Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 21
Diário de Bordo dos Pierrôs (Justiça, Honra e Equilíbrio)


Notas iniciais do capítulo

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Quando se passa muito tempo submerso e sem contato direto com a luz do dia, é difícil manter uma rotina regrada, mas, mesmo assim, pouco antes das luzes noturnas serem trocadas pelas diurnas, os tripulantes do Diabo Negro já estavam de pé e a postos (ou pelo menos a maioria deles). Sem dúvida alguma era um trabalho que exigia muito, esse; diferente de um navio pirata tradicional, que poderia entrar a deriva durante a noite para seus passageiros descansarem — salvo um ou outro coitado responsável pela vigia —, dentro de um submarino os serviços nunca acabam, e por isso ninguém tem a permissão de dormir demais; em vez disso, otimizam seu tempo com rodízios de tarefas intercalados as horas de sono, assim permitindo o mínimo de qualidade de vida àqueles que, bem no fundo, só tinham uma grandessíssima de uma ilusão. “Saúde” não era um direito assegurado aos Pierrôs — e é claro que Pieri não poderia se importar menos com isso. Enquanto capitã, era seu dever zelar por seus marujos, mas quem iria realmente fiscalizar? A resposta era clara como água: ninguém. Isto posto, reservava a si a tarefa de apenas navegar, utilizando todo o tempo disponível para traçar as infinitas léguas marítimas e, sobretudo, organizar seus planos de dominação mundial ao passo que seus subordinados faziam todo o resto do trabalho.

Dadas as circunstâncias, sequer dá para dizer que se trancar na sala de comando sem água ou alimentos por três dias inteiros foi uma situação surpreendente: na realidade, todos tratavam as peculiaridades da capitã com a maior naturalidade, e de vez em quando até agradeciam aos céus quando ela lhes permitia uma folga de seus gritos. Se desejava trancar-se no topo de uma torre ou em uma gaiola cheia de crocodilos, seu desejo é uma ordem, ninguém iria se opor: tinham amor aos ouvidos e aos dedos, e acima disso, sabiam que Pieri nunca mudava de ideia — Kristian quem diga; afinal, estava agora mesmo ressonando sobre a mesa de jantar sem um dos braços, apenas por usar das palavras erradas para perguntar se ela iria ou não jantar (não se questiona um maluco armado, é uma das regras não escritas da vida, não só daquela tripulação).

Se apenas velejar poderia comprometer as noções de tempo e espaço, ao viajar em um submarino não era incomum que perdessem completamente os sentidos, ao ponto de nem ter parecido tanto tempo assim que sua capitã havia sumido nos confins daquele monstro de metal. Foi apenas quando, durante o alvorecer do quarto dia sem ela, surgiu completamente virada do avesso na sala de refeições que notaram quanto tempo havia se passado realmente. Ela estava horrível — em todos os sentidos possíveis da palavra. As presilhas presas quase na ponta do cabelo, a franja completamente arrepiada e sua pele, seca pela falta d’água, estava empalidecida em um tom quase cadavérico, destacando ainda mais as gigantescas bolsas pretas debaixo dos olhos e as bochechas caídas. Era bastante miserável de se ver, além de nada coerente com a figura imponente que inspirava um bando pirata, mas isso nem de longe a tornava menos assustadora, principalmente pelo fato de ter pendurado ao seu ombro o braço direito de seu imediato, arrancado e pendendo de um lado para o outro.

Após três dias sem qualquer alimento, líquidos e sem trocar palavras com outros seres humanos, não era estranho que estivesse um tanto animalesca, mas também não esperavam que seria tanto assim: Pieri não dirigiu qualquer palavra a eles, apenas foi diretamente a geladeira, pegando uma garrafa de água e ingerindo todo o líquido de uma única vez, até deixando que um pouco escorresse pelo canto da boca, tamanho era o desespero.

Finalmente, depois daquela ceninha — um verdadeiro show no picadeiro, como a tradição da família exigia —, ela se virou aos confrades, olhando-os com aqueles mesmos olhos transtornados de sempre e com um largo sorriso nos lábios.

— Vamos emergir — ela disse, em tom ríspido e bastante seco, talvez por causa da garganta desidratada. Seus dentes à mostra pareciam maiores do que qualquer Monstro dos Mares e os olhos, tão arregalados, pareciam querer saltar para fora, um para cada lado, como duas molas tensionadas.

— Mas não tem nada aqui… — tentou argumentar Shari, mas fora interrompido de prontidão:

— Calado! — ela aumentou o tom, segurando com força o braço direito de seu imediato e o lançando em direção a face do macaco, que o segurou como um peixe pulando fora d’água — O Log Pose não mente, estamos próximos a uma ilha-hya. E eu preciso subir.

— Querida… — disse Yolanda, colocando as mãos sobre seus ombros com ternura — Antes de nos dar ordens, por que você não vai se arrumar primeiro? Podemos emergir quando você estiver pronta.

Aquela oferta… não poderia ser recusada. Então, sob os olhares julgadores dos seus companheiros, Pieri, encurralada, só encarou a combatente por um breve instante, parecendo finalmente se dar conta do estado em que estava: de forma instintiva, fungou levemente sua axila por cima da blusa furada que vestia e foi quando se percebeu como estragada. Quer dizer, não estava tão fedida para aquele dramalhão todo, entretanto, era inegável que mais do que qualquer outro precisava de um longo banho. Sua pálpebra piscou involuntariamente, tremendo algumas vezes antes de seguir em direção a porta, delegando em alto e bom tom o que desejava:

— Shari, noroeste. Eu saberei se tentarem me enganar! Hya-hya-hya!

E nem haveria um porquê de enganá-la — ao menos não nesse ponto da viagem. Em suma, os Pierrôs não davam muita importância para onde desembarcavam, desde que pudessem abastecer seu submarino e, pelos caprichos da maioria (um bando de exibicionistas), que pudessem ter o mínimo de atenção dos transeuntes. Contudo, naquele caso em específico, a vontade de enganar a capitã pela primeira vez não faltava. De fato, não havia um porquê para enganá-la; mas onde ficava o senso comum nessa história? E a intuição? Tudo parecia estranho demais e, além do azedo do sovaco da capitã, cheirava à encrenca.

— Os radares mostraram algo, Shari? — o imediato quebrou o silêncio, em meio a um longo bocejo.

— Absolutamente nada, mas não posso dar certeza de que não há uma ilha: meus radares não são completamente eficazes por esses mares — suspirou, sorvendo um pouco do café que jazia em sua xícara — Tudo é incerto aqui.

— Nós poderíamos... — Tentou argumentar Yolanda, esperando que houvesse alguma saída para os preocupados piratas; de todos era a que mais se sentia agoniada.

— Não podemos fingir, Yo. A capitã sempre sabe e nós vimos como ela está: tem algo nessa ilha do qual não podemos fugir — interrompeu Apolo, tentando consolar a moça com um pequeno carinho no ombro e deixando-a descansar em seu peito — Tenho certeza que Shari fará o possível para emergirmos em um lugar seguro.

O mecânico somente meneou com a cabeça para o lado, fechando os olhos e levantando o polegar em confirmação, debochado. Depois disso, sem notar — ou simplesmente sem se importar — com a reação dos demais tripulantes, ele somente se levantou para alongar a coluna para trás e tirou de dentro do macacão um charuto e um isqueiro.

— Não deve ser uma ilha habitada — ele explica, colocando o charuto em sua boca para acendê-lo — Provavelmente vamos nos dar de cara com um matagal tropical e uma porção de animais selvagens. Nada mais do que isso.

— E isso não é motivo o bastante para nos preocuparmos? — perguntou Nicholas, que até então preferiu se abster da conversa: não gostava de se referir diretamente a capitã porque não compactuava diretamente com seus princípios, somente lhe oferecia sua honra e habilidade — Afinal, que haja comida e água, mas e combustível? O que faremos se, porventura, algo acontecer com nosso submarino?

— No momento que entramos na Grand Line, automaticamente aceitamos todos os riscos. Não há qualquer certeza e nenhuma regra, logo, de qualquer forma temos chances de tombar com um beco sem saída. ‘Que adianta temer o desconhecido agora? Deveria ter se amedrontado antes — respondeu o imediato, sem animação alguma em suas palavras.

— Falou aquele que não tem absolutamente nada a perder.

— E você tem? — rebateu o macaco.

— Os dentes, se continuar a me desafiar, hya — a capitã adentra na conversa de repente, já devidamente vestida, e coloca uma das mãos suavemente no ombro de Nicholas, mas, diferente de quando foi Yolanda, em seu caso era uma forma velada de ameaçá-lo. Estava falando sério; e muito. — Por que vocês não começaram a preparar essa pocilga para subir ainda? Vamos logo!

Shari deu um riso nasalado, involuntariamente dando de ombros para Yolanda e os demais tripulantes — não havia nada a ser feito. Pôs-se de quatro e saiu saltitando com as mãos no chão até o painel de controle, enquanto os outros tomavam os postos; alguns mais nervosos que outros, é claro, mas o que poderia ser feito quanto a isso? No fim das contas, estavam, mais uma vez, atirando no escuro. Antes de iniciar os procedimentos, por fim, o macaco lançou uma última olhada ao radar: não havia absolutamente nada ali e isto, sem sombra de dúvidas, era bem mais assustador do que infinitos pontos piscando, tendo em vista que deles conseguiria desviar (era um piloto muito bem treinado e estava dentro de sua obra-prima). Mas um alvo sem forma era um atestado de que poderiam bater a qualquer momento. Todos os anos estudando a teoria naval com seu antigo tutor imploravam para que soltasse o leme e só emergissem quando tivesse certeza de que era seguro. Contudo, com Pieri ao seu lado durante toda a trajetória, não havia forma de desviar a rota: ela segurava o log pose com firmeza nas mãos, seguindo as linhas imaginárias traçadas em seus mapas com os olhos de quem tem absoluta certeza do que faz. Diferente do resto da tripulação, ela garantia suas próprias habilidades. Era uma navegadora experiente; ninguém poderia dizer o contrário. Em suas mãos, a leitura da bússola era tão clara quanto um xis na areia para um capitão pirata.

O tempo pareceu se arrastar com a tensão de baterem em algum pedregulho. Sem se comunicarem entre si senão para trocar ordens, os Pierrôs iam de um lado para o outro na sala de máquinas, afrouxando as válvulas e, por que não, rezando para que tudo desse certo. No entanto, para piratas como eles, não havia sorte que bastasse — somente os grandes tinham o direito de se gabar do favoritismo das entidades. À medida que subiam, e que a água nas escotilhas ia se tornando cada vez mais clara, de súbito, um tremor os derrubou no chão e o teto, antes côncavo, afundou com tudo para dentro, retorcendo-se como uma gigantesca escultura de metal. Bateram em algo, e agora restava saber no quê. Pedra ou porto? Não importava. Os vidros mostravam a superfície. De fato havia uma ilha ali, como Pieri havia previsto, mas a que preço foram até ela? Sem que tivessem tempo para discutir as possibilidades, a capitã, completamente transtornada, tremeu seus olhos, olhando seus subordinados com um ódio intangível — como se eles fossem os culpados daquela merda toda (porque ela não era). Levantou-se sem sequer parecer machucada e não disse nada; apenas partiu com os pés firmes para a escotilha principal e deixou que a impiedosa luz do sol nublasse os olhos momentaneamente, até que se fechasse outra vez, com ela lá fora. Os ouvidos dos tripulantes continuaram afiados, entretanto: assim que os primeiros dizeres (gritados) os alcançaram, sabiam que a dor de cabeça estava prestes a começar.

— HYA! COMO OUSA FERIR O DIABO-NEGRO? — vociferou a capitã para alguém, mas não conseguiram visualizar o alvo de seu ódio.

A partir dali, a história se tornou pessoal. Pieri poderia ser louca, mas tinham certeza de que ela não discutiria com um amontoado de terra por erro próprio. Isto posto, os demais tripulantes eram todo-ouvidos, tentando entender o que sucederia e em que momento deveriam afirmar suas presenças — se é que precisariam se impor. No entanto, ficar completamente em silêncio não se mostrou o bastante para se atentar a toda conversa, uma vez que os esperados gritos da capitã não voltaram depois do primeiro alarde. Isso era incomum, pensaramEla não era uma completa imbecil, disso todos estavam certos, contudo sua sanidade mental sempre esteve à prova e, principalmente aqueles que viajavam a menos tempo no submarino, chegavam a duvidar da capacidade da capitã de agir com sensatez.

Acima das cabeças curiosas que permaneceram no submarino, a capitã encarava seu inimigo com olhos ferventes: um navio decrépito, de madeira escura e fronte danificado. Ela não soube dizer como, ou sequer um porquê, mas era naquilo que haviam batido. Por fim, Pieri abaixou sua cabeça à embarcação — já que o Diabo-negro havia emergido por completo dessa vez, era precisamente maior do que o corpo de uma caravela comum —, notando, de pé sobre o parapeito, uma figura entroncada e empostada a encarando.

— Ora pois, acusa-me por quê? Minha embarcação estava atracada anteriormente à sua chegada… senhorita — o homem apontou sua cabeça para a garota, fitando a figura gigantesca do peixe-submarino com os pés juntos, braços cruzados e falando sem qualquer emoção em sua voz.

Não se tratava de uma figura comum; na verdade, certamente era um dos homens mais esquisitos que ousara desafiar a pierrô. Seu traçado masculino era bastante proeminente e um peculiar tapa-olho cobria seu globo ocular direito, enquanto o outro, ligeiramente saltado para fora do rosto, tinha um formato muito diferente de tudo que já havia visto; puxado, com um aspecto de tartaruga e uma íris escura e sem brilho. Seus cabelos eram muito compridos, negros e de aparência oleosa, presos em um rabo de cavalo desarrumado e suas vestes, estas sim eram a pior parte: uma túnica igualmente preta amarrada com uma faixa da mesma cor — com visíveis remendos na região dos ombros e braços —, botas de couro visivelmente usadas e uma espada de lâmina invertida presa a cintura. Talvez, apenas talvez, aquele homem pudesse ter uma postura heroica, mas em seus trapos, assemelhava-se a um sem teto.

— Se estivesse mesmo, nosso radar teria o localizado, não acha? — Pieri retrucou, com ambas as mãos na cintura e seu nariz empinado. Quem aquele selvagem pensava que era?

— De nada adianta essa discussão, mocinha. No fim, nossos danos foram muito mais substanciais — ele suspirou, mas não fechou os olhos ou pareceu relaxar, pois estava sempre atento aos arredores — Vocês não só levaram nosso komainu, como também toda a ponta da proa.

— Komainu? — a garota perguntou um pouco mais baixo, pensativa; nunca havia ouvido aquela palavra e não conseguia relacionar com nada que conhecia. Poderiam estar tentando ganhar tempo, pensou consigo mesma, analisando a situação de cima, até que avistou outro marujo se aproximando do sem-teto que a desafiava.

Era um rapaz mais jovem que estava a alguns metros atrás do suposto capitão, um provável subordinado, tentando de forma frívola mascarar sua presença, embora, ao se beneficiar da altura, Pieri conseguisse visualizá-lo com tranquilidade. Consideravelmente menos impressionante que o outro, uma vez que não aparentava tamanho brio logo de cara, sua aparência de nada se assemelhava ao maltrapilho e devido a sua face jovial, ao menos para a capitã, ele não lhe pareceu uma ameaça em primeira instância.

— Sr. Hanzo, deixe essa menina de lado, temos que falar com o capitão deles — ele diz, dando um passo à frente. Sua voz era sussurrada, porém não o bastante para enganar os ouvidos treinados de Pieri.

Agora sob a luz do sol da manhã, pôde-se observar uma máscara preta cobrindo-o até acima do nariz, e as roupas, curiosamente brancas, apesar de serem coladas na maior parte do corpo em prol da mobilidade, eram similares ao homem mais velho no que diz respeito à cultura; com os mesmos adornos e também folgadas acima das botas e na barra da regata, expondo em seu ombro esquerdo e direito a tatuagem de uma espécie de leão que a garota nunca havia visto antes: um de boca aberta, e outro de boca fechada. Seus olhos mirados para o capitão carregavam um respeito visível, admirando-o ao mesmo tempo que zelava por ele — como se estivesse pronto para atacar o outro bando, caso fosse solicitado.

Mas o capitão não ordenou nada disso. Muito pelo contrário:

— Os komainu são — mostrou a palma da mão ao subordinado, pedindo para que se acalmasse, e então continua sua explicação, sem aumentar o tom de voz ou desfazer a feição neutra: — uma mistura de um leão com um cão de guarda, simbolizam a proteção na minha cultura. Temos um restante na popa; são nossa marca e amuleto — por fim apontou com o queixo a direção onde estava o cão-leão sobrevivente, na popa do navio, de costas para eles e fitando o vasto mar. Apesar de não ver a face da criatura, supôs se tratar da mesma figura que estampava os braços do rapaz.

— E no entanto eu não posso assumir a responsabilidade pela batida-hya. Sua embarcação não constou em nossos radares; ocultar a própria presença pode ser algo muito perspicaz nesses mares, mas não impede de torná-lo vulnerável a esse tipo de… infortúnio — lamenta Pieri, relaxando suas mãos e fechando seus olhos. Muito diferente do esperado, ela, que parecia nunca ser capaz de manter uma conversa saudável e sem gritaria, continuava com o mesmo tom ameno do homem, falando de igual para igual e sem perder a postura; até mesmo seu vício de linguagem parecia menos aparente que antes. 

— Capitão! — o subordinado reclamou; não compreendia o porquê do homem estar aceitando aquilo de bom grado.

— Acalme-se — ele mandou e, ainda que seu tom de voz não oscilasse, estava claro que aquilo era uma ordem a ser seguida — Então, que façamos um acordo, mocinha.

— Prossiga-hya — a palhaça olhou-o desafiadora, de cima de um pedestal.

— Se você me permitir — ajeita o cinto de sua túnica, como se para evidenciar a espada, ou apenas para ter certeza de que estava perto de si. — Já que o erro não foi de nenhum de nós, podemos nos ajudar mutuamente, firmando uma aliança temporária entre nossos bandos. Como não podemos sair daqui, acredito que a senhorita não tenha nada a perder. O que me diz, de capitão para capitão? — enfatizou, para que seu subordinado notasse em sua postura o porquê de agir daquela forma (afinal, não gostava da ideia de seus subordinados não terem total entendimento do que pretendia fazer; poderiam ser uma hierarquia, mas acima disso o considerava companheiros de viagem e os respeitava por isso).

— Nós aceitamos! — interrompe uma quarta voz, bastante decidida: era Nicholas, o espadachim dos pierrôs, que havia acabado de saltar da escotilha para adentrar a conversa, como se fosse chamado. Suas sobrancelhas estavam apertadas em um vinco, mas em seus lábios esboçava um sorriso ardiloso — Correto, capitã?

Sua autoridade havia sido contestada em frente ao inimigo — sem dúvida alguma, havia sido pega em uma saia justa. De todo o leque que tinha enquanto negociava sozinha, agora restavam apenas duas opções: ou o decapitava no ato, como prova de sua soberania, ou, então…

— Você leu meus pensamentos, comissário — Pieri abriu um sorriso ainda mais sujo, correndo para trás do espadachim e o empurrando para frente, posteriormente mantendo as mãos em seus ombros — Nós aceitamos sua proposta e, sem dúvida alguma, iremos fazer o possível para servi-lo enquanto for necessário-hya — por fim, tirou seu chapéu e curvou-se diante do homem mais velho, um pé na frente e outro atrás; uma mão no peito e a outra paralela ao corpo, como sinal de respeito.

O capitão, Hanzo, sorriu sem mostrar os dentes.

— Apronte sua espada, Sherikan. Vamos desembarcar.

≈≈≈

A palhaça encarava o mar de sobrancelhas franzidas, com seus binóculos em frente aos olhos e observando o Diabo-Negro boiando emergido sob a tutela de seus subordinados; estava apenas com Nicholas a acompanhando — algo que não necessariamente a agradava, mas a divertia mais do que preocupava, visto que as demais companhias pareciam deixá-lo mais desconfortável que ela mesma. Não chegaram a dar satisfações para seus companheiros antes de sair; no lugar disso, Pieri e o espadachim apenas saltaram para dentro da embarcação aliada em silêncio, ainda que receosos, e então subiram ao bote que os levariam para a ilha, onde pudessem desembarcar.

Não era um mar revolto, tampouco calmo; as ondas que batiam contra o casco às vezes eram fortes o bastante para respingar as botas e da mesma forma ricocheteavam na elevação rochosa da ilha — um platô de cerca de cinquenta metros acima do nível do mar que, ao topo, abrigava uma floresta densa. Não havia nenhum farol à vista, mas precisariam subir para confirmar se era ou não habitada; isto é, se quisessem encontrar algum tipo de mantimento e água potável de fácil acesso em vez de conquistá-los à força. Uma vez que contornaram o rochedo, Pieri deixou que os homens (seu subordinado incluso) trouxessem o bote para cima da areia e o amarrassem na palmeira mais próxima enquanto, pensativa, olhava para dentro do mato com seus binóculos, buscando qualquer coisa que indicasse civilização. Havia uma trilha, bem demarcada e em meio a mata fechada — o que já era suficiente para gerar desconfiança —, porém não havia nada além disso. Nenhum tijolo, ou sequer pedras empilhadas; tudo naquele local cheirava ao mais puro descaso, como se aquela ilha estivesse sendo esquecida aos poucos pelos mares.

Um sentimento de curiosidade preencheu a garota, não era exatamente isso que buscava quando percebeu pelo log pose que estava próxima de uma ilha — afinal, lugares movimentados e explosões eram muito mais o seu estilo —, contudo ainda não havia se dado por derrotada. Se era o que tinha, iria espremer leite das pedras.

— Encontrou alguma coisa, mocinha? — o capitão, que já há algum tempo estava a observando de longe, se atreveu a perguntar, parando ao seu lado. Pieri dá um saltinho pelo susto, soltando um "hya!" mais alto do que gostaria. Hanzo, como o subordinado havia o chamado, era bizarramente educado, mas não igual a Nicholas (dotado de afetação), seu trejeito era naturalmente gentil, sem qualquer traço de falsidade na voz; parecia ter nascido daquela forma, plácido e desprovido de qualquer artificialidade. E, ela bem sabia, ninguém agia dessa forma sem ser para esconder algo. Sobretudo, não existe calma quando seu barco está fodido, oras!

— Apenas a trilha — respondeu ressabiada, recuperando-se de pronto e tirando os binóculos para encarar o novo aliado — O que vemos aqui embaixo, se repete morro adiante. Sem sinal de civilização; apenas muitos pássaros e mata fechada. Temos um único caminho para seguir.

— Muito bem — ele pontua, ficando em silêncio por mais um segundo, apenas observando o caminho que iriam percorrer assim que os demais subordinados voltassem.

— Muito bem o quê-hya? — Pieri rosnou, apertando os olhos. Seu característico "hya" já tinha mais ênfase dessa vez. 

— Estamos aos seus comandos — respondeu, dando de ombros, à espera da direção por onde deveriam seguir.

HYA-HYA-HYA! POR QUE VOCÊ ESTÁ CONFIANDO EM MIM? — a pierrô quis dizer, mas mordeu os lábios. Estava prestes a perder suas estribeiras, disposta a desmembrar aquela tartaruga-sem-teto na beira da praia e deixá-lo para os albatrozes degustarem, entretanto, em vez disso optou por dizer um “Claaaaro”, tão puxado quanto desconfiado, a fim de não prorrogar aquela conversa. Depois disso, Pieri voltou-se ao seu espadachim, a passos firmes, tentando esconder sua completa indignação para aquele homem e, ao vê-lo finalizando o nó do bote junto do outro sujeito, desejou mais do que tudo cuspir no chão e apressá-lo para sair dali.

— V–vamos subir, hya! — berrou, um tanto hesitante e esganiçada; finalmente seu verdadeiro eu escapava de dentro do chapéu de capitão e os olhos iam um para cada lado, como seu subordinado esperava desde o início.

Mas, infelizmente, não foi só Nicholas quem acatou sua ordem. Ao passo que ela saía espancando o chão morro acima, logo atrás seguiram todos um ao lado do outro, como um verdadeiro passeio no parque, algo que gerava uma indignação ainda maior a Pieri, visto que seu próprio companheiro parecia ter caído nas graças do capitão sem-teto e discutiam algum assunto qualquer. Não era possível que somente ela tivesse algum bom senso! Até mesmo Sherikan, o subordinado posto — por ela mesma — como inofensivo, havia tirado a expressão de descontentamento da face e pontualmente comentava algo sobre o local onde se encontravam. Ora, eram piratas ou amigos de infância? Onde estava o sentimento de caos e rivalidade? Certamente muito distante daqueles três bocós. Não importava como, arrumaria alguma diversão naquele local, nem que para isso precisasse saltar do despenhadeiro.

Se precisasse medir, não saberia dizer a quanto tempo estava subindo o barranco — e, na verdade, não saberia dizer nem se continuava subindo; isto é, se não fosse pela queimação nos músculos das coxas a cada passo que dava. Talvez pudesse tentar descobrir pela posição do sol o horário do dia, porém a densidade da mata (e a velocidade de seus pensamentos) a impedia de raciocinar qualquer coisa além da necessidade de ver o topo ou qualquer outra coisa que não fosse aquelas conversas de mimimi e hyahyahya, e qualquer assunto que não a interessava, e não deveria interessar nenhum pirata que se preze, a não ser que eles estivessem fingindo interesse para emboscar seu ajudante e depois a esfaquear pelas costas… Respirou fundo. Precisava se acalmar, ou não conseguiria se defender por conta: fosse o que fosse, precisava primeiro olhar para frente e depois se preocupar com os outros. Por fim, feita a calmaria em sua cabeça — no interlúdio do coral que animava seu picadeiro interno —, um som chamou sua atenção: diversos bateres de asas e grasnados vindo de sua frente, fugindo pelo barulho de suas pisadas nas folhas secas; deveriam estar próximos da linha de chegada.

— Asseguro que– — Nicholas ia continuar a dizer, mas fora interrompido pela súbita virada de Pieri, que não só interpelou sua fala como também ergueu o braço, sinalizando que parassem de se mover. Era momento de ficarem em silêncio.

O garoto parou onde estava, seguido pelo capitão e então o outro subordinado — este que, embora estivesse envolvido na conversa como a educação pedia, se demonstrava o menos participativo, como se estivesse mais preocupado com a análise territorial do que a etiqueta imposta por Hanzo. Ele também havia percebido, pensou Pieri. Observando as mudanças nos arredores, ou melhor, observando as não-mudanças, tudo parecia absolutamente casual, com exceção da trilha se findando em um círculo de barro mais macio que antes: os cascalhos estavam afundados em uma segunda camada de lama fresca, como terra areada. 

Dos quatro, Nicholas foi o único a não notar a atmosfera pesar. Mais a frente, havia uma quantidade significativa de árvores frutíferas devidamente plantadas em torno daquele espaço, não de forma natural, mas dispostas de maneira alinhada, em círculo, deixando uma clareira artificial adornada de espécies tão diversas de frutas que os piratas sequer poderiam imaginar o seu gosto. E aquilo era tudo que a ilha tinha de oferecer para eles. Durante toda caminhada, não encontraram nenhum animal selvagem — com exceção de pequenos pássaros ao longe — e ao chegar ali, no coração do matagal, compreenderam porque não havia uma bica sequer: a nascente estava totalmente seca e, à frente, não havia mais caminhos, somente árvores sem folhas. Isto posto, Pieri e seu espadachim não perderam tempo em subir nas árvores para encher os sacos com tudo que pudessem carregar; não estavam em posição de negar alimento, principalmente quando sabiam que não veriam mais do que aquilo posteriormente, e não seria a procedência das árvores ou a esmagadora sensação de saber que aquela ilha não era inabitada, e sim abandonada, que os impediria de buscar o que vieram atrás.

Enquanto isso, pela primeira vez desde que pisaram na ilha, Hanzo moveu-se de uma maneira minimamente pirata — ao menos aos olhos sagazes da Capitã do picadeiro, que volte e meia olhava por cima do ombro para saber o que o estranho pretendia —, e com os ombros tensionados, caminhou em meio as árvores peladas e cobertas de limo, analisando-as com afinco. Toda sua face se contorcia em uma careta, parecia apreensivo, mas mais do que isso, estava fascinado com a própria descoberta, como se em sua frente estivesse um pote de jóias brilhantes. Exatamente no centro da clareira, pouco atrás de uma árvore maior, havia uma estátua, ou o restante do que um dia fora uma: havia sido quebrada na metade, com um corte tão perfeito que não poderia ser atribuído à natureza. Fora isso, o caótico e o planejado se misturavam na destruição, toda ela era característica, da mesma forma que seria se o responsável, já tratando-o como alguém e não o acaso, quisesse ser reconhecido. A flora certamente fez seu trabalho, tudo era recoberto com espessas camadas de musgo, entretanto, não havia se passado tempo o suficiente para que a assinatura do responsável fosse apagada das linhas do tempo: a face da estátua não-humana estava quebrada, largada ao chão a poucos centímetros do corpo e, o que mais chamava atenção além da feição símia, eram os espaços que se formavam na região da face: fora apunhalada, já ao chão, na região dos olhos.

— Estamos próximos, Sr. Hanzo — Sherikan se pronunciou, tirando o homem de sua confusão mental.

— Não digo próximos, mas no caminho, com certeza — ele pontua, cruzando seus braços no peito e ligando com calma as informações que haviam encontrado até então.

Ao fundo, o farfalhar das árvores era audível: os aliados jogavam frutas dentro dos sacos, e embora parecessem distraídos, Hanzo, um capitão experiente, sabia muito bem que estavam de ouvidos erguidos para sua conversa. Eles eram espertos — não poderia subestimar e por isso deixaria a eles o benefício da dúvida sobre o que falavam, calando-se logo em seguida.

— Ficou algo para trás, além da ilha? — Sherikan perguntou, de maneira ambígua, mantendo-se subentendido para o capitão e oculto para a plateia.

— Se sim, morreu de inanição.

Um grito foi ouvido, um “hya” curto, porém alto e estridente, algo que certamente só poderia ter vindo da moça que até então os guiava. Assustados, os dois piratas olharam diretamente para as árvores de trás, encontrando uma Pieri diferente da que viram até o momento; estava pendurada pelas pernas em um galho qualquer, de ponta cabeça e de tronco para eles, transtornada em cada centímetro de sua face: seu nariz, mais vermelho do que nunca, pulsava como uma veia e os olhos, arregalados, pareciam saltar para fora das órbitas. O habitual para os pierrôs — mas não para eles. Finalmente, o que mais chamava atenção estava em suas mãos: um revólver engatilhado, apontado e pronto para atirar.

Mais uma vez, os pássaros que se escondiam nas árvores revoaram pelo barulho — mas dessa vez não eram meros passos, e sim uma altíssima explosão de pólvora. 


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