Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 25
Periódico do Komainu, Muralha Contumax (Honra e Equilíbrio)


Notas iniciais do capítulo

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Antes que o primeiro apito das aves ressoasse por todos os cantos da ilha, ao contrário de seus subordinados, que seguiam por entre as árvores de maneira sigilosa, os líderes marchavam de peito aberto pelo caminho principal da ilha: uma trilha única e extensa, sem qualquer desvio para a floresta. Decerto Pieri, em primeira instância, pareceu inquieta sobre essa escolha; oras, não era uma pirata de invasões suicidas e, a depender dela, os princípios de honra sempre eram os primeiros a serem descartados em alto mar, ainda mais na Grand Line. Contudo, exatamente por não compreender esse sentimento de devoção que ela decidiu por aliar-se (temporariamente) com piratas que preferiam morrer honrados a simplesmente viver sem dar a mínima. Em comparação aos Gatos, aquele bando era límpido como um riacho, e ela precisava desse pilar oposto para balancear suas escolhas: entre se importar demais e se importar de menos, ela preferia estar exatamente no centro, guiando seus próprios piratas às águas neutras de uma vida confortável. (Fora que também era uma baita chance de entrar explodindo tudo, o que seria incrível, mas esse assunto preferiu deixar de lado).

No fim das contas, seguiam os três, Hanzo, Pieri e Kristian, seu imediato, carregando sobre seus ombros uma atmosfera pesada que pairava como a premonição de uma tragédia, assombrando suas almas à medida que viam uma civilização dar as caras pelo mato alto do recuo. O capitão dos cães, em particular, ao olhar para tamanha devastação, parecia absorto em seus próprios pensamentos, caminhando lento atrás dos dois pierrôs enquanto sentia o cheiro inebriante da fumaça vinda do centro da ilha — mesmo ali, há quilômetros de distância da incubadora, era possível observar o sistema de aquecimento destilando dióxido de carbono na atmosfera, sujando o horizonte tanto quanto sujava as vidas de quem, algum dia, teve a infeliz sorte de cruzar seu caminho. O tempo não fora o suficiente para dar cabo daquela entidade.

Muito pelo contrário, aquele bando era como um parasita que, sem dúvida alguma, só havia se fortalecido enquanto ninguém o olhava. Era responsável por um céu acinzentado, como a fumaça; as plantas silenciosamente gritavam por suas vidas, as folhagens amarelaram-se e os fungos consumiam os troncos que apodreciam sem chance alguma de lutar. A quanto tempo não viam a luz do sol em sua plenitude? Intoxicados dia após dia com os fragmentos de fuligem e com os nutrientes sugados, não sobreviveriam por muito mais tempo; mas nem por isso deixavam de lutar. Não importava. Ainda que ficassem com o bando naquele dia; ainda que ele ficasse com o bando naquele dia, faria o possível para que todo aquele ecossistema morresse cedo ou tarde — pois toda folha contaminada havia de ser podada antes que manchasse o resto e...

Hanzo se interrompeu, sentindo o gosto amargo da desforra rastejando por sua garganta. Desejou internamente parar o que quer que estava prestes a fazer, entretanto, não parou de caminhar. Tinha consciência de que não havia mérito em buscar vingança — o fazia baixo igual a eles e, acima disso, o colocava na mesma posição de alguém que se considera melhor que Deus —, contudo, ainda que ciente dos riscos e preparado para as consequências de seus atos, o capitão sabia que era tarde demais para voltar atrás. Diria a si mesmo que, se estivesse sozinho, talvez pensasse duas vezes antes de se tornar sujo de sangue, mas a verdade é que nem assim seria capaz de deixar seu instinto humano para trás. Queria matá-los um por um.

— Cuidado aí, cara! — a voz um tanto hostil do imediato tirou-o dos próprios pensamentos. Ele havia o parado antes que se chocassem.

— Desculpe-me! — respondeu-o rapidamente, logo notando que os dois pierrôs estavam parados no meio do caminho por algum motivo maior. Hanzo quis perguntar o porquê de terem interrompido a caminhada, mas um súbito soco no estômago lhe tirou qualquer palavra subsequente: afinal, estava certo em pensar que Pieri não pararia seu caminho por um motivo qualquer e, dessa vez, a causa não era nada mais, nada menos que uma terrível encruzilhada.

Olhou para as opções, tão atônito quanto os dois. De um lado, a estrada seguia sinuosa por um caminho cada vez mais arborizado e fácil de se perder e, do outro, além de expô-los ao inimigo, logo de cara já mostrava a que vinha, uma vez que, na boca, um velho casebre abandonado jazia com suas janelas seladas por tábuas carcomidas e uma porta arrebentada, e, acredite se quiser, o verdadeiro terror nem de longe vinha do abandono, porque haviam quatro esqueletos humanos (uma família completa, pai, mãe e dois filhos) empalados em estacas de madeira na fachada. As cavidades oculares foram destroçadas até os ossos com uma violência desmedida e as injúrias só indicavam uma coisa: aquela gente estava no caminho quando os Mother Justice vieram instalar sua festa.

— Devemos pegar o caminho alternativo, sem condições de irmos pela casa dos horrores — Pieri ditou, seríssima, apontando as caveiras como se não passassem de adereços de decoração, mas ainda assim batendo um dos pés na terra ritmadamente por conta da ansiedade.

— Mas e se nos perdermos na mata? — questionou o Cão. Sentia-se aturdido com a visão, é verdade, porém sua reação fora infinitamente dispar a de Pieri; se antes já não temia pela própria vida, agora não poderia importar-se menos consigo mesmo. Tantas vidas foram perdidas nas mãos daqueles infames, como poderia fugir, ainda mais tão perto? Desejava encará-los frente a frente — Este é o único caminho que nos levará diretamente a eles — e aponta além da casa.

— Hya! Você acha que eu não sei me guiar? — a pierrô ralhou. — Acreditei que fosse mais esperto que isso! Se formos pelo caminho aberto, vamos dar de cara no ninho! Fora que devem ter mais dessas casas para frente...

— E, se não no ninho, onde diabos pensa que estão? — Hanzo a interrompeu, cruzando os braços e franzindo o cenho. — Não vamos recuar. Se há algum caminho que é certo, é o da casa.

— Certo para a morte, você quer dizer — Kristian rebate. — Não que faça diferença para mim, mas de fato acho uma estupidez se expor dessa forma. Você viu os corpos.

Pieri olhou Kristian com surpresa ao vê-lo se impor, uma vez que não era de seu feitio sobrepor-se a um capitão (mesmo que fosse rival), e apesar de manter-se sisudo, ele nem de longe parecia impassível: na verdade, estava tão preocupado quanto ela em tomar o caminho da Morte. Por sua vez, ao olhar o capitão-mendigo, a garota somente conseguiu sentir repúdio. Isto é, como homem feito daquele poderia não perceber a imbecilidade que estavam próximos a cometer? Estavam em óbvia desvantagem em relação ao inimigo, tanto em números de soldados, quanto em território; não tinham a menor ideia de qual seria a zona de batalha e tampouco qual equipamento bélico teriam de enfrentar, entretanto, da mesma forma que faria uma criança birrenta, Hanzo continuava de sobrancelhas juntas e braços cruzados, encarando-a como se o que dizia fosse completamente razoável e, pior do que isso, agora tinha em seus olhos um brilho melancólico, prova de que estava levando aquela situação para o pessoal. Parecia um bebezão, se negando a assumir os erros — e isso era mais do que intolerável para um capitão. A garota estalou a língua em sua boca, contrariada.

— Só venha logo, não temos tempo para essas discussões! — ordena, tomando a direção em passos duros, para o lado oposto do casebre.

Verdade seja dita, poucas coisas no mundo irritavam Pieri mais do que a imprudência de gente orgulhosa, e a decisão de ajudar Hanzo com sua vingança cada vez mais estava se afogando no cesto dos maiores arrependimentos de sua vida (onde guardava o ressentimento de não ter metido uma facada em sua mãe, etc). Somente aceitara aquela missão porque desejava uma boa briga — não algo efêmero como a perseguição dos macacos —, mas a situação havia feito uma virada tão brusca que nem mesmo ela poderia ignorar os claros sinais de perigo. Isto posto, optar pelo matagal fora sem dúvidas seu maior ato de sanidade em muitas semanas, e dessa forma seguiu sem nem olhar para trás para ver quem a acompanhava, porque, afinal, se não a contrariavam nem quando estava completamente insana, por que o fariam quando apresentava algum mínimo sinal de lucidez?

Com os passos pesados e de vez em quando até soltando altas bufadas para o ar (como um búfalo), a garota coçava o revólver preso ao coldre, ameaçando carregá-lo e atirar para os ares apenas para descontar sua ansiedade, mas não o fez, porque não iria desperdiçar seu caminho seguro com uma bobagem dessas (era louca, mas não tanto). Em certo ponto da viagem, o relógio começou a rodar tão rápido que quase nem saia do lugar, enquanto ela parecia devagar ao ponto de parar. O silêncio fragoroso da falta de civilização lhe causou uma vontade imensa de cantar, e então, de súpeto, antes que destruísse sua ideia de andar pela surdina, sentiu seu antebraço ser segurado por trás:

— Pieri, você também não está raciocinando — o imediato disse sem pensar, não porque não considerou as consequências de sua fala, mas sim porque não teve tempo antes de sentir o cano gélido da arma encostar em sua testa. Em um dia comum, ela atiraria sem pensar duas vezes, pensou, mas como a situação não era propícia, continuaria vivo por ora. Dia de sorte.

— Não me desrespeite, Kristopher-hya! — rebate amarga, sem abaixar a arma.

— Acredito que o verdadeiro desrespeito seja apontar uma arma na minha cabeça — respondeu com um sorriso ladino, encarando-a com os olhos semicerrados — Estou morto, mas meus sentimentos estão machucados.

Pieri não o respondeu. Destarte, tomando o silêncio como uma deixa, Kristian retornou a falar: — Até porque, não sei se você sabe, mas Franz acha que essa é a única parte que realmente pode me matar — pontua, observando o corpo da garota se contrair e a boca subitamente pesar, formando um bico involuntário para baixo.

Ao menos, ela abaixou a arma, pensou.

Talvez porque o imediato caçoava tanto sobre a própria morte, a capitã em algum momento considerou aquele assunto como algo leviano, mas assim como tantos outros mistérios dos cinco mares, justamente porque não poderia entender sua existência como um todo, era seguro assumir que Kristian era mortal como qualquer outro membro de sua tripulação, e somente um tiro em falso poderia fazê-lo desaparecer como se fosse uma bolha de sabão. Quem sabe, afinal? Se mesmo um usuário do fruto tem suas fraquezas, por que seria ele a burlar o ciclo inevitável da morte? Vivia agora, mas até quando? Por um breve momento, sentiu-se culpada por tentar contra sua tão frágil "pós-vida"; ele não temia a própria morte — convivia com os dilemas existencialistas de ser um morto-vivo a mais tempo do que poderia se lembrar —, entretanto, ela, por outro lado, por mais que teimasse em não admitir e volte e meia ameaçasse seus aliados, preferia morrer sozinha do que ver qualquer um deles perecendo por sua culpa. Sobretudo, ela não queria ser a culpada pela morte da primeira pessoa que lhe estendera a mão depois de todos os "nãos" e risadas de escárnio que ouvira por suas costas. (Volte ao circo, pirralha-mendiga. Seu cheiro de morte e marcas na cara estão espantando os clientes!)

— Bobagem — ditou, cínica. Talvez estivesse respondendo os próprios demônios quando o disse, mas para todos os efeitos, estava se direcionando a Kristian — Eu jamais desperdiçaria uma bala quando um bom soco bastaria para te disciplinar, hya — mentiu, levantando o pescoço para encarar o imediato diretamente nos olhos e, por fim, ao ver que ele continuava sem reação, ergueu a arma novamente e, como para se provar inocente, dessa vez mirou para o lado e falou: — O tiro era para o Mendigo, não para você!

Bom, decerto seu argumento seria o bastante para convencer Kristian — ele não precisava de muito para concordar com ela —, mas isso só seria verdade se ela tivesse acertado o alvo. Invés disso, para sua completa indignação e também para foder seu plano (sim, havia um, embora só ela soubesse), quando mirou sua arma para onde Hanzo deveria estar, não havia ninguém ali. Aliás, muito pior que isso: Pieri olhou para os lados, procurando qualquer sinal de que o homem havia a acompanhado pelos últimos minutos, mas não havia absolutamente nada. Ele não havia sido raptado porque não estava os seguindo para começo de conversa.

Cada músculo da capitã tencionou e um vinco se formou na testa. Não podia acreditar no que estava acontecendo; não conseguia sequer cogitar que o desgraçado havia simplesmente desaparecido. Sua boca torceu em desgosto puro enquanto devolvia a arma ao coldre.

— Kristian, me diga que eu sou maluca. Fale que estou alucinando e que tem um maldito sem teto atrás de nós — pediu séria, fechando os olhos e sequer deixando o vício de linguagem aparecer em sua frase, de tão indignada que estava.

No que lhe diz respeito, o imediato apenas soltou um grande suspiro de consternação; não tinha necessidade fisiológica alguma, mas naquele momento sentia-se mais exausto do que nunca e, se ainda estivesse vivo, Pieri o faria perder todos os cabelos devido ao estresse que ela o obrigava a passar. Eram nesses momentos — isto é, quando notava a completa insanidade da garota, grunhindo para o alto sem emitir sons reais — que apenas agradecia por estar parcialmente morto, afinal, sua condição era o que lhe permitia acompanhá-la em suas mais malucas empreitadas sem temer nem mesmo por um segundo.

A face congelada da capitã era um péssimo sinal; e as mãos que tremiam ao lado do corpo junto das pálpebras pulsando desenfreadamente nem se falam. Era por esses motivos que precisava estar perto dela; mesmo que fosse fundamentalmente contra sua "saúde" (poderia usar essa palavra para descrever a si próprio?). A aliança com Hanzo não lhe dizia nada, mas, afinal, quem poderia mensurar o estrago que ela poderia causar naquela ilha se descobrisse a fuga estando sozinha? Se o mendigo era imprudente por tomar o caminho que queria, Pieri era, de fato, insana. Não sobraria nada em seu caminho até que o encontrasse.

— Capitã, foda-se — respondeu o imediato cansado — Se ele deseja tanto morrer, o problema é del–

Porém, antes que Kristian iniciasse sua argumentação sobre o porquê deveriam largá-lo aos porcos e que isso não seria considerado traição porque Hanzo era sim um cuzão, o alto apito, aquele mesmo que atormentou as demais unidades que se infiltravam pela floresta naquele momento, irrompeu do alto, o fazendo se calar. Não estavam tão perto quanto Yolanda, Fang e Nicholas, contudo, também não estavam tão distantes quanto Yun, Franz e Sherikan, então, por consequência, embora o imediato mal tenha se movido além da habitual mexida de cabeça quando se nota um zumbido aos seus arredores e se busca a origem, Pieri, que de fato tinha alguma sensibilidade auditiva além de suas habilidades sobre-humanas, no momento que sentiu seus tímpanos serem perfurados pelo agudo estampido, perdeu a força de suas pernas e por pouco não caiu desamparada ao chão. Apressada, instintivamente guiou suas mãos para cobrir suas orelhas, e uma vez que seu subalterno não tinha a necessidade de se proteger — até porque nem estava o ouvindo tão alto assim —, ao notar a cara de puro desespero da garota, fez a primeira coisa que lhe veio a cabeça para ajudá-la no momento: praticamente estapeou suas mãos contra as dela, abafando o som com mais uma camada de pele. Pieri nem o xingou, e tampouco agradeceu; estava aliviada pelo breve sossego, mas não o suficiente até que o som fosse embora por completo.

Os dois continuaram ali, parados, se encarando enquanto aguardavam que o som retornasse, ou na pior das hipóteses, que o som os encontrasse, mas invés do apito, desta vez, uma onda sonora bem pior veio em resposta: um alto e contínuo grunhido animalesco, que se espalhou pelos arredores numa velocidade inacreditável até ser substituído pelo bater de asas conjunto de uma revoada de pássaros. Não viram nada de onde estavam — apenas cruzaram os dedos para que isso não tivesse a ver com o sumiço do Capitão-mendigo, pois, se tivesse, ele estaria voltando para eles acompanhado agora. Ademais, logo em seguida do barulho correr pelas árvores, estourando a madeira como uma bala de rifle, o silêncio mais uma vez se fez, e enfim eles puderam relaxar, pois sabiam que haviam ido embora.

— Será que conseguiram acertar algum? — perguntou Kristian, ressabiado; apesar de não fazer muito sentido em sua concepção, não podia negar que era parte dos pierrôs, então parecia-lhe plausível que um de seus companheiros sacasse a arma e atirasse à esmo para o ar.

— Se você realmente pensou que eram tiros, por que você não me derrubou no chão para não tomar nenhuma bala perdida? — Pieri rebate, sendo prontamente respondida com uma careta deslavada de "Eu não pensei sobre isso", seguida do bico murcho de um "Sinto muito". Ela deixou um suspiro pesado escapar. — Parece um pouco estranho, hya, mas eu acho que–

 O QUÊ? — uma voz alta repercutiu há alguns bons metros de distância. Apesar do tom doce habitual ter passado longe do estrondoso berro, não foi difícil reconhecer de quem se tratava.

— Isso foi a Yolanda? — perguntou Pieri ao imediato. Ele parecia tão consternado quanto ela agora, buscando pelos arredores.

— Foi — constata; foi sua vez de tirar sua faca da bainha — Você está bem para ficar sozinha por um instante? Vou atrás deles...

— Não — ela o interrompe seriamente. O imediato para de falar na hora, pois independente da autonomia que ela oferecia aos subordinados para tomarem suas próprias decisões em sua ausência, quando Pieri puxava as rédeas, era mais do que sua obrigação obedecer. — Estamos falando de um grupo de três pessoas capazes: a Yolanda sabe muito bem se virar — explicou com serenidade, semicerrando os olhos para pensar e, por fim, olhando-o de volta quando iria finalizar: — É melhor seguirmos em frente e encontrar o Mendigo-hya; capaz o quanto for, eu não acho que ele estivesse preparado para esse barulho. Lhe prometemos suporte.

Nesse instante, Kristian pensou em dizer a ela algo sobre o fato de não estar preocupado com Yolanda, e sim com Nicholas, certo de que ele provavelmente se desesperaria ao ouvir um guinchado tão animalesco e tentaria fazer alguma coisa louca (como quando tentara lhe fatiar com a espada na primeira vez que notou sua "condição"), no entanto, além de ter recebido uma ordem direta da capitã, não poderia negar que Pieri tinha um ponto, afinal, por mais que tivesse suas desavenças com o capitão-mendigo, não desejava vê-lo morrer — talvez porque não havia convivido com ele o bastante para tal. Dessa forma, e guardando a faca mais uma vez, ele somente anuiu com sua cabeça o desejo de sua capitã, lhe oferecendo o ombro caso precisasse de ajuda para caminhar, mas ela recusou, partindo na sua frente em busca de onde quer que fosse o centro daquela ilha.

≈≈≈

Estático, Hanzo observou a capitã e seu imediato sumirem em meio a mata fechada sem olhar para trás e, mesmo que no fundo soubesse que devia segui-los, não permitiu-se ir adiante. Condescendia das motivações da garota e por isso até desejou segui-la em direção a mata — afinal, em meio a tanta destruição e marcas de guerra, era seu dever agir como um bom comandante ao menos dessa vez e optar pelo bom-senso —, mas simplesmente não conseguiu sair do lugar. Naquele ponto, o homem já não era mais dirigente de suas ações. 

Há quanto tempo fugia do próprio destino?, se perguntou, certo de que a resposta daquele anseio era o suficiente para fazê-lo voltar a andar. E era.

Alguns minutos e a certeza que os aliados não retornariam foram o suficiente para que retornasse e agora, um pouco mais lento que anteriormente, se permitiu observar com cuidado o cenário que o circundava: pouco a pouco as árvores tornaram-se mais escassas e abriram espaço a uma quantidade considerável de pequenas moradias, além de outras instalações claramente destruídas pelo tempo; aproveitando-se da umidade e da falta de sol, os musgos e cogumelos brotavam por todos os cantos e preenchiam o que um dia foram tábuas e placas de madeira maciça e, se prestasse bem atenção, o capitão poderia ouvir o coaxar dos sapos que agora eram os únicos a fazer bom uso daquelas moradas. 

Por um segundo, sentiu um aperto tão forte no peito que desejou morrer ali mesmo, como poderia momentaneamente sentir alguma paz sabendo que aquele lugar não passava de um túmulo? Mal poderia mensurar quantas vidas humanas foram perdidas naquele local e agora descansavam na imensidão; esquecidos e nunca vingados. A única coisa que o confortava era saber que não continuariam assim por muito tempo — mas até que ponto estavam buscando salvação? Não importava para onde olhasse, fossem nas paredes destruídas ou pichadas no chão como um mantra, os dizeres de uma esperança efêmera era o que defrontava. "Em busca do vindouro amanhã", era o que dizia; uma convicção fútil, mas que de fato significava que enquanto respirassem, não estavam perdidos. Haviam optado por lutar.

— Em busca do vindouro amanhã — Hanzo repetiu para si mesmo, sentindo a boca amargar a cada sílaba e os joelhos vacilarem.

Ajoelhou-se. Não porque se sentiu inferiorizado, apesar de ter um pouco disso também, mas puramente por respeito, prestando um minuto de luto àqueles que, diferente dele, viram adiante até o último segundo de suas vidas. Ele próprio não estava pronto para seguir em frente (se estivesse, não estaria ali para começo de conversa), mas, diante do resto de um povo que não pudera se defender, pensou que sua verdadeira motivação fosse um tanto ínfima; tantos haviam perdido como ele e ainda sim estava sozinho ali, tão apegado às memórias de seu passado que apenas poderia mover suas pernas em direção ao futuro.

Ele, que sobreviveu, nos últimos seis anos não conseguira ver além do que já havia vivido nem por um segundo; era fato que sofrera e mesmo em frente àquilo que tanto desejou encontrar sabia que permaneceria em sofrimento, afinal, enquanto aquele que amou permanecesse no reino dos mortos, ele também continuaria desafortunado ao viver. 

Hanzo nunca acreditou em relações românticas e durante a maior parte de sua vida fora ensinado que renegar todo e qualquer sentimentalismo era parte de seu dever como espadachim; deveria respirar apenas por sua lâmina, erguê-la para proteger a leviandade humana sobre sua própria natureza e, acima disso, que não deveria olhar para trás e hesitar. Jamais questionou. O fez, em silêncio, seguindo as leis que lhe foram apresentadas até que, em algum momento, foi avassaladoramente fisgado pelos sentimentos mundanos e simplesmente esqueceu-se de todas as juras que havia feito até então. As missões ficaram para trás e de pouco importava para si os meses que passou estagnado na primeira ilha da Grand Line; sequer fez algum esforço para encontrar uma tripulação disposta a carregá-lo junto de Kaze até o próximo destino. Havia conhecido seu primeiro amor e a vida então recebeu uma infindável paleta de novas cores. Lennard era alguém brilhante em todos os aspectos, tão cheio de vida e sempre disposto a encarar os problemas de frente; mesmo com a vida dura e o trabalho cansativo, bebia uma cerveja ao fim do dia com a postura de um rei. Desejava tão pouco do mundo e, talvez graças a isso, raramente se entristecia ou se decepcionava. Sua única virtude era ver nos outros o que faltava em si próprio, mas não os invejava, de forma alguma: se dava por satisfeito ao ver o mais distante sorriso, e sorria junto, porque, para ele, não haveria melhor forma de brindar a felicidade senão junto de bons amigos e altas gargalhadas. 

Um dia talvez fosse capaz de reencontrá-lo — porém, depois de tantas vezes dizendo a Kaze que os mortos não voltariam; dizendo a ele que chorar diante dos túmulos não o levaria a lugar algum, sentia-se culpado até de sonhar com quem amou. Culpado porque, na época em que o impediu de se lamentar, ele não sabia o que era perder: foi só quando Lennard se foi que entendeu o luto. 

Seu riso voltou por dias e mais dias, o barco destroçado nunca foi consertado, e depois de meses, de anos, ele ainda estava longe de se apagar. Manteve-se em pé porque sabia que não poderia voltar atrás ao que ensinara ao seu pupilo, era um escudo para seus próprios anseios e, sobretudo, por mais que soubesse o quão longe isso o colocava da posição de herói que almejou durante a infância e todo o resto de sua vida, desejou que Kaze estivesse sofrendo junto dele, pois a ideia de estar sozinho o assustava mais do que qualquer outra coisa. Cortou-lhe suas asas e fez com que se acomodasse junto de si sob as marquises de lojas e se negou a receber ajuda de qualquer um que tentasse lhe estender a mão, porque não queria largar a história que outrora marcaram nas tábuas do esqueleto de um barco arruinado. Agarrados às memórias egoístas do capitão, eles não seguiram mais viagem, estagnaram em busca de pistas do bando que destruiu sua única chance de encontrar felicidade. "Ou iam embora juntos, ou não iriam a lugar algum", ele disse, usando da dívida do resgate como moeda de troca para não ser abandonado outra vez e, agora, em decorrência de suas escolhas, dos seus pecados, ouvia o apito, seguido do lamento histérico da revoada de pássaros que, um dia, viria lhe buscar. Não cobriu os ouvidos ou titubeou; engoliu sozinho o preço que vinha além de onde sua visão poderia perceber e vomitou o chão, enjoado com o peso de seus próprios crimes.

Não era pirata e nem queria ser, mas, naquele dia, estava pronto para ser um vilão.

Seguiu a estrada até que o abandono pareceu sólido, se rompeu e, por fim, voltou a se tornar civilização. À medida que caminhava, depois de observar vidas perdidas, gritos de liberdade e a ciclicidade da natureza tomando conta de cada canto do que outrora fora chamado de "casa", as construções humanas começaram a desaparecer por completo e foram substituídas por entulhos de um povo em ascensão. Haviam veículos de carga despedaçados, armamentos e metais pesados; armaduras enferrujadas e espadas quebradas jogadas por toda a extensão e, um tanto apreensivo, questionou-se o quanto aquelas criaturas haviam se desenvolvido nos anos que passaram reclusos naquela ilha — isto é, não poderia ter certeza de que estavam planejando algo, todavia se recusava a pensar que todas aquelas vidas foram perdidas apenas pela ruindade do bando, sem um objetivo a se alcançar. Não havia justificativa ou perdão, mas ao menos rezava para que houvesse uma razãoPrecisava haver um sentido por trás daquilo tudo.

O mormaço queimava a pele, mesmo que sutilmente, e finalmente pôde perceber o horizonte o  que a cada passo formava-se a sua frente; sentiu a garganta fechar e um absoluto pavor tomou todo seu ser e, até então acreditando estar pronto, Hanzo sentiu-se tão diminuto quanto uma criança diante de um mundo que não conhecia. A muralha de pedras que se formava era algo que jamais vira antes, imponente em todos os aspectos; um gigantesco monólito impenetrável que escalava por metros para o alto e cercava mais do que sua visão periférica poderia cobrir. Um símbolo de prevalência; de conquista. O que quer que havia ali antes, agora não passava de uma formiga perante ao novo império. Nesse instante, notou que qualquer resistência era inútil, mas, ainda assim, como o Sol que perseverava em atravessar a densa nuvem de fumaça; como as plantas que lutavam por suas vidas e também os humanos daquela ilha, não desistiu de lutar. O temor era essencialmente pequeno, se comparado à vergonha de um covarde. 

Seguiria, mesmo que morresse, porque era melhor morrer seguindo seus preceitos do que perecer tranquilo, sem nada para se orgulhar.

≈≈≈

Uma vez que avistaram a muralha da cidade, onde, mais uma vez, os dois caminhos — o da floresta e o aberto — convergiam, não foi difícil para Pieri e Kristian localizar Hanzo: bastava seguir a trilha de destruição que o espadachim havia deixado para trás e, ao fim dela, certamente o encontrariam cortando algumas espadas e armas para impedir seus inimigos de lutar. Não obstante, embora isso não comportasse a cartilha de não-violência do capitão, que até alguns dias atrás achou um completo absurdo assassinar os macacos sem um motivo aparente, ao encontrá-lo perto do portão que os levava para dentro do coração daquela ilha, toda a ideia que tinham dele teve de ser restabelecida, pois não foram apenas homens rendidos que encontraram, e sim corpos caídos ao chão, adormecidos em seu próprio sangue enquanto um homem tingido de vermelho os dilacerava. Mesmo que as aves viessem a ele em grupo, não dando tempo para que descansasse, ainda assim ele cortava e cortava, sem pensar nas consequências de seus próprios atos ou em seus machucados.

Ao vê-lo dessa forma, descontrolado e encharcado de sangue, o imediato não conseguiu fazer nada senão segurar sua respiração, mas a garota, por outro lado...

— Uau. Quem diria que o capitão-mendigo serviria para alguma coisa-hya! — comentou a pierrô, abrindo um enorme sorriso sarcástico em seus lábios: não era adepta daquele tipo de violência, mas tirava o chapéu por qualquer ato feito com tanta raiva. Talvez aquela fosse a primeira e, sem sombra de dúvidas, a última vez que respeitaria Hanzo da mesma maneira que faria com um dos seus. — Pegue sua arma, Kristoff-hya! — ordenou — Vamos ajudá-lo!

— Você acha mesmo que ele precisa de ajuda? — perguntou o imediato, com alguma cautela em sua voz.

— Se o objetivo dele for esses soldadinhos, certamente não, hya. Mas você bem sabe que não são eles quem ele procura, não é? — dá uma alta gargalhada — Se ele vai ficar com o chefe, só nos resta dar um jeito nessa galera e liberar seu caminho até lá.

E, então, numa questão de instantes, Pieri tirou sua arma da cintura, apontando para o alto e dando um estouro ao ar para chamar atenção de seus inimigos: estava dando início àquele espetáculo. Contudo, para sua surpresa, os pássaros nem deram bola e continuaram lutando com Hanzo como se nada ouvissem; nem mesmo o capitão pareceu se dar conta de sua presença! Consternada, ela apertou os olhos: de que raios adiantava ter sido discreta até então se esses filhos da puta não os ouviam para começo de conversa? A discrição que fosse pro inferno!, praguejou e, ignorando todas as incertezas de Kristian, ela engatilhou sua pistola uma segunda vez, disparando mais um estrondoso tiro diretamente no crânio de uma das criaturas. Caiu inerte. Foi só nesse minuto que os demais soldados pareceram notar a presença dos novos inimigos e, como uma verdadeira revoada, partiram para cima dos pierrôs.

— HYA-HYA-HYA! CAIAM DENTRO, PARDAIZINHOS! — a capitã esganiçou-se, da mesma maneira que fizera quando perdera a cabeça com os macacos, mas com o adendo de que, dessa vez, ela não estava pouco armada e, dessarte, não precisava se conter.

Curiosamente, eles não voaram para cima de si. Tinham asas para isso, deveriam poder voar, mas eles não pareciam muito racionais. Como uma infantaria de peso, vieram grasnando alto e erguendo suas lanças e espadas ao ar, prontos para empalá-los antes que avançassem em direção ao ninho. Pieri continuou protegendo a retaguarda, despejando suas balas nas aves antes que chegassem perto demais e, Kristian, agora que não tinha outra opção senão lutar, empunhou seu facão para iniciar o abate. Não era um homem de batalhas, muito menos adepto dos sorrisos dissimulados que seus bons companheiros costumavam dar antes de lutar, no entanto, ao notar a confusão daqueles que o atingiam e não o viam cair, foi inevitável não achar tudo aquilo muito irônico e, talvez, até um pouco cômico. Isto é, em um mundo tão vasto, é evidente que existiriam criaturas mais fortes que você, bastava procurar! Mas eles não o fizeram. Deixaram-se guiar pelo instinto de que ninguém poderia vencê-los e caíram para suas investidas firmes; um a um, o imediato seguiu atingindo os frangos que vinham em sua direção com golpes certeiros acima das clavículas e também entre a mandíbula e, para bem ou para o mal, não poderia negar que cuspir na soberba dos vivos não era de todo ruim.

— ISSO É TUDO QUE VOCÊS TÊM, SEUS MERDINHAS? HYA! — a capitã berrou, sorrindo mais zombeteira do que nunca; estava extasiada com tamanho exército que aquelas criaturas possuíam. Já haviam algumas dezenas de soldados abatidos e ainda assim não pareciam próximos de acabar. Quantos civis aquelas criaturas poderiam abater sozinhos?, perguntou-se, sentindo uma pontada em seu estômago, porém, antes que fosse tomada pela melancolia, puxou de sua bota uma segunda pistola, pois não fora armada até os dentes à toa: — AO MENOS MANDE SOLDADOS CAPAZES DE OUVIR MEUS GRITOS, DESGRAÇADOS!

Kristian olhou-a com a face estarrecida, entretanto não teve tempo de questionar algo, já que foi interceptado e em seguida estocado no estômago pela lança doutro soldado. Não havia dor alguma, seu corpo já não funcionava mais como o de um humano, porém, ao observar o pássaro presunçoso a sua frente, deleitando-se com o vislumbre da vitória enquanto forçava a arma em seu corpo, ele sentiu suas duas pernas travarem. Aquelas coisas eram capazes de raciocinar. Não eram só bichos; sabiam que matavam e gostavam de matar. Sentiu um desgosto no âmago, mas antes que pudesse reagir, o cheiro de pólvora tomou suas narinas e o aperto da arma se desfez: com uma única bala o soldado foi derrubado, todavia seu sorriso nunca deixou sua face; morrera com a certeza de que fora vitorioso. De que era o melhor.

— PRESTE ATENÇÃO NO QUE FAZ, KRISTOPH-HYA! — a garota berrou com o rosto contorcido em uma careta e lançou-lhe um rápido olhar desaprovador antes de, mais uma vez, voltar a atirar. Ele vacilou em responder em primeiro momento, engolindo seco, mas por fim anuiu, virando o rosto para longe do que restou da face no rosto sorridente e voltando a lutar.

Depois disso, mais homens-pássaros vieram aos dois, mas não com a mesma intensidade de antes. Distraídos com a intensidade da batalha, não tiveram tempo ou sequer o pensamento de analisar os arredores até então, entretanto, no primeiro momento em que finalmente puderam respirar, ambos os pierrôs notaram o cenário de maneira mais ampla e, para sua surpresa, o caos ia além de uma batalha de espadas. Se em frente a eles algumas dezenas de inimigos sucumbiram, próximo a Hanzo certamente esse número beirava uma centena. Não precisaram de muito esforço para compreender que os soldados não estavam acabando; era ele quem não estava permitindo que as coisas chegassem perto da capitã e imediato — e, veja bem, não porque queria protegê-los, mas sim porque os eliminava antes que tivessem a chance de avançar. Neste ponto, duvidavam até de que ele havia se dado conta da chegada dos aliados para começo de conversa: coberto de sangue e sem qualquer sinal de cansaço, o homem cegou-se com brilho da espada, lutando absorto contra os humanoides como se só a adrenalina da luta fosse o bastante para curar seus machucados e fadiga.

— Pieri... — chamou Kristian, com a voz pesada. A capitã o encarou, e embora ainda não estivesse cansada, o suor de sua testa já era perceptível, bem como os respingos de sangue em sua face e roupas. O imediato continua: — Isso... Isso não está certo.

— Eu sei, diabos... — a capitã amaldiçoou, massageando a têmpora direita com a base da arma e apoiando o outro braço na cintura, como se pensasse no que fazer. À distância, o homem continuava desatento, levando golpes de espada pelo corpo todo, embora isso não fosse o bastante para fazê-lo parar. O sangue que o cobria agora não era só de seus inimigos.  — HANZO! Volta para cá! Pode deixar que cuidamos deles!

Mas não teve jeito: sua voz não foi alta o bastante para alcançar o capitão. Pieri tentou gritar outra vez; Kristian tentou também, porém, nada parecia capaz de tirá-lo da imensidão de seus pensamentos. Os pássaros o atacavam por todos os lados, raspando suas lanças entre as costelas e por pouco não o atingindo fatalmente: aquilo estava completamente além da coragem e a muito deixara de ser estupidez — o homem simplesmente havia perdido a cabeça. 

A garota por um segundo sentiu as pálpebras pulsarem de irritação e seu rosto tomou uma coloração rubra. Tentou chamá-lo mais uma última vez. Quem ele pensava que era, afinal? Para ser tão imprudente em sua frente... Ele não a respondeu. Mordendo o interior de suas bochechas, controlando-se para não tomar a arma e atirar a queima-roupa, finalmente ela tomou a decisão de que não poderia deixar aquilo avançar mais. Enquanto capitã, compadecia de qualquer subordinado, e pensando que gostaria que a parassem caso estivesse agindo dessa maneira, ela finalmente gritou, utilizando-se de sua habilidade.

Por um breve instante, todo o tempo pareceu congelar. Pieri nunca tivera a necessidade de tirar suas cartas na manga até então; gostava de tê-las disponíveis junto de si, é claro, mas não poderia depender delas para tudo, e por isso sempre optara pelo uso de armas e, em alguns momentos, de seus próprios punhos. Ainda que ostentar suas habilidades fosse algo sedutor, a garota nunca se permitiu cruzar a linha do aceitável; em todos os seus anos de vida desenvolvera um forte senso de preservação e, desta forma, esperou pelo momento certo para mostrar aos subordinados quem era e do que era verdadeiramente capaz. Entretanto, calhou de o momento correto ser abruptamente atropelado pela raiva e então simplesmente lançou tudo para os ares, soltando um guincho tão agudo que as aves automaticamente recuaram: elas não eram capazes de captar ondas sonoras, porém tinham um instinto aguçado o suficiente para sentirem em suas penas a precipitação do perigo.

O chão tremeu levemente e as muralhas, ainda que muito pouco, foram afetadas o suficiente para afugentar qualquer criatura que ali descansasse. A capitã, mesmo que por um segundo, sentiu-se orgulhosa ao observar a face desconcertada de Hanzo alguns metros à frente; sua espada apontava para o chão e a cabeça girava em seu próprio eixo, tentando localizar a própria posição no espaço. Foi a primeira vez que ele notou a garota e seu imediato, posteriormente compreendendo o estado em que estava.

— Não deviam estar aqui — ele disse — Aproveitem que eles estão desestabilizados par–

— E o senhor acha que eles se desestabilizaram ao acaso? — Pieri bate o pé, estufando o peito e juntando suas sobrancelhas em um único vinco. Em sua mão, o polegar apontava para o próprio tórax, indicando ao homem quem era responsável por aquela folga para começo de conversa — É você quem não deveria estar aqui-hya — ela repreende — Muito menos fazendo essa sujeira.

O imediato, um tanto transtornado, indagou num sussurro: — Você gritou? — Mas foi ignorado.

Por sua vez, outro capitão não disse coisa alguma. Passou alguns segundos observando o campo de batalha, parecendo se dar conta de tudo aquilo que ele havia feito. Perturbado, procurou palavras para responder a aliada, contudo não tinha nada que pudesse responder; perdera completamente a cabeça e, ainda que fosse contra seus princípios, não se arrependia de sequer uma gota de sangue derramada.

— Nós não podemos recuar todos, afinal agora eles já sabem que estamos aqui — respondeu Hanzo, não se justificando, pois isso também era contra seus preceitos, mas sua respiração estava mais ofegante do que nunca fora — Fora que estaremos em desvantagem escondidos na mata, o território não é nosso.

— De qualquer forma, se continuar atacando sem freios, vai morrer feito um imbecil-hya! — ralhou a capitã.

Todavia, antes que pudessem iniciar uma discussão (que certamente não caminharia para lugar algum), Pieri por um instante pareceu notar algo se aproximando e,  esticando-se no lugar, virou para trás e passou a mexer os braços freneticamente, sinalizando para algo a sua posição.

— CAPITÃ! CAPITÃ! — a voz de Yolanda se fez presente e a passos rápidos a mulher os alcançou sorrindo, trazendo em seu encalço Nicholas, que observava os arredores com os olhos arregalados. Ela continua:

— RELATÓRIO: AS DUAS UNIDADES SE ENCONTRARAM E AGORA ESTÃO SEGURANDO AS PONTAS JUNTAS, ENCONTRAMOS UMA INCUBADORA NO FIM DO CAMINHO E EU ESTOU MEIO SURDA!

Pieri mordeu os lábios. Yolanda era uma mulher forte em toda sua estrutura; nunca perguntara sobre sua origem, mas ao basear-se no Lírio-do-Amazonas tatuado em sua coxa direita, parecia certo assumir que ela não era de nenhum lugar por perto dos demais tripulantes, e talvez por isso fosse alguém tão resistente em sua essência. Dito isso, decerto foi estranho vê-la respirando ofegante e com o ombro sujo de sangue seco, e ainda que continuasse com sua postura ereta para lhe oferecer as contas com dignidade, sua capitã não pôde deixar seus anseios de lado, preocupando-se intrinsecamente com cada um de seus subordinados — se ela estava assim, como estavam os outros? E, mais importante que isso, será que alguma junta da ilha fora enviada à orla para atacar Shari e Apollo? Finalmente, notando ao lado da guerreira seu espadachim, percebeu que nada parecia ir de acordo com o planejado: Nicholas pendia para frente com os olhos arregalados, desnorteado acima de tudo, todavia sempre olhando diretamente ao capitão dos cães, este que nem sequer o olhava de volta (muito provavelmente porque sentia vergonha de ser visto daquela forma por gente tão mais nova).

— Vocês deveriam retornar ao navio — Kristian afirma, parado a alguns passos de Pieri, o imediato parecia ainda mais tenso do que antes; talvez fosse apenas seu instinto de sobrevivência gritando, contudo não poderia se sentir calmo observando Nicholas em uma situação tão deplorável.

Os pierrôs recém-chegados se encararam por alguns segundos e mutuamente voltaram-se para a capitã, levantando a cabeça e aguardando pelas ordens vindouras. Não desejavam abandonar a luta, mas se Pieri os ordenasse, retornariam sem pestanejar, porque não havia nada a ser feito. Subsequente, a garota declara, ainda que com os olhos cerrados e testa franzida:

— Vocês podem lutar? — seu queixo estava alto e seu chapéu destacava-se ainda mais em sua cabeça. Ambos os subordinados manejaram com a cabeça, em um tácito sim — Então fiquem-hya! Porém, devem se manter atrás de mim, ou constantemente aos meus olhos e de Kristian. Se eu perdê-los de vista por um momento que seja, eu mesma farei questão de estourar-lhes a cabeça!

Com um aceno firme e um engolir seco — nenhum dos dois havia deixado o zumbido no ouvido para trás, mas conseguiriam compreender as ameaças da capitã mesmo que estivessem em outro idioma —, se juntaram aos três em uma caminhada dura pelos corpos inertes de aves que, sem esperança, olhavam o vazio sem brilho no olhar. Não foi preciso explicar o que havia acontecido: apesar do poder ofensivo de curta-distância de Kristian, ele era o que menos estava sujo, e portanto só restava ao capitão dos cães assumir a culpa pelo feito, uma vez que ele estava coberto dos pés à cabeça com uma espessa camada de sangue fresco. Para nenhum deles não era difícil ter empatia pelos mortos; convivendo desde cedo com o tormento, sabiam muito bem que nenhuma guerra era vencida sem perdas; guerreiros de aspecto jovem e de plumas arrepiadas no braço agora eram incapazes de voar como a espécie que naquele mesmo momento lutava contra a outra unidade da aliança pirata — jaziam sem nunca ter visto além daquela ilha: nasceram ali e nunca saíram dali, enterrando suas esperanças torpes de unificação mundial. Independente do quão podre eram suas ambições, ainda eram ambições. E eles lutaram.

Entretanto, quando é dito "nenhum deles", é certo que se deve excluir Hanzo da equação, pois ele já não podia se considerar um naquela unidade. Ele não sentia empatia alguma. Matou porque tinha de matar, e mataria mais se mais aparecessem agora. Desta forma, guiando os quatro jovens atrás de seus passos para o inferno, o capitão não podia deixar de pensar que sua angústia, medo e cólera haviam se fundindo e se tornado uma só no âmago. Não tinha pena de Kaze. Não sentia-se culpado por enganar Fang com seu papo falho de caçador de recompensas, tampouco por não só ter incentivado como também conduzido Sherikan à vida pirata, mesmo que fosse um relê pirralho. Não sentia mais nada. Sua dor anulou a raiva, bem como a cólera anulou o desespero, restando-lhe apenas os passos que, agora, traziam os cinco aos portões da muralha.

≈≈≈

Adentraram irredutíveis.

Ninguém nem tentou impedi-los porque, em primeiro lugar, uma grande porcentagem dos soldados estavam espalhados para impedir que chegassem perto do perímetro da muralha, mas não que avançassem já dentro dela e, em segunda instância, porque Pieri havia feito o favor de desnortear os soldados que vigiavam dentro das paredes de concreto, então estes não seriam capazes de se levantar para lutar por algum bom tempo.

No interno, as ruas eram estreitas e de tijolos lixados; não pareciam levar a nenhuma casa em especial, e na verdade, toda a estrutura da cidade era antes funcional às máquinas de transportes que vinham de fora para a instalação principal do que feitas para facilitar a vida de moradores — os poucos prédios tinham entradas paralelas às ruas, e não de frente para ela, como era o esperado, e o caminho era inclinado, íngreme demais para algo de apenas duas patas. Ao fim da descida, por fim, estendia-se por mais alguns longos metros uma imensa fortaleza de paredes altas e janelas sem vidros ou apoios; apenas arcos e buracos para que pudessem entrar e sair a hora que quisessem e na altura que quisessem, como uma grande colmeia, e, a contornando, a estrada se transformava em uma gigantesca praça aberta, onde havia uma fundação e, exatamente ao centro, um púlpito de adoração.

— O que diabos são esses caras? — o imediato quebrou o silêncio, falando um pouco mais alto que o normal. Neste momento, os olhares voltaram-se para si, contudo continuou encarando as costas de Hanzo, que não parecia disposto a parar de caminhar.

— São uma civilização organizada. O que você quer saber além disso, hya? — replica Pieri, os olhos fechados em consternação. Ela não parecia muito disposta a ponderar sobre aquele assunto.

— O que eles realmente são, Capitã? Nós vivemos em civilizações organizadas e, veja bem, não me recordo de nada semelhante a isso — falou Nicholas, controlando para que o tom de voz não saísse agressivo, afinal ainda que estivesse desnorteado, não desejava tomar uma invertida de Pieri, ao mesmo tempo que preferia morrer do que agir de maneira injusta com uma sociedade que não conhecia. Ele não era esse tipo de pirata.

— E, pelo que o Sr. Mendigo nos contou, esse bando não está instalado aqui há muito tempo. É realmente possível ascender tão rápido? — acrescentou Kristian, com nenhum humor em sua voz.

— A escravidão não é novidade para a gente-hya. Tem tanta gente que trabalha por comida e só isso... — ela interrompe sua explicação para dar um suspiro pesado. Hanzo finalmente parara de andar para ouvir o que ela tinha a dizer, pois, de súpeto, havia se interessado no rumo daquela conversa. — Com escravos, com certeza é possível construir maravilhas. Uma ponte de mar a mar, uma fortaleza impenetrável...

Yolanda fez um som com a garganta e encarou a capitã com os olhos arregalados, como se desejasse repreendê-la, porém Pieri retornou a falar: — Veja bem, não estou dizendo que concordo com isso, mas é a única explicação. Estamos dentro de um gigantesco formigueiro.

— Aqueles que atacaram vocês... — a voz de Nicholas morreu antes que terminasse de falar.

— Isto mesmo, são os operários; não ouvem e não sentem nada além do prazer de seguir ordens — a capitã mordeu os lábios, um tanto enjoada — Esses bichos nascem com um único propósito e graças a eles essas muralhas estão de pé-hya. Não significa que são irracionais, mas também não os coloca na posição de escolher seus próprios dogmas.

O capitão permaneceu calado alguns passos adiante; sua cabeça um tanto baixa e os olhos ardendo em irritação, bem como seus punhos cerrados entregavam o profundo nojo que sentia daquela espécie. Manteve-se calado porque não havia nada que pudesse acrescentar e, mesmo que tivesse, não conseguiria dispor de uma palavra que não fosse pura intolerância racial. O que eles haviam construído em tão pouco tempo era... trivial. Sua estrutura de classes não importava, a cultura tampouco e, acima disso, podia dizer que odiaria todos, dos mais velhos aos mais novos, mesmo que sua civilização inteira lhe pedisse de joelhos para que não fossem destruídos. Pieri, incerta da moralidade, podia até suspirar e ponderar sobre o que haviam feito nas muralhas, mas ele não o faria. Ele estava certo de que, dessa vez, estava seguindo o caminho correto.

Mais alguns passos foram dados em direção à praça. A cautela de outrora agora não passava de um breve vislumbre por cima dos ombros, e uma vez que nenhuma alma parecia caminhar pela rua principal, assumiram que os encontrariam em massa dentro da estrutura — se é que não estavam atacando a outra unidade na incubadora que Yolanda havia mencionado. Algumas discussões sobre a periculosidade da invasão foram cochichadas longe dos ouvidos de Hanzo e Pieri, temendo que não fossem o bastante para bater de frente com o que quer que fosse a emboscada que os esperavam, contudo, a navalha de ockham os esfaqueou pelas costas quando, num súbito estampido, um tiro certeiro acertou o braço direito da capitã dos pierrôs. Era uma emboscada simples; uma advertência de que estavam sim sendo observados e só não haviam percebido.

Pieri entortou em uma rápida careta, enquanto ao seu lado o imediato fora tomado por uma inebriante sensação de temor e sem demora lançou-se em sua direção, cortando um pedaço da própria roupa para lhe fornecer um torniquete temporário; não falou nada, apenas cuidou do ferimento rapidamente e, após tê-lo feito, respirou fundo e esperou uma reação apropriada, um grunhido de dor que fosse, mas ele nunca veio. Como uma boa pierrô, a capitã não reclamou e não permitiu-se soltar um mínimo gemido de dor nem mesmo quando Kristian estancou o ferimento — não poderia fazê-lo, afinal era a figura máxima que regia aquele bando e, se por um acaso algum desgraçado ousasse desafiá-la, jamais teria o direito de conhecer sua fraqueza. Estaria rindo: fosse de pé soberana, ou mesmo estilhaçada ao chão, nenhum inimigo seria capaz de tirar seu sorriso.

— HYA-HYA-HYA! ACHA QUE BALAS PODEM ME MATAR, FILHOS DA PUTA? — berrou, atirando uma vez para o alto, rindo viçosa e esganando ao máximo sua própria voz — POIS SAIBAM QUE EU NUNCA MORREREI!

E, da mesma forma que havia afastado os pássaros anteriormente, ela gritou alto, esperançosa de que isso fosse o bastante para expor seu inimigo onde quer que estivesse, mas não foi. Usou o máximo de sua atenção, buscando passos ou talvez tentando captar os batimentos cardíacos do inimigo, contudo era inútil uma vez que suas habilidades eram bastante limitadas quando estava fora d'água e, se não tivesse as adquirido por uma completa casualidade (afinal, uma criança faminta não escolhe a aparência daquilo que irá roubar para comer), faria questão de ser reembolsada pelo otário que a vendera uma fruta merdaQuer dizer, de que adiantava trocar sua habilidade de nadar por algo que só funcionava decentemente no mar? Era como uma árvore caindo sem ninguém para ouvi-la — e talvez fosse esse o real motivo de não sair espalhando para todos suas habilidades. Não vergonha; falta de convencionalidade. Eles não poderiam depender dela quando ela mesma não tinha certeza de quando e onde poderia usar suas habilidades. (Ao menos era uma boa navegadora por conta dela).

No que diz respeito aos subordinados, todos encaravam-na como quem busca uma resposta para aquilo que acabara de acontecer, ainda que não fosse de seu feitio justificar-se. Aquilo fora um grito de dor? Um sinalizador? De cima abaixo, fitavam Pieri como se fosse um ser extraterrestre, porque realmente não tinham ideia do que ela estava tentando fazer senão chamar atenção para o inimigo. Se perguntaram se a loucura havia a atingido de vez, mas como se faziam essa pergunta por mais vezes que gostariam de saber a resposta, apenas lhe deram o benefício da dúvida de que aquilo tinha algum propósito — e, caso fosse possível dar preferência, que este se revelasse o quanto antes.

— Crás-crás-crás!

Afinal estavam certos em cruzar os dedos. O riso nasalado, podre em seu íntimo e abafado por metal, surgiu de cima de suas cabeças: do topo de um dos prédios paralelos à rua, um sujeito de aparência incomum apareceu diante de seus olhos, planando como uma sombra negra e asas abertas até pousar defronte e de peito estufado, como o mais orgulhoso de sua espécie. As penas negras que escaparam de seus braços brilhavam com a pouca luz do sol e, ao contrário daqueles que atacaram em primeira instância, o homem parecia demasiadamente bem tratado; a armadura bem alinhada delineava um corpo forte e alimentado, alongando-se até expor um elegante pescoço de ganso e, por fim, sendo coberto novamente por uma pesada máscara de metal fundido que descia como bico.

— Deveriam ter fugido enquanto havia tempo. Meu pesar a vocês, humanos — a voz abafada pela máscara ressoou pelo ambiente — Ainda que, amanhã já nem lembrarei de suas faces.

Instintivamente, os piratas subordinados deram um passo para trás, assombrados com a ideia de um ser capaz de dominar ambos, terra e ares, também ter a habilidade de conversar. Mesmo sem ver o rosto, perceberam no homem um riso contido, como se estivesse excitando-se com a ideia de assustá-los, mas uma vez que Hanzo e Pieri não moveram um músculo sequer, ele decide que é necessário espremer um pouco mais.

— Receio que o resto de seus amigos não estejam agindo como bons convidados, também — continua ríspido, referindo-se a outra unidade da aliança enquanto, um passo de cada vez, ficava mais próximo deles — A essa hora, o bando deve tê-los eliminado.

— "Eliminá-los", você diz — Pieri retruca, esboçando outra vez seu sorrisinho debochado — Esses dois aqui estavam por lá até agora, e ainda assim fugiram sem arranhões — e aponta Yolanda e Nicholas, desdenhosa. — Para a fama que têm, vocês, seja lá o que são, parecem bem incompetentes nesse serviço.

O homem-pássaro parou de andar nesse momento. Hanzo, muito atento, aproveitando-se do breve momento de instabilidade do inimigo, tirou sua espada da bainha e avançou rápido para dar-lhe um corte seco no peito, mas não conseguiu feri-lo além de um leve arranhão em sua asa esquerda, pois ele era mais rápido do que premeditara. Súbito sentiu a nuca pesar e quase tombou ao chão, tonto porque não pesara nem as consequências, muito menos sua idade, entretanto, o espadachim tornou a atacá-lo sem pensar duas vezes, balançando a lâmina perto das asas, que desviavam ágeis de seus golpes por pouco mais de um fio.

Ao ver que estavam perdendo aquela batalha, Kristian ameaçou juntar-se a ele para ajudá-lo, assim como fez Yolanda, porém Pieri, muito prudente, impediu ambos de avançar, pois, do jeito que atacava, o capitão não parecia capaz de lutar com pessoas ao seu largo. Calculando suas possibilidades de vitória, ela entendeu que sua melhor opção seria atirar no inimigo, porém, qual garantia ela tinha de que acertaria a ele e não a Hanzo? O humanoide era rápido como uma flecha, e agora com um braço debilitado, quanto mais o seguia com a mira da arma, menos conseguia ver dele e mais dos movimentos a cada minuto mais desajeitados em fúria do aliado. Ele sim estava lento, pensou. E mortal. Naquele instante, era certo para a pierrô que precisava fazer alguma coisa antes que ele se invalidasse para uma vida, mas antes que tentasse impedir, Nicholas tomou sua arma e mirou sem pensar duas vezes diretamente nos pés de ambos, capitão e ave.

O estampido, a luz e o cheiro de pólvora tomaram o ambiente. Ninguém se moveu; Hanzo e a ave, desnorteados, pararam por um segundo de brincar de cão e gato e, no instante de descuido, o espadachim dos Pierrôs tratou de roubar-lhe a máscara num movimento rápido, rompendo diretamente a tira de couro que ficava exposta em sua nuca. Quando o barulho de metal batendo no tijolo ecoou, o pirata-pássaro não pensou duas vezes antes de se jogar no chão, tentando recuperá-la, e foi nesse momento em que o capitão decepou sua garganta.

Apenas o silêncio perdurou por alguns lentos segundos. 

— Mais virão, Hanzo — disse Nicholas. — Seu lugar não é aqui.

Pieri arqueou as sobrancelhas, Kristian torceu o lábio e Yolanda tocou o ombro do garoto, mas ele se desvencilhou, dando um passo à frente para chegar mais perto do homem, ofegante como nunca, e absorto nos olhos olhos completamente negros da anomalia que acabara de matar. Um humano normal; sem proeminência na mandíbula ou qualquer outra deformidade além das asas. Apesar de gente pássaro, aquele era mais próximo dele do que era do capitão de seu bando. 

— Se seu objetivo é vingança, — o espadachim mais novo torna a falar, carregado com um cinismo que dessa vez não pertencia a sua personalidade levemente esnobe (decorrente de sua origem nobre), mas sim de um compadecimento de sua causa — eu não vou impedir de você seguir em frente, mesmo que não concorde com sua forma de lutar. Contudo, se é o líder quem você quer, vá até ele de uma vez e deixe que nós cuidemos dos que sobrarem. Não posso permitir que elimine mais desses no processo.

A expressão de Hanzo, talvez pela primeira vez desde a chegada naquela ilha, assumiu uma postura de pura humildade; suas sobrancelhas baixaram, os lábios crisparam e seus olhos fitaram o chão por alguns segundos. Ainda que não pudesse lhe perguntar os motivos, podia sentir nas palavras de Nicholas uma tênue linha de compreensão a ser estendida: um breve conforto, como se ele, de alguma forma, reconhecesse bons sentimentos na gama ambígua de maldições que se encontrava por ora — isto é, talvez nem mesmo o capitão pudesse encontrá-los neste ponto de sua jornada, mas o garoto fora capaz de encontrá-lo de volta e, diante disso, resignar-se era sua única opção.

O capitão olhou de soslaio para Pieri: ela não parecia especialmente abalada com seu súbito momento de redenção e, se parasse para analisar cada marca em sua face, teria noção de que sua preocupação se limitava somente ao subordinado. Yolanda e Kristian, por sua vez, também não lhe deram muita atenção, ambos encaravam o espadachim pierrô temerosos, contudo repletos de uma genuína preocupação, notando nele um desdém que antes não o cabia, mas agora parecia estar sempre por lá. Isto posto, foi natural para Hanzo notar o quão estranho era o bando que se aliara. Os pierrôs eram curiosos em toda sua existência, por horas imaginou que se suportavam apenas pela conveniência e influência da capitã, mas estava errado. Muito distantes daquilo, eles — em sua maioria, veja bem — trabalhavam com um companheirismo sem igual, prontos para rir das adversidades e cuspir diante o perigo; apoiavam-se nas decisões e, sobretudo, discutiam intensamente sobre aquilo que discordavam, algo que nunca nem pensara em abordar com sua tripulação. Não era hora de se martirizar pelos erros como líder, sabia disso, entretanto, ciente de que sua morte estava próxima (pretendia matar o líder mesmo que perdesse sua vida no processo), não havia melhor momento para refletir sobre suas ações e até arrepender-se delas. Era um péssimo capitão. Kaze o odiava. Não saberia dizer se era tarde demais que o notara, no entanto, ao ver naqueles infelizes o mais profundo descaso para sua remissão, por muito pouco não soltou um pequeno sorriso.

— Obrigado — declarou em um fio de voz, encarando Nicholas diretamente em seus olhos, com ternura.

E assim sendo, ele encarou os demais piratas e, com a expressão repleta de gentileza, curvou-se em noventa graus em direção sua direção, mantendo-se desta forma por alguns longos segundos. Não haviam palavras que pudessem ser ditas e tampouco desejava encontrá-las, contudo, em seu íntimo esperava que seu último ato de renúncia ao menos significasse algo para aqueles indivíduos. Foi embora. 


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