Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 22
Periódico do Komainu, Ilha dos Macacos (Honra e Equilíbrio)


Notas iniciais do capítulo

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Não que Pieri se importasse, mas mesmo depois que saiu com Nicholas para investigar a ilha, já que não se deu o trabalho de avisar nada a seus tripulantes, eles, seus fieis subalternos, continuaram obedientemente debaixo do teto de metal amassado, aguardando que ela retornasse para dar uma merecida explicação sobre a situação do submarino e, acima disso, que dispusesse suas ordens. Mas... é claro que isso não aconteceu. O silêncio perdurou por alguns (longos) minutos depois do último resquício abafado de conversa, até que foi sucedido por um alto "splash" e então, mais nada do mundo exterior. Decerto era bem esquisito — para não dizer improvável — que a capitã palhaça, que sempre se posicionara com bastante ojeriza ao espadachim, decidisse partir somente com ele para desvendar uma ilha, porém, contra fatos, não há argumentos, e por mais que não quisessem acreditar, não poderiam negar a realidade: haviam, sem dúvida alguma, sido deixados para trás.

Apesar de surpresas serem comuns naquela tripulação, essa, em especial, não parecia das mais habituais. Isto é, não estavam perplexos por serem largados — este era um movimento típico da Pieri que conheciam — mas sim pela falta de hesitação em trocá-los por um marujo que nem gostava tanto assim. É claro que a capitã nunca fora um grande exemplo em relações diplomáticas e tinha uma clara preferência pelo caos, optando pela desordem nas tripulações sempre que fosse possível, apenas pelo prazer de vê-los sem chão, contudo, era demais sonhar que na Grand Line seria diferente? Que ela, de supetão, receberia um caldo de responsabilidade e pararia de agir em função da desordem? Seus mais antigos tripulantes perderam as contas de quantas brigas foram travadas pelo East Blue apenas porque ela queria que seu objetivo (deveras fútil) fosse cumprido. Não reclamaram muito, uma vez que foram os ganhos dessas lutas que permitiram a construção do Diabo Negro em sua melhor forma, entretanto, agora não estavam mais no East Blue — onde suas presenças eram ameaçadoras o suficiente. Estava mais do que hora de começarem a agir como adultos. 

— Será que devemos averiguar? — a moça de bigodes quebrou o silêncio, com a voz um tanto hesitante. Todos olharam para o imediato; a decisão estava em suas mãos. Ainda que tivessem voz, sempre ficou claro para todos que deveriam respeitar a hierarquia; tinham seu espaço e opinião, mas a decisão sempre cabia a capitã e, em sua ausência, apenas Kristian poderia falar por si.

— Façam o que quiserem — ele respondeu, com um tom de voz mal humorado e dando o ombro para trás (ainda estava sem um dos braços). 

Essa cara de cu... também era novidade, pensaram. Sempre calmo, não era de seu feitio se aborrecer por qualquer motivo, nem mesmo quando o tiravam de seu cochilo, ou reclamavam de suas piadas, mas agora ele parecia bastante consternado. Não haviam dúvidas de que uma aura de estranhezas pairava naquele submarino. 

— "Façam o que quiserem" é o meu cacete — Shari guinchou — Não vou tomar sua decisão para você ficar "limpo" pra capitã. Assuma a porra da responsabilidade da sua função! — e então finalizou acertando a chave inglesa na mão umas duas vezes, não estava com a menor paciência para picuinhas.

Depois do sermão, Kristian só pôde respirar fundo, encostando a mão na testa enquanto imaginava a gigantesca dor de cabeça que poderia estar tendo, se ainda estivesse vivo naquele dado momento. Por fim, completamente desgostoso e, considerando apenas seu humor atual, optou pela simplicidade: iriam investigar, sem quaisquer rodeios — até porque de nada adiantaria esconderem-se feito toupeiras no submarino até que a capitã chegasse. Se algo desse errado lá em cima, passariam por cima da embarcação na qual bateram e os mandariam para o inferno de qualquer forma, mesmo que isso implicasse em problemas num futuro não tão distante.

Finalmente, saíram enfileirados e em silêncio, afiando os ouvidos para que qualquer movimentação estranha fosse ouvida: não havia nada, nem no navio, ou sequer por perto. O deque estava completamente vazio, contudo, ao averiguar as léguas marítimas, podiam enxergar ao longe a canoa onde a Capitã estava, junto de Nicholas, é claro, e mais duas pessoas que não reconheceram — deviam ser os marujos da embarcação fantasma que atingiram (mas só dois?). Ao vê-los, Yolanda colocou suas mãos na cintura, ponderando sobre a segurança dos dois companheiros, mas, no fim das contas, ela pareceu ser a única a se importar: Shari já pulava para dentro do navio inimigo enquanto Kristian o seguia com o cenho apertado, restando apenas Apollo em sua direita com um sorriso compreensivo.

— Podemos ir sem nos preocupar, Yô. A capitã sabe se cuidar e, tenho quase certeza, que ela não abandonaria Nicholas.

— Bom, você pode estar certo... — ela se aconchegou em seu peito por um breve instante.

— Vamos logo, vocês dois! — chamou o imediato, sem muita paciência, dando-lhes as costas em seguida. E então seguiu para as entranhas da embarcação, seguido dos outros dois.

O navio não tinha nada que remetesse a uma embarcação pirata, com exceção de sua bandeira, é claro. Diferente do Diabo Negro, que era revestido das melhores tecnologias disponíveis nos quatro Blues, aquela merda — com ênfase, e não perdão na palavra — não parecia ser capaz de aguentar uma tempestade que fosse. De muito espantava que foram capazes de passar pela cachoeira invertida e ainda se arrastar até a próxima ilha, já que certamente estavam viajando a muito mais tempo naqueles mares do que os próprios Pierrôs. Quanto à tecnologia, a propósito, não era possível, mas tudo indicava que viajavam confiando apenas na força dos ventos. Eram suicidas, ou apenas mal informados? Em consenso geral, deveriam ter um pouco de ambos; não tanta vontade de morrer, já que se deram o trabalho de parar para reabastecer, mesmo que fosse em uma ilha terrível, mas também não com tanta vontade de sobreviver, a ponto de preparar-se minimamente antes de se jogarem ao desconhecido. Pois, veja bem, a Grand Line era sim um mar cheio de mistérios, mas nem de longe era mal documentada! Se estivessem a quarenta anos atrás, talvez fosse perdoado tamanha ingenuidade, mas, nos dias atuais, aquela pocilga beirava o ridículo. Todos temiam a Grand Line na mesma proporção que desejavam derrotá-la, e justamente por isso que os piratas se preparavam de muito, e não de menos. Que mal teria feito perguntar ao senso comum o que deveriam fazer antes de se aventurar?

— Eles são... — iniciou Shari, analisando a carcaça do navio de perto; sua expressão estava estarrecida.

— Insanos? Com toda certeza sim — completou o imediato, um pouco ácido, porém igualmente chocado — Essa é uma forma bem distinta de cometer suicídio. Me surpreendem que tenham passado da Montanha Reversa com isso.

— Retardados. Essa é a palavra que eu iria usar. — o macaco finalizou o próprio raciocínio. 

Analisando os danos, o símio somente pôde chegar a conclusão que o Diabo Negro foi gentil com aquela coisa, pois poderia tê-lo destruído sem o menor esforço. A sorte estava ao favor dos mais fracos e, confirmando essa hipótese, um som forçado de garganta chamou a atenção, forçando-os a parar de criticar a embarcação do qual destruíram, quer dizer, acreditavam ter destruído, para olhar para trás.

— Os retardados estão ao dispor — um rapaz saiu das sombras e, ainda que sua voz tentasse soar ameaçadora, ao ser exposto pela luz não revelou nada de muito ameaçador em sua aparência.

Era um homem alto, talvez até mesmo mais alto que Apollo, porém não passava muito disso, uma vez que não se tratava de alguém encorpado (muito pelo contrário, aliás: aparentava ser magro em excesso). Suas vestes, muito incomuns aos trajes levemente circenses habituais dos pierrôs, pareciam carecer de cores e outras lantejoulas brilhantes; eram simples em vez disso, uma túnica comprida completamente preta e sem nenhum adorno, apenas com um cinto na cintura para prender o peito cruzado. Fora isso, o que mais chamava atenção em si eram seus cabelos, tão pretos quanto as roupas, completamente lisos e presos em uma única trança que chegava até sua cintura.

Ele cruzou os braços, olhando-os com desdém e, no mesmo instante, Yolanda e Apollo se encolheram atrás de Shari, que mantinha a postura firme enquanto segurava a chave inglesa nas mãos, apontando-a em direção ao tripulante. Kristian, por sua vez, manteve-se em seu lugar — não tinha uma vida a perder e por isso não se daria o trabalho de ficar se escondendo —, contudo rodeava seu braço arrancado por Pieri pelo corpo, utilizando-o como um nunchaku.

A princípio, ao notar os invasores devidamente encurralados e em posição de ataque, o rapaz magricelo pareceu calçar alguns centímetros somente de orgulho, estufando o peito para intimidá-los ainda mais, mas a realidade era que sua presença não os ameaçava nem minimamente e, finalmente, ao notar-se englobado por uma gigantesca sombra vinda detrás de si, ele próprio percebeu o que os aterrorizava tanto: uma figura humanoide de dois metros e meio de altura, pele azulada, enormes olhos de peixe com esclera preta e brânquias nas maçãs do rosto. Era o navegador de sua tripulação, Little Fang — quem mais poderia ser? É claro que não seria ele quem os assustaria tanto assim (por mais que adorasse a ideia).

— Yun, não trate nossos convidados assim — avisou simpático, sorrindo tranquilamente em direção aos Pierrôs, num gesto de clara gentileza — Você ouviu Hanzo, estamos em trégua.

— E você bem ouviu o que eles disseram! — o rapaz, Yun, disse, apertando seus olhos e deixando escapar um suspiro derrotado: contra as regras de seu capitão, embora insistisse muito, ele não poderia de fato ganhar.

— Acredito que eles tenham se excedido nas falas, contudo não podemos negar que tivemos baixas desde que chegamos. — o homem terminou de falar, apertando levemente o ombro do outro tripulante, pedindo de forma sutil para que tivesse paciência.

Os quatro pierrôs presentes se entreolharam por um breve segundo, estudando o que se passava naquela tripulação. Mas, sem encontrar respostas perdidas no chão do deque, Shari resolve quebrar o silêncio, imediatamente se retificando:

— Pedimos desculpas se os ofendemos, mas não deixo de me sentir curioso: por que escolheram esta embarcação? — expôs humildemente, e neste momento sua chave inglesa já se encontrava abaixada, pois seus instintos lhe diziam que ainda não havia motivos para temer. — O percurso levará bem mais do dobro do tempo sem um motor. É uma exposição desnecessária ao perigo.

Yun suspirou pesaroso e sua feição, até então pouco agradável, se tornou mais desgostosa do que nunca ao falar de seu chefe: — Nosso digníssimo capitão cumpre um voto de pobreza. Esta jura só poderá ser quebrada quando aniquilarmos um de seus inimigos e, desta forma, até que ele o consiga, viveremos nesta pocilga.

— Ora, e depois reclamam quando eu digo que são retardados! — o mecânico fala sem pudores, soltando uma gargalhada símia em seguida: não podia acreditar no que seus ouvidos haviam captado, aqueles eram sem dúvidas os piratas mais fodidos que conhecera (e, veja bem, tivera contato com os malucos do gato de tapa-olho alguns dias antes). Com o braço que não segurava a arma improvisada, deu um cutucão em Kristian, recebendo um riso comedido de imediato, porém sua diversão não durou muito e antes que percebesse seu corpo fora suspenso no ar. Yolanda o pegou desprevenido.

— SHIU, SHARI! — Yolanda sibilou furiosa. Ainda que seu tom de voz nunca deixasse de ser doce, sua feição demonstrava o mais puro descontentamento, além de que agora segurava o corpo do macaco com o lado direito de seus bigodes, enquanto o outro tomava o formato de um punho e golpeava o garoto-zumbi. Passado o momento de ataque, ela nunca o pôs de volta no chão ou desfez o punho: em vez disso, continuou segurando o chimpanzé pelos pés.

— GO-HO-HO-HO! — o homem-peixe deixou escapar, gargalhando descomedido da comédia pessoal que seus convidados apresentavam para si. Se antes restavam dúvidas, agora era uma certeza de que aquele indivíduo era dono de uma gentileza ímpar — É verdade que não é o ideal para a Grand Line, mas quando aceitei me tornar um Komainu, eu também concordei com as crenças de meu capitão — pontua, sem desfazer o sorriso, e por fim desviando seu olhar para seu companheiro: — Não é mesmo, Yun?

A verdade é que, a fim de não constranger a garota, Yun estava contendo seus olhares desde muito antes, contudo seus esforços foram em vão no momento em que os bigodes de Yolanda ganharam vida: afinal, não se tratava apenas do simples excesso de cabelo de uma pobre mulher; eram poderosos, fortes o suficiente para levantar um indivíduo de grande porte sem dificuldade e, acima disso, capazes de se mutar em diferentes formatos. Sem dúvida alguma, se tratava de uma habilidade muito interessante, se não fosse horrorosa, em uma mu–

— Não é mesmo, Yun? — insistiu o homem mais alto, dando um "fraco" (o quanto possível) empurrão em seu amigo, fazendo-o desequilibrar e, consequentemente, despertar de seu transe.

— Ãn...? Claro, com certeza... — respondeu, ainda um pouco atônito, mas por fim assenta sua postura, tentando retomar a fala: — O Hanzo é muito disciplinado, ele levanta todos os dias cedo, raspa a barb

Yun não conseguiu terminar seja-lá-o-quê ele queria expressar, simplesmente porque seu cérebro... quebrou. Assim mesmo, completamente do nada, o que antes era um raciocínio lógico, de supetão se tornou um milhão de bigodinhos batendo asas em volta de sua cabeça e seu corpo quase desfaleceu nos braços de Fang, porque, logo atrás do grupo, um homem emergiu das profundezas do inferno, saltando do submarino para balangar bem mais do que pelos: ele estava completamente nu, com a exceção de um jaleco de médico muito grande para seu corpo aberto e um par de botas surradas.

— SEUS DESGRAÇADOS! VOCÊS ESTÃO VIVOS! — bramiu, tal qual um recém-nascido ao inalar ar pela primeira vez, e passou a correr de braços abertos em direção aos invasores, sem qualquer pudor, sequer parecia notar a própria nudez.

À medida que o maluco-exibicionista se aproximava, era possível notar os demais detalhes de sua peculiar aparência: estava cheio de arranhões por seu corpo, mas, principalmente, havia um gigantesco corte em sua testa; grande o suficiente para ser visto de longe por todos — ou ao menos todos que não fossem Yun, pois ele se encontrava catatônico demais para reparar na face do estranho. Por fim, quando Franz alcança Yolanda e se aconchega em seus peitos para pedir alento, só então ele consegue exprimir em tom choroso mais palavras:

— O que aconteceu com vocês? — pergunta ao bando, olhando em direção a Apollo como se fosse um filho esquecido na praça, esperando por uma explicação decente do porquê de ter sido deixado sozinho.

Por sua vez, o cozinheiro não sabia como explicar tudo que aconteceu. — Colidimos com esta embarcação enquanto emergimos, não foram identificados por nossos radares. Pieri sumiu junto de Nicholas, sem nenhum aviso prévio e, Franz, você está completamente pelado. — Apollo relatou resumidamente, sem se prender a detalhes que já descansavam no passado (o que eram as ordens ensandecidas de Pieri, perto de abandoná-los sem justificativas?) e, por fim, tratou de avisar ao colega a situação em que se encontrava.

— Eu sei. Só tive tempo de pegar meu jaleco para tratar vocês! Tinha sangue por toda parte. — respondeu um pouco mais relaxado, endireitando a postura e fechando os botões do jaleco. Afinal, não era completamente indecente. — Não costumo dormir com roupas...

— É o seu sangue, Franz — pontuou Kristian, com uma sobrancelha arqueada.

— Ah, então 'tá tudo bem! — respondeu, dando de ombros; os anos de exposição direta ao sol e também ao frio fizeram seu corpo perder boa parte da sensibilidade e, em seu estado atual, poderia facilmente aturar ferimentos relativos sem sentir cócegas. Era uma peculiaridade sua.

— Certeza? Não precisa de uma mãozinha? — ele brinca e, como se fosse a atitude mais normal do mundo, lançou o braço que antes era sua arma em direção do rapaz, como um pequeno complemento.

— Não faça isso! — Yun, rompendo seu transe de completo desespero, gritou alto, erguendo a mão para sinalizar ao "médico" que amparasse o braço desfalecido antes de aterrissar feito um pacote de estrume no chão. Mas... não deu tempo. Ou, melhor dizendo, Franz sequer tentou pegá-lo; em vez disso, ele continuou despreocupado, mesmo sob o olhar severo do pirata rival.

Como aquele moleque trajado como médico poderia permitir tamanho descaso com membros sob sua vigilância?, pensou consigo mesmo. Como se não fosse o bastante a situação em que chegara e tampouco o lançamento do outro tripulante, o que realmente fez com que sua pressão fosse ao chão nunca passaria por sua cabeça que pudesse acontecer; o braço tinha vida própria e arrastando-se com a força dos dedos, voltava para o seu dono.

Se rendeu, caindo de joelhos no chão.

— Por favor, deixe-me costurar o seu braço... — implorou, não aguentando mais tamanho absurdo; precisava primeiro amarrar aquela... coisa, em algum lugar, e só depois tomar as rédeas da situação: — A sua testa também — apontou Franz — não é bom deixá-la sangrando...

— Isso realmente seria uma mão na roda! — o imediato respondeu, pegando o próprio braço do chão e rindo de sua própria piada; porém, ninguém o acompanhou — Franz, você consegue se consertar sozinho?

— Não agora, certamente. Minha vista ainda está um pouco desfocada. — respondeu rindo alto, dissociando numa fração de segundos, e então tornando a visão para Yun (ou quase, na verdade; estava um pouquinho a mais para a esquerda): — Você é médico? — pergunta, descabido.

Com a expressão um pouco fechada e um sorriso amarelo, Yun respondeu que sim, controlando-se para não dar-lhe uma resposta mal educada e, ao mesmo tempo, focando seu olhar além de onde estava o outro médico — não se sentia confortável ainda para o encarar diretamente. Depois disso, ele somente abaixou a cabeça e guiou Kristian e Franz para dentro do castelo de proa, indo atrás de seus equipamentos para que pudesse suturar e, talvez, encontrar um fim para aquela loucura que estava acontecendo. Aos que ficaram no convés, restou um silêncio breve, trocando olhares com o homem-peixe que, de cenho franzido, pensava sobre o modo estranho de agir de seu colega: nunca havia o visto tão no limite assim, mesmo quando se tratava do capitão (quem abertamente odiava). O clima, outrora descontraído, agora voltava a pesar.

— Então... — Shari quebrou o silêncio, virando a cabeça em cento e oitenta graus, calculando a gravidade dos estragos; não havia lhe dado na telha até então que seria sua função dar um jeito naquela embarcação. — Onde posso encontrar algumas ferramentas?

— Como assim? — Fang pergunta.

— Se seu médico prestará serviços para a gente, é justo que eu preste para vocês também. Farei o possível para contornar o estrago que o Diabo-negro fez, embora não possa garantir que sairá novo, já que não estamos aportados.

— Muito bem — o pirata-rival abre um sorriso cheio (até demais) de dentes — Trarei o necessário para que possa tratar o Sol Nascente. Enquanto isso, por que vocês não entram para tomar um chá? — e finalizou, olhando para Yolanda e Apollo, os pobres acuados.

≈≈≈

Por dentro, o Sol Nascente era tão miserável quanto por fora. Como bem dito por Yun, o médico do bando, toda a mobília parecia remeter aos princípios de Hanzo: minimalista em seu máximo, sem luxos ou outras trivialidades. Não havia muitos móveis de maneira geral e os que tinham eram dotados de uma simplicidade incomum; monólitos de madeira carcomida e sem qualquer estofado, o conforto que se foda. Contrariando os demais cômodos, entretanto, o consultório — e, por sua vez, quarto do médico — era moderadamente decorado e tinha o mínimo de conforto. Seus armários eram lotados de componentes que usava em seus medicamentos, de ervas à bandagens, tinha prateleiras preenchidas com livros diversos e, o mais surpreendente, havia pendurado na parede uma peça puramente de decoração: uma pintura pálida de uma criatura mística, parecida com um longo (e não rebaixado) lagarto, mas com casco de tartaruga e espinhos da cabeça ao rabo.

— Podem ficar à vontade, mas não muito — o homem cospe em um tom passivo-agressivo, murmurando a última parte. Kristian deixa escapar um riso contido pelo jeito peculiar do homem que supostamente trataria suas feridas, enquanto Franz não pareceu sequer prestar atenção no que fora dito: estava vidrado na pintura da parede.

— É uma bela pintura. Me surpreende ter algo interessante nessas paredes, visto que os demais ambientes são tão... estoicos — o médico já-não-tão-nu falou, sem se importar com quem o estava ouvindo, porém logo se virou para o responsável pelo consultório e o perguntou, em tom simpático: — Significa algo?

— Importa? — Yun rebate.

— Não necessariamente, mas como nunca vi algo parecido, ou ao menos não com um casco por cima, não pude conter minha curiosidade — explicou, muito tranquilo e sem tirar os olhos da figura do quadro — Foi você quem pintou, não foi? Quero dizer, acho que não dá para fazer remédio com tinta... — e apontou com a cabeça para a prateleira, onde havia um conjunto de três potes alinhados: um vermelho, outro amarelado e mais um preto.

O médico rival ergueu uma sobrancelha, mas antes que pudesse perguntar, Kristian tomou seu lugar:

— Como você sabe que são tintas, e não qualquer outra coisa? — inquiriu suspeitoso: por mais que não duvidasse da sagacidade de seu companheiro, também não o espantaria se descobrisse dia desses que todo o seu conhecimento era, na verdade, oriundo somente da sua terrível sorte (fora que, estando num consultório, potes com "vermelho" e "amarelo" não poderiam ser um bom sinal).

— Eu pintei, sim — o homem interrompeu. — Mas aquilo não é tinta; é xarope e nanquim.

— E o que nanquim é? — Franz perguntou, sem qualquer ironia em sua voz.

— É... — Yun desvia a cabeça antes de terminar. — tinta...

Kristian deixa escapar uma risada nasalada, embebida no deboche que só sua capitã poderia embutir em sua não-vida: — Que bagunça. Você literalmente acabou de dizer que não era tinta!

— Porque não é só tinta! — o médico rival revidou prontamente, batendo o pé no chão do navio; o impacto do chinelo de madeira contra as tábuas foi tão alto que o zumbi se calou de prontidão. — Eu... sinto muito. — disse ao notar-se fora do tom, coçando o pescoço por debaixo da longa trança, aparentemente desconfortável. — É só uma tradição. Mas tinta é tinta para vocês, no fim das contas; não importa como é feito, ou de onde veio.

— Não se incomode com nossa ignorância, afinal, não pertencemos a lugar algum, então é impossível para nós compreendermos o verdadeiro sentido das tradições — respondeu Franz, com uma das mãos coçando o queixo e um sorriso amigável — Sem contar que Kris está morto, a única tradição que falta a ele é um enterro decente.

— Vai se foder — o imediato falou, porém não transmitia nenhuma irritação, muito pelo contrário — Vou usar essa mais tarde. Talvez — finalizou com uma piscada gentil, puxando a cadeira para sentar-se e dispondo seu membro amputado por cima da mesa para deixá-lo "à postos".

Yun pareceu perder a voz por alguns segundos, não compreendia qual era a motivação daqueles piratas; ao julgá-los pela aparência não os consideraria mais do que desordeiros, incapazes de compreender sequer o que estava diante de seus olhos e, de fato, não estava errado. Eram desordeiros, grosseiros e, principalmente, esquisitos, mas sequer se aproximavam da burrice que havia imposto de princípio. A "astúcia" poderia defini-los como tripulação, embora não fosse exatamente essa palavra que buscava. Em suma, mesmo o mais peculiar deles não deixava que os detalhes passassem diante de seus olhos e calculava-os sem nenhum disfarce, como se fossem treinados para a guerra desde a mais tenra idade e estivessem prontos para abatê-lo, se fosse necessário. Ele não quis dizer, mas se precisasse expressar o que sentia — se é que seu rosto não falava por conta própria —, diria que vê-los lhe causava a mais profunda angústia, uma vez que, crescido no infinito conflito, vira muito mais daqueles mesmos semblantes; destemidos e sagazes como um todo, mas nunca, nunca sorrindo daquele jeito.

Respirou fundo, segurando o braço de Kris sobre a mesa e o encarando com a face um tanto retorcida. Yun nunca imaginou que precisaria implantar um braço inteiro (ao menos não um que estava a tanto tempo distante do corpo) e portanto estava um tanto quanto inseguro quanto os procedimentos, mas mesmo assim segurou-o com uma das mãos e esperou que Kristian parasse de movê-la para iniciar. Não seria algo simples, isto é, se estivesse pensando em uma pessoa viva... Mas será que ele sentia mesmo dor?, se perguntou. Esterilizou-o mecanicamente, após verificar se haviam resíduos no ferimento, mesmo sentindo que isso não faria a menor diferença e, antes de começar a costurar, ele diz: — Trata-se de um dragão, era uma figura importante do meu povo. E você pare de se mexer, ou vou grampear seu braço.

— Não seria a primeira e nem a última vez que isso acontece! — o imediato responde, rindo alto de sua própria "piada" (que não era bem piada, já que Pieri era bastante... pragmática) e sendo acompanhado por Franz, o único que entendia suas gracinhas de pós-morte. Yun, por sua vez, manteve-se sério.

— Se podem me interrogar, penso que seja justo fazer o mesmo com vocês — pontua ele, sem tirar os olhos do fio e linha — Esse seu braço, por exemplo. Em que momento ele ficou assim?

— Quando minha capitã arrancou alguns dias atrás? — O zumbi respondeu, mas sem muita certeza em sua voz.

— E por que ela faria isso com um companheiro? — perguntou o médico com a sobrancelha arqueada, mas sem encará-los, sua atenção estava focada unicamente nos pontos que dava.

Porém, antes que Kristian respondesse, Franz tomou a dianteira e, soltando uma gargalhada, disse: — Porque ela é completamente maluca. Se trancou em sua sala e levou o braço junto, por isso não pude consertar até então.

— Então, suponho que você tem habilidade para consertá-lo?

— Quem não tem hoje em dia? — indagou, um tanto preguiçoso, não havia com tom de superioridade e tampouco com a intenção de constranger o outro médico; ele genuinamente parecia acreditar que qualquer um teria esta capacidade. — É muito mais simples do que parece, você como médico deve me entender. Porém minhas tentativas de ensinar o básico ao bando foram todas falhas, devo ser um péssimo professor.

O imediato revirou os olhos, enquanto resmungava sem muito humor que ensinar suturas a leigos estava muito longe de ser o básico, mas seus apelos foram ouvidos somente por Yun, que agora finalizava sua costura.

— Está pronto, peço que não faça movimentos bruscos... Ou então faça o que quiser. Não compreendo sua anatomia — o homem resmungou.

Nesse ponto, mesmo os dois pierrôs, que não o conheciam a muito tempo, já haviam entendido seu gosto por murmúrios. Sem dúvida alguma, o médico rival era um homem de muitas manias, mas, na mesma proporção que era excêntrico, era muito habilidoso e, por conseguinte, Kristian já conseguia fazer movimentos básicos com sua mão recém costurada, apertando o ar para sentir as articulações — na verdade, ele conseguiria facilmente fazer bem mais do que isso, porém optou por ser básico, já que não conhecia Yun o suficiente para garantir que não teria o braço amputado de volta. Por fim, Franz sentou-se na cadeira onde anteriormente estava seu companheiro, e enquanto esperava ser tratado, inicia, com tom de curiosidade:

— De qualquer forma, ainda não consigo imaginar o que os trouxeram até esse lugar. É apenas um rochedo.

— Não era minha vez de fazer perguntas? — o respondeu prontamente.

— Nós acabamos de responder, já esqueceu disso? — devolveu, um tanto jocoso, o imediato, porém se calou ao receber um olhar atravessado de Franz. O médico loiro continua:

— Como eu ia dizendo, não estamos na rota mais... tradicional, da Grand Line — dá uma pausa em sua voz para que o homem aplicasse um algodão com álcool em sua ferida com tranquilidade — Pieri decidiu que era melhor não chamarmos atenção por ora, então seguimos pelo caminho menos movimentado.

Yun pareceu ponderar por alguns momentos, como se estivesse absorvendo as informações que lhe foram dadas para si de maneira completamente gratuita: não eram aliados, ao menos não ainda; apenas estavam em uma trégua momentânea e o outro médico sequer fora avisado quanto a isso. Se tratava de ingenuidade ou estavam planejando algo além disso? Difundir intenções falsas com inimigos parecia um plano bastante seguro, entretanto, como para ele os objetivos de Hanzo não significavam absolutamente nada, não viu motivos para mentir.

— Buscamos um bando específico e Hanzo acredita que eles deixaram pistas de seu paradeiro nesta ilha. — o médico contou, sem tirar a concentração do ferimento de Franz, porém em seu interior gargalhava. O capitão se lançaria ao mar se soubesse que um de seus subordinados tratava de seus assuntos com tão pouco cuidado. — Ele tenta encontrá-los desde a época em que caçava piratas por dinheiro e, simnós compreendemos a incoerência — revirou os olhos — Eram saqueadores comuns no East Blue, mas eventualmente passaram a assassinar famílias de pescadores e dizimar cidades adjacentes. Algo relacionado a purificação ou algum tipo de justiça. Não importa realmente; a honra é relativa, e mesmo a justiça não serve para nada quando se está do outro lado da moeda.

— Você não apoia as decisões de seu capitão? — questionou Franz, antes de retornar aos próprios pensamentos.

— É certo que o apoio; embora não seja meu ideal de vida, ainda assim vejo nobreza em suas missões e o admiro por viver pelo que acredita, contudo, o tempo me fez conhecer todas as suas falhas, e virar as costas para elas seria trair meus próprios preceitos. Para mim, manter o que eu acredito intacto é muito mais importante que manter minha cabeça sobre o pescoço.

— Eu não compreendo. Se esse é o caso, por que continua a segui-lo? — o questionamento partiu do imediato, que agora sentado no chão, observava-os conversar: a princípio, seu objetivo era tirar um cochilo e deixar os médicos com seus próprios assuntos, mas de vez em quando era bom praticar sua função no navio e aquela pauta poderia ser do interesse de sua capitã no futuro. — Por exemplo, eu sigo Pieri porque confio em suas habilidades e, principalmente, porque viajar com a capitã me deu a liberdade que procurava.

— Trata-se de uma dívida de alma, ou algo do tipo: Hanzo acredita ter me salvado de um destino fatal e eu, ainda que desgoste, deixei que ele acreditasse por tempo suficiente para não ter como voltar atrás. — suspirou profundamente, distraindo-se das agulhas e percebendo perfurar o supercílio de Franz sem a menor delicadeza, mas decerto isso não faz diferença alguma para quem não reclama da dor — Para colocar-se em uma posição heroica basta aparecer no momento e hora exata e ele, como o bom homem que é, fez seu dever em ajudar as vítimas — parou por um segundo, dando o nó no ponto final e tomando a tesoura de sua mesa — Mas nem todos pedem para serem salvos. Sobretudo, tenho certeza de que ninguém deseja ser salvo por um compatriota de seu maior algoz.

— Você não respondeu. Por que está aqui ainda? — dessa vez foi Franz quem perguntou com a voz branda. Yun, que acabara de largar suas ferramentas na bandeja de metal, olhou-os seriamente.

— Bem. — deu um suspiro pesado — Porque sou eu quem vai...

Um súbito som de disparo irrompeu bem distante, interrompendo sua fala. Era um tiro vindo da ilha.

≈≈≈

Não houve tempo para que Hanzo e Sherikan raciocinassem; o tiro passou diretamente pelo meio dos dois homens e o choque foi tamanho que ambos perderam a respiração e desembainharam suas espadas: era serviço do sobrevivente botar fim as vidas de Pieri e Nicholas. Entretanto, diferente do esperado, a morte não chegou para nenhum deles. Muito pelo contrário, o verdadeiro despertar fora um vívido grito da pierrô.

— CORRAM! — seguido de um novo disparo e um novo urro — MACACOS FILHOS DA PUTA-HYA!

Foi só então que as engrenagens do mundo voltaram a rodar, em velocidade máxima, arrastando ambos os espadachins com seu movimento: os inimigos já estavam próximos de si, jogando frutas, pedras e fezes para o ar enquanto os aliados corriam rumo à montanha com as sacolas lotadas de frutas. Dezenas, quiçá centenas de criaturas símias se aproximavam deles, ao mesmo tempo que alguns disparos eram feitos para trás, acertando diretamente em suas cabeças e os derrubando um a um.

— VENHAM OU VOU ATIRAR EM VOCÊS TAMBÉM, HYA-HYA-HYA! — a capitã berrava para os espadachins e era notável em seu tom de voz o quanto estava se divertindo: nada a entretia mais do que o caos. — VENHAM BRIGAR, MACACOS DE MERDA! — e mais um dos inimigos era derrotado.

O guincho da macacada era uníssono com o riso de puro deleite da capitã palhaça. Enfim ela alcançou a atenção que buscava em todas as ilhas que pisava, afinal, era a única que poderia se destacar, já que Nicholas, Hanzo e Sherikan possuíam ataques de curta distância e, por consequência, estavam em completa desvantagem no andar debaixo do terreno desnivelado. Como escolha mais segura, bastava procurar um abrigo e tentar se proteger; mas quem disse que Pieri queria se esconder da briga que ela mesma havia provocado? Se tinha uma regra que a pierrô cumpria à risca, era essa a de nunca atirar à esmo. Isto é, desde que avistara o coletivo de feras enquanto se pendurava nas árvores, fez jus ao seu maior preceito: só empunhar sua pistola quando havia um objetivo em mente — nesse caso, "meter um balaço" no líder deles. Uma vez que o pilar mais forte dentre os guerreiros caiu duro no chão, a festa poderia se iniciar: havia esmigalhado aquela estranha hierarquia com suas próprias mãos e, em troca, agora recebia a fúria daqueles que ficaram.

Eles vinham de todos os lados, correndo desesperados em direção à trilha dos piratas e se atropelando no processo, já que tentavam futilmente arrastar o corpo inerte do guerreiro mais forte, gorgolejando sua vingança. Por sua vez, a fuga se dava de maneira ainda mais caótica: Pieri parecia ter perdido completamente a cabeça e não demorou para que jogasse as frutas para um dos espadachins no momento que eles os alcançaram, focando-se unicamente em eliminar os inimigos. Gargalhava, em alto e bom tom, preenchendo a floresta com sua voz aguda.

— PARE DE ATIRAR E CORRA MAIS RÁPIDO! — Sherikan berrou para a garota, perdendo a compostura: naquele ponto, estava pouco se lixando para as alianças e promessas de paz, poderia muito bem colocar a cabeça daqueles dois no espeto.

Pieri, no entanto, apenas sorriu para o homem — aquilo estava melhorando a cada segundo. Quem poderia imaginar que matar um macaco chefe resultaria em ser desafiada pelo subordinado do Capitão-mendigo? Ainda mais no meio daquela perseguição desenfreada! Era disso que ela estava precisando, uma fodendo aventura. Num movimento rápido tencionou os joelhos e lançou-se sobre as costas de Sherikan, grudando nele como um animal.

— CORRA VOCÊ! SE QUISER TOMAR PEDRADA, EU PULO NAS COSTAS DO CAPITÃO-MENDIGO-HYA. — berrou em seu ouvido, prontamente disparando mais um tiro no olho do macaco mais enfurecido.

Acontece que, consumido pela adrenalina de sua fuga, o cérebro de Pieri falhou em considerar as consequências de atirar ao pé do ouvido de seu cavalo-de-pau e, com a mesma velocidade que montou em suas costas, ambos despencaram juntos montanha a baixo, engatados em uma só bola de destruição que, felizmente, passou reto pelos dois espadachins que tomavam a dianteira.

— Você viu algo passar por aqui? — Nicholas, sem deixar de correr, pergunta a Hanzo, bastante alarmado. Em resposta, o baixo homem apenas apertou seu olho esquerdo, levando a cabeça para trás devagarinho, quase travando, para notar...

Nada. Somente macacos.

E então, a solução para a primeira das dúvidas — embora abrisse outra dúzia delas — entoou da frente:

— HYA-HYA-HYA! — Pieri gargalhou a plenos pulmões. Ao olharem para frente, não havia corpo, apenas uma nuvem de poeira espessa, com uma gigantesca sombra animalesca trotando pelo barranco e arrebentando mais e mais árvores com suas passadas. Mais uma vez, houve outro disparo de pólvora e notaram um pequeno brilho acima da criatura: ela estava, não se sabe como, ali em cima, e sem perder seu fôlego, continuava a gritar: — MORRAM, MACACOS DO INFERNO!

Aos poucos a poeira parecia abaixar e, para o desespero de Nicholas, ia dando forma a criatura gigantesca que carregava a sua capitã sobre a carcunda. Seus ombros e tronco tinham uma pelagem escura e lisa, como a de um leão da montanha, enquanto os membros superiores e inferiores representavam um outro felino, um tigre. Como se não bastasse a aberração que era na parte superior, contudo, o maior desespero vinha do rabo: uma cobra. Não o fim dela, mas sim a face completa do réptil, olhando-o com a bocarra aberta e pronta para dar o bote.

Não conseguiu conter o grito de desespero e imediatamente pensou em largar os sacos para empunhar sua espada, mesmo que trêmulo.

— OS EQUIPAMENTOS! — Hanzo gritou, um pouco atrás de si. Ele estava correndo com um saco de frutas e outras duas espadas, além da que estava presa em sua bainha.

Foi só nesse momento que Nicholas conseguiu assimilar o que realmente estava acontecendo: a estranha visão do homem carregando mais do que só seus equipamentos somada da criatura que corria à frente, ainda com alguns pedaços de tecido rasgado por volta de seu corpo, foram o bastante para ligar os pontos e, sim, sem dúvida alguma "aquilo" que Pieri montava era o sujeito de cabelos brancos que antes conversava, mas transformado (sabe-se lá Deus porquê). No entanto, não havia muito a ser feito senão seguir as ordens do capitão experiente: ainda que confuso, tratou de coletar, à medida que corria, os materiais perdidos, jogando-os sem cuidado dentro do saco de frutas e torcendo para que o destino permitisse que algum alimento restasse.

— OLHEM AQUI-HYA! — a palhaça berrou aos confrades. Pensando que seriam alvejados por mais alguns minutos pela alucinada, os dois guerreiros que ficaram para trás até abaixaram suas cabeças, mas, ainda bem, ela já não atirava mais; sua munição fora descarregada por completo já tinha uns cem ou duzentos metros. No fim das contas, ela tinha os dois braços esticados e prontos para puxá-los junto dela à fera.

Só que nem tudo era tão fácil. Em teoria, precisavam somente agarrar sua mão para subir, mas Sherikan estava tão desnorteado pela transformação repentina que só trotava desesperado como um rinoceronte por cima da mata rasteira, focando-se somente em não deixar seus joelhos cederem a gravidade, nunca diminuindo seu passo — pelo contrário, a cada segundo parecia mais rápido. Estava ligeiro demais para que pudessem subir sem perdas; quer dizer, Nicholas não daria a mínima de largar os frutos e equipamentos, sobreviver era o primeiro item na sua lista de preocupações, porém Hanzo não parecia se sentir da mesma maneira quanto as espadas e demais itens de Sherikan, então supôs que deveriam ter lá sua importância para o bando (nada que pudesse ser discutido por agora). Por fim, ao compreender que sua ideia de colocar os dois para cima da "criatura" não daria certo, Pieri voltou-se a frente, deparando-se com...

Uma derrota inevitável.

— HYA! ALGUÉM PARA ESSA MERDA DESSE BICHO! — a pirata berrou, estapeando as costas de Sherikan e puxando sua "juba" para trás; tentando de tudo para que ele parasse. — FAÇA ALGO, MENDIGO-HYA! — olhou para trás, em choque: sua face estava pálida e os olhos, completamente arregalados, imploravam por socorro.

Mas não houve tempo para sequer raciocinar o que estava acontecendo naquele momento. Afinal, em vez da praia, como era esperado pela rota, acabaram perdendo seu caminho enquanto seguiam o rastro de destruição da bola de pelos e, sem que pudessem ver aonde ia dar, abruptamente as pernas de Sherikan travaram — como as de um felino que teme ser banhado —, tentando inutilmente frear e, depois disso, não deu outra, os dois foram deslizando até o fim do caminho íngreme até sumirem completamente para baixo.

Caíram ambos, precipício abaixo.

≈≈≈

A paz momentânea entre os bandos foi interrompido por um característico "INFEEEEEERNO", muito prolongado, seguido por um splash gigantesco. Fosse aqueles que tomavam chá no convés acompanhados de Fang, ou os que acompanhavam Yun em seu consultório, todos no navio ficaram em completo silêncio, sem saber o que dizer; apenas olhando-se incrédulos.

De prontidão, o homem-peixe foi o primeiro a reagir, soltando a espada que carregava em sua cintura no chão e saltando em direção ao oceano; Shari neste momento pareceu acordar de seu transe, desejando ter sua chave inglesa em mãos, alguma coisa estava muito errada.

— Meu bem, você ouviu algo? — perguntou Yolanda, levando o chá calmamente em direção aos lábios. Poderia jurar que ouvira a voz de Pieri, contudo, após tantos dias ouvindo-a berrar em seus aposentos já não sabia distinguir a realidade de delírios e, para confirmar a sua despreocupação, Apollo não a respondeu porque estava perdido em seus próprios pensamentos.

Um novo grito então se fez presente, mas esse era repleto de puro pavor. Não houveram últimas palavras, somente a vogal "A" em repetição até que a colisão com a água o calasse. O mecânico estava atento e pôde ter um segundo de troca de olhares com Nicholas antes que alcançasse o mar. A pulga retornou a coçar em sua orelha, dessa vez mais irritante que nunca; percorreu com os olhos o caminho que o garoto havia feito em sua queda, mas encontrou somente um homem de braços cruzados na ponta do penhasco, encarando fixamente a água, com o olhar de quem está bastante desconcertado — ou, de forma mais clara e realista, olhando o mar com cara de que fodeu.

Nesse instante, lhe veio um lapso de sanidade: Pieri. Era isso que o preocupava. Se ela caiu antes de Nicholas, já deveria ter retornado à superfície numa hora dessas. E então, largando tudo que tinha em mãos, Shari virou sua cabeça para o mar, confirmando o que já sabia: tudo andava mal. Muito mal. Fang retornava à superfície com um rapaz em seus braços, completamente nu e desacordado, mas não havia nenhum sinal de sua capitã nem por perto: apenas bolhas e mais bolhas, descendo infinitamente para o fundo do mar. Não questionou. Apenas lançou-se ao mar.

— Meu Deus! — Yolanda gritou, apontando para Fang, que voltava ao deque com um Sherikan estirado sobre seus braços. De todos os problemas daquela situação, estar completamente nu era o menor deles, porque ele parecia bem mais do que  desmaiado — Devemos chamar Yun, ou talvez Franz para ajudá-lo? — pergunta afobada.

— ME AJUDEM AQUI! — Nicholas berrou, lançando o saco de frutas (e armamentos) a mulher. Yolanda tomou o saco de suprimentos com seus bigodes, enquanto Apollo foi até o cordame para que pudesse socorrê-lo também. Uma vez pisando no chão de madeira, o garoto desabou no peito do homem, sendo carregado pelo cozinheiro até o local onde Sherikan agora descansava. Ambos tinham as respirações pesadas e entregavam por ela o seu cansaço, porém, o pierrô tinha a sorte de ainda estar acordado (e com suas vergonhas e dignidade intactas).

Antes que pudessem voltar ao parapeito para ver o que Shari fazia no mar, um terceiro vulto, estranhamente silencioso, passou reto em direção a água, de braços cruzados e sem medo ou escarcéu. Apollo e Yolanda se encararam simultaneamente, soltando um pequeno risinho um ao outro que não precisava de qualquer explicação, aquele era um homem legal.

— Fang, agradeço pela reação rápida, felizmente Sherikan ficará bem — o homem disse, enquanto retirava suas armas da roupa, descansando-as sobre o chão do barco. Estava claramente distraído, embora sua postura fosse consideravelmente invejável após tamanho despenhadeiro que havia saltado e, por isso, não se atentou aos olhos peculiares que o observavam. — Aonde está Kaze, acredito que seja necessário examinar os dois ao chão?

— Estou aqui, estava buscando os medicamentos necessários — o médico então surge, carregando consigo o imediato e o médico dos pierrôs, ambos com feições igualmente desgostosas em seu encalço.

— Yun, deixe que eu cuido do Nicholas — Franz se intromete, tomando a dianteira e citando o nome do outro com um tom um pouco desafiador. Era fato que estava transtornado e sua irritação era tangível, mas não havia nada que pudesse fazer naquele momento, então optou por sua única fonte de escape: o humor. — Sabe como é, ele costuma ser meio mimadinho com tratamentos médicos. Uma verdadeira prince–

— Se terminar, eu vou levantar para te degola... — Nicholas o interrompe, levantando um pouco do tórax para ameaçá-lo, mas sua voz simplesmente travou no meio da frase — Que diabos de pijama é esse?

— Ora, majestade, não é um pijama! Yun apenas não aguentou lidar com meu corpo sensual e me deu essa roupa. Infelizmente, seu plano caiu por terra: agora estou irresistível. — piscou para o paciente e, enquanto ele estava distraído sentindo-se constrangido por sua fala, aproveitou para colocar sem aviso o seu ombro no lugar. — Está tudo certo contigo agora, somente seu ombro foi deslocado. Sorte grande.

As conversas paralelas continuaram por alguns longos instantes, e embora fosse o centro daquela comunidade, Hanzo não conseguia se focar em nenhuma delas. "Yun... " resmungou para si mesmo, em muito baixo tom, observando a situação que tinha diante de si: nunca compreendeu a insistência de Fang em tratar o garoto com o nome que já não o pertencia mais, porém, agora não adiantava contradizê-lo: todos daquele estranho ecossistema já o conheciam como Yun e dizer o nome de verdade do médico só causaria mais confusão.

Suspirou cansado, finalmente dando-se conta das figuras que interagiam em seu convés, e peculiares era o mínimo que poderia dizer. Tinha um pouco de tudo: um homem forte; outro sem cor.... Mas de todos, a mulher de bigodes sem dúvida foi o que mais o surpreendeu; nunca vira um poder tão curioso quanto o dela (isto é, se de fato fosse uma habilidade), e embora não tenha conseguido evitar de também perder alguns segundos observando o médico pierrô realizando o próprio ofício — as roupas provindas de Kaze, o jaleco ensanguentado e a testa repleta de pontos não eram detalhes que poderiam só passar despercebidos —, com certeza foi ela quem mais saltava em seus olhos, talvez por ser a única mulher do bando com exceção de...

— Onde está Pieri? — questiona Hanzo, dando-se conta de que não vira a capitã palhaça por um bom tempo. Todos olharam para si, mas somente Kristian o respondeu, vestindo sua maior cara de imediato sério:

— E o que você deseja com ela? — rebateu ressabiado.

— ME LARGA, SEU MACACO FILHO DA PUTA-HYA! EU NÃO ME ARREPENDO DE NADA! — a voz da capitã retornou a aparecer; não tão alta e sendo interrompida por uma crise de tosse, certamente devido a água que entrara em seus pulmões. Não houve tempo para um novo grito, visto que seu corpo foi lançado para dentro da embarcação e enlaçado pelos ávidos bigodes de Yolanda antes que caísse ao chão. Shari subiu no mesmo instante e ignorando por completo os tripulantes ao chão, retornou as ferramentas, deixando Pieri sob os cuidados do bando.

Por ora, ninguém disse mais nada. A atmosfera se tornou esquisita de uma hora para outra. Conquanto, não levou muito tempo para que a capitã conseguisse recuperar seu fôlego e cortar aquele clima horroroso com sua estridente e característica gargalhada e, por que não, criando um desconforto ainda maior:

— HYA-HYA-HYA! Você não vai nem acreditar, Shari! Eu matei sua mãe, sua tia e sua prima-hya! — e bateu a mão no chão, rindo desenfreada sem que ao menos conseguisse levantar o tórax, enquanto todos ao redor só se olhavam estarrecidos, sem entender absolutamente nada. Hanzo, em especial, sentiu sua cabeça rodar; como Shari não estava presente no momento que subiu ao barco, não fizera nenhuma associação, mas... bem, não era possível que aquele indivíduo fosse... Não, não poderia ser um daqueles do qual fugiram, da mesma forma que não deveria ter algum parentesco com eles... De qualquer forma, não pôde evitar de empalidecer, eram emoções demais para um dia. Pieri continua: — Nunca mais exploro com tão pouca munição-hya! Eu poderia ter evitado essa fuga.

— Perda de tempo, capitã. Granadas evitariam fuga pelo precipício — Shari respondeu entredentes, tentando acender um charuto em seus lábios — além de que o "boom" é muito mais impactante. Visualmente falando, é claro.

— Eu gosto da emoção de atirar, nenhuma bala foi desperdiçada-hya — respondeu, deixando que Franz começasse a examiná-la. — Depois que a Poyo roubou minha arma, eu aprendi a valorizá-la, não é mesmo, Kristoviski?

Kristian meneou com a cabeça, dando um sorriso pequeno para a capitã, porém, antes que pudesse responder qualquer coisa a ela, um maço de papéis fora lançado sobre o peito da capitã. Pela aparência, se tratava de um jornal e a data revelava ser recente. Uma semente de dúvida brotou naqueles que observavam a cena, sobretudo naqueles que não pertenciam ao bando circense. O mecânico pergunta:

— Não são seus amiguinhos, Capitã?

A pierrô sorriu largo, fechando o punho e dando um pequeno soco no ar, eufórica: — Poyo-hya! Eu disse que havia algo neles, Kristoph! Mal saímos de lá e eles já estão deixando sua marca-hya. Maldito gato jocoso. E vocês dizendo que eu não deveria ter cedido um Log Pose!

— Não é como se tivéssemos te proibido de fazer algo... — disse o Zumbi, dando de ombros.

— Até porque vocês não poderiam me proibir de nada-hya!

Longe da conversa, mas ainda assim muito atento, o outro capitão encarava a cena com, no mínimo, curiosidade, algo que não parecia ser compartilhado por seus subordinados — Kaze cuidava das feridas de Sherikan alheio à conversa e Fang a este ponto já retornara ao chá junto da mulher de bigodes e o cozinheiro. Todos estavam naturalizados com a presença dos Pierrôs, como se não se importassem com a peculiaridade que aquilo tudo implicava. Quer dizer, amiguinhos?, pensava Hanzo; certamente não era de amizades de infância que ela tratava. Não com um jornal em seu peito. Eram seus aliados. Portanto, enquanto líder do próprio bando e sobretudo pensando em proteger sua integridade, resolveu inquirir sobre a situação:

— Ora, se me permite perguntar, do que se trata esse artigo? — direcionou-se a capitã, aproximando do corpo caído para dar uma olhada nas folhas que ainda estavam sobre seu peito.

— Veja você mesmo, Mendigo-hya! — respondeu a capitã, olhando-o de rabo de olho, sem mover a cabeça. Ao fundo, Yun deixou escapar uma risada nasalada, perdendo a compostura (e entregando que estava sim prestando atenção em tudo), mas calou-se completamente ao ouvir seu capitão coçar a garganta, muito sério; ele não estava para brincadeira naquele momento.

Com o jornal em mãos, as sobrancelhas de Hanzo se levantaram, tirando a expressão de impassividade de seu rosto, era inegável que a chamada para matéria mexeu consigo. "Piratas derrotados e desonrados" em letras garrafais; sentiu-se pesaroso por alguns momentos, mas não deixou-se abalar e prosseguiu a leitura, ainda que não houvesse sequer uma informação substancial. A batalha — ou massacre, como deveria de fato ser chamado — ocorreu naquela madrugada nos arredores de Pulvereta, sem nenhuma testemunha e nenhum sobrevivente; todas as pistas que poderiam ser usadas contra os culpados foram carbonizadas junto do navio e o único vestígio deixado pelos algozes fora um despeito para as autoridades: quando amanheceu, os civis puderam notar da praia a vela do navio pichada em vermelho vivo; por cima da marca do antigo bando, agora jazia a faceta zombeteira do gato de tapa-olho, gozando dos mortos com seu próprio sangue.

O estômago de Hanzo se revirou por completo, tinha plena noção do quão agressivas poderiam ser as batalhas travadas por piratas e, ao se tornar um, prometeu deixar sua vida de caçador no passado, porém nunca superou de fato seus dilemas morais. Mais importante que isso, tinha certeza que nem o pior dos piratas acharia aquele desrespeito com os mortos engraçado.

— São seus aliados os responsáveis por isso? Devem ser grandes piratas — perguntou o capitão a Pieri, que lhe abriu um enorme sorriso.

— Não sei dizer. São? Hya-hya-hya! — ela riu, olhando-o tórpida e desorientada, mas bastante séria quanto à sua pergunta.

Ela é esperta, pensou Hanzo. Percebeu na hora sua hostilidade.

— Quem é "Poyo"? — sua voz baixou um tom e perdeu a calmaria.

— Nos encontramos com ela antes de chegar a Grand Line. É imprevisível, mas muito promissora — Kristian se intrometeu na conversa, já estava certo de que Hanzo não o agradava, mas preferia mil vezes lidar ele mesmo com a situação do que deixar sua capitã exaurida resolver aquilo. Por ora, engoliria a cólera pela paz momentânea (ao menos enquanto o pirata permanecesse inofensivo) — Apostamos alto nela.

— Ousou roubar minha pistola em Loguetown; me desafiou desarmada e tirou meu chapéu-hya-hya! — respondeu a capitã, rindo fraco e olhando em direção ao imediato, que sutilmente pediu para que ela não se movesse demais — Eu arranquei o braço dele por muito menos! Certo que as consequências são diferentes, mas não o fato de que não aceito ser desrespeitada-hya. Mas não achei esperto desafiá-la naquele momento; eu estava em desvantagem.

— Hum — o capitão ficou quieto por um breve instante, pensando com a mão no queixo, como quem analisa a situação por cima. O que era desvantagem para aquela garota, se achou cabível atacar os macacos mesmo que estivessem em menor número? — Quanto ao log pose do qual comentaram, não posso acreditar que qualquer pirata viria para esses mares sem um — questionou o capitão, ainda com dúvidas do verdadeiro valor que Pieri dava a eles.

— VOCÊ VIAJA SEM MOTOR! — Shari, que ainda cuidava dos reparos, pareceu perder a calma por alguns instantes, não conseguindo lidar com o tom de julgamento na voz do capitão-mendigo. Ambos eram imbecis. Ele até mais, talvez; uma vez que seu voto não era ignorância.

Pieri fez um sinal com a mão para Shari, mandando-o se calar e tomando a palavra para si: — O log pose deles... — deu uma pausa, ponderando sobre as palavras que deveria usar — se quebrou durante a descida — mentiu na cara dura, depois voltando-se ao céu, pensando no que seus aliados faziam naquele momento. Planejavam o próximo ato? Ou então corriam da própria sombra?

— E portanto você se compadeceu da causa? Mesmo que estivesse humilhada? — foi Kaze, o médico de nome falso, quem adentrou a conversa dessa vez, deixando de lado o tratamento de seu companheiro para apontar a contradição em seu discurso (para ele, nada era mais incoerente que cuspir em seu próprio orgulho).

— Não me sinto humilhada; cá está meu chapéu sobre minha cabeça e minha arma junto ao meu cinto. — aponta os objetos enquanto dá uma risada nasalada — Pergunte para qualquer um de meus subordinados e eles lhe dirão quem realmente sou: os deixei passar não porque não pude pegá-los, mas sim porque acredito que o futuro nos reserva algo mais interessante que uma corrida de cão e gato. Sou uma oportunista, eu vejo muito além de uma eterna caçada. Além disso, nunca me livraria de algo que possa me divertir.

— Chega. — Hanzo se levantou. Sua voz parecia mais imponente que nunca — Nossos caminhos claramente não deveriam ter se cruzado. É hora de nos despedirmos.

— Receio que seja impossível — o símio cortou, bastante sério — Quero dizer, a não ser que queiram morrer. Se saírem daqui sem um amparo, não durarão mais de cinco dias. — explica, caminhando em direção ao capitão para olhá-lo fronte a fronte. — Fora que seu navio já está preso ao Diabo Negro. Levaremos até o cais da próxima ilha, onde consertarei os estragos que nosso submarino causou.

— Quem autorizou isso? — perguntou o capitão, olhando para Kaze, já esperando que fosse obra dele. Mas ele só deu de ombros.

— Eu autorizei — interpelou Fang — Shari se mostrou bastante competente quanto às suas habilidades. E sensato. Não vejo motivos para recusar sua ajuda, a não ser que o senhor saiba de algo que nós não sabemos — olhou para o capitão, deixando-o contra a parede. Hanzo somente suspirou derrotado.

— Eu não sou só competente. Eu sou o mais competente — Shari pontua, orgulhoso — Podem cruzar os cinco mares o quanto for, não vão achar melhor pessoa para a tarefa de turbinar essa merda — e pisa tão forte que o barco dá uma pequena remexida sobre a água, denunciando o quanto estava avariado.

— Mas não vamos obrigar ninguém — completa Kristian, já muito irritado com a conduta daquele homem. — Se quiser morrer, que morra. Mas não arraste seus tripulantes para a morte por causa da sua crença. Não há nada para se orgulhar nisso.

Uma segunda vez, Kaze deixou escapar uma sútil risadinha maldosa, olhando para seu capitão com absoluto desdém. Foi uma afronta direta, apenas para que ele percebesse que, sem dúvida alguma, havia feito a cabeça de todos que tivera contato, deixando sobre eles um rastro pegajoso que nunca sairia por completo; nunca conseguiriam ver Hanzo como um aliado depois dele.

Finalmente, o homem suspira derrotado, era fato de que não queria abaixar a cabeça e perder-se em seu objetivo, havia traçado uma meta e não deveria se sobrepor ela, contudo não poderia ser cego e negar quão sérias foram as perdas recentes. Precisavam sobreviver, ou não poderiam derrotar seus inimigos.

— Muito bem. Se não há outra escolha, aceitamos de bom grado vossa ajuda — exprimiu com humildade em sua voz, abaixando sua cabeça. Não obstante, seu orgulho falou mais alto quando continuou: — Mas não sem um acordo.

— Você vive de acordos-hya! — ralhou a pirata, que agora se levantava com a ajuda do imediato, porém agindo como se nunca houvesse sido abatida. Ela também não abaixava sua cabeça para ninguém — Nós já estamos ajudando, não é o bastante?

— Quem é você, o diabo? — questionou Franz, interrompendo Pieri com a voz indignada e olhando para Hanzo com os braços na cintura. Seu olhar alternava entre o próprio capitão e Yun, que desviava o olhar do companheiro de ocupação, temendo soltar uma alta gargalhada.

Pela primeira vez desde o início daquela discussão, o capitão mais experiente não conseguiu conter a carapuça e murchou os lábios, perdendo para o riso por um breve segundo e desviando o olhar do garoto. Por fim, depois de se recompor, ele explica suas condições: — Suspeitamos que nosso alvo estará na próxima ilha. Poderíamos contar com reforços, caso venha a ser necessário?

— E no que isso nos favorece? — questionou a capitã; o fato era que já estava convencida, aquela ilha havia a chamado e era certo que após os macacos algo mais divertido poderia aparecer, entretanto ver Hanzo sofrer em busca de uma resposta era algo que não perderia por nada.

— Bom... — ele ponderou por alguns segundos. Bem que ele tentou disfarçar, mas Pieri conseguiu vê-lo morder os lábios por dentro: estava ficando encurralado porque sua lógica era falha. De fato, não haviam um porquê para os pierrôs ajudá-los.

— Quem vocês procuram? — insistiu a capitã.

— Mother Justice. — respondeu franco, esperando alguma reação da capitã, mas ela só deu uma risadinha debochada, achando graça do nome. — Vocês vieram do East Blue, então imagino que ouviram falar sobre eles.

— São assassinos de pescadores. E com um péssimo gosto para nomes — murmurou a última parte, abrindo ainda mais seu sorriso zombeteiro — Eles deixaram o East Blue a um tempo considerável. O que faz acreditar que estejam na próxima ilha, tão no princípio da Grand Line?

— Eles deixaram marcas de destruição nas runas dos... — suspirou, não sabendo como definir criaturas sem ofender o símio da tripulação rival, porém optou pela forma que Pieri compreenderia — Dos macacos que nos perseguiram anteriormente. Não sei se notou os sinais de civilização.

A garota deu de ombros, talvez realmente tivesse notado e, ainda sim, não deu a mínima atenção — não era de fato relevante para ela. Hanzo precisou respirar fundo, Pieri não era uma benfeitora, logo sua reação não era nada além do esperado. Um pirata sempre age como um pirata.

— De toda forma, este local é desértico e após a vinda deles para a Grand Line, não houveram mais notícias de ataques. É fato que posso estar enganado, mas tenho motivos o bastante para crer que eles não buscam o fim, e sim se instalar de maneira fixa.

— E se eles não estiverem lá, você pretende nos arrastar para além da ilha, a fim de ajudar a caçá-los?

— Eles estão lá — disse, severo. — Não confia na minha intuição, Capitã?

Os pierrôs se encararam em silêncio, discutindo por olhares se aquele era, ou não, o momento correto para darem o próprio ponto de vista (algo muito muito apreciado pela capitã, mas pouco levado em consideração), contudo, nenhum deles falou. Era a decisão máxima da tripulação, todos estariam onde estivesse a cabeça de Pieri.

— Não, não confio. Mas pagarei para ver, assim como quitarei minha dívida contigo. Se eles estiverem lá, posso te ajudar, como desejar. Mas não conte comigo depois disso. Veja, se oferecemos consertar seu navio, é apenas porque foi nossa culpa em primeiro lugar, mas nunca por mera empatia. Eu desprezo essa palavra.

— Fico satisfeito que chegamos a um consenso. — interrompeu Fang, tomando a atenção para si e sorrindo com gentileza. Era hora de finalizar aquela conversa.

— Pois então, se não há mais objeções, podemos seguir em frente — finaliza Pieri. — Prepare o Diabo Negro, Shari!

≈≈≈

Anoitecia vagarosamente quando os preparativos de partida estavam acertados. Após toda a discussão e demais preliminares, pouco a pouco os piratas tomaram seus lugares: Shari assumiu o controle do leme, levando submarino e navio guinchado em direção à próxima ilha enquanto os demais lidavam com tarefas mais simples, como limpar e cozinhar. O caminho era curto, porém não sabia o quão agressivo o guincho poderia ser a estrutura de madeira, por isso viajariam com calmaria — especificamente, metade da velocidade que o símio achava aceitável, e nem um terço da velocidade que partiriam normalmente. Tinham tempo o suficiente até o amanhecer. Apollo, Fang e Yolanda, depois de servirem e limparem o café, continuaram em suas posições, bebendo despreocupados e, em algum momento, puxando um baralho para a mesa, iniciando uma sessão de carteado; certamente alheios aos demais estresses. Posteriormente, quando os navios entraram em cruzeiro, o macaco se juntou a eles na jogatina, esporadicamente retornando à sala de comando para ajustar a rota. Dos outros Cães, não havia sinal nem do médico, nem do capitão e tampouco de Sherikan: esses haviam se recolhido no castelo de proa desde a discussão e não tornaram ao deque depois disso. Franz também havia se retirado cedo, carregando Nicholas em suas costas para dentro do submarino devido aos analgésicos — necessários por conta da altura da queda — que havia ingerido, uma vez que estes haviam o apagado totalmente.

Pieri, por sua vez, uma das únicas a não se recolher propriamente, descansava sobre o Diabo Negro com Kristian sentado ao seu lado; era fato que sentia-se exausta e seu corpo ainda não estava recuperado do afogamento, contudo se negava ir para cama — eram raros os momentos em que emergiam tempo o suficiente para deitarem na lataria e nunca perdia essa oportunidade. A calmaria do mar noturno os ninava de maneira suave, como um berço acima d'água, e o frescor do vento somado com visão do céu limpo, repleto de estrelas, nunca eram o bastante para se cansar; decerto optara pela vida marinha, mas, como a todo ser humano, o ar lhe convinha bem mais. A capitã não fazia o perfil de observadora de estrela e, se a perguntassem, diria não dar a mínima (o que não era necessariamente uma mentira), porém os longos períodos submergidos, observando nada mais do que peixes e a imensidão da água a fizeram compreender as belezas da superfície.

— Sente-se melhor, capitã? — o imediato perguntou, soltando um longo bocejo. A este ponto a garota já o imaginava dormindo, então ouvir sua voz por si só foi uma surpresa, porém foi a pergunta que veio em seguida que realmente a tirou da zona de conforto: — Sua queda foi... inesperada. Por que você não nadou até a superfície?

— Estou bem, uma queda daquelas não poderia me vencer-hya. — respondeu, com o tom de voz estranhamente calmo, provavelmente efeito do remédio dado por Franz. — Quanto a isso, bem... Eu não consegui, tentei remar para cima e quando percebi meu corpo já estava pesado demais. Acho que nunca aprendi a nadar, para ser sincera.

Sua resposta não parecia insincera, no entanto algo pareceu muito estranho aos ouvidos de Kristian e também de Yolanda, que, da mesa externa onde jogava cartas com os dois homens, escutava-os na surdina. No fim das contas, não era algo comum de Pieri assumir suas fraquezas e tampouco assumir a incapacidade de algo, ou ao menos não daquela forma: se realmente fosse apenas falta de conhecimento, teria obrigado um deles a ensiná-la, visto que prezava pelo conhecimento acima de tudo (sozinha desde cedo, tinha plena noção que cultivar suas fraquezas era mais uma das muitas formas de se cavar sua própria cova). Mas ela nunca o fez. Ou então contou a verdade para seus tripulantes quando teve chance. Dessa vez, ela teve sorte; mas numa próxima teria seu orgulho afogado junto com seu corpo no fundo do mar, e ninguém sequer entenderia o que realmente aconteceu.

Bem no fundo, Kristian sentia uma imensa vontade de estapeá-la pelo estresse que o fez passar e berrar o quanto sua irresponsabilidade poderia ter custado alto, não só para ela própria, mas principalmente para seu bando, que dependia de suas habilidades, no entanto, em razão dos demais problemas do dia somado com a debilitação da garota — ela poderia dizer que estava bem, mas certamente não tinha sua melhor forma —, optou por apenas colocar uma de suas mãos sobre seus cabelos e gentilmente bagunçá-los: por ora, bastava agradecer aos céus, ou a seja lá quem fosse o responsável pela segurança dos piratas, por terem dado juízo a Shari e permitido que ele a salva-se. (Ao ver a cena, Yolanda sentiu seu rosto avermelhar e retornou ao carteado, certa de que havia exagerado nas doses de bebida, mas isso não vinha ao caso.)

— Macacos então? Poderíamos ter encontrado uma namorada para o Shari. — brincou o homem-zumbi, quebrando o silêncio e indicando com seu queixo para que a capitã olhasse em direção a praia, onde uma fogueira alta fumaçava: não poderiam ter certeza, mas pelos uivos chororos imaginou se tratar do enterro das vítimas de seu massacre.

— Ele merece coisa melhor-hya. Uma humana, talvez, hya-hya-hya!— riu abertamente, jogando sua cabeça sobre o ombro de Kristian, aproveitando o afago.

Entretanto, a breve calmaria foi só isso mesmo: breve. Antes que o céu estivesse completamente escuro; antes mesmo que Shari pudesse expor ao novo amigo e companheiros seu royal flush — roubado —, de supetão, pôde-se ouvir de dentro do Sol Nascente uma correria desenfreada, seguida de móveis se arrastando e, por fim, ouviu-se um alto som de vidro se quebrando e de um corpo caindo n'água: algo havia sido jogado para fora da escotilha. Shari, Apollo, Yolanda e Fang correram para o parapeito do navio, enquanto Pieri e Kristian, que estavam no topo do submarino, somente se esgueiraram para olhar abaixo. 

Por conta da fraca iluminação que vinha da janela, suas visões estavam bastante limitadas, mas mesmo assim conseguiram perceber que, ainda bem, não era uma pessoa no mar dessa vez: somente uma gaveta, afundando devagar junto de uma quantidade infindável de papel grosso. O conteúdo não pôde ser identificado sobre o que se tratava, ao menos não depois de tudo manchado, mas alguns borrões de tinta colorida refletindo os fizeram suspeitar que eram desenhos antes de se tornar decoração-de-peixe.

Como era bastante irrealista pensar que a gaveta criou pernas e resolveu se matar por perceber que sua existência era terrível — inclusive, esse pensamento foi tão Poyo que Pieri cogitou ler um livro didático quando voltasse aos seus aposentos, tentando resgatar um pouco de sua inteligência —, pareceu correto assumir que algo dentro do navio não ocorria como o planejado e, confirmando essa hipótese não-tão-só-hipótese, puderam ouvir logo em seguida o som de uma porta sendo batida com força, como quem encerra uma discussão. Todos ficaram quietos, esperando quem quer que fosse para o andar de cima, e então, por fim, Yun saiu do castelo de proa, visivelmente transtornado, mas tentando se controlar; ele fechou a porta assim que saiu para o deque, jogou sua longa trança para trás e, depois de um longo suspiro, aí sim ele se deu conta dos olhos estarrecidos que os visitantes tinham sobre si. Sorriu amarelo.

— O Sr. Hanzo — enfatiza com deboche — precisa de um tempo para pensar. Sozinho — e por fim tira da manga de seu robe um longo cachimbo e acendendo-o em seguida.

— Você roubou isso dele de novo, Yun? — pergunta Fang, sem precisar olhar para trás para trás para saber sobre o fumo. — Ele não vai gostar.

— Ele também não gosta que você me chame de "Yun", e no entanto estamos aqui — disse, parando para dar uma longa tragada e jogar a fumaça para cima. Quando olhou de volta para a mesa, denunciou: — O macaco está roubando. Tem uma carta a mais na mão dele.

Yolanda e Apollo olharam Shari como se fossem trucidá-lo, mas Fang apenas achou graça, dando uma gargalhada alta. — Quadra — pediu, jogando suas cinco cartas expostas na mesa e levantando-se para ir conversar com Yun. Aos fundos, a mulher de bigodes e o homem forte apertaram os olhos, indignados e, por fim, sem outra pessoa para reclamar, arregaçaram suas mangas para dar uma lição no mecânico-ladrão. — Você largou Sherikan sozinho com ele? — sussurrou ao médico.

— Ele não tem nada a ver com isso. Está dormindo ainda. Nunca acordou depois de cair.

— Mas você não pensou nele quando decidiu discutir — acusa.

— Não fui eu quem começou a discussão — deu de ombros — E ele vai ficar bem. Só engoliu muita água salgada.

— Não acho que seja esse o problema. Mesmo porque a capitã deles — meneou sua cabeça para apontar o casal halterofilista que batia no símio e também o submarino — pareceu muito bem recuperada depois de sua queda. E ela... afundou feito concreto, como ele. Eu senti.

— Não significa que ela tenha as mesmas questões que ele. — lança-lhe um olhar regado de cinismo — Quero dizer, ao serem lançados e retirados do mar pelo mesmo tempo, quem sofre mais dano: uma pessoa consciente, lutando para viver, ou alguém letárgico?

Fang não o respondeu, da mesma forma que não tornou a perguntar mais nada para o médico. Em silêncio, ficou contemplando suas próprias respostas, analisando o que conhecia sobre o mundo e o que ainda não tivera a oportunidade de ver. Como um homem-peixe, as estranhezas da fruta do diabo sempre lhe foram interessantes, especialmente sobre os efeitos do mar, mas a cada minuto que convivia com seus usuários, mais se sentia inapto de compreender sua real natureza. Não havia regras fixas. Cada usuário se comportava de uma maneira completamente diferente e o fruto de Sherikan, em especial, era um mistério para si, já que seu efeito nocivo contradizia a lógica de que a prática leva ao aperfeiçoamento: cada vez que o garoto utilizava, parecia mais distante do controle, como se seu corpo estivesse recusando o poder. Se continuasse dessa forma, talvez Yun estivesse certo em pensar que haveria uma hora que seu corpo entraria em estado permanente de dormência. E isso era bastante preocupante, pensando como parte do bando.

— É um poder aterrorizante, o dele — jogou para o ar, sem esperar que o médico ouvisse. Mas ele ouviu.

— Todos são — Kaze responde seco. — Em troca de feitos incríveis, todos eles estão se transformando no próprio Diabo. 


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Notas finais do capítulo

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