo, mesmo que distantes, perceberam que algo grande havia acabado de acontecer. Todavia, eles não se movimentaram. Ainda que desejassem buscar um por um de seus companheiros, sabiam que não era seguro largar os postos e, sobretudo, tinham plena confiança de que os pierrôs, ao menos, tinham capacidade de se virar. Por volta do fim da tarde, por fim, quando as cabeças do grupo começaram a retornar da floresta, o símio e o cozinheiro não puderam se sentir mais consternados com suas aparências. O sangue os cobria por completo, bem como bandagens do tratamento e, para os piores, o olhar vago para o horizonte denunciava que uma parte crucial de seu subconsciente havia sido desligada. Sherikan era um desses que não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Mas, pior do que todos, certamente era Hanzo, apoiado sobre as costas de Fang, completamente preso em sua própria catatonia. 

— Céus! Yô, o que aconteceu com você, meu bem? — perguntou Apollo, correndo em direção da amante e acalentando em um abraço firme. No momento que ela tocou seu peito, não conseguiu segurar os soluços. Era forte, sim, mas não o suficiente para aquela batalha. Estava exausta. 

— Bem-vindos de volta — ao fundo e ainda com uma solda em mãos, Shari observava os companheiros com os olhos baixos e soltou um suspiro de alívio ao notar que estavam todos ali. 

— Passe um café para todos, Shari — pediu Pieri, sem delongas ou os habituais gritos. — Precisamos conversar. 

Num frio assentir de cabeça, o macaco, após tirar todos os equipamentos, seguiu para dentro do castelo de proa do recém-consertado Sol Nascente. Chegando a cozinha, colocou o bule cheio sob o fogão e permitiu-se sentar pela primeira vez em tantas horas, cansado pelo trabalho, porém infinitamente mais exausto pela preocupação. Ao fundo, ouviu o som da água corrente e imaginou que estivessem utilizando da mangueira para limpar minimamente os vestígios das batalhas — não que fosse o bastante para fazê-los esquecer, nada era, mas em tempos como aquele, era melhor apegar-se a mais frívola esperança de que tudo iria melhorar com um pouco de água fria e uma boa noite de sono. Assim que a água da chaleira deu indícios de borbulhar, o macaco tomou-a com cuidado para escoar sobre o filtro e, por um mero instante, pensou que seria bom se todos pudessem deixar o vermelho do lado de fora, também. Para ele, bastava dessa violência triste. Isto é, quando se fazia com um sorriso no rosto, havia uma chance de cinquenta por cento de não voltarem com encostos em suas costas, enquanto as motivadas sempre vinham acompanhadas de uma inexorável dose de luto. 

Com a cafeteira sobre a bandeja, ele caminhou em direção ao convés e entregou uma a uma das xícaras, esperando que cada um dos piratas se servissem antes de pegar a própria. Beberam em silêncio, dispostos na mesa externa. A essas horas, Franz cuidava do ferimento no ouvido de Yolanda, que já havia se acalmado — principalmente por estar junto de Apolo agora — e sua capitã, ao notá-lo tirar do bolso do jaleco um frasco de álcool, prontamente tomou-o de sua mão para despejar sobre seu café preto e virá-lo de uma vez só. Deu uma lufada de ar pesada, sentindo seu nariz arder. 

Notando que Pieri iria demorar para se prontificar, o símio chama atenção do imediato dos cães e anuncia: — O navio está pronto. Depois dos reparos em alto mar, e os da carcaça, dei-me o luxo de inserir um motor e agora vocês poderão viajar sem medo pelos mares. Contudo, enquanto mecânico, eu não posso privá-los disso: esse barco está em suas últimas viagens. A proa está, aos poucos, se tornando insustentável. 

Sua explicação, tão simples, veio com um amargo na boca para todos os tripulantes do bando aliado e, o percebendo, o mecânico decidiu poupá-los de mais uma notícia ruim: a princípio, havia pensado em contar sobre as características das peças metálicas que utilizara e, sobretudo, sobre sua procedência (uma vez que as tomara da orla da praia, provavelmente eram oriundas do derretimento das peças de navios que aqui desembarcaram e nunca foram embora), mas essa não era a hora de contar sobre isso. Talvez nunca houvesse uma hora. 

Finalmente, no que diz respeito ao médico, ele ergueu os olhos com sopesar, mas anuiu às informações. Tomaria providências de avisar Hanzo quando ele estivesse se sentindo melhor.

— Irei direto ao ponto — o imediato zumbi iniciou, colocando-se ao lado da capitã para retirar o frasco de álcool de suas mãos e, por fim, colocar a mão sobre um de seus ombros, pedindo a deixa. Pieri não se pronunciou. — Vocês ainda precisam de nós?

— Acredito que podemos finalizar nossa missão por aqui — responde Fang, com seu rotineiro tom de voz ameno, porém não por isso menos exausto.  

— Vocês têm alguma missão além daqui? — arriscou perguntar Nicholas, que desde a ilha não havia se dado o trabalho de se direcionar aos cães; a princípio pensara que a missão deles parecia ideal para comportar a sua, mas, ao ver Hanzo em combate, passou a repensar seus ideais, especialmente quanto a sua própria forma de batalhar. 

— Não — respondeu Sherikan — Ao menos não como um bando, eu quero dizer. Individualmente todos temos o que resolver. 

— Não fale desse jeito — cortou Yun, amargo — Parece que está desfazendo o bando. É mau agouro.

— Nós somos muito gratos ao que fizeram por nós. Não esqueceremos esse auxílio e esperamos poder retribuir em algum momento — Fang pontua, lançando um sorriso genuíno em direção a Apollo e Yolanda: ainda que sentisse gratidão por todos os membros, era inevitável não priorizar aqueles com quem tinha mais afinidade. Depois de uma semana de convivência, só poderia pensar que sentiria falta deles. 

— Por favor! Não precisa nos retribuir nada-hya — Pieri findou o próprio silêncio e agora um tanto bêbada, voltava a falar de maneira estridente — De qualquer forma, passaríamos por aqui alguma hora. Faz parte da rota. 

Um mórbido momento de quietude se instalou na mesa, como se todos fizessem a mesma associação: muitos piratas estiveram por ali antes deles, tantos com o sonho de ascender pelo quinto mar… interrompidos sem dó, com exceção daqueles que tiveram a sorte de não desembarcar. Pieri, então, notando que estava fora do tom da conversa e abordando assuntos que não queria realmente adentrar, tentou mudar de assunto:

— Sobre seus objetivos pessoais… — inicia, antes de ser interrompida: 

— Não iremos atrás do One Piece, se é isso que quer saber — respondeu Hanzo, até então quieto, com uma secura incabível em sua voz. — Se você quer ir até o fim da Grand Line, não estaremos em seu caminho, mas recomendo que tomem outra rota para que não nos encontremos mais. 

A capitã sentiu seu lábio murchar de súpeto. De todas as respostas que poderia ouvir, essa era a menos provável, não só porque era muito desrespeitosa, e sim porque soava muito mais como uma triste fantasia. O capitão delirava no próprio ódio, remoendo o que não quisera ver sobre o palanque de discursos. Por um instante, desejou dar-lhe um tapa,  tirando todo o restante de sua dignidade e, se isso não fosse o bastante, cuspiria em seu rosto, a fim de libertá-lo daquela carapuça asquerosa de desdém, mas a mão de Kristian apertando seu ombro impediu-a de fazê-lo; não havia alguém certo naquele cenário. Mesmo Hanzo, que agora rastejava na própria amargura, sabia em seu âmago que não poderia culpar Pieri pela sua própria derrota. Se não fosse por ela, teria morrido lá — o líder do bando rival teria lhe arrancado o olho que sobrava e, sem sombra de dúvidas, não teria atingido o paraíso. Estava sozinho mais uma vez, e a névoa dos maus pensamentos estavam voltando para assombrá-lo... 

— Capitão — Fang, cumprindo o papel de voz da razão (o Kristian daquela tripulação, já que Yun se recusava a fazê-lo e Sherikan era imaturo demais para isso), o chama para elucidá-lo: — A Grand Line é um caminho só de ida para nossos Log Poses. Sem um Eternal Pose, não somos capazes de voltar atrás. 

Hanzo não o respondeu. Sabia que ele estava certo. 

— Desta forma, — ele continua — não será possível trocar de caminho, embora seja possível nos desencontrar até Sabaody. Isto é, se ficarmos aqui por mais tempo. 

O embrulho no estômago dos cães era quase sonoro. A vontade de se manterem naquela ilha era completamente nula, e mesmo que fosse apenas por alguns dias, apenas o suficiente para que Pieri e seu bando estivessem sempre uma ilha à frente deles, o mero pensamento de conviverem com centenas, quiçá milhares de corpos, trazia enjoo. 

— Está certo — disse Hanzo — Vamos ficar. 

— Como assim? — perguntou Yun, incrédulo. Não era preciso ser um gênio para descobrir que, com o calor, em breve aquilo começaria a proliferar parasitas, bactérias e outras doenças, e portanto era perigoso demais se manter ali, além de completamente insano. Todavia, seu capitão não parecia se importar. 

— Nós iríamos terminar de limpar isso, de qualquer forma — o homem baixo cruzou os braços. Sherikan engoliu seco ao ouvi-lo dessa forma — Esse bando tem causado problemas por tempo demais para apenas sumir. Vou entregá-los para marinha e não é nem bom que vocês, piratas de recompensa, estejam por aqui — olhou Pieri, que retribuiu com um sorriso jocoso. 

— Que bobagem. Eu não tenho recompensa-hya — ela diz — Eu não sou imprudente de viajar com um bando de cabeças à venda. Mas não vou insistir em ficar, tampouco recusar uma passagem para longe da Marinha. Levantamos âncora no primeiro raiar do dia, marujos! Hya! 

Assim que ordenou aos subordinados, Pieri se levantou da cadeira, ainda meio troncha pelo álcool e cansaço, mas partiu irredutível em direção ao submarino. Ela merecia um bom descanso depois de revolucionar a história. 

≈≈≈

Segundo dia à deriva, em algum momento entre as terríveis refeições de Apollo. 

Eu não pensei que o diria, pois não é segredo minha antipatia pelo Capitão, mas não poderia desejar mais a volta de nossa aliança com os piratas-sem-teto. Quero dizer, francamente, desde que voltamos a viajar submersos, Nicholas não para de gorgolejar em seus pesadelos e ressonar ao seu lado se tornou insuportável. A Capitã Pieri também tratou de voltar aos seus costumeiros retiros sabáticos na sala de máquinas, onde eu gostava de tirar minhas esporádicas sonecas e, como se não bastasse, agora ela grita à noite toda e, por vezes, leva meu braço embora (por sorte o tenho hoje para escrever esse diário). Shari nunca dormiu, então posso contar com sua companhia quando preciso de alguém para velar meu corpo morto — falta-me o enterro, como bem disse Franz — e, por falar nele, ele, Yolanda e Apollo estão bem. Inacreditavelmente bens, aliás. Elaboro: 

Antes que partíssemos, soube de antemão, embora não tenha contado para ninguém pois decerto sei que isso entregaria minha posição de ouvinte quando todos pensam que eu  durmo, que o navegador Komainu recebeu de presente um artefato curioso do cozinheiro: um caracol comunicador, cujo propósito certamente seria manter contato com seus mais novos amigos palhaços. Nesse ínterim, Franz, que também não estava satisfeito com a ideia de despedir-se da primeira pessoa com quem pudera compartilhar seu dom da cura, deu um jeito de se infiltrar no esquema de estranhas ligações de “preparo de chá” para manter contato com Yun, e agora ele e seu amigo de outros mares podem manter contato. 

Não é curioso, isto? Se eu tivesse acesso a aparelhos assim, não me preocuparia em escrever tantas cartas. Veja bem, escrever é tão cansa—”

Um pequeno borrão de tinta interrompe a carta, que continua depois de algum espaço em branco. 

Sinto muito, eu dormi. 

Em retrocesso aos dias que se passaram, hoje, no quarto dia à deriva, posso dizer com certeza que foram poucas as novidades. Lembro-me com carinho da comida de Yun e Hanzo — embora o paladar de um morto realmente não faça muita diferença. Mas, deixando-a de lado, tenho que assumir que sinto-me aliviado por estarmos distantes de nossos “aliados” e, sobretudo, posso dormir com tranquilidade ao imaginar que nossos caminhos não irão mais se cruzar por um bom tempo. 

Hanzo não está mais do mesmo lado que nós. Depois que Pieri assassinou o líder dos Mother Justice, ele não sorriu ou sequer trocou palavras de agradecimento, fosse pelo navio, ou por ter salvo sua vida. Nós não esperávamos gratidão para começo de conversa; mas também não esperávamos inimizade. Antes de irmos, por mais que tenha sido pouco tempo, senti-me compelido em proteger a capitã de seus olhares de pura cólera, como se estivesse tramando assassiná-la a qualquer momento. 

Me pergunto se era dessa forma que o médico deles o olhava até então. E ainda que haja uma interrogação, não sei dizer se realmente gostaria de saber a resposta. Eles que sigam com suas vidas, não é mais de nossa conta. Desde que eles não cruzem mais nosso caminho, isto é.

Seria, de certa forma, bastante agradável que essa conversa fosse evitada, uma vez que não posso sequer mensurar qual seria a reação do capitão ao ouvir sobre as reais motivações de Pieri. Conhecendo-a, se perguntada, ela responderia em despeito seu desejo tolo de 'exterminar todos os ruivos do mundo', ainda que em seu íntimo saiba que seus atos foram parcialmente movidas pela pena. Se ele soubesse disso, aliás, com certeza seu desejo de assassiná-la teria deixado o campo da fantasia, e agradeço aos céus por ela ter tido o senso de se manter quieta. 

Os dias no Diabo-Negro nunca foram tão confortáveis e mesmo a alimentação tenebrosa parece mais saborosa quando a aproveita sentindo a resolução. Disse, há alguns dias, que sentia falta do barco velho em nosso encalço, mas prefiro mil vezes ter nossa tripulação inteira do que eles nos seguindo com suas assombrações. Estamos livres por algum tempo, e, fazendo bom uso dessa liberdade, vamos além mar atrás de Pieri e seus objetivos torpes. Se seu objetivo é eliminar um dos Quatro Imperadores, que se foda o real porquê, continuarei seguindo-a até o inferno porque, de outra forma, eu não estaria sequer nesse mar. Em prol de minha motivação — esta que ainda não encontrei —, sigo pelos mares e, como seu braço direito, Capitã, faremos história. 

Ainda que preguiçoso, não sinto qualquer vontade de cochilar.

Ao menos, não hoje. Despeço-me.

— Kristian”


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