Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 24
Periódico do Komainu, Ilha dos Pássaros (Honra e Equilíbrio)


Notas iniciais do capítulo

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Posto que o Sol Nascente estava em estado de miséria e que jamais aguentaria mais de uma semana velejando sozinho, é justo dizer que os Cães-leões deveriam estar de joelhos agradecendo aos Pierrôs pela bondade de ajudá-los sem cobrar um tostão que seja, no entanto, muito pelo contrário, para a maioria deles nada daquilo parecia um golpe de sorte, quem dirá a mais pura demonstração da benevolência divina. De fato as intenções torpes dos aliados até poderiam continuar um mistério, porém, também era fato que haviam intenções ali: e, sob as ordens de Hanzo, que ainda não podia se conformar com a ideia de terem aceitado suas exigências descabidas além de ajudar com o navio, sobrava a Sherikan o trabalho de descobrir o que os fazia tão… convenientes.

Logo de início, o que ficou evidente é que ninguém daquele bando batia muito bem da cabeça. A capitã, por exemplo, volte e meia saía de dentro de seu submarino apenas para caminhar em círculos em volta da escotilha, gargalhando alto e praguejando aos céus lamúrias sobre seus maiores ódios, porém, de todos os adjetivos que poderiam ser dados a ela, “burra” não era um deles, tampouco piedosa (ela cuspia no rosto de seu cozinheiro quando ele errava em seu prato). Ao se basear nela, Fang supôs que suas motivações pudessem ter a ver com os mapas de seu navio, assumindo lhe faltar experiência como navegadora e cartógrafa por conta da tenra idade, mas bastou uma troca de palavras para perceber que ela estava, senão de igual para igual, muito próxima dele no quesito de conhecimento. Por fim, depois de três longos dias e quatro noites ainda mais demoradas de observação, ficou atestado que os Pierrôs tinham uma energia caótica que, por incrível que pareça, os mantinham estáveis sobre as ondas do mar. Eram como forças opostas se anulando; enquanto Franz quarava a lavanderia completamente nu assim que o sol nascia, o imediato, um semimorto, agia normalmente, sorvendo o café na mesa do navio vizinho como se o mundo não rodasse e o tempo estivesse ao seu favor. Era incompreensível que pessoas tão opostas vivessem em harmonia, contudo a prova estava logo à frente: a déspota capitã os aceitava como eram, completamente bizarros e desprovidos de educação, e, em troca, os subordinados a seguiriam até o inferno — o que divergia muito do bando dos Cães, que não poderia vê-los como mais utópicos e irreais.

Foi com muito pesar que Sherikan contou ao capitão que não havia descoberto nada, e o sentimento de incapacidade só piorou quando descobriu que não havia sido o único encarregado da tarefa de espião. Little Fang, apesar de se demonstrar ameno aos conflitos na maior parte das vezes, havia se infiltrado no cotidiano dos lunáticos antes mesmo que Hanzo lhe pedisse, e vivendo junto deles, descobriu mais do que gostaria de contar. O primeiro fato era que, sim, Franz não estava exagerando quando dissera que dormia todos os dias despido porque as roupas lhe incomodavam; e o segundo, incrivelmente mais inútil que o primeiro, era que Pieri, de verdade, não parecia nem um pouco interessada em usurpá-los depois de ajudar. O capitão, que desde a discussão com Yun — aquela em que jogara pela escotilha uma gaveta cheia de desenhos para evitar lançar o próprio médico ao mar — parecia estar desgostoso, tornando-se ainda mais desconfiado, se é que era possível: em que lugar do mundo os piratas ofereciam ajuda sem desejar nada em troca?, se perguntava. Talvez o mundo estivesse realmente diferente do que costumava ser quando ia ao mar; afinal, a juventude parecia cobrar pelo tempo parado, implorando para fugir pelas juntas doloridas e costas travadas. Ainda não se considerava velho, mas depois de tanto tempo apenas se aproveitando dos pobres peixes que pulavam fora da linha após vencer a cachoeira invertida, de repente, o mundo parecia mais impactante do que jamais fora.

— Ilha à leste! — lá de fora, berrou o médico da tripulação dos pierrôs, com um curioso tom de surpresa em sua voz e tão alto que parecia estar do lado de dentro do navio detonado, e não em cima do Diabo Negro.

— Eu sei, caralho! Você acha que estou virando a estibordo por quê? — a capitã devolveu o grito, com grande irritação e mais estridente do que nunca, contudo o tom metálico de sua voz denunciava que, diferente do subordinado, a garota estava dentro do submarino.

Nesse momento, Fang, Sherikan e Hanzo já haviam empilhado suas cabeças uma cima da outra para espiar o deque pela porta do castelo de proa, mas, surpreendentemente, não havia ninguém além do imediato zumbi, ressonando em uma cadeira de praia, em seu navio: a discussão se dava apenas na embarcação dos aliados. 

— Não precisa ser hostil, senhorita Pieri. Estávamos buscando as roupas que secavam na calda do submarino — respondeu Yun, alto o suficiente para que a capitã pudesse ouvi-lo, mas consideravelmente mais baixo que o outro médico (e, desta forma, também mais polido).

— CALADO! Se você der mais um “pio”, eu vou jogar todas as suas calcinhas no mar-hya! — a capitã ralhou, parte porque realmente não gostava de ser questionada, mas principalmente porque desejava iniciar uma briga (estava tempo demais no mar e a calmaria das águas não comportava seu desejo por desastre). Não obstante, apenas o silêncio se fez: nenhum deles parecia disposto a respondê-la novamente e, por conseguinte, restou a Pieri responder a si mesma com sua loucura: — TERRA À VISTA, MARUJOS! HYA-HYA-HYA. ACORDEM TODOS, VAGABUNDOS!

Um a um, os piratas foram se juntando no convés dos cães, restando apenas Apollo e Shari cuidando da direção do Diabo Negro, afinal, agora com o caminho definido, não era mais missão de Pieri cuidar do leme e, mesmo que desejasse continuar ali, os problemas não haviam se findado ainda — e, na verdade, eles mal haviam começado.

— O que você pretende fazer, Mendigo-Hya? — ela perguntou ao capitão, assim que saltou para dentro do Sol Nascente. Hanzo, por sua vez, saiu atropelando Sherikan e Fang, pois atrás destes, não parecia nada além de um anão, e então endireitou sua postura para reafirmar sua autoridade.

— Sabes bem o que eu pretendo fazer, Pieri — disse, sereno — Pretendo eliminar todos os Mother Justices que encontrar, mas para isso preciso que me ajude a chegar ao núcleo de sua base.

— Por mais que eu adore uma catástrofe, acredito que esse não seja o seu objetivo, Capitão Mendigo-hya. — Pieri pontuou, soltando um risinho de diversão logo em seguida (talvez uma parte de si ainda acreditasse que poderia resolver seus problemas botando-os aos ares).

— O que a capitã quer saber é: nós teremos um plano, ou o plano é meter porrada? — o imediato interrompeu, indagando em um tom preguiçoso.

— E antes que você pergunte; sim, ela prefere que não haja um — Yolanda completa. Era um vício dos Pierrôs se interpelar.

Os cães se entreolharam. De fato, haviam feito planos — muitos deles, na verdade. No entanto, agora prestes a serem postos em prática, percebiam pela primeira vez que não passavam de suposições, uma vez que nem tinham evidências do paradeiro do bando que procuravam, tampouco de como estavam depois de anos trabalhando na surdina. Haviam aumentado sua tripulação? O que estavam planejando desde que sumiram na Grand Line? Essas e outras perguntas circundavam suas mentes, e contudo, mesmo que tivessem um milhão de indagações sobrevoando suas cabeças durante os quatro dias que passaram no mar, apenas o bruto fora decidido desde o início: iriam atacar somente os piratas, sem relar um dedo que fosse nos nativos que sobrassem das habituais chacinas e, acima de tudo, era Hanzo quem finalizaria o líder.

— Não posso garantir que teremos tempo de estudar o território, então nossa única preocupação é não ferir os civis, isto é, se houverem civis. Quanto ao resto, sinta-se livre para destruí-los, senhorita Pieri. 

— Hum — murmurou pensativa, encostando o indicador em seu queixo para pensar por um breve instante enquanto observava a ilha se tornar cada vez maior no horizonte. — Se forem os mesmos caras da família do Shari, duvido que haja alguém além deles por lá. Fora que tem uma fumaceira saindo da ilha, então não duvido que estejam queimando as evidências antes de chegarmos, hya-hya-hya! — deu uma risada estóica, como se fosse uma piada, embora essa não fosse a escolha mais precisa naquela situação, dado que Hanzo em primeiro momento não percebeu que ela estava falando sério.

Finalmente, foi só quando começaram a se dispersar que o capitão pôde compreender a gravidade do problema que estava se metendo e, por consequência, tomou consciência de suas próprias fraquezas. Pois, no fim das contas, não era uma piada — como tantas outras coisas que a capitã-palhaça dizia rindo, afinal. À medida que se aproximavam da ilha, mais podia ver sobre a densa mata que cobria a orla uma nuvem cinza levantando voo; como se, de fato, estivessem queimando algo. Um arrepio percorreu sua espinha ao sentir pela primeira vez em anos aquele cheiro tão forte. Pólvora; fuligem. A visão de seu navio em chamas voltou por um breve momento, mas preferiu apagar, apenas apertando a aliança de latão em seu dedo anelar esquerdo como uma espécie de lembrete do que haveria de ser feito. Estava próximo demais de seu objetivo para fraquejar.

Quando o navio atracou no cais, aqueles que se arriscariam pela floresta já encontravam-se à postos, devidamente armados e preparados para uma possível batalha — por mais que ainda não houvessem evidências de que estavam no lugar certo, não seriam tolos em sair em busca de um inimigo com menos do que o necessário e Pieri, sobretudo, equipou seus subordinados enquanto cantarolava sobre os primos de Shari e tiros na cabeça, com um constante sorriso brilhando em sua face. No fim das contas, os grupos foram divididos da seguinte forma: enquanto duas unidades de três pessoas iriam para as laterais opostas da ilha chamando o máximo de atenção possível, a terceira unidade, onde ambos capitães estariam, iria aproveitar o caminho livre para seguir pelo centro em direção da origem da fumaça, uma vez que acreditavam ser onde o líder do bando pirata estava. Nesse meio tempo, Apollo e Shari ficariam responsáveis pelo conserto do Sol Nascente, da mesma forma que protegeriam os navios caso algo fugisse do planejado, no entanto, embora estivessem com o trabalho considerado “mais fácil” (não que consertar navios e submarinos fosse algo muito simples), os problemas daquela infeliz ilha começaram ali, quando o símio percebeu que o buraco do navio era bem mais embaixo. Literalmente.

Fora carcaça interna, que estava completamente danificada pelos arranhões de uma longa vida e a proa que certamente era mais velha que sua capitã, os remendos na parte externa do casco eram tão tenebrosos que uma criança tentando colar um vaso quebrado poderia fazer melhor, isto é, se tivesse o mínimo de paciência. Em geral, o que tinha guardado para futuros consertos no Diabo Negro não daria nem para disfarçar a catástrofe, pois tudo naquele navio parecia feito às pressas, sem muito cuidado e, principalmente, sem o olhar de um construtor naval experiente — ou construtor comum, caralho! Não é tão difícil arranjar um! Precisaria de dias para colocá-lo nos trilhos novamente; isso se uma vida inteira não fosse necessária para salvá-lo. Decerto algo havia acontecido com aquela embarcação antes que chegasse às mãos do símio e era algo grande: haviam marcas claras de ataque, como diversas escoriações e lascas na madeira, que só poderiam ser causadas por uma espada muito afiada. Compreendia as explicações dos cães para aquele estilo de vida, mas negava-se a acreditar que escolheram viajar naquilo apenas pela ideologia; não, com certeza havia algo a mais para fazê-los seguir por ali; algo além do “não tiveram outra opção”.

Sob os remendos de madeira e metal, haviam buracos maiores do que simples batidas em pedras. Cheiravam a canhões; a guerra. Contudo, para Shari, que há muito trabalhava com navios de guerra e outras embarcações prontas para o combate — inclusive, já participara de alguns consertos de galeões marinheiros —, era sem dúvida muito estranho um barco pesqueiro aparecer tão avariado, como se tivesse lutado de frente com um cruel bando pirata. Juntando os pontos, não precisava muito para imaginar que isso deveria ter a ver com tamanho ímpeto de correr atrás de um bando que há tanto tempo sumira do East Blue, mas até que ponto danos tão velhos poderiam segurar um capitão de seguir seus objetivos? E, acima disso, como poderia ele passar pela Montanha Invertida com buracos desse tamanho, considerando que o metal que prendia uma tábua na outra ainda não estava enferrujado?

Fosse o que fosse, Shari preferiu não pensar muito sobre isso. As feridas do Capitão-Mendigo, como diria Pieri, eram profundas demais para que um simples mecânico pudessem desvendá-las e, naquele momento, sua única função era garantir que os cães não afundassem junto das amarguras de Hanzo. Desta forma, como o que havia de ser feito era muito, e aproveitando-se da força de Apollo, arrastou-o consigo em direção a orla da praia em busca de algo que lhe trouxesse alguma luz: talvez os deuses do mar fossem benevolentes e encontrassem algumas cascas de árvores jogadas na areia (ou uma forca para poder se matar, os dois serviam).

E, no entanto, por mais que estivesse de dedos cruzados e trazendo de volta uma fé que há mais de uma década não tinha, o mecânico não estava preparado para uma bênção tão expressiva. Costumava pedir muito aos céus por auxílio — um velho costume que herdara de seu mestre, um homem de grande fé — porém, como um bom cético que era, nunca esperava que realmente fosse ser ouvido. Afinal, havia pessoas muito mais merecedoras de bênçãos divinas do que ele, que trocou o conforto pela cachaça e pelo jogo, não obstante, ao observar as placas gigantescas de metal jogadas sobre a areia da praia, o mecânico se viu pela primeira vez prestes a cair de joelhos e entregar sua alma a primeira entidade que aceitasse sua reza.

Mesmerizado com aquele encanto, caminhou em meio aos destroços até que um fragmento metálico em especial chamou sua atenção: pegou-o em mãos imaginando que o observando de perto poderia determinar qual a verdadeira origem daquilo, e então novamente seus olhos se arregalaram e sua respiração foi automaticamente cortada pelo choque. Os deuses infelizmente não tomariam sua alma naquele dia e, se tudo corresse bem, poderia aproveitar uma longa vida longe dos milagres e outros fiéis deslumbrados. Foi com um desagrado terrível que a conclusão de que nunca havia encostado em um fragmento metálico como aquele veio; e, veja bem, quando o assunto era trabalho, Shari jamais se enganava — ao menos em relação a isso tinha uma memória perfeita. Uma pressão funesta tomou seu peito.

— Apollo, quanto eu bebi hoje? — perguntou para o cozinheiro, que ajeitava em suas costas as grandes e lisas placas de metal, preparando-se para retornar ao cais.

— Mais do que o suficiente, meu amigo! — riu, lançando um sorriso gentil em direção ao mecânico e, por fim, tomou seu rumo — Lhe farei um café, assim que chegarmos.

Shari não respondeu. O fragmento metálico que antes estava em suas mãos foi lançado para o mar, flutuando, e não afundando, como deveria de ser. No mar, a gravura da ave metálica fluía leve sobre as ondas enquanto era levada para encontrar novos rumos. Apollo não pareceu dar muita bola para o que estava acontecendo: para ele, era apenas mais um milagre. Entretanto, para quem não tinha fé, aquela aberração não parecia nada além de um gigantesco mau presságio; um problema que, se não fosse parado ali, silenciosamente caminharia pelos oceanos, alastrando-se como um parasita oportunista até que não sobrasse ninguém para infectar.

Esse era o problema dos milagres: são pragas contagiosas que grudam como uma película de sujeira nos olhos e impedem de ver a verdade. Certamente, os deuses tinham um senso de humor regado à perversidade — porque, agora, o preço da “ajuda” que oferecia aos Cães seria coberto por outrem.

“Bom, hora de pôr as mãos na massa”, falou consigo mesmo sem grande entusiasmo ou ao menos dizendo em voz alta, pois não havia tempo para lamentar com tanto trabalho a fazer. Era um tolo, talvez o maior de todos eles e por isso fez um desafio ao destino antes de seguir as ordens diretas de Pieri; somente quando ela retornasse poderia finalmente beber uma cerveja acompanhada de um dos seus melhores charutos, afinal, sua capitã nunca perderia. Sobreviver aquilo… Esse seria seu maior milagre.

≈≈≈

Certamente a necessidade de trabalhar em grupos incomodava Fang, não porque sentia qualquer tipo de antipatia pelos pierrôs que o acompanhariam nessa jornada (pelo contrário, até poderia dizer que sentia algum apreço por Yolanda), e sim porque passar horas em uma floresta com outros indivíduos lhe trazia uma gama inteira de inseguranças que somente aqueles com a mesma condição aquática que ele poderiam entender. Afinal, educação era completamente diferente de manter conversas, assim como “papos vazios” se divergiam totalmente da ideia de “amizade saudável”. Isto é, se quisesse alguém para oferecer chá e perguntar sobre o tempo, isso era com ele mesmo, mas como poderia manter uma conversa além disso sem parecer um completo esquisitão? E, mais importante que isso: era mesmo necessário manter um diálogo durante uma missão dessas? Sem escolha, e a mais de meia hora caminhando torto pela terra fofa sem encontrar respostas, era nesse dilema que se encontrava. Deveria ou não puxar assunto com os dois piratas a sua frente? E, se fosse o caso, sobre o que deveria falar? De fato, nada parecia tão interessante assim para se dar o trabalho de pontuar. A imensidão verde roubava o horizonte e, dentre os únicos artefatos diferenciados, depois de dez iguais, os esqueletos de metal jogados ao acaso perto das árvores não pareciam tão interessantes mais — havia perdido a chance de comentar sobre eles. Droga.

Que havia algo muito errado naquele lugar, isto era certo. O homem-peixe sempre fora intuitivo e, sem sombra de dúvidas, fora seu instinto que o mantivera vivo até então, porém, naquele instante sua honra valia muito mais que a incerteza, e dessa forma tentava afastar tudo que viesse a sua mente para se concentrar apenas em manter a promessa que fizera a Hanzo — a de ajudá-lo com sua missão, desde que, no futuro, ele o ajudasse com a sua, no caso. No fim das contas, Fang estava disposto a aceitar um pouco de tudo em sua vida, entretanto, se conquistava a confiança de alguém, como fizera com seu capitão, daria seu jeito para manter a palavra e não jogar fora toda uma amizade, até porque não é todo mundo que estende o braço para um tubarão.

— Vocês têm sorte de ter um capitão centrado — soprou Nicholas, interrompendo os devaneios de Fang, que quase deu de cara com uma árvore ao perceber que, sim, estava sendo requisitado para uma conversa. (Por um momento, somente cruzou os dedos para não ter perdido nada enquanto estava dialogando com seu próprio cérebro).

— Centrado, você diz... — iniciou, sem parar de andar, muito menos parando para pensar, mas antes de terminar a frase, o garoto continua:

— Ele é um cara muito legal — pontua — Ele se jogou reto, feito uma tora, de um penhasco! Eu nunca vi algo assim em toda minha vida. E, veja, minha ilha natal era cheia de pessoas capazes.

— Isso é algo considerado “legal”? — Fang perguntou ao garoto sem um pingo de ironia em seu tom de voz. Para falar a verdade, achou a decisão de pular daquela maneira inacreditavelmente inconsequente, pois, afinal, qual era o ganho real de se jogar na água de pé, senão uma perna quebrada? Todavia, uma vez que Nicholas parecia realmente gostar daquela ação, pensou que pudesse ser um costume humano; algo que, por não conviver muito com pessoas desde que fora embora de Sabaody, acabou deixando passar.

— Claro que sim, bobinho! — A mulher, que antes estava na frente dos dois, se vira para dizer, enquanto coloca as duas mãos na cintura — Eu e o Polly quase derrubamos os queixos no mar!

Fang arqueou uma das sobrancelhas, demorando alguns segundos para compreender que “Polly” se tratava do cozinheiro; um apelido um tanto incomum para um homem gigantesco como aquele, porém não estava na posição de julgar. Ao lado, Nicholas não pareceu nada acanhado ao revirar os olhos e soltar um suspiro de descrença.

— Bem, confio na palavra de vocês, mas não deixei de me preocupar. A escolha foi um tanto irresponsável — explica o homem-peixe, recebendo um olhar de curiosidade do garoto ao seu lado.

— Irresponsável?

— Claro, bobinho — mais uma vez, Yolanda se intrometeu, enfatizando o apelido com mais ternura dessa vez; realmente tratava Nicholas como se fosse uma criança. — Ele poderia ter quebrado as duas pernas! Por isso foi tão legal — acrescenta, com os olhos brilhando de uma maneira curiosa e colocando suas duas mãos na bochecha com certa euforia — Quase não pude acreditar quando o vi de pé após aquela queda, consegui algumas moedas de Shari graças a isso!

— Não acredito que vocês apostaram até sobre isso! — O garoto repreendeu, com a face um tanto retorcida. — Vocês deveriam parar de apostar sobre tudo, É um péssimo costume

— Shari apostou que você diria isso! — Yolanda, por sua vez, o respondeu com um sorriso ladino, parecendo não dar a mínima para a bronca que acabara de levar e ainda se preparando para dar um leve soco-de-bigode em sua cabeça, no entanto, antes que o fizesse, com a ponta do dedo indicador, Fang pediu para que ficassem ambos em silêncio.

— Vocês estão ouvindo isso também? — perguntou ele, olhando os arredores, cauteloso. O espadachim preparou para desembainhar sua espada, enquanto os dois combatentes erguiam os seis punhos ao ar.

— Parece um… — Nicholas inicia, mas não consegue finalizar, pois um alto apito tomou sua audição, seguido de um breve silêncio e, por fim, um grito de aviso tão ameaçador que fazia parecer a gargalhada de Pieri parecer música de ninar.

Acuados, os piratas observavam os arredores, encostando suas costas enquanto tentavam buscar a direção de origem para todos os lados, mas não encontraram nada na mata densa. O barulho continuava cada vez mais forte e, quando se tornou insuportável, Nicholas foi o primeiro a cair no chão, colocando a cabeça entre os joelhos para abafar as orelhas e contendo-se para que lágrimas não caíssem de seus olhos; era de fato orgulhoso, contudo, o medo que sentia pelo desconhecido era primordialmente mais forte do que qualquer tipo de dignidade que sua vida passada pudesse ter cravado em seu âmago — temia fantasmas da mesma maneira que o próprio diabo e algo tão terrível quanto aquilo não estava nem próximo do que tinha em sua compreensão. Ao seu lado, Yolanda já tinha sangue escorrendo de seu ouvido; seu tímpano direito havia cedido a poucos segundos atrás e no momento em que nada ouviu, acreditou ser acometida por uma surdez momentânea e pôde por fim soltar um suspiro de alívio. Sua cabeça doía tanto que poderia desmaiar a qualquer segundo. Entretanto, a vida não lhe permitiu o descanso e, antes que percebesse, havia sido lançada ao chão junto de Fang. “Abaixem-se”, ele disse, e como ouviu o grito claramente, percebeu que afinal não estava surda, mas de toda forma a voz do homem-peixe pareceu-lhe tão abafada que só julgou-a como um grito por ver as veias de seu pescoço pulsarem assim como o pomo-de-adão.

Finalmente, uma revoada de pássaros surgiu em meio a imensidão da floresta, estavam respondendo ao chamado. Voavam com um único objetivo, todos na mesma direção e nem mesmo uma das aves pareceu notar a presença daqueles humanos, eles não eram o real objetivo e tampouco uma distração: se não estivessem deitados rentes ao chão, a unanimidade da força das aves os levariam embora em segundos, sendo atravessados por animais que sequer teriam consciência de seus atos. E, então, segundos depois, nada. O silêncio retornou de maneira angustiante e, cegos, todos os pássaros sumiram além do horizonte deixando para trás apenas um rastro de destruição: troncos de árvores dilacerados pelos finos bicos e uma parcela considerável das folhagens agora jaziam ao chão.

— Vocês… — Fang inicia, ofegante, e rapidamente retira o braço pesado das costas de Nicholas, ao notar que quase o sufocava — … estão bem?

Ninguém o respondeu de prontidão. Em vez disso, ergueram só o tronco atordoados, se esforçando para sentar-se sobre as pernas e então trocar olhares de pura confusão. Nicholas sem sombra de dúvidas era o mais afetado dos três: sua feição estava acinzentada e os lábios roxos aparentavam estar a um passo do colapso, isto é, se já não houvesse colapsado há muito tempo. Sem muitas forças, ele somente meneou com a cabeça para o homem-peixe, tentando tranquilizá-lo e dizer que estava bem, entretanto, seus joelhos cederam no momento que tentou se levantar. Estava completamente derrotado.

— Me dê cobertura pelas costas, irei levá-lo! — Yolanda ordenou a Fang, em um tom muito mais alto do que normalmente falaria, já que não tinha mais controle sobre sua própria voz, enquanto deformava seus pelos faciais para enrolar o garoto em uma pequena trouxinha e então segurá-lo em suas costas. Doía um pouco, é verdade, seu bigode não era treinado para levantar tanto peso e tampouco para ficar esticado e embolado em suas costas, contudo, dada a situação, essa era a forma mais fácil de sair dali sem perder os braços para uma vindoura luta, por isso teria de aguentar — Temos que seguir esse rastro, é nossa maior pista!

— Eles estão todos lá — disse o homem, seguindo-a, pois a moça já havia iniciado sua caminhada rápida pelos arbustos quebrados — Não é perigoso levá-lo junto? — perguntou.

— O QUÊ? — Yolanda berrou.

— Não grite! — o homem-peixe calou-a novamente com o indicador colado ao seu próprio lábio e repetiu lentamente o que havia dito.

A mulher então afastou-se e, percebendo que estava excedendo o tom, pediu: — Desculpa! Mas, não se preocupe, ele logo se recupera! — explica, apontando o garoto no casulo de pelos — Nicholas é um medroso e está apenas em choque. Tinha que ver quando ele viu Kristian pela primeira vez! — e dá uma risada que, mesmo sem perceber, é mais alta do que deveria (mas não havia o que ser feito, era incapaz de falar mais baixo do que o zumbido constante em seus ouvidos).

Dessa vez, foi Fang quem deixou escapar um riso contido. Não que fosse sádico, longe disso, mas conviver durante quase uma semana com os Pierrôs havia lhe provido uma casca dura para piadas de moral duvidosa — haviam acabado de sofrer um ataque e, nem mesmo isso havia abalado o humor da bigoduda — e, acima disso, passou a achar especialmente engraçada a convivência de seus aliados temporários. Quer dizer, para eles tudo era apostaUm jogo? Por mais estranho que possa parecer, decerto essa forma leve de levar a vida estava lhe fazendo bem, posto que, desde que se juntara a Hanzo, o trabalho havia se tornado mais importante do que tudo. Mesmo enquanto parados na ilha precedente, não havia tempo para descanso ou diversão; estavam sempre ajudando com o conserto do barco ou então pesquisando sobre o inimigo; cozinhando ou limpando os equipamentos de batalha... Independente do que fosse, estavam sempre de cabeça cheia, nunca vadiando. Certa vez, Sherikan trouxe um baralho de cartas para que pudessem jogar depois do jantar, contudo, invés de receber uma recusa simpática, seu capitão apenas franziu o cenho e se dirigiu para o quarto, nunca mais abordando o assunto com ninguém — talvez o jogo fosse algo contra os próprios princípios, não tinha como saber — e Yun, por sua vez, dificilmente se importava com qualquer trivialidade que não fosse seus quadros, então ficou por isso mesmo; apenas mais uma fútil tentativa de trazer o mínimo de descontração esquecida no canto da sala, como um bibelô de asa quebrada ou pires rachado.

A tanto tempo não compreendia o sentido de levar os dias com humor… isto é, se é que algum dia realmente soube sentir a leveza dos dias. Afinal, se alguém podia sorrir com os ouvidos sangrando, quem era ele para negar-lhe um sorriso? A vida nunca mais tivera aquela tranquilidade desde que Lilac partira e, mesmo que não fosse de seu agrado, sabia que demoraria a sentir-se tranquilo novamente, pois os Pierrôs passavam uma estranha sensação de paz (ou melhor dizendo, ao menos nos momentos em que não estavam brigando entre si e propondo duelos uns aos outros). Depois de muito tempo adormecido, finalmente o sentimento de casa retornara ao seu peito e, sobre todas as suas inseguranças de sua vida e a fraqueza que tivera outrora, decidiu que, dessa vez, iria lutar.

Se era forte ou não, que seja. Em nome de sua mãe e de todos que já conheceu, agora iria fazer o possível para proteger o mais próximo que chegou de família.

≈≈≈

Perto da hora em que Yolanda fica quase surda e Nicholas tem um colapso mental, do outro lado da ilha, Franz está se perguntando se não havia forma nenhuma de ter ficado no barco junto de Shari e Apollo, invés de arriscar sua vida junto de Yun e Sherikan. É claro que, mesmo que tivesse dito alguma coisa a Pieri, sua opinião dificilmente seria levada em conta, mas, de verdade, havia algo fundamentalmente errado em devanear sobre os “e ses”? No final das contas, graças a sua falta de ímpeto em questionar sua capitã, agora andava pela mata com roupas desconfortáveis e dois dos cães ao seu lado, prontos para morder até uma casca de árvore se ela os olhasse torto de alguma forma.

Não que estivesse com medo, muito pelo contrário, aliás; como não tinha a menor noção de quem estavam enfrentando, a sensação de temor não passou nem por um segundo diante de si, contudo, a verdadeira razão por preferir aguardar no submarino era simples: nunca se considerou um homem de batalhas e jamais poderia bater no peito dizendo ser pirata. Sabia lutar o mínimo para não ser morto, entretanto, não se garantia em briga alguma; preferia cuidar das feridas de seus companheiros e alegrá-los com bons truques de mágica após as brigas — esta que era sua verdadeira vocação, diga-se de passagem. Jamais desejou a pirataria; apenas pensou que Pieri estivesse guiando um circo itinerante. Afinal, quando percebeu que não era uma tenda e sim um submarino, já estava amarrado demais ao Diabo Negro para deixá-lo para trás. Amava os companheiros e, principalmente, seria esfaqueado por Pieri se decidisse ir embora seguir seu sonho, então, veja sólá estava Franz, mais uma vez pronto para um show de mágica.

— Eu não queria ter que sair com essa roupa piniquenta — diz à esmo, esperando que Yun, o cão-bravo-número-um, o respondesse, porque nos dias que passaram no submarino, já haviam criado alguma amizade.

Contudo, despistando qualquer relação que pudessem ter criado anteriormente, o outro médico não parecia nem um pouco disposto a conversar agora; caminhava a dois metros de distância dos outros dois companheiros, bufando como um touro e arrastando seus pés no chão de lama.

— Desista. Ele não vai te responder — explica Sherikan, alongando os braços atrás da nuca. Franz olhou para o espadachim de cabelos brancos com uma cara feia, e então o ignorou.

— Yunzinho, que feio me deixar falando sozinho assim! — deu uma corridinha para chegar perto do komainu e ao alcançá-lo lhe desferiu, sem vergonha alguma, um tapa em sua bunda.

Franz pareceu ter a boca cheia para dizer mais alguma groselha, porém, talvez por desejo divino, não deu tempo, porque antes que pudesse sibilar, seu alvo virou-se de uma única vez e apontou-lhe uma flecha bem entre os seus olhos. Yun estava com as orelhas avermelhadas, entregando que além de transtornado, também ficou consideravelmente envergonhado. Alguns passos atrás, Sherikan se encontrava em um estado de choque igual, ou senão maior que o do arqueiro; havia percebido que o médico pierrô não batia bem da cabeça, mas não imaginava que ele pudesse ser tão sem noção.

— Agora que está puto comigo, pode voltar a falar, Yunyun. — e segurou a flecha com uma das mãos, obrigando o outro a baixá-la. Em momento algum temia ser atacado e, ainda que Yun o olhasse com ódio, sequer piscou com a arma apontando a sua testa; era um pirata de Pieri no fim das contas, e ameaças de morte não lhe diziam nada.

Pela segunda vez naquele dia, Sherikan se viu em uma realidade paralela, contra tudo que imaginava e preparando-se para separar uma possível briga dos companheiros, não houve briga alguma. Somente o silêncio — e alguns sons da mata — tomaram parte.

— Você não tem medo de morrer? — perguntou o médico-cão com um tom de voz indignado, guardando a flecha que havia puxado e retornando a andar, agora ao lado do pierrô.

— Medo eu tenho bastante — ele responde, colocando as mãos para trás das costas e dando uns passos para trás — Mas, se for para morrer, eu prefiro que seja com meus amigos sorrindo do que com todo mundo com cara de enterro.

Yun riu — contido, mas não deixava de ser uma risada. Strike. Pela terceira vez, Sherikan perdeu o chão, sem conseguir conceber a loucura que estava presenciando. Afinal, desde que conheceu o médico de sua tripulação, nunca o viu rir (inclusive questionava-se constantemente se ele tinha a capacidade de sentir-se alegre com algo), mas agora, por algum motivo, tanto ele quanto Hanzo pareciam perder as estribeiras com frequência, como se uma onda de leveza pairasse sobre suas cabeças. Talvez, só talvez…

— Eu suponho que seja por isso que vocês se intitulam os “pierrôs”? — indagou ao médico loiro. Yun arqueou uma sobrancelha para si, e Franz, por um segundo, deixou escapar um risinho frouxo, respondendo em seguida.

— Errado! — ergueu seu indicador, médio e polegar, fazendo uma arma com sua mão e apontando para o centro da cabeça do espadachim: — Se a Pieri estivesse aqui agora, você já estaria esguichando no chão. Ela odeia que nos comparem a palhaços.

— Isso faz algum sentido? — dessa vez fora Yun quem perguntou.

— Não realmente. Nós apostamos quem teria coragem de perguntar a Pieri a razão disso e foi assim que o Shari perdeu o braço — respondeu. Ao contrário dos cães, Franz não parecia transmitir emoção alguma ao falar aquilo, e até mesmo soltou uma risadinha torpe.

— Ele ficou bem depois disso?! — perguntou Sherikan visivelmente preocupado, enquanto Yun resmungava algo sobre a capitã ser obcecada por decepar braços de seus subordinados.

— Ficou sim, era o braço mecânico, afinal. Não me deram trabalho dessa vez — afirmou com um sorriso despreocupado, contudo isso não bastou para que a feição de choque saísse da face do espadachim — Algum tempo depois o zumbi, o protegido dela, perguntou e ela disse que “Nós somos melhores que isso”, seja lá o que isso significa — deu de ombros.

— A sua capitã não havia arrancado o braço de Kristian também? — retifica Yun. 

— Mas o dele, ela devolve — explicou sorridente — O Shari teve que fazer outro; ela jogou o antigo no mar.

— Mas isso continua sem fazer sentido algum-

Contudo, antes que Sherikan pudesse questionar qualquer conduta que envolvesse o drama diário dos pierrôs, de supetão um barulho estridente invadiu seus ouvidos: um apito ao longe, parecendo uma chaleira com água em ebulição. Os três piratas se olharam por um breve instante, investigando se tinham alguma ideia sobre o que se tratava, e então, mais surpreendente que o primeiro, uma segunda onda sonora invadiu seus tímpanos: um grito estridente em coro, seguido de um gigantesco farfalhar das árvores. Não precisaram rediscutir o plano; ignorar a estratégia de Hanzo foi um consenso geral e logo já estavam tomando rumo em direção ao barulho: a parte norte da ilha, oposto ao píer onde desembarcaram.

Pelo contrário do que imaginavam quando desembarcaram, à medida que os três se aproximavam da origem do barulho, as árvores que antes compunham uma floresta inabitada agora eram substituídas por colunas de concreto com feixes de luz forte ao topo, como uma espécie de sinalização de direção para alguém que os visse de cima. Não disseram nada sobre isso — não só porque estavam concentrados demais em sua própria defesa, mas, além disso, diretamente proporcional à aproximação do alvo, o ar estava se tornando cada vez mais espesso e quente, e por isso doía para respirar. Yun não disse que tomaria a dianteira, mas quando viram, ele já era o primeiro da fila indiana, segurando firme seu arco caso algo saltasse em sua direção. Na verdade, estavam todos em posição de defesa — a atmosfera ofensiva daquele local inspirava o sentimento de serem mal quistos —, mas como o mais velho dentre eles e com certeza o mais preparado para encarar as adversidades, ele se sentia obrigado a defendê-los (até porque era isso que seu capitão menos iria querer).

E então, da mesma maneira que iniciaram a corrida, Yun subitamente parou e, girando os calcanhares, sinalizou para que os companheiros de time permanecessem calados, movendo o dedo indicador e o médio para frente e para trás. Mesmo sem qualquer esperança de que isso fosse possível, torceu para que a mensagem de que estava ouvindo passos e estavam próximos ficasse clara, mas, para sua surpresa, apenas quem menos esperava foi capaz de compreender: Franz no mesmo instante entrou em uma posição defensiva, retirando de dentro do jaleco algo que pareciam agulhas e segurando quatro delas em meio aos dedos da mão direita, enquanto Sherikan, por sua vez, já estava há mais de um metro de distância, com a espada em mãos e…

— NÃO! — gritou Yun.

— EU ME CONVERTO!

Um grito estranho irrompeu do mesmo lugar onde Sherikan havia atacado, seguido de uma pancada abafada pela terra: algo como um saco cheio havia caído no chão. Pávido, Yun até perdeu as forças nas mãos, deixando tanto o arco quanto a flecha caírem inertes no chão. Franz e Sherikan olharam primeiro ao líder, depois um para o outro, para, por fim, notar que, a direita do saco caído no chão, havia uma Yolanda agora não tão bigoduda quanto antes e, ao seu lado, um Fang de cenho muito franzido.

— Mas que diabos! — ele repreendeu o espadachim de cabelos brancos, posteriormente andando em direção ao Pierrô caído e o colocando nas costas, como um saco de batatas — Perdeu o juízo, Sherikan? Você poderia ter matado o Nicholas!

— Como eu ia saber que eram vocês? Estamos em missão! — defendeu-se.

— Vamos em frente! — Yolanda interrompe os demais piratas, quase que gritando outra vez, embora tentasse diminuir seu tom de voz depois das inúmeras censuras que havia ouvido de Fang.

— Yozinha! — exclama Franz, erguendo a mão com as agulhas para acenar, como uma pequena comemoração de encontrar alguém conhecido — O que vocês estão fazendo aqui?

— Estamos perseguindo uma pista, querido! Fomos atacados por uns passarinhos irritantes! — explicou alto, logo puxando o bigode com a mão mesmo, para que voltasse ao seu tamanho “natural”. (Ao ver os pelos faciais voltando ao normal, Yun sentiu suas pernas fraquejarem, achando sinceramente que iria morrer ali mesmo, mas resolveu ignorar).

— Temos que seguir em frente enquanto ainda vemos o rastro. Dane-se o plano, estou com a sensação que vamos encontrar algo importante — avisou o homem-peixe, tomando a frente e voltando a correr sem esperar respostas. Pouco a pouco, os demais piratas já haviam tomado o seu passo.

— Você tem certeza, Fang? — um pouco ressabiado, Sherikan se obrigou a questionar; não duvidava dos instintos do navegador, mas era no mínimo estranho para si ir contra as ordens de Hanzo.

— Não tem nenhuma base para o lado onde estávamos e, pelo rosto de vocês, suponho que não tenham encontrado nada para oeste também — ele pontua. — Se não formos para a única direção que falta, não vamos ter servido de nada para distrair os soldados.

— Então você não está desobedecendo o Senhor Hanzo! — murmurou Nicholas em suas costas, ainda meio zonzo, como se estivesse descobrindo algo incrível. Fang concluiu que a pancada em sua cabeça somada ao choque do barulho não poderiam fazer bem.

— E, no entanto, ele vai interpretar como tal de qualquer forma... — o espadachim torce o lábio.

O homem peixe para de andar, dando um suspiro cansado e ajeitando o garoto em suas costas. Depois de um segundo, por fim, ele levanta o polegar e sorri a Sherikan: — Se você não contar, eu não conto.

E voltou a andar, como se nada tivesse acontecido. Não tinham esse tempo todo para perder.

≈≈≈

O ar se tornando insuportavelmente quente e a escassez de árvores eram um bom sinal de que estavam chegando ao seu objetivo final, no entanto, foi só quando deram de cara com uma parede de metal sólido casualmente posicionada no centro de uma clareira que notaram, de vez, que não poderiam prosseguir por ali: haviam chegado à uma das bases e, por isso, precisavam recuar. Alguns passos para trás, agora escondendo-se em meio à mata — e torcendo para que seu momento de vulnerabilidade não fosse aproveitado pelo inimigo —, esperaram por longos minutos em posição de defesa, entretanto nada viera ao seu encontro; de alguma forma, não foram ouvidos por ninguém. Silenciosamente, então, Franz retirou de seu jaleco um binóculo (algo que, certamente, calhou muito mais do que qualquer um de seus infames truques de mágica) e sinalizou aos demais que iria averiguar o território. Não demorou muito para que alcançasse a copa da árvore, e agora com o conhecimento de que os inimigos dominavam os ares, expôs sua cabeça até pouco mais dos olhos em meio às folhas, girando o pescoço ao leste se deparou com duas figuras no mínimo peculiares, algo que nem mesmo seus estudos sobre anatomia o prepararam para compreender: eram figuras humanoides, isto é, poderia encontrar algo de humano em suas características, contudo, todo o resto pertencia as aves.

De tronco largo e pernas finas, uma longa penugem encobria seus corpos, saindo dos braços como se fossem echarpes imitando asas, mas parte da pele e, como se não bastasse isso, nada o chocou mais do que os olhos afastados para as laterais do crânio e com escleras completamente pretas, contrastadas pelas íris amareladas. Franz, por mais que um pouco amedrontado por ser o único defronte ao seus inimigos, não pôde evitar de se sentir instigado pelo que estava observando; seu maior interesse sempre foi a mágica, é verdade, mas nem mesmo o ilusionismo era capaz de criar uma curiosidade ímpar e, talvez pela primeira vez em toda sua vida, agradeceu por sua segunda vocação (a medicina) por proporcionar sua estadia no navio de Pieri, a única capaz de levá-lo a criaturas tão geniais. Guiado pelo interesse genuíno, por fim, o garoto se esticou um pouco mais sobre o galho para enxergar o que podia dentro da instalação: era um prédio escuro e muito amplo, sem luzes refletindo nas paredes e, portanto, sem pista do que estava por dentro. Foi com pesar que concluiu que a sorte, como na grande maioria das vezes, não estava ao seu favor, e para completar o desastre, ao se aproximar um pouquinho mais, o galho despencou. Por um segundo sentiu uma culpa lacerante, desejou aproximar-se demais do sol e agora todos pagariam por sua estupidez e, ao tocar no chão...

Não houve reação.

Olhou ao redor; somente Yun o encarava prestes a dizer algo e, ao girar o pescoço procurando alguma reação nos demais piratas, Fang e Sherikan o olharam por uma fração de segundo até logo retornarem ao seus postos. Yolanda não mexera sequer um músculo. Continuou estática e, sem sombra de dúvidas, este não era um comportamento comum, afinal, dentre todas as qualidades da mulher, a preocupação certamente era uma das mais expressivas. Cá estava o “x” da sua questão. Tomado por uma sensação avassaladora, Franz observou-a com cuidado, erguendo-se com os cotovelos para vê-la tampado a parte lateral do rosto com os cabelos, mas ainda restavam alguns indícios de sangramento em seu ombro e costas e mesmo que temporariamente, o médico soube que ela estava parcialmente surda. Sem aviso, lançou-se novamente nos galhos, tornando a observar as criaturas animalescas com muito cuidado e, ao provar-se certo, permitiu-se soltar um suspiro de alívio: não havia estragado tudo, tampouco poderia, uma vez que aquelas criaturas não tinham a capacidade de escutar — diferente de sua companheira de bando, que somente ficaria desta forma por algum tempo, as criaturas não tinham canal auditivo algum.

Saltou ao chão, sem medo.

— Vai ficar tudo bem! — explicou alto, estalando a língua no céu da boca e sorrindo largo com os dois polegares altos e uma piscadela ladina no olho direito. Os demais companheiros o olharam com os olhos arregalados (com exceção de Yolanda, é claro, para ela, o barulho estava normal). — Precisamos tomar cuidado com seus olhos, de resto, são completamente surdos.

— O que é que te garante isso? — sussurrou Sherikan.

— Mesmo com minha queda, eles não mudaram de posição e, principalmente, eles não têm ouvidos, ou qualquer coisa semelhante em seus crânios. — respondeu Franz, agora um pouco mais baixo que antes e encarando o outro médico seriamente — Eu tenho certeza. Pode checar.

E estendeu os binóculos para Yun, mas ele o recusou.

— Eu confio em você — pontua, dando de ombros. — Quanto ao resto?

— Subam novamente e verifiquem o resto da planta. Consegue definir um plano, Yun? — dessa vez foi Fang quem interrompeu. — Se eu subir, com certeza serei descoberto.

— Não é como se eu fosse exatamente pequeno, também — Yun franziu o cenho. Era o mais alto dos homens, isto é, com exceção do Fang, mas a verdade é que ele não deveria nem ser considerado (dois metros e meio de altura já passavam dos limites de aceitável a alguém comum).

Porém, Franz não deixou que o outro continuasse reclamando e apenas o puxou para que retornassem a copa da árvore; não fazia sentido para si aquela discussão, uma vez que, em sua concepção, Little Fang era o imediato dos cães e havia dado uma ordem direta a eles — mas faltava-lhe a informação de que, bem no fundo, o homem-peixe não estava ordenando ninguém à nada; ele só queria navegar. De volta as folhas, entregou nas mãos do komainu o binóculo e informou que ao sul encontravam-se as criaturas ovíparas, entretanto, dessa vez não havia nada por lá e um arrepio os tomou desde a ponta até o final da espinha. Yun então girou o tronco, buscando em qualquer direção alguma pista dos guardas desaparecidos e, de alguma forma, o que encontraram era deveras mais aterrorizante que seu sumiço. Ao sudeste e dentro da fortaleza, ambas as criaturas agora acariciavam uma pequena entidade, de características semelhantes e feição sonolenta: era um recém nascido, com poucas plumas e olhos pequenos, mas sem sombra de dúvidas um descendente daquelas monstruosidades.

 O que diabos... — sussurrou baixo, entregando o binóculo para Franz e indicando com os dedos a direção que deveria olhar.

— Isso é... — o rapaz precisou de um segundo para se recuperar, antes de confirmar o que Yun se negava a acreditar: — É uma... maternidade? — completou, sem fôlego.

Não houve uma resposta senão um frio acenar de cabeça, seguido de um engolir em seco. O komainu sentiu seu peito aterrar ao tomar o binóculo de novo, observando a face da pequena criatura de rosto arredondado, sibilando algo com sua boquinha em má formação até que… De súpeto, seu rosto deixou o perfil para se virar defronte, olhando-o diretamente através das lentes do equipamento. Yun ia dizer algo, mas nem um singelo “não” saiu de seus lábios quando notou o bebê erguendo o pequeno dedo em sua direção; tampouco quando o viu encher o pulmão e, com toda a força embutida em seu pequeno corpo, gritar para que todos de sua espécie acordassem e partissem em direção de seu inimigo escondido nas árvores. Era um grito de alerta. Eles haviam sido descobertos.

O frenesi tomou conta dos piratas ao notar que, de uma hora para a outra, os passos dos soldados iniciaram uma corrida para dentro da base e então, um farol vermelho os iluminou diretamente.

— YOLANDA, NICHOLAS! ESCONDAM-SE! — Yun gritou alto o suficiente para que a pierrô o ouvisse e tomasse o espadachim desacordado dos braços de Fang, partindo dali o quanto antes; não era seguro que lutassem na condição que estavam e somente estariam se expondo à derrota.

— CUIDEM DE NÓS! — Fang gritou, partindo para a incubadora junto de Sherikan, que já tirava suas espadas da bainha.

— PO’DEIXA! — gritou Franz, de cima da árvore, e em um passe rápido, tirou suas agulhas do jaleco e sem hesitar nem por um segundo lançou-as em direção aos dois guardas mais próximos, acertando duas das quatro no alvo, uma em cada, e mais uma que, de raspão, pegou a bochecha flácida da criança. 

Quando o espadachim e o combatente chegaram à boca da base, os três já estavam completamente paralisados. Estarrecido, Sherikan sentiu-se enjoado ao ver os corpos se amolecendo por um breve instante, até que caíram, inertes. Mesmo que estivesse em uma missão, para si era inevitável não culpar-se, embora o direito de “sentir” algo não fosse permitido aos espadachins, uma vez que, sem dó, as espadas e floretes dos soldados sempre vinham em sua direção. Com um movimento de espada, tentou desarmá-los, entretanto seus ataques não estavam sendo eficazes; quando lançava-lhes um golpe, os inimigos impulsionavam-se com suas asas e fugiam de suas lâminas. Por um momento, frustrou-se; não havia realmente considerado a força do inimigo e, por isso, não estava dando tudo de si — talvez estivesse comprometido com o próprio sentimentalismo. Olhou de rabo de olho para Fang, que já dava cabo de um homem pássaro com seus golpes de karatê-tritão, enquanto, ao redor, já poderia notar ao menos dois soldados abatidos pelo navegador e mais um sujeito mais furado que uma peneira; seus companheiros não pareciam estar no mesmo dilema que ele.

Respirou fundo, concentrando-se. Três pássaros corriam em sua direção e, usando a força em suas pernas, olhou diretamente para aquele que corria pela direita, cortando-o com um único golpe rápido e limpo. Poucos metros de distância, outro despencou dos céus, com uma flecha atravessada em seu peito e, ao aproveitar-se de seu milésimo de distração, o da esquerda viera lhe atacar com o florete em punhos, mas Sherikan utilizou-se de seus treinamentos na marinha para desviar com facilidade. O terceiro e último pássaro veio do centro e, por um instante, uma dor lancinante tomou seu corpo: ao olhar para baixo, notou que a criatura havia furtivamente cravado uma faca em sua carne da coxa e agora, mais do que nunca, corria em direção a si com a boca espumando e a espada em punhos; não havia misericórdia em seus olhos. Avançou, grasnando um grito desafinado e tentando fincar uma segunda vez, mas...

Entortou.

O pássaro recuou emparvoecido, e então não teve tempo de resposta, uma vez que Sherikan transformou-se parcialmente em um tigre, dando uma grande patada em seu dorso, lançando-o a metros de distância.

Ao redor, as aves continuavam a cair dos céus e, mesmo aquelas que as flechas não estavam presas em partes vitais permaneciam presas aos chão, sem muito sangue derramado, apenas como se dormissem confortavelmente um sono eterno. Ao notar as habilidades de Franz, Yun automaticamente o julgou como alguém cruel, afinal, utilizar-se de veneno durante as batalhas poderia ser considerado um costume bárbaro; havia maior perversidade do que observar o adversário padecer até a morte? Todavia, bastou uma comparação logística para que o médico aliado se visse obrigado a dar o braço a torcer para o pierrô: enquanto, normalmente, precisava lançar de duas à três flechas para derrubar um inimigo bem treinado, bastava uma flecha embebida no tranquilizante para que caíssem em segundos; sem espumar ou se contorcer, apenas parando de se mexer aos poucos até que não respirassem mais. Querendo ou não, era ele quem estava sendo mais humano ali; não havia forma de morrer mais tranquila que aquela — e mesmo Hanzo, adepto da moda antiga, deveria aceitar isso.

Os céus pareciam cada vez menos congestionados e, para a surpresa dos médicos, cada vez menos combatentes os atacavam pelos ares, até que este número tornou-se simplesmente nulo. Estavam com a situação domada; desocupados. Todavia, para Yun, aquela situação era bem mais que inconcebível — no fim das contas, observando minimamente a anatomia das criaturas, não era mais vantajoso que os oprimissem com suas asas? Destarte, acostumado com a guerra e também com o fato de uma batalha nunca estar indubitavelmente ganha (sempre poderiam estar em desvantagem e não saber), continuou aguardando por um ataque surpresa e não permitiu-se nem piscar, premeditando o inimaginável; mas os minutos passavam e cada vez mais inimigos caminhavam pela terra enquanto nem mesmo um se dirigia à copa das árvores.

Colocando o parceiro na vigília, aproveitou os segundo de calmaria para lavar e fazer uma atadura no ferimento que latejava em seu braço direito — não tinha como saber se havia alguma toxina nas garras dos homens-pássaro, mas por ora preferiu pelo menos evitar uma infecção — e pôs-se a pensar sobre o que poderia estar acontecendo naquele lugar. Uma… incubadora, ruminou, tomando o arco mais uma vez em sua mão e acertando um último soldado que tentava atacar o espadachim pelas costas. Ninguém mais vinha pela entrada da maquinaria; todos os soldados estavam acabando aos poucos, e mesmo que fosse um lugar tão importante, não estavam lá para protegê-lo. Será que, por acaso, haviam outras maternidades mais importantes que aquela? Ou então não eram todos os ovos que deveriam ser protegidos? Haveria dentro deles outra hierarquia, talvez baseada nas subespécies?

— Estão parando de vir! — gritou Sherikan a Fang — Precisamos desligar o alerta e recuar!

Depois que a maioria dos soldados foi subjugada, por fim, Little Fang, que finalizava um último homem-pássaro acertando-o com um golpe certo em sua nuca, olhou para o espadachim cansado: sua feição estava cada vez menos humana, aumentando suas presas aos poucos e olhos se tornando mais fundos; finalmente, notou que a ferida na região de sua coxa, onde havia levado uma estocada e a faca ainda jazia dependurada, estava sangrando mais.

— Recue — ordena, muito sério, ajeitando o tecido de sua túnica sobre o corpo (ora, é claro que não iria nem se ferir aqui, onde já se viu, pensar em morrer sem seu belo terno?). — Eu vou terminar isso aqui.

Sherikan tentou erguer uma sobrancelha, mas a testa já estava se tornando proeminente demais para que pudesse fazê-lo com eficiência. — É só quebrar a lâmpada. Aí podemos seguir para ajudar o capitão.

A alguns metros, ambos os médicos surgiram correndo com seus equipamentos em mãos; Yun mais cauteloso, zelando pelos arredores com a arma ainda em punhos, enquanto o pierrô sequer pediu permissão, apenas ordenou que Sherikan se preparasse e arrancou de uma única vez a faca que estava cravada em seu corpo, em seguida passando algum medicamento que carregava dentro do jaleco no local e enfaixando-o de uma maneira que o permitisse continuar a andar.

— O remédio vai impedir o sangramento por algumas horas, no máximo. Evite movimentos bruscos e transformações — informou Franz com a feição sisuda e andando rapidamente em direção ao homem-peixe.

— Tem certeza que isso não é veneno? — perguntou Fang, com o máximo de bom-humor que a situação permitia, ao sentir as gotas do remédio caírem em sua pele.

— Se fosse, você já estaria roncando, Sr. Peixe.

— Para sempre — completou Yun, cínico, lançando um olhar severo para o médico loiro.

Um silêncio mórbido tomou o local. Ninguém se dispôs a continuar a conversa, tampouco rir ou sequer reagir ao comentário ácido do cão; cercados pelos corpos inertes dos inimigos abatidos, não havia nada que pudesse ser dito para amenizar a pressão que sentiam em seus peitos e, sobretudo, ainda estavam longe de terminar seu trabalho por ali. Isto porque… faltavam os ovos.

Yun suspirou, tudo aquilo o desagradava de uma maneira que sequer poderia mensurar, entretanto alguém ali precisava encarar o destino com frieza: permitir o direito do nascimento àquelas crianças era uma faca de dois gumes, poderiam nascer e desenvolver-se de maneira adequada, ou então seguiriam a mesma ordem que seus ancestrais, buscando a supremacia racial sobre as demais espécies. Certamente sua aparência não era o problema, afinal quantas criaturas inimagináveis existiam pelo mundo afora? Estranhos o quanto fossem, de bigodes ou de dois metros e meio, não era certo que a decisão de existir ou não dependesse apenas da sua carcaça exterior. Contudo, não havia forma de garantir a segurança da diversidade como um todo se os deixassem para trás. O que valia mais, extingui-los agora, antes que nascessem, ou deixar que todos crescessem e tivessem o livre arbítrio de destruir ou não a humanidade?

— Como resolveremos isso? — perguntou Yun, sentindo o estômago revirar e um gosto amargo surgindo em sua boca. Ele não acreditava em Deus, mas por um segundo perguntou aos céus se, por acaso, os piratas de Wano, se é que existiam piratas naquela época, eliminaram sua civilização e alguns de seus antepassados porque estavam atrás da resposta para essa mesma pergunta intransigente. Talvez sua própria existência fosse fruto de escolhas erradas.

— Infelizmente não temos opção, Yun — o homem-peixe o respondeu sério, porém seu tom estava repleto de pesar — Já disse a Sherikan, podem recuar. Prefiro que não passem por isso.

Então o espadachim pareceu despertar em seu próprio local, arregalando os olhos e encarando os companheiros com a face estarrecida: — Isso não está em nossas mãos. Por favor, vamos apenas desligar os aquecedores — suplicou. Em sua mente, milhares de pensamentos rondavam, e um deles era o de sua irmã — Isso não é algo que possamos escolher! Desligamos tudo e então deixamos nas mãos do destino.

— Talvez, se o destino fosse menos cruel, sequer teríamos os encontrado — o médico-cão falou, em um fio de voz. — Se eu pudesse, eu preferia...

— Cruel ou não, nós já estamos aqui, Yun — interrompeu Fang. — Nesse ponto da sua história, não adianta pensar que preferia nunca ter existido. Você está aqui, vivo, e é sua escolha que importa. É nosso imediato, afinal.

Yun encarou o chão, a sensação de impotência dominava sua mente. De que adiantava seu cargo quando tudo que desejava era jamais ter aceitado aquela missão? Não conseguia ser bondoso como o espadachim e, tampouco, tinha a temperança do navegador para basear suas decisões; era um erro de estatística, escapou da morte tantas vezes que sentia-se em débito com o destino, entretanto se aquela era a forma de pagar por sua existência, desejaria desaparecer naquele mesmo instante.

— Yunzinho, vamos apenas desligar as luzes. Você sabe tão bem quanto eu o que aconteceu — afirmou Franz, que até então mantinha-se calado e aguardando pelos próximos passos — Tudo que foi feito aqui não respeita a natureza, mas se ela os perdoar, então não cabe a nós cortar essa raiz antes dela nascer.

O imediato apertou os olhos e os punhos, mas não disse nada. Com um singelo sinal com a cabeça, pediu ao companheiro de profissão que finalizasse e, tomando como um sim, Franz tratou de apenas desligar o aquecimento do lugar.


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Notas finais do capítulo

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