Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 23
Grand Line, alto-mar (Especial)


Notas iniciais do capítulo

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Quase dois dias depois dos Pierrôs partirem da Ilha dos Macacos com o barco do bando aliado guinchado, a algumas muitas milhas de distância dali, em outra rota da Grand Line, estava Bertruska, ainda perturbada pelos ocorridos da noite em que apagaram a antiga tripulação de Flint. Contra sua própria vontade — e também contra seus maiores preceitos —, rolava na cama sem conseguir repousar, ruminando sobre suas decisões de vida e demais anseios. Já era noite e os gatos ou dormiam, ou vigiavam, mas nem de longe estavam tão despertos quanto ela, que não conseguia sequer piscar sem ter milhares de flashes pulando em sua visão: memórias vagas de tempos melhores e afagos quentes de sua mais tenra infância. Normalmente, seu passado era algo que não permitia-se recordar. Não porque sofreu demais, muito pelo contrário: lembrar-se de tanta felicidade apenas trazia à tona a imensidão de sua miséria e como não era de seu feitio lastimar sobre o que se fora, era melhor deixar para trás.

Os momentos de alegria não foram poucos e se lembrar de como tudo evaporou de suas mãos era dolorido demais para ela; uma prova concreta de que era fraca e que, claro, nunca poderia voltar para consertar. O tempo não dependia de sua vontade. É certo que, para a maioria das pessoas, viver em meio a iscas e peixes está bem longe do que é considerado uma vida “ideal” — uma verdadeira prova de que os ricos venceram e os pobres deixaram-se ser dominados, tomando para si os piores trabalhos por falta de opção; contudo, para a pequena Bertruska, uma menina simples em seu íntimo, era impossível enxergar o lado ruim da moeda. Amava o que a envolvia incondicionalmente, e mesmo hoje, depois de adquirir outros parâmetros para fazer uma comparação mais justa, ainda assim consideraria sua vida de lá — longe e distante — estonteantemente perfeita; um objetivo a se reconquistar. 

A época em que passou sobre as ondas junto dos pais, recebendo todo o amor que eles poderiam lhe providenciar, era tudo o que poderia querer. As temporadas iam e vinham como os ventos na enseada. Seu credo era simples: junto deles, era feliz. Saíam cedo para velejar em uma embarcação pequena, e só retornavam quando a rede estava cheia, pois nas cidades que fedem a peixe, a concorrência é alta, e não voltar com muito era sinônimo de fracasso. Certa vez, Bertruska perguntou a seus pais o porquê de se matarem tanto para ir e voltar sempre com a rede cheia, se poderiam apenas ir além da costa e buscar peixes de melhor qualidade, mas a resposta veio nua e crua pela voz de seu pai: “Filha, somos especialistas em peixes pequenos”, ele disse; e era verdade. Sempre soube que temiam o desconhecido, mas acima disso, eram fracos mesmo; efêmeros salmões, que vão e voltam só no outono, nunca indo longe demais pois sabem bem que devem voltar para o lugar de onde vieram, a fim de prolongar a existência de sua espécie.

Sobre os desejos da carne, seu pai, um homem comedido, abandonou sem pestanejar a vida boêmia para cuidar de sua família. Não amou a esposa a princípio, assim como ela não o amou; eram jovens, daqueles imprudentes que se deitam com itinerantes e esquecem de pesar as consequências, mas diferente do que era esperado dos homens daquela cidade, ele tinha seus princípios — e era isso que Bertruska admirava nele. Aprendeu sobre o amor familiar cedo e, afinal, descobriu que isso bastava. Daí então, a pescaria foi uma questão de tempo. Em consideração a esposa e filha, adotou o comércio local e, quando perceberam, os dias e noites tomaram o mesmo rumo; sob o sol escaldante, trabalharam sem hora para voltar e economizaram cada centavo das vendas, na vã esperança de alcançar uma velhice tranquila, cheia de netos em seu entorno e com uma cama quente para se deitar.

No entanto, por mais que a idade tenha chegado, a desejada aposentadoria nunca veio para eles, dado que, com o grande aumento de embarcações piratas e todo o East Blue lentamente se transformando em um verdadeiro campo de guerra, a região, antes tão amigável, se tornava perigosa pela primeira vez. Mesmo que muito nova na época, a ex-marinheira se lembrava bem dos boatos de escassez de espécies de peixes que começaram a rondar as mentes dos pescadores, e também do sentimento de incerteza que cada vez mais tornou a concorrência demasiada agressiva: de súbito, aquele que outrora ajudou os mais fracos, agora tomava sua pesca e barco porque já não havia mais espaço no mercado para os dois. Vencia quem tinha mais e, a fim de evitar tais animosidades, restou para os Kalahan (o nome que estampava a lateral de seu barco) evoluir.

Optar por trabalhar durante a madrugada em busca de frutos-do-mar noturnos e espécies sazonais era um risco a se assumir em prol do avanço. Isto é, é evidente que sabiam dos perigos de velejar durante a noite; estavam expostos aos saqueadores, bem como a ressaca do mar, mas isso por si só não era motivo para se alarmar. “Pois que levem todo nosso dinheiro!”, diziam eles, afinal, o essencial eles não podiam — e nem queriam — levar. Contudo, por mais que fosse isso o que externalizassem a sua filha, ainda não eram tolos o bastante para ignorar o senso comum e, portanto, Bertruska nunca tinha permissão de deixar a cabine após a hora de dormir. Volte e meia espiava pela escotilha as conversas de seus pais, tentando compreender tamanho medo dos mares, mas foi somente quando o pior bateu em sua porta que, de fato, conseguiu assimilar a verdade sobre a pirataria. Eles, os piratas, afinal nunca estiveram atrás do suado dinheiro dos peões de obra: a riqueza é passageira, sobretudo àqueles que não têm objetivos claros senão a ascensão ao quinto mar. Entretanto, se havia algo que prevalecia por todas as classes mesmo depois da morte, essa era a fama: o prestígio de fazer história. Para o homem que riu quando ouviu a suposição de que seu maior tesouro se tratava de meros tostões, o chamado “Rei dos Piratas”, a fortuna pouco lhe importava. Em vez disso, ele tinha consciência de que o mundo poderia ser maior — o dinheiro se findava, os luxos se tornavam entediantes e mesmo a carne e ossos virariam pó. Mas... a história ficava.

Sua jornada mudou completamente o mundo em que viviam e então morreu, glorioso; com um sorriso estampando o rosto e ciente de que sua marca permaneceria viva no âmago do mundo pela eternidade, pronta para macular quem quer que soubesse de sua passada.

Como toda criança, Bertruska se encantava pelas histórias piratas que os pescadores sussurravam no cais e, não seria um exceção, a epopeia do Rei dos Piratas fazia seus olhos brilharem. Era seu conto favorito, assim como o de seu pai, que todas as noites costumava imaginar junto dela as incontáveis aventuras que o homem que mudou a trajetória do mundo teria vivido além dos quatro Blues. Sob a luz da lamparina, eles viajavam infinitas léguas marítimas da forma mais segura que conheciam: através dos livros ilustrados. Sem querer estragar seus sonhos, seu pai nunca lhe disse que não poderia sair sozinha. No entanto, contra a sua vontade, houve uma noite onde toda essa fragilidade que ele repetia veio à tona e, de forma precoce, ela foi obrigada a amadurecer.

Aconteceu depois do jantar e do ritual de explorações: seus pais a beijaram na testa, cobrindo-a com a manta repleta de remendos e por fim retornaram ao ofício. Não havia nada o que espionar a princípio, era apenas trabalho, mas, oras, como amava vê-los trabalhando com tanto afinco! Mesmo quando tinha sono e seus olhos teimavam em se fechar; mesmo quando o mar, tão aconchegante, a convidava para voltar para sua cama… Ainda assim gostava de contrariá-lo, fugindo do quarto para observá-los escondida enquanto uma fagulha de orgulho aquecia seu peito, encantada pel’o que só eles eram capazes de fazer. As redes cheias sendo puxadas e os adultos arfando de cansaço sempre eram capazes de despertá-la por completo; desejava crescer o mais rápido o possível para ajudá-los, contudo, por ora lhe restava observá-los e cruzar os dedos para que aprendesse apenas observando. Era isto que a menina mais esperava: divagava sobre a vida adulta dia após dia, almejando o trabalho árduo e empolgada com o futuro que poderia ter. Decerto nunca aprendeu mais do que o básico — ler e escrever não lhe salvariam das doenças do mar — e, nunca teve a oportunidade de conhecer outra realidade senão a do serviço; pois então, que seja, pensava, e mais uma vez corria atrás de seus pais para ver o que eles haviam pescado dessa vez.

Empurrou a cômoda da cabine com cuidado para não fazer muito barulho e então se espremeu pelo buraco de madeira podre que a levava de volta para o convés. Por trás dos barris cheios, Bertruska ia engatinhando pela passagem enquanto segurava sua respiração, a fim de não ser descoberta por seus pais como acontecera outras vezes antes (ora, se era tão silenciosa, como poderia ser descoberta sempre? A cômoda que empurrava não poderia ser tão barulhenta assim!). Entretanto, para sua surpresa não foram as comemorações contidas de sua mãe que ouviu à medida que se aproximava do casal: no lugar disso, alguns murmurinhos alcançaram seus ouvidos, deixando-a com uma pulga atrás das orelhas. Tentou identificar o que estava sendo dito, não obstante apenas ouviu-se uma explosão a metros de onde estavam, fazendo seus ouvidos zumbirem por pouco mais de um minuto e quase despencou ao chão devido ao movimento dos mares. Olhou assustada pela fresta, temendo que algum de seus pais caísse no oceano, mas a única coisa que recebeu foi um olhar severo do patriarca, encarando-a diretamente pelo esconderijo e meneando com a cabeça para que ficasse quieta: ele sabia que estava ali e, principalmente, ordenou para que não tirasse os pés daquele lugar.

Seus pais continuaram a pescar, ignorando a explosão e agindo com uma naturalidade assustadora —era fato que todos os peixes fracos já haviam fugido numa hora dessas, mas eles não, em prol de sua filha. O coração da garota explodia no peito, não compreendia o porquê dos pais não se moverem, não mostravam nenhum temor ao perigo iminente. A embarcação, antes escondida na penumbra, se aproximava rapidamente e nada naquilo cheirava bem; fora a primeira vez que Bertruska se deparou com piratas, com a bandeira preta sendo movida pelos ventos e, em especial, com o crânio estampado em branco no preto: aquele que a via sem ter vida. Era uma figura óssea de boca aberta, com seus olhos cobertos por uma faixa vermelha e uma espada negra fincada de orelha a orelha, atravessando-o de maneira horizontal. Os chifres que saíam das rachaduras do crânio somado com a sobra do tecido que lhe cobria os olhos formavam um imenso X em segundo plano, uma prova de que não estavam ali para serem amistosos; definitivamente, não poderiam ser bons piratas. Não serviriam sorrisos e tampouco histórias.

Bertruska fechou completamente os olhos, encolhendo-se dentro de si mesma no momento em que ouviu o gancho do enorme navio grudar no parapeito do casco e puxá-lo para perto. Em uma questão de segundos, toda a embarcação dos pais, a que antes achava tão bonita e grande, se desestabilizou no mar, e uma porção de homens de botas duras saltaram para dentro do convés, rindo com “crás-crás-crás” descomedidos, como malditos corvos. Nunca havia visto seres igual a eles. Não pareciam humanos, mesmo que andassem e falassem como tais, tudo neles era animalesco; penas negras adornavam os braços e pescoços e o formato do rosto era um tanto afunilado e pendia para baixo, como se a evolução tivesse impedido que um bico nascesse naquele local, mas marcou-o suficiente para a memória genética não ser extinta. Em especial, o capitão deles, como bem indicava seu voluptuoso chapéu pontudo, era tão sombrio quanto os demais, senão até mais: tinha as penas eriçadas de maneira ameaçadora e seu rosto pálido em meio a roupa escura parecia saltar ainda mais em seus olhos, como se a mandíbula inferior saltada e o sorriso cheio de dentes afiados fossem motivos de orgulho. Seus olhos carmesim, tão brilhantes quanto a venda da bandeira e também quanto seus cabelos, fitavam o navio da mesma forma que um albatroz sobrevoando os mares faria: em busca de peixes frescos.

— Boa noite, senhores! Conseguiram alguma pesca por esses mares? — o pai perguntou, a garota não conseguia enxergar sua face, mas via um dos punhos cerrados nas costas. Ele temia por elas, temia por si próprio, mas precisava ser forte.

— Pesca? Crás-crás-crás — caçoa o líder aos subordinados, homens de vozes abafada pela máscara de metal fundido, que futilmente imitava a figura deforme de seu líder. — Quando se chega no topo da cadeia alimentar, os peixes pedem para serem devorados por você. Eles pulam, pulam, até que caem direto em sua boca — e apontou a ponta da máscara de um deles, sem demonstrar aparente reação, mas sendo sucedido por um alto coro de grasnados e cascalhadas eufóricas.

— Eu não acho que nenhum peixe peça para morrer… — a esposa diz, baixinho, apertando a mão de seu companheiro, mas sem gaguejar; não poderia padecer do medo.

— Oras, pedem! Principalmente aqueles que aguardam a nossa chegada com tanto primor. — sorriu cínico, e dessa vez os corvos não grasnaram ao seu redor. — O que escondem nessa pocilga?

— Não temos nada a esconder, somos pescadores! — o pai exprime com toda a força que sobrou em seus pulmões. — Os tempos são difíceis. Não conseguimos nada durante a tarde e por isso decidimos prorrogar nossa estadia até a madrugada, buscando algum dinheiro para nos sustentar. Mal temos suprimentos para o dia de amanhã. Não podemos lhes oferecer mais do que toda a nossa carga.

O sorriso se tornou ainda mais largo, grande o suficiente para rasgar as bochechas de um humano comum.

— Dando o benefício da dúvida de que são ignorantes, e não gozadores de nossa espécie, darei-lhes o luxo da assimilação: se não perceberam até então, seus bélis de nada nos interessam — pontua, cruzando os braços no peito e fechando os olhos — Seu dinheiro sujo só trouxe guerra até então e, se for analisado, nada que foi tocado por mãos símias prosperou. O governo é falho; estão matando para os dois lados, enquanto os macacos do Governo Mundial continuam sentados e assistindo a própria raça perecer.

— E o que nós temos a ver com isso?! — a mulher gritou, exasperada e sua voz começou a se tornar chorosa.

Mas, para a surpresa do casal, em vez de uma resposta sensata, um dos pássaros subordinados endireitou a postura como um pinguim de peito estufado, virando-se da mesma forma que a pescadora para repetir sua entonação, mas dando guinchos de macaco no lugar de palavras. A Mãe sentiu suas bochechas esquentarem em fúria.

— Animem-se, pequenos macaquinhos! Vocês serão por hora um de nossos degraus, uma marca de nossa revolução e, sobretudo, um aviso para o resto do mundo; todos os primatas são iguais e todos padecerão aos nossos pés!

O pescador, em um último ato para poupar a própria vida, tentou puxar a peixeira que carregava na coxa, contudo fora lento demais e antes que pudesse chegar próximo ao pássaro, uma flecha atingiu seu olho direito e o corpo tombou como um saco de batatas para trás. Bertruska, ainda abaixada entre os barris de suprimentos e com a mão cobrindo a boca para abafar sua respiração, rolou seus olhos para o chão, notando o corpo desfalecido de seu pai, que ainda tinha espasmos da mesma forma que fazia um peixe fora d’água, mas ela nunca deixou a voz sair. Precisou morder o braço com força para não chorar alto, seu pulmão doía e o coração pulsava alto o suficiente para comprometer sua audição, mas ela não tinha forças para desobedecer a ordem clara de seu pai: precisava ficar escondida. A mãe soltou um grito de terror, um segundo foi o suficiente para perder seu chão e sua mente embranqueceu, não havia nada naquele momento que a prendesse na realidade; como um animal se lançou em direção ao pássaro; mesmo desarmada, queria ao menos sentir o gosto de arrancar alguma de suas malditas penas antes da escuridão a alcançar. Seu punho atingiu diretamente o nariz pontiagudo, fazendo com o que o homem desse alguns passos para trás devido ao impacto e, sem deixá-lo reagir, deu-lhe um chute no estômago. Os demais pássaros se esganiçaram por um breve momento, perdendo a compostura e batendo as asas — galinhas em fila para o abate. No entanto, o pânico não levou mais do que um segundo para se estabilizar, pois farto daquilo, um dos subordinados de maior escalão da tripulação, sem pestanejar, segurou os braços da mulher e outra flecha foi lançada, desta vez no olho esquerdo, findando o serviço.

As lágrimas que escorriam dos olhos de Bertruska não eram quentes: eram gélidas, tamanha era a temperatura de seu corpo. Sua garganta ardia, desejava gritar, espernear e, acima disso tudo, desejava ser forte o suficiente para ter salvo seus pais. A culpa dilacerava seu coração, mas havia algo ali ardendo muito mais forte naquele segundo: o ódio. Se tivesse força, teria se levantado naquele segundo e derrotado um por um, vingando sua família e todas as gerações de pescadores de sua cidade. No entanto… ela não se moveu. Somente assistiu, de camarote, as páginas de um livro que ela nunca fez questão de ler, serem preenchidas com o sangue de sua família.

— Confrades! — o líder dos homens-pássaro gritou e silenciosamente os corvos passaram a observá-lo, aguardando pelas palavras de seu mestre. Ele caminhou em direção ao pescador; puxou a flecha, com força o suficiente para trazer a córnea junto, porém não demonstrou qualquer nojo. Com uma das mãos retirou-a da ponta e lançou-a ao mar. Os subordinados vibraram. — Ouçam-me com toda a atenção! Somos os responsáveis por uma revolução e nada poderá nos parar.

Fez uma pausa; todos, instintivamente seguraram a respiração e então a flecha foi fincada no outro olho e arrancada com agressividade. — Seremos a justiça que o mundo precisa. A verdadeira justiça.

O som de algo caindo na água foi ouvido, mas Bertruska fechou os olhos. Desejava morrer ali mesmo e nada importaria; não havia restado nada para si no mundo. Seu braço direito sangrava e diversos hematomas tomavam seu corpo, todos causados por si mesma na tentativa de controlar seus impulsos tolos, no entanto,  por mais que fosse sua vontade, agora mais do que nunca sabia que não poderia morrer, pois era a única testemunha daquela barbárie e a única que poderia honrar seus pais em vida — não os deixaria morrer no esquecimento como se fossem apenas mais uma dupla de rostos passageiros naquela cidade de itinerantes. A multidão grasnou mais uma vez e então soube que deveria retornar ao seu posto de observadora; era doloroso, sim, mas somente a mais profunda dor poderia alimentar o seu ódio.

O homem sorria tão largo que a garota conseguia enxergar seus dentes molares e, mesmo distante, conseguia imaginar a podridão de seu hálito de alguém amargo e apodrecido desde as vísceras. Seu discurso não havia acabado, ainda não estava satisfeito com tamanha moléstia aos mortos e os subordinados aguardavam pelo final exasperados; no momento que a flecha foi fincada pelo última vez a pressão do ar pareceu mudar e, antes do movimento final, o homem-pássaro sinalizou com a mão livre.

— Testemunhem. Nossa história procederá essa pocilga pelos quatro mares e além deles! O nosso nome jamais morrerá enquanto um de nós respirar e nossa marca, essa sim será muito maior do que qualquer história! — retirou a flecha, sem se importar com o sangue que manchava seus sapatos e pegou a última córnea, levantando-a em direção a revoada e antes de lançá-lo ao mar, juntou todo o ar que tinha nos pulmões e berrou: — TESTEMUNHEM!

≈≈≈

Mesmo quando passava a noite velando, costurar, sem sombra de dúvidas, era a única atividade que conseguia acalmar a ex-marinheira. Em seus piores dias, quando as memórias eram vívidas demais para descansar; ou quando era difícil demais morder sua língua para não dizer uma palavra aos demais Gatos, passar horas com as agulhas de crochê em mãos sempre trazia algum alento ao seu peito, parte porque a atividade exigia muito de sua concentração, então não poderia ficar divagando ou furaria seu dedo, mas principalmente porque dessa forma se sentia mais próxima do “eu” que deixou para trás em seu passado. Era assim que conseguia se entender com ela: costurando sua boca para não falar mais. A memória fresca continuava gritando em seu ouvido, bem longínqua, mas sempre lá, a cada passada de crochê — como se cada buraquinho no tecido fosse um amplificador e ela chegasse mais perto.

Bertruska desejou de todo coração ignorar quem era. O porquê de estar ali, fazendo parte do que mais odiava, para ela continuava um grande mistério, mas era daqueles que preferia não procurar uma resposta. Poyo bem dizia, “Deixe ir com as ondas, a tristeza, a felicidade, e tudo mais”; mas, oras, se deixasse tudo ir embora, o que é que sobraria de si? Passou todos os dias de sua vida com um único objetivo e agora, tão distante dele, não tinha a capacidade de sequer encarar-se no espelho. Sonhar durante a madrugada com seus algozes era a maior prova de sua fraqueza; jamais deixaria o passado ir embora, da mesma forma que era incompetente demais para encontrar um bando desaparecido a tantos anos. Sofreria até o fim de seus dias presa na inércia, lutaria contra as forças do destino, mas assim como na cachoeira invertida, sempre encontraria um paredão de rochas impossível de escalar.

Nunca duvidou de si mesma e agora era incapaz de acreditar em suas próprias mentirasDecerto tentou dizer que não, mas a verdade, ora ou outra, sempre chega para lhe atormentar e, dessa forma, sua incapacidade se mostrou mais forte que seus músculos; e a covardia falou mais alto que o desejo de vingança.

Era fraca;

Sempre foi fraca;

E para sempre seria fraca.

Sem que pudesse mudar isso, fosse no passado, no presente ou no futuro, sua família… ainda assim, sua família escorreria por seus dedos. Não podia culpar ninguém além de si mesma quanto a isso, porém, no fundo realmente não conseguia evitar de jogar para cima de Flint o sentimentalismo que a importunava. Estava bem até agora, sem pensar em nada, por que ele precisava trazer à tona suas memórias? Não que tivesse esquecido de seu passado — nunca o faria, era família. No entanto, um amargo vinha a sua garganta toda vez que se lembrava das pessoas que silenciaram no barco, bem como quando pensava na ligação que ele recebera. Uma ligação de quem o procurava; de alguém de sua família. Odiava-o quase sem querer por ter jogado fora o que é que ele tinha para trás em seu passado, da mesma forma que “sem querer” perfurava com a agulha, indo e vindo, como se fosse uma boca que fala demais.

Era ruim — mas era família. Ele não tinha o direito de jogar fora.

Entretanto, por mais que ela mesma não percebesse isso, não era somente Bertruska quem não conseguia colocar a cabeça no travesseiro naqueles últimos dias. Sobre a banqueta do bar, a imediata suspirava pesarosa; estava perturbada desde o momento em que deixaram Pulvereta e, sobretudo, desde que os membros capacitados do bando se reuniram a fim de tomarem ciência do destino que seguiam. Era muito óbvio para Belka o caminho que estavam tomando: rumo ao abismo, oras. Não era óbvio?, eles disseram. A total e completa indiferença lhe espantava. Nenhum deles dava a mínima. Seus alertas foram ignorados, os avisos passaram despercebidos e, na situação atual, poderia garantir que não passava de um mosquito, os atazanando, mas não o suficiente para tirar-lhes horas de sono — incomodava tão pouco que talvez não tivessem nem o ímpeto de matá-la, caso acordassem no meio da noite com seu zumbido.

Em primeiro momento, isto é, quando saíram de vez das águas do arquipélago para voltar ao mar desconhecido da Grand Line, o silêncio havia os tomado e nem mesmo as investidas de Poyo foram suficientes para quebrar por completo a tensão que se instaurou. Contudo, foram necessárias exatas oito horas de sono para que Morgan e Bertruska retornassem a viver, com uma naturalidade jamais vista. A guerrilheira ainda mantinha a face consternada, mas não ousava levantar a voz para questionar qualquer decisão tomada, enquanto o médico parecia realmente ter superado qualquer animosidade que poderia ter surgido relacionada ao cozinheiro; inclusive, para o temor de Belka, ambos pareciam mais próximos do que nunca. Após isso, um a um, todos iam esquecendo magicamente sobre o que haviam feito; ninguém parecia disposto a tirar o colossal elefante vermelho da sala — a batalha que travaram por Flint e o quão fundo eram suas conexões além da Grand Line — e, talvez pelo medo, ou então pela comodidade, passaram a tratá-lo como um ornamento: mais uma peça daquela maldita mobília, cheia de sangue e, sobre o couro, a terrível marca do Gato.

Verdade seja dita, nem ela mesma tinha forças para lutar contra tudo isso. Observava o cozinheiro de longe desde que retornaram, e até o dado momento não conseguira criar coragem de tirar o que estava entalado em sua garganta, nem mesmo bêbada; no fundo, Belka desejava vê-lo livre, mas não o suficiente para arriscar o próprio rabo. Era, no fim das contas, uma gata egoísta, e mesmo seu carinho pelo homem não era grande o bastante para apagar os anos em que viveu apenas por ela mesma. Não conseguia se pôr em seus sapatos. Para ela, era surreal pensar que, depois de tudo, ele continuava lavando a louça como se fosse um dia normal. Por causa disso e entre outros, a gata continuava escorada no bar por horas a fio, sorvendo de seu drinque enquanto se perguntava: será que eu também continuaria firme depois de cumprir o que devo cumprir? Será que sou capaz de seguir em frente, sem ao menos entortar as costas com o peso das almas que mandei para o inferno?

Não havia resposta. O tempo diria, mas ele também não parecia chegar. Em vez disso, Poyo, sua capitã, continuava repetitivamente puxando-a pela saia, como se para ela o cotidiano da culpa não passasse de uma brincadeira.

— BELKINHA! Estou entediada — a garota afirmou, esfregando a mão sobre o nariz e encarando a imediata com olhos pidões, como se ela estivesse propositalmente escondendo a diversão de si.

— Agora não, pirralha — respondeu seca, olhando-a apenas de rabo de olho; odiava se sentir manipulada. Era seu papel manipular os outros — Não vê que, hic, estou bebendo?

— Você sempre está! — ela bate o pézinho no chão.

— Vá encher o saco da Bertruska, hic. Digo, ela pode estar precisando das suas medidas... — a gata apontou com o copo em direção a mulher, que sentada no sofá, tricotava algo que se tornaria um presente para a capitã. Ao ver a menininha formar nos lábios um bico gigantesco, deixou escapar um risote.

— Chaaaato! — exclamou arrastada e, sem se virar para olhar a guerrilheira, foi andando em sua direção, ainda muito emburrada.

Poyo nunca deu a menor importância para roupas. Quando morava na fazenda, às vezes até fazia questão de jogar as dos irmãos no chiqueiro, os fazendo caminhar só de calçados pela casa porque elas sim, as botas, eram úteis para alguma coisa — protegiam seus pés das farpas e carrapatos; quer melhor função que essa? Ainda assim, sabia muito bem que, por mais que o presente por si só não a interessasse, com certeza conseguiria se divertir muito mais com Bertruska do que com a gata (a Belka-bêbada era um entretenimento muito adulto para ela). E no sofá da saleta, por fim, a ex-marinheira agora cantava baixinho enquanto dava os pontos no pequeno biquíni que tricotava, todo feito em lã preta para evitar que a capitã o manchasse, porém com mini cerejas enfeitando as alças da peça. Trabalhar com a lã não era fácil, mas também não era difícil o suficiente para aliená-la da melancolia da imediata e, tampouco, difícil o suficiente para tirá-la de sua própria; e por isso que cantarolava, uma canção cheia de sentimentalismo, mas que acalentava seu coração machucado.

— Espero parar em outra ilha o quanto antes, foi divertido! — falou a capitã, sentando-se ao lado de Bertruska e, automaticamente, surrupiando uma de suas agulhas para brincar (era sua espada agora) — Não todas as partes, mas a maioria delas. Heya! — e esticou seu braço, como se furasse algo (ou alguém).

Bertruska então soltou um riso fraco, talvez conversar com a capitã melhorasse seu humor. — O que não foi divertido para você? — perguntou. Embora concentrando-se nas passadas de fio, ouvia atentamente o suspiro de frustração da menina, afinal, não conseguia compreender o que a divertiu tanto nesse meio tempo, quem dirá o que a incomodou: todos os eventos foram deveras corriqueiros, senão traumáticos.

— Tudo antes da invasão, eu acho... — pensou, enquanto coçava a cabeça com a agulha de tricô — Quero dizer, correr pela floresta com o Flinny parecia o ponto alto da viagem, foi muito legal na hora, mas depois de lutar com aqueles otários, se tornou meio… meh — ergueu os braços, mostrando indiferença — Eu pensei que nada poderia superar a emoção que senti na hora que lutei, que eu estava no topo do mundo por um momento, mas agora que passou tudo, eu já não sei se foi mesmo tudo isso... — parou para respirar — Você se lembra quando o velho chorou no restaurante, Bertruska?

Ela assentiu. E agora, mais do que nunca, Flint e Belka prestavam atenção na conversa paralela.

— Então! Aquilo foi tão legal! — a garotinha não a encarava mais, brincava distraidamente com as agulhas, no plural, que roubou; simulando uma luta de espadas. — Vocês deram cabo de todos e ainda marcaram o capitão, não tem humilhação maior que essa!

A cabeça da gatuna pesou, sabia exatamente onde a mente diabólica da garotinha queria chegar e, de certa forma, isso não a surpreendia nem um pouco; conhecia muito bem o caráter da menina, ou a falta considerável dele, e por isso sua bebida retornou a ser o interesse primordial. Não obstante, o mesmo não aconteceu com o cozinheiro, que com os ouvidos e olhos ávidos analisava aquele diálogo.

— Aquele cuzão merecia ter ficado vivo! — gritou, sem pestanejar. Nesse segundo, Flint sentiu a saliva entalar na garganta e, instintivamente, deixou as mãos tombarem sobre a mesa, fazendo um barulhão. Poyo logo se corrige: — Nada pessoal, Flinny, huhu — riu, travessa — Onde quero chegar com isso, é que ele tinha que ter ficado para trás para contar nossa história!

— Como assim, contar nossa história? — perguntou a ex-marinheira, sentindo um desconforto em sua garganta. Uma pequena fadiga, ou um incômodo no peito; mas foram ignorados tão breve quanto surgiram. Bertruska era forte, as dores piratas não poderiam afetá-la.

— Nós não somos conhecidos ainda e, como a Belka diz, não podemos ser vistos sob os holofotes. O que eu acho uma grande bobagem, a propósito! — aumentou o tom nas últimas palavras, alfinetando a gata antes de retomar o foco — Mas ninguém sabe quem é O Gato, ele é nossa identidade secreta. Se matarmos todos e marcarmos o capitão sem sermos vistos, ele nunca nos esquecerá e nossa história será levada a diante! O trauma de perder todos os companheiros por impotência é algo que não pode ser superado.

A mulher havia perdido a fala e, sobretudo, não conseguia mais impedir que o desconforto se espalhasse por todo o corpo, tomando-a por completo. Seu coração batia mais forte do que nunca, impedindo que o ar entrasse em seus pulmões; algo na fala da capitã, senão tudo que ela disse, a esfaqueou diretamente no estômago, deixando-a com a ferida exposta sobre o carpete. As memórias sangravam diante de si, seus pais mortos no convés, com os olhos dilacerados e as gaivotas grasnando acima de sua cabeça: sem pistas, sem testemunhas e sem luta. Foi deixada para trás, não por misericórdia, mas porque não foi encontrada em meio às caixas lotadas de iscas e redes de pescaria. Bertruska sentiu-se suja.

— Eu sou burra, mas entendo de bichos! Na fazenda, quando você marca uma vaca com o ferrete, ela se torna sua propriedade. Desde aquele momento, ela sabe que vai morrer nas suas mãos. Que é sua — explicou serena, fincando a agulha na bola de lã — É o que fizemos com aquele velho nojento! Ele é nosso. Nós roubamos o futuro dele e o fizemos de tesouro, e é o que tínhamos que ter fei–

A capitã ia continuar a falar, mas Flint a interrompeu, observando atentamente a feição desesperada que a ex-marinheira carregava: — Poyo, quer um chocolate? Lembrei que trouxe alguns comigo. — ele oferece, e sua feição se ilumina, saltando do sofá para olhá-lo:

— POR QUE VOCÊ NÃO ME DISSE ANTES? — a capitã gritou, correndo em direção ao cozinheiro.

Bertruska, por sua vez, não conseguiu dizer uma palavra. O gato havia devorado a sua língua.

≈≈≈

Depois de despachar Poyo no convés, dando-lhe em suas mãos um tablete de chocolate, o baralho de cartas e o desafio de ensinar Merin a jogar, Flint terminou de secar as louças e pegou Belka no colo — agora desmaiada no balcão devido ao excesso de bebida —, levando-a até sua cama. Não saberia dizer em que momento perdeu Bertruska de vista, se foi enquanto resolvia os problemas da capitã ou enquanto expulsava Fionulla do travesseiro da imediata (se ela não estivesse em coma alcoólico naquele momento, com certeza faria um escândalo ao ver um galináceo ressonando em suas coisas; vitória aos Plumados), mas o fato era que ela não estava na antessala do segundo piso e tampouco no quarto das mulheres; um grande motivo a se preocupar. De verdade, já não existia mais aquela insegurança perto dela; depois de tanto tempo de convívio, aprendeu a suportá-la e as pendências que restavam haviam por fim se esvaído junto das memórias da montanha invertida, contudo, não podia dizer que esse sentimento de conformação era recíproco; ela ainda o detestava sem sombra de dúvidas, assim como não suportava a existência do médico e de qualquer outro homem que tivera a infeliz decisão de cruzar seu caminho. Assim sendo, mesmo sem o medo de outrora, não conseguia deixar de sentir um arrepio passar pela espinha toda vez que não sabia onde ela estava, uma vez que o bote poderia vir de todos os lados.

Ao fundo podia ouvir os gritos animados de Poyo e os eventuais “Cala a boca” de Merin, cada vez mais altos — ela estava adquirindo mais coragem de se impor. O ronco baixo da gata ressoando em sua cama e também seus suspiros de bêbada também poderiam ser ouvidos, mas nada além disso, e era exatamente o que o preocupava. Afinal, se Bertruska resolvesse se revoltar contra os homens, quem seria o primeiro alvo de sua lista? Ela não seria tola de atacá-lo primeiro, isto é, não se planejasse eliminar os dois de uma vez só. Pois, no fim das contas, a força de pouco valia nesse aspecto, Flint era um homem forte, mas acima disso era duro na queda, e tentar sumir com sua existência certamente causaria mais alarde na tripulação que, bom, se ela tentasse matar Morgan antes. Sendo assim, guiado por sua irritante pulga atrás da orelha — aquela que sempre pressentia quando algo estava prestes a dar muito errado —, foi em direção ao consultório, antigo closet do quarto das mulheres e, ao abrir a porta, já estava pronto para algo que não queria ver:

— Bertruska, a Merin está te chaman– — o cozinheiro começou a mentir, mas se calou de prontidão quando notou o mais absoluto nada.

A falta de iluminação fazia aquele quarto parecer um covil, mas essa impressão era facilmente substituída quando a lamparina da escrivaninha estava acesa: nesses casos, era apenas um quarto de estudos. Sobre a cadeira giratória, por fim, Morgan estava sentado com a cabeça enfiada nos livros, de costas para a porta e concentrado o bastante para sequer olhá-lo entrar. Sem pensar muito, Flint ajeitou-se no lugar endireitou a coluna, um pouco envergonhado com a ideia de invadir (o próprio) quarto sem bater e, por consequência, por tê-lo atrapalhado em seja-lá-o-que-ele-estava-fazendo, porém, uma vez que o rapaz sequer deu bola para sua presença, decidiu que só iria embora sem falar nada. Estava procurando cabelo em ovo, pensou.

No entanto, antes que saísse, o médico, sem se virar, perguntou: — Está passando mal?

— Não! Pareço estar? — perguntou prontamente.

— Não sei, não te vi. Eu só pergunto isso para qualquer um que abre a porta para entrar aqui — respondeu em um resmungo e, virando a face para o cozinheiro pela primeira vez, deu um sorriso amarelo — Me esqueço que isso não é um consultório de verdade. Enfim, estou divagando. Veio dormir?

— São três da tarde — afirmou, olhando o relógio pendurado na parede. Nesse minuto, Morgan desviou os olhos para confirmar se ele estava ou não falando a verdade. E estava.

— Bom — começa, empurrando a mesa para sair da cadeira. O médico coçou a nuca e, em seguida, se espreguiçou por alguns segundos dando indícios de seu cansaço. Por sua vez, o cozinheiro não pôde deixar de notar as imensas olheiras embaixo de seus olhos.

— Por que você não vai dormir? — ele pergunta. Mas Morgan não o responde propriamente.

— Realmente, minha área é gente morta e não papelada — solta à esmo, dando uma risada de sua própria piada e erguendo os braços com um sinal que Flint interpretou erroneamente como indiferença e por isso sorriu amarelo, como quem não entende o que se passa. Não era bem isso, é claro; Morgan só era muito ruim com sutilezas. Finalmente, ao notar que sua tentativa de ser engraçado não havia o levado a lugar nenhum, e que a indicação para que olhasse para sua mão havia falhado miseravelmente, o médico dá um suspiro pesaroso, virando a palma para indicar um pequeno papel entre seu dedo médio e indicador. — Estava dentro do envelope para a Poyo. Eu não sei o que é — disse.

— Parece um guardanapo — pontua o cozinheiro, de cenho franzido — Eu não pedi para você entregar a Poyo?

— Você pediu para que eu mostrasse para ela porque ela não sabe ler. — Deu de ombros — Eu não poderia explicar sem saber do que se tratava.

— Mas não adiantou de muita coisa, no fim das contas — Flint toma o papel para si. — O que é isso, um palhaço? — arriscou, apontando os borrões coloridos em marrom, azul, vermelho e amarelo, e por fim observando atentamente para ver se alguma figura se formava, mas não tinha jeito.

— Mais simples que isso — Morgan tomou o papel de sua mão sem pestanejar, deixando o amigo com as mãos ainda erguidas e a expressão de pura confusão — Com certeza é um mapa do tesouro. Veja, têm duas plantações de trigo em cima, dois lagos e um “x” bem no meio desse pedaço de terra entre eles, e essa parte vermelha aqui embaixo é...

Antes que pudessem chegar a um consenso sobre os borrões, uma gritaria generalizada se deu no andar de cima e, menos de um minuto depois, de repente, a porta do consultório já estava sendo arrombada sem dó e nem piedade. Era Poyo, com o rosto imundo de chocolate, e os olhos arregalados.

— MORGAN, EU PRECISO DE UM– Ah, oi, Flint! — ela disse, sem o mínimo de coerência em sua fala. Os dois homens se encararam: ao menos quanto à ignorância daquela estranha situação, estavam no mesmo barco.

— NÃO ENTRA AÍ, O MORCEGUINHO ESTÁ ESTUDANDO AGORA! — a voz de Merin veio ao fundo, se aproximando cada vez mais até que ela freasse seus pés antes de esbarrar na capitã, como um burrinho parando na beira de um precipício — Vamos embora daqui… — começou a dizer, mas parou completamente ao notar que Flint também estava no quarto.  

Por sua vez, Poyo não deu a mínima para a presença hostil da navegadora: em vez disso, focava toda sua atenção — que não era muita — no item que Morgan segurava em suas mãos, como se nele tivesse alguma força magnética. Depois de alguns breves segundos de silêncio constrangedor (e guerra fria, pois Merin não economizou no olhar feio que lançava ao cozinheiro, parte porque ele estava atrapalhando seu morceguinho, mas principalmente porque ele podia estar ali e ela não), a garotinha resolveu falar:

— Apricot e eu! O que a gente tá fazendo nesse guardanapo? — perguntou. Não precisou pensar, aquilo não era apenas um palpite, ela estava completamente certa do significado daquelas figuras.

— Para começar, quem é Apricot? E como diabos você entendeu esse desenho? — questionou Morgan, com o tom um tanto indignado. Como ele, após tantas horas de estudo, havia simplesmente descartado a opção de serem rostos e Poyo, sem sequer raciocinar, desvendou o mistério? Suspirou derrotado, a estupidez ali sempre vencia.

— Ele é da marinha! Meio chato e azedo, nunca consegui entender de onde vinha tanta amargura, acho que deram leite de ovelha para ele quando nasceu e o azedou para toda vida-huhuhu! — a garotinha riu alto, sem parecer se importar com a falta de cor nos rostos de seus subordinados. Aquela informação, sim, era algo a se guardar.

— Da m-marinha, você diz? — Morgan começa a dizer, hesitando no tom de voz, mas, como sempre acontecia, alguém o interrompeu:

— CALEM-SE TODOS!

Pela segunda vez, a porta do consultório foi escancarada, fazendo a expressão da navegadora se tornar amarga; será que nenhum deles poderia respeitar a privacidade de seu morceguinho? Expulsar o cozinheiro estava fora de cogitação, uma vez que uma parte mínima do consultório pertencia a ele (isto certamente a desagradava, mas se nem mesmo Morgan reclamava, não havia nada a ser feito) e, infelizmente, como havia falhado em buscar a capitã pelos cabelos a princípio, agora já era tarde demais para expulsá-la, contudo, o que permitia que mais gente enfiasse o nariz onde não devia? Entre o quarto e o consultório, estava Bertruska, segurando uma maleta mais velha que o navio em suas mãos — provavelmente pertencente ao antigo proprietário — e, sobre seu ombro, havia uma Belka dependurada e muito, muito irritada (gritava para ser solta, ao mesmo tempo que sentia vontade de vomitar em consequência da ressaca mal iniciada).

— VOCÊS VÃO ME OUVIR! — a ex-marinheira invadiu o quarto, empurrando quem quer que estivesse no caminho até alcançar a cama, onde depositou a maleta. — Segure a Belka.

Segurando a gatuna pelas patas dianteiras, como se ela não passasse de uma pelúcia, ofereceu-a gentilmente para Flint, que permanecia em silêncio e, como todos naquela (apertada) sala, esperando que Belka não resolvesse ter um surto naquele momento. Mas a sorte estava a favor deles naquele momento: a gata, embora muito consternada, quando foi pega pelas mãos do cozinheiro apenas fechou ainda mais sua expressão e — sem antes lançar um terrível olhar para o médico —, escalando-o por conta própria a fim de sentar-se em seus ombros e aguardar o que estava por vir. Uma vez que todos estavam devidamente acomodados, Bertruska soltou os fechos da mala.

— Eu achei isso no meio dos barris do depósito, deve ter sido jogado lá para baixo quando trouxemos os móveis novos — ela explica, muito calma e como se estivesse orgulhosa de sua descoberta. Ninguém disse nada, mas todos não podiam deixar de achar sua forma de agir um tanto quanto estranha; talvez um pouco alucinada. Seus olhos estavam arregalados e as pequenas bolsas avermelhadas que se formavam abaixo deles deixava claro que havia chorado há pouco tempo, o que de muito contradizia com seu jeito energético de agora. Continua a dizer: — Eu acho que o homem que vendeu esse navio para vocês era um marinheiro à paisana, ou aposentado! Olha quantos papéis de recompensas e mapas! Alguns até têm a localização de onde os bandos foram vistos pela última vez!

Belka e Flint se encararam, não se lembravam da aparência do verdadeiro dono daquela embarcação e se livraram com tanta rapidez das evidências que mesmo procurando no fundo de seus cérebros, não achariam nada mais do que a sombra de um homem vestindo pijamas.

— O vendedor falou algo sobre com vocês? — dessa vez foi o médico quem interrompeu, olhando questionador para a imediata. Para ele, não fazia o menor sentido um ex-marinheiro vender um navio novo, quem dirá para um usuário do fruto e um fugitivo de, na época, quatro milhões de bélis.

— Então, nós preferimos ocultar isso, mas temos certeza que compramos essa embarcação de um ladrão... — Belka explicou com tanta convicção que ninguém, com exceção de Morgan, poderia duvidar de sua palavra. Uma coisa era certa, a gata jamais assumiria que eram eles os ladrões — Ele não era nada bem apessoado e tinha muita pressa em se livrar do barco, então imaginamos que ele deu cabo no verdadeiro dono e então passou o pepino para outra pessoa lidar.

— Prestem atenção! — Bertruska quase gritou e seu desespero abafou qualquer resmungo contrariado que poderiam soltar — Nós temos o plano perfeito em nossas mãos, não veem?

Ninguém lhe respondeu. Pior que isso, nenhum deles parecia sequer compreender onde ela queria chegar; muito pelo contrário, tinham completa certeza de que ela havia sucumbido a (uma das) loucuras dos mares.

— Plano de quê? É só papel velho — disse Poyo, puxando da pilha um dos papéis carcomidos, que só pelo contato parecia prestes a se desfazer — Têm piratas com recompensas menores que a do Morgan aqui! Devem estar todos mortos nesse ponto.

A ex-marinheira apertou os olhos, se sentindo menosprezada por um breve instante, mas a sensação fora encobrida de imediato quando notou a imagem do sujeito na recompensa: era um homem-pássaro. De forma involuntária, o rosto de Bertruska se iluminou mais uma vez, não pela alegria, mas sim pelo puro desespero que sentia. Precisava de respostas. Desejava mais do que tudo encontrar um caminho de luz em meio a tanta escuridão, pois a cada tic-tac do relógio que escutava, um pedaço crucial da sua alma era devorado — cada parte de si ia pouco a pouco se dilacerando com a força dos ventos; um segundo era o suficiente, como se uma maldição caísse sobre si, o tempo perdia o efeito em seu corpo inerte: não havia mais chão e tampouco um céu para retornar quando tudo perdia o sentido. Bertruska estava vazia. Meses, dias ou minutos, nada mais importava: preferia ser uma mosca e cumprir seu pequeno papel, ao menos assim se sentiria útil de alguma forma, encontrando a plenitude no simples ato de seguir a função que lhe fora designada por Deus.

— Bertruska, isso é lixo. — Poyo respondeu, colocando a folha rente ao seu corpo e não permitindo que a ex-marinheira a pegasse novamente. 

Ela empalideceu no ato. Todas as palavras que iria dizer sobre aquela maleta sumiram na garganta, como se fosse ela quem teve a boca costurada, e não a menina que deixou apodrecendo no seu passado.

No que lhe diz respeito, Poyo nem tentou consertar o que disse; isso porque, para ela, não havia o que ser mudado. Mesmo que tivesse notado os lábios da mulher apertando e seus olhos começando a ungir, diria o que precisava ser dito mais um milhão de vezes se assim fosse necessário, apenas para que ela entendesse a verdade sobre aquela papelada. Não que quisesse atacá-la, de forma alguma; a posição da capitã costumava ser muito mais agressiva quando escolhia ser má e não media palavras para afundar seu inimigo na lama, porém, independente das intenções, era sempre franca, sem olhar para as consequências, mesmo que para poupar um colega. Não era de seu feitio omitir a verdade. Guardava suas mentiras apenas para benefício próprio e, dessa forma, não era uma dúvida para ninguém que naquilo não havia nenhum pingo de falsidade.

— E-Eu… — a mulher tentou argumentar em um fio de voz, porém não sobrara nem mesmo uma gota de convicção em seu corpo. Suas palavras não saíram, porque toda a motivação que tinha fora completamente sugada pelos olhos frios da capitãzinha, que nem ao menos titubeou em puxar seu tapete.

Nesse instante, ao notar a hesitação nos olhos da guerrilheira, pela segunda vez no dia, o cozinheiro se viu obrigado a intervir e salvá-la. Não sentia apreço por Bertruska, e na verdade naquele dia mesmo já havia jogado em suas costas o sumiço de Morgan, achando que ela havia tentado o assassinar, no entanto… Ele mais do que ninguém sabia o quanto as palavras poderiam ferir, e o mal que passara nos últimos dias era daqueles que não desejava a ninguém. Por conta disso, e só por isso, ele decidiu que era hora de parar sua capitã, usando de seu maior artifício: a manipulação.

Lidar com Poyo nunca foi um mistério para ele; desde que foi resgatado em Eel Tongue e por todo o seu percurso antes dos Gatos, sabia que o melhor caminho para descobrir os segredos da boa convivência era o do estômago, e com sua atual capitã isso era especialmente fácil de se arranjar. Ouvi-la e ter sempre algo doce em seu bolso eram seus métodos básicos, e o “avançado” não passava de um desenho de bolso, como fizera na bandeira aquela vez (apesar de que essa era uma estratégia que não gostava de se lembrar). Ela não era complexa, muito pelo contrário, sua simplicidade o assustava constantemente; falava sem papas na língua, não sentia qualquer empatia e não enxergava o amanhã. Mesmo sem qualquer força, Poyo era uma entidade perigosa, com um temível potencial de destruição, contudo isto não o preocupava, afinal, sabia que o estrago já estava feito e, no presente momento, nem o próprio Diabo poderia mudar seu caráter. Mas, no fim das contas, só saber que podia domá-la o suficiente para viver o dia de amanhã era reconfortante o bastante.

— Bertruska, deixe isso para mais tarde. Nós a ouviremos depois, eu prometo — Flint se pronunciou, indicando com a cabeça a gatuna que carregava (que lhe lançou um olhar  indignado em resposta) e, antes que Poyo tentasse interromper, completou com um sorriso ladino: — Hoje nós temos algo muito mais divertido a fazer, não é mesmo capitã?

A capitã o encarou desconfiada, com as sobrancelhas franzidas e o princípio de um bico se formando em sua face; sentia que Flint estava prestes a desobedecer suas ordens, entretanto não podia evitar a curiosidade que crescia dentro de si, sabia que as melhores surpresas sempre envolviam o cozinheiro. Salivava só de imaginar o que viria pela frente.

— O que, não me lembro de nada em especial! — respondeu ressabiada, cruzando os braços em frente ao peito e cerrando seus olhinhos.

— Hoje é um dia muito especial, de comemoração — ele inicia, dando rodeios o bastante para ver os olhos de Poyo crescendo e crescendo, cada vez mais ansiosa.

— Diga logo! — Belka dá um tapa na cabeça do cozinheiro — Não vê que está deixando a menina nervosa?

— É aniversário do querido morceguinho!

— ‘que é aniversário? — pergunta Merin, não só intrigada, mas também mordendo seus lábios, irrequieta (se o assunto envolvia Morgan, era sim de seu interesse, porém nada a deixava mais irritada do que saber menos do que o cozinheiro).

— QUE LEGAL! — imediatamente a capitã pareceu esquecer de tudo que havia acontecido e nesse momento em sua mente se formavam imagens dos bolos que jamais comeu e presentes que nunca ganhou. Amava aniversários, mesmo não tendo comemorado nenhum em sua vida — Aniversários são feitos de doces, alegria e cachaça! Eu sempre quis ir em um!

— Aye! — o cozinheiro ergueu a mão para o alto, fazendo um gancho com seu dedo, como um pirata caricato — Aniversários são eventos onde se comemora o dia em que nasceu, Merin.

— Ou a morte de alguém… — Morgan corta, cabisbaixo. Não esperava que Flint trouxesse aquele assunto à tona em momento algum e, exatamente por isso, lhe dissera aquela informação, entretanto, antes que pudesse se magoar sentiu a mão do homem tocar seu ombro e apertá-lo; não poderia ser burro e tampouco sentimental, aquilo não havia sido premeditado e, principalmente, a data era apenas uma desculpa para conter o caos. Ao olhá-lo, mesmo que ele não tenha dito com palavras, conseguiu ler em seus olhos que aquela festa não era para ele.

— E no entanto, hoje iremos celebrar a vida de Morgan, certo? — inquiriu Merin, iluminando seu rosto em pensar no que aquela tradição implicava. A cada dia, se sentia mais humana e, em comemoração a isso, se arriscou a imitar o gesto de Flint, erguendo alto o indicador (reto) e soprando um “Aye!” tímido — Estou fazendo isso certo? — sussurrou a capitãzinha, que prontamente tomou sua mão para corrigi-la e, num sopro de segundo, berrou a plenos pulmões um “ARGH!” ensurdecedor. Elas saíram do consultório animadas.

Mas, independente das alegrias de outrem, para o bem ou para o mal, aquilo tudo não passava de uma distração.

Depois que Poyo e Merin saíram da sala, uma empurrando a outra a fim de iniciar os preparativos para a maior (e melhor) festa de aniversário de todos os tempos, para os adultos que ficaram, restou a melancolia que preenchia todo o pequeno quarto. Bertruska sentia-se patética, fora salva duas vezes por um homem detestável e, mesmo que odiasse admitir, não saberia o que fazer se ele não tivesse o feito. Se sentia em frangalhos.

— Não precisa me agradecer. Mesmo — disse o cozinheiro, interrompendo sua linha de raciocínio com um suspiro pesado. Desceu Belka de seus ombros e, sabendo que não era bem quisto ali, tomou seu cigarros e foi em direção ao convés. Não precisou dizer mais nada, sabiam que ele cuidaria de tudo até que estivessem prontos para retornarem a cozinha.

≈≈≈

Enquanto Belka e Morgan dormiam em suas respectivas camas (ainda estavam cansados por seus motivos particulares e, de toda forma, suas mãos não seriam necessárias na cozinha), durante o que restava da tarde, Flint, Poyo e Merin trataram de enfeitar o barco como podiam, além de prepararem os comes e bebes e, mesmo que sem querer — ao menos por parte das garotas —, dar um jeito de cortar a atmosfera sólida que pairava pela embarcação. Nesse meio tempo, o paradeiro de Bertruska permaneceu desconhecido; somente retornou ao deque quando tudo já estava pronto e já mais do que alta — aparentemente, havia queimado a largada há muito, muito tempo. 

No fim das contas, quando a lua cheia iniciava sua passagem pelos céus, os seis piratas estavam sentados na mesa externa da Carniça, circundando um banquete improvisado, mas não por isso menos farto. Havia um enorme quiche de queijo gratinado, uma porção de vegetais empanados e mini sanduíches de carnes frias, além de pequenos bombons de chocolate e, claro, um grande bolo — o qual a navegadora, já tonta pelo pouco álcool que havia consumido, repetia para si mesma orgulhosa que havia feito o confeito sozinha (um pequeno contorno de rococós um pouco tortos envolta do primeiro andar e, claro, um desenho bastante troncho de um morceguinho de estetoscópio no topo). Em relação às bebidas, não havia muito mistério: naquela noite o álcool sem dúvidas não era uma opção, todos deveriam tomar algumas doses e assim afogar as mágoas. Para a capitã, no entanto, mesmo que tivesse idade para beber, bastariam-lhe apenas os sucos, porque não tinha sequer uma memória que desejasse apagar: tudo que fizera até então a representava e portanto se sentia orgulhosa de cada passo que dava adiante.

Festas eram sua parte favorita de sua vida atual. É claro que invasões e exploração sempre cabiam em seu roteiro diário (isto é, se é que tinha um), mas como Flint nunca media esforços para encher a mesa, os banquetes que ele preparava sempre teriam um espaço especial em seu coração. Como sua vida poderia melhorar? Os gritos de seus subordinados eram infinitamente mais divertidos do que os mugidos das vacas na fazenda; e o simples fato de não se sentir sozinha como roupas jogada aos porcos lhe fazia o dia. A cada dia se sentia mais próxima da dominação mundial, ou então de seja-lá-o-quê tinha de objetivo para sua vida — não era exatamente um único objetivo.

Finalmente, quando o álcool já levava todos os tripulantes adultos do barco, e apenas Poyo parecia consciente de alguma coisa (um péssimo sinal, a propósito), a capitãzinha nota um brilho estranho além mar e decide investigar. Levanta-se apressada da mesa, não sem antes surrupiar um bombom da mão de Morgan, e então corre até o cordame do mastro principal, escalando até o cesto para investigar com sua luneta. Surpreendentemente, a iluminação da lua parecia estar do seu lado dessa vez. Próximo do horizonte, um pouco maior do que seu polegar, estava uma imagem que não poderia deixá-la se enganar: a silhueta escura de uma embarcação à deriva, provavelmente parada para a vigia. Sem que percebesse, um sorriso maligno já preenchia seus pequenos lábios. Não poderia falhar agora.

— EMBARCAÇÃO AO LESTE! O QUE FAREMOS? — perguntou aos marujos, que por um breve instante nem conseguiram compreender a gravidade daquela pergunta, mas logo todos empalideceram. A resposta era uma só: deveriam atacar. Contudo, após a insubordinação de Bertruska e sua tentativa falha de torná-los covardes, Poyo decidiu que precisava descobrir o quão comprometido o restante dos gatos estavam, e por isso decidiu que deveria perguntar, forçando-os a exprimir sua vontade. Sobretudo na Grand Line, precisava saber quem deveria ser jogado ou não por sua prancha.

Em primeira instância, obteve uma resposta verbal. Sob seus pés, pôde enxergar uma movimentação confusa no convés e os resmungos se misturando entre os bêbados; a marinheira fora a primeira a fugir e, para a capitã, aquela fora a maior prova de que ela não estava pronta para ser uma pirata, e muito menos uma das suas. Decepcionada, deixou escapar um “tsc” alto demais; um de pura insatisfação, porque, afinal, ela era uma covarde, como todos os outros que passaram em sua vida. No entanto, de supetão, antes que qualquer outro a respondesse, a primeira explosão acordou a todos, seguido de um grito gutural.

Naquele momento, Poyo sorriu com todos os dentes; talvez com mais vontade do que fizera em toda a sua vida. E afinal era sempre um erro se preocupar demais! Como se o destino estivesse desenhando os caminhos da maneira que desejava, assistiu exultante a ex, especialmente agora, marinheira disparar o canhão em direção das águas, assim expulsando qualquer vestígio de incerteza que antes demonstrara. Para a capitã — e com ela, é certo que para O Gato também, Bertruska agora se provava digna, e para as noites fazia de seu renascimento na insanidade um completo espetáculo.  


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Notas finais do capítulo

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