Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 20
East Blue, localização desconhecida (Pulvereta)


Notas iniciais do capítulo

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Ivan Koch não era um homem quando começou a viver por conta própria. Menos que isso, na verdade. Não era homem, nem menino; nos anos que viveu sob custódia de sua mãe, fazia parte da família tanto quanto a mesa de centro da sala: apenas mais um utensílio à serviço, do tipo mais submisso possível, aguentando os pés craquentos em suas costas porque não tinha boca para reclamar. Viveu por muito tempo nessa posição. Viu e ouviu mais do que gostaria também. Desde cedo, sua mãe dizia que não teria futuro se não a ouvisse e se alistasse à marinha aos dezesseis — mas para isso ele precisava aprender a cumprir ordens, já que ninguém aceitaria um marinheiro frouxo em seu batalhão. Quando se deu por conta, além da aparência maltratada (cheio de arranhões pelo corpo e juntas mais grossas que o comum, oriundas das mais diversas fraturas), ele tinha menos vontade própria que o capacho da entrada, e ser pisoteado já nem era o pior que poderia passar: ao menos não quando se tinha que limpar o próprio sangue espirrado nas paredes, futilmente eliminando as provas do que todos da cidade já sabiam que acontecia naquela casa.

Ninguém nunca veio para ajudá-lo. Fora dali, cumprimentavam sua mãe como se não vissem os braços quebrados ou vergões pela pele; como se não soubessem o monstro que ela era. E ao passo que eram omissos a toda e qualquer violência que “poderia” — uma possibilidade, não certeza — acontecer naquela casa, Ivan também crescia sem se queixar, limpando os vidros e panelas; comprando os fósforos e cauterizando os próprios machucados.

Não reclamava ou sequer falava. Sempre foi assim.

E, naquele dia, também foi.

Era verão — e ele sabia disso porque o sol estava forte mesmo que já passasse das sete horas da noite. Depois de quase uma hora esfregando sua camisa até que as pontas de suas unhas se quebrassem e forçar o sabão em barra no tanque até que ele fizesse o trabalho de disfarçar aquele cheiro nauseante que saía do líquido das manchas, Ivan finalmente conseguia ver o branco do tecido de volta, por mais que ainda tivesse uma coloração esquisita, tal qual a água na bacia, que agora parecia turva, num tom de vermelho-ferrugem, e com alguns coágulos flutuando para o provocar. Parecia a porra de um açougueiro depois de abater um animal e escoar seu sangue. Nunca se importou de andar maltrapilho, sua vaidade era tão ínfima que sequer notaria os olhares atravessados, contudo não poderia ser visto usando uma roupa manchada como aquela, já que a mãe não o permitiria desonrar a família daquela forma. Eram pobres? Sim, mas ao menos deveriam disfarçar sua miséria parecendo sempre limpos.

Ao fim da lavagem, depois de estender a camisa na cerca de arame dos fundos, tomando o cuidado de retirar os sapatos antes de entrar para que a terra e mato seco não adentrassem a cozinha recém-limpada, deu-se conta de que todas as atividades haviam sido realizadas e, assim sendo, estava livre pelo resto do dia. Quer dizer, isso se ela, a Senhora, não decidisse sujar o chão propositalmente para fazê-lo limpar com a língua, como era de seu feitio quando sentia que havia trabalhado de menos — e, como sempre, a mera alusão a esse pensamento foi o bastante para apertar as unhas nas palmas ásperas, sentindo o pulso tremer de maneira involuntária e um gosto amargo na garganta (bile de ansiedade).

Ivan soube que precisava fumar antes mesmo de sentir vontade de chorar. Apesar da pouca idade, aprendeu a ler os sinais de seu próprio corpo e tinha noção de quando ele estava gritando por qualquer substância que pudesse lhe aquietar os nervos — normalmente quando os joelhos vacilavam e as mãos não paravam de tremer. Porém, sabendo que apanharia até que seus dedos caíssem caso Ela o pegasse fumando, decidiu que sairia de casa para buscar alento nos becos sórdidos ou então no fundo de uma garrafa de cachaça.

As fendas da madeira do andar de cima eram quase auto falantes para sua paranoia, repercutindo cada movimento da mãe na cama e cada ronco gutural; preenchendo não só os cômodos, mas também sua mente adoecida com absoluta culpa, como se ouvisse neles uma evidente reprovação por querer fugir, nem que fosse apenas por um momento. Não importava o quão suínos soassem — aquele gorgolejo podre, que quase tinha cheiro de comida mal digerida a um pavimento de distância, para ele soava como se estivesse ao seu lado, seguindo cada passo e distorcendo-se em frases e grunhidos de ódio. A voz estridente (embora empostada, a fim de parecer mais potente e intimidadora) jamais deixava seus pensamentos e o pânico de ser acompanhado por sua progenitora criava gotículas de suor em suas mãos calejadas, além da habitual queimação em seu estômago.

Mas não era hora para esse tipo de medo. Engoliu em seco; não poderia agir como um frouxo. Caminhou em passos lentos em direção a entrada, controlando o volume de seus passos — como um ridículo camundongo — e escolhendo as tábuas do chão para pisar, na intenção de evitar todo e qualquer ruído que pudesse acordá-la. Ivan sabia, bem no fundo, que ela não iria acordar com apenas aquilo, cochilava pesado e os sons de apneia entregavam que seu sono era mais do que profundo, mas isso não era o suficiente para que desse chance ao azar.

Trancou a respiração e somente a soltou no momento em que seus pés tocaram a calçada quente, quando se permitiu calçar os sapatos e retornar a andar de maneira normal — embora ainda incomodado e observando por detrás dos ombros tal qual um fugitivo. A algumas quadras de distância, quando seu coração se acalmou e as pontadas no estômago começaram a cessar, se permitiu acender o primeiro cigarro do dia, tragando com urgência para dentro de seus pulmões como se fosse a última vez que pudesse ter aquela sensação. Só conseguiu soltar o ar depois de alguns segundos e pelo nariz, não boca, como se fosse um touro: queria aproveitar ao máximo e não se importava em ter suas narinas ardendo para isso. A cabeça latejou por um breve instante pela inesperada falta de ar depois da arritmia cardíaca, mas depois da tontura, sentiu o alívio instantâneo do peso saindo de seus ombros; esse era o efeito acolhedor que somente a nicotina tinha sobre si, e por ele nutria um amor quase fraternal — algo que, por pessoas, nunca poderia sentir, sobretudo aquelas que tinha ligação sanguínea. 

A cidade, composta por casas mal projetadas e envolta por muito mais água do que terras férteis, fedia a peixe. Em todos os cantos, não importava o quão distante estava do cais, o odor nunca abandonava aqueles que lá viviam, como uma marca dada ao nascer, uma pequena maldição aos filhos dos que perturbavam os mares. Ao menos, eram o que diziam as lendas; sussurradas pelas crianças e repetidas por adultos em meio aos risos e doses de cachaças. A realidade era muito menos divertida: os peixes que não agradavam aos compradores eram "devolvidos ao lar", retornando podres as praias como lixo jogado sobre a areia, prontos para se decompor sob o sol. Era assim que todos viviam: ou vendiam, ou apodreciam à luz do dia, sem que ninguém notasse. Não existia futuro ali senão nos ramos dos ancestrais da pescaria — a não ser que, por uma promessa divina, como foi o caso de sua mãe, decidissem se alistar para proteger os mares e, consequentemente, suas origens, já que o oceano era a maior fonte de renda daquele fim do mundo. Não havia espaço para outros desejos.

Alguns tragos, bebidas e receitas variadas de peixes compunham o repertório do habitante comum e, para o jovem Ivan, essa vida nunca lhe pareceu desagradável; nunca teve grandes pretensões e se não fosse por ela, não daria a mínima para a mediocridade, pois nunca desejou ser um herói. Para ele, a vida confortável poderia ser facilmente encontrada em um delicioso prato de comida, não provara muitos em sua trajetória, mas os poucos restos que provou pareciam o suficiente, e uma dose forte o suficiente para fazê-lo esquecer. Era nesse ímpeto que saía de casa todos os dias; atrás de consolo, sim, mas principalmente em busca de algo que o fizesse sobreviver por mais um dia. Isto é, apesar de cozinhar a mando de sua mãe, não tinha a permissão de sentar-se à mesa com ela, apenas a observava comer como um porco gordo enquanto ele, magricelo, era forçado a buscar por alimentação na cidade. Mas há males que vêm para o bem: graças a isso, tinha uma boa quantidade de conhecidos que vendiam fiado por pena de suas bochechas ossudas, e também era certo que, se um dia morresse nas mãos de sua mãe, ao menos eles teriam o senso de jogá-lo à deriva em vez de enterrá-lo — porque ele não queria ter de ressuscitar.

— O de sempre! — Ivan informou ao atendente ao adentrar em um dos muitos estabelecimentos que usava para se esconder e, ao sentar-se, ouviu um ranger na banqueta de madeira que o fez torcer para que ela continuasse intacta como assim esteve em todos os anos.

Logo que recebeu a cerveja com ânimo, lançou-lhe duas das moedas que havia furtado no dia anterior (afinal, não poderia esperar que a desgraçada lhe desse algo além de tabefes), e mal esperou o homem ir embora para dar um longo e generoso gole no caneco de metal. Respirou fundo, observando as próprias mãos, cortadas e repletas de escoriações, sentindo um alívio ao tocar a superfície gelada: não importava o quanto ouvisse em casa que "Deus repudia os bêbados" em meio a tantos outros xingamentos e monólogos de pura insanidade, continuaria apreciando muito mais os pinguços do que os ditos homens de bem.

O bar, ainda que sujo e mal apresentável, era com certeza bem menos fétido do que o lado de fora. Não serviam peixes por lá; só álcool, mas em quantidades industriais, a ponto de tornar-se ébrio mesmo só bebendo água, apenas pelo contato com a atmosfera sólida do local. Nos arredores, reconhecia alguns rostos de vislumbres etílicos e madrugadas sofridas, mas não se deu ao trabalho de cumprimentá-los, porque na manhã seguinte eles não se lembrariam de sua gentileza — e Ivan não fazia caridade à toa. Como sempre, somente se sentava em silêncio e bebia, aquele era o seu momento de paz.

Hic, lança mais uma, camarada! — uma voz arrastada, seguido de um pequeno esbarrão tirou Ivan de seu estado vegetativo. Sentiu vontade de meter um soco no nariz espinhento do velho, porém não havia ingerido coragem líquida o suficiente, então apenas se calou como um bom garoto. — E manda outra para o pirralho aqui! ‘Tá com a maior cara de que a namorada mordeu o pau — ele completou, dando um tapinha simpático nas costas do moleque, que não levou um segundo para engasgar com a bebida que estava em sua boca e esguichá-la pelo nariz direto para a bancada, tamanho foi o choque daquela suposição.

— Filho da puta! — urrou o bartender, dando com a caneca de metal vazia na cabeça de Ivan. Ele, por sua vez, não sentiu dor alguma (já havia sofrido de pancadas piores), mas se encolheu na banqueta por instinto mesmo assim. Na pior das hipóteses seria expulso do local e ainda tinha uma cerveja grátis para aproveitar.

Hoya-hoya-hoya! — o “camarada” riu como um grito de guerra, sentando-se na banqueta ao lado do rapaz. Não levou mais do que um minuto para que dois canecos de cerveja deslizassem em sua direção. — Muitos problemas, filho? — perguntou simpático, oferecendo-lhe uma das bebidas.

— Não me chame assim — Ivan desviou os olhos, tomando para si a caneca sem muito se importar.

— É só uma-hic, formalidade. Quantos anos você tem?

Ivan respondeu de canto de boca, não estava afim de papo, mas já não poderia mais ignorar o velho. — Catorze.

— Esses moleques de bosta, hoya-hoya-hoya! Se acostumar com o álcool desde cedo é a melhor opção, hic, fedelho: os mares gelados castigam aqueles que não aguentam uma boa dose de vodca para se esquentar. Sabe como é, se seus dedos não caírem, o Mullet vai tratar de arrancá-los nas dentadas. — a última palavra soou de uma maneira diferente nos ouvidos do garoto, estava pouco se fodendo para os dedos de pescadores e sua vida miserável, mas aquela maldita palavra, aquilo parecia muito maior que qualquer ladainha. 

— Mullet? — perguntou em tom de curiosidade, ansiando pela necessidade de atenção do velho ser mais forte do que sua desconfiança. 

Hic, ora, ora, nunca lhe contaram sobre o peixe mais delicioso de todos os mares? — o homem pareceu dissociar por alguns segundos, perdendo o brilho no olhar e voltando alguns segundos depois para história, como se nada tivesse acontecido. — É único, maior que qualquer Rei dos Mares e com certeza mais perigoso que qualquer outra criatura da Grand Line. É o sonho dos caçadores, hic, mas fora visto por somente um homem, Ismael Ludwig, um pescador maluco que caçava essas bobagens, hic.

— Caçava? — Talvez fosse efeito do álcool, ou apenas o resquício de sua infantilidade, mas era inegável o interesse do garoto.

Hoya-hoya! Isso mesmo. — desferiu um tapa sobre o balcão e ingeriu todo o conteúdo de uma só vez. — Foi um caçadorzinho metido a besta, dizem que escreveu livros, mas eu não li! Sou um homem de histórias e não de livros. Dizem que as escamas do Mullet são douradas e que enfeitiçam tal como a mais bela sereia, um verdadeiro terror dos mares. Não é interessante, moleque? Pensar que o mundo é tão-hic, gigantesco e que nós desperdiçamos nossas vidas buscando sardinhas? Felizmente podemos nos contentar que assim como nós, todos nessa ilha não passam de grandes fodidos.

Ivan engoliu em seco e por um pequeno momento desejou ser Ismael; desperdiçar seus dias buscando uma besta mitológica parecia tão correto, posto que sua vida se resumia a limpar a sujeira de uma porca velha, a solidão nunca pareceu cair tão bem. — Esses contos, eles realmente aconteceram?

O homem lhe sorriu largo e gargalhou, porém um pequeno detalhe passou despercebido pelos olhos de Ivan: a tamanha jocosidade e malícia que havia naquele olhar. No fundo, ele pouco se importava com o que aquele garoto faria com aquelas informações, mas por hora só pareceu de muito bom tom enganá-lo feito um patinho: — Mas é claro que sim! Não são contos, são os relatos. — ele mentiu, abrindo um sorriso amarelado, segurando-se para não rir daquela piada interna de mal gosto.  

No entanto, bastou aquilo para a alma do garoto se preencher de uma resplandecente esperança. Apoiado na banqueta do bar, permitiu-se alguns minutos de silêncio, fantasiando com as caçadas infinitas por um peixe que tinha personalidade humana e desejo de vingança,  e também se imaginando como um exímio caçador, longe das garras de sua mãe e livre para ir o quão longe quisesse. Ismael era incrível, sem dúvidas, e Ivan pensou que também poderia ser se tentasse de verdade. Contudo,  os sonhos não poderiam estar mais distantes: quando despertou de seu devaneio, ao observar a janela do bar, percebeu que as horas haviam passado muito mais rápido do que pudera contar e, em um ato de desespero, tomou todo o líquido de uma só vez, abandonando o velho — que ainda sorria com sua maldade, ignorando o olhar de desprezo que o barman lhe lançava — e partindo em direção à sua casa.

O álcool deixou o corpo de Ivan no momento em que seus pés tocaram o lado de fora da taverna e deu lugar novamente a ansiedade. Correu pelas ruas muito mais rápido do que normalmente o faria e, ainda que fosse impossível, torcia para que o mastodonte ainda roncasse em seu berço de ignorância. Mas desde sempre tinha noção que a sorte não andava ao seu lado. Perto de sua casa, pôde ver a silhueta monstruosa o esperar na porta, sorvendo com o máximo de delicadeza que um bisão poderia ter, o chá que havia preparado antes de sair. Eu vou morrer, pensou, sentindo o estômago retorcer e a testa umedecer-se com suor frio. Não estava mais bêbado, era um ponto para sorte e seus cigarros foram abandonados em meio a corrida, assim como a caixa de fósforos. Era um homem limpo, em teoria, porém a limpeza não era o bastante para salvá-lo de seus crimes.

— Aproveitando a meleca dessa cidade, queridinho?

Ivan não teve tempo de desviar da xícara que fora lançada em sua cabeça, estourado em sua testa. Não demorou muito para sentir um filete de sangue escorrer por todo seu rosto.

— COMO OUSA QUEBRAR MINHA CERÂMICA, IMUNDICE DE MOLEQUE?! — esbravejou a plenos pulmões, ignorando a vizinhança. Sua mãe nunca xingava: falava que os palavrões afastavam as pessoas de bem do caminho do bem, entretanto lhe pareceu completamente cabível puxar o garoto pelos cabelos e o lançar dentro da casa, sem se importar com onde e como ele cairia. Impulsiva e devota, Ela apenas o fazia o que lhe era a obrigação, e depois criava algumas preces em sua própria cabeça, doando um prato de comida a um pobre para que sua alma fosse salva. Buscava o equilíbrio sobre tudo, afinal, não era uma mulher : suas intenções sempre foram das melhores, almejando o céu para si própria mesmo que a péssima educação de Ivan (influenciado pelo sangue apodrecido do frouxo do pai) desviasse seu caminho para o céu. Mas, bom como era, tinha certeza de que seu Deus entenderia os sacrifícios que realizava antes da vida eterna.

Não esperou o garoto levantar antes de lançar o bule em seu corpo, ele estava com sorte, a água já estava morna o suficiente para não lhe queimar a pele, porém o impacto foi o suficiente para que soltasse um pequeno guincho de dor.

— LIMPE ESSA INHACA! — e deixou o ambiente, andando em direção aos quartos e fechando a porta com força o suficiente para que todas as janelas estremecessem.

E então, Ivan desmaiou.

Um gemido de dor soou no ambiente vazio e o garoto, estatelado junto ao rodapé como uma aranha esmagada, tentava juntar forças em seus joelhos para levantar. A cabeça pulsava o sangue com força, talvez ainda estivesse com a testa sangrando, contudo, temia muito mais que suas mãos fossem furadas pelos pedaços de porcelana trincados no chão do que com um ferimento na cabeça — não poderia completar qualquer tarefa com as mãos furadas e assim sofreria o dobro. Não importava o quanto tentasse se convencer do contrário, tinha completa certeza de que aquele era o purgatório e que a morte não viria ajudá-lo. Valia menos que uma lesma e não havia qualquer plano para si. Um corte na garganta não era garantia o bastante de que seria libertado — e absolutamente não poderia tentar se matar se não tivesse certeza de sua morte. Ela não o perdoaria. Não mudaria nunca, ou talvez até piorasse. Com toda a maturidade embutida em seus catorze anos de idade — o mesmo ímpeto diabólico que, futuramente, faria Poyo, sua capitã, largar a fazenda e seguir viagem sem qualquer planejamento —, pensou com seus botões:

E se eu me livrasse dela? — uma voz interior soou, algo que certamente fora suprimido na mais tenra parte de sua alma, mas que lutava para se libertar e finalmente encontrava voz. Os joelhos tremeram e com as pernas afastou os cacos ao redor, sentando em suas próprias panturrilhas logo em seguida, contemplando o quanto a ideia lhe parecia palpável. Por um instante, não se ateve à um porquê, mas lembrou-se do caçador de Reis dos Mares que o homem bêbado no bar havia o apresentado: aquele incrível indivíduo que, depois de tantas criaturas enfrentadas na Grand Line, se fascinou por uma única delas, decidindo-se a viver em prol dela a partir daquele momento, e então não deixou que ninguém entrasse em seu caminho. Parecia cedo demais para desistir e, principalmente, não poderia permitir-se ser derrotado por sua primeira besta. Queria ir além e encontrar seu próprio Mullet.

Agora, seu caminhar era mais silencioso que o de costume e mal respirava, segurando o máximo de ar em seus pulmões entre uma lufada de ar e outra e permitindo-se expirar de verdade somente quando estava camuflado aos barulhos da casa. A pálpebra de seu olho esquerdo pulsava em reflexo a ansiedade, apesar de ter um pouco a ver com o inchaço pós-pancada, porém sua mente estava firme e a dor não o incomodava mais. Chegou à cozinha e ouviu com atenção os sons que preenchiam toda a casa, e então sorriu fagueiro ao ouvir o conhecido ronco grotesco e profundo: a apneia que consumia a mulher era uma sinfonia para os ouvidos atentos do garoto. Por quanto tempo eu dormi?, questionou-se, mas logo se deu conta de que aquela razão não o levaria a lugar algum. Se quisesse seguir em frente, teria de tomar as rédeas do plano, e isso significava não deixar a cabeça divagar. Precisava ser rápido. 

A mulher não acordaria, era um fato, o seu sono durante as madrugadas poderia ser comparado a de um urso em hibernação — parte porque, de fato, ela comia tanto quanto um e precisava de tempo para digerir os alimentos em seu organismo defasado, como uma velha jiboia. Contudo, essa informação não diminuía o risco de sua operação; de forma alguma. Sabia que tinha de evitar os sons, o que não era muito difícil, afinal, quem cresce rato, nunca deixa de ser rato, mas ao mesmo tempo se sentia cada vez mais decidido, já que tinha conhecimento o suficiente para saber até onde poderia ousar. Abriu a gaveta e agarrou uma faca, colocando-a em seu bolso e logo em seguida pegou a chaleira, a encheu e pôs ao fogo — se ela estivesse esperando o momento que acordasse, talvez fingindo o ronco para pegá-lo desprevenido, agora certamente voltaria a dormir e esqueceria do assunto, porque saberia que não estava planejando nada: era um costume esquentar a água para limpar suas manchas de sangue

"Preciso de um Plano B...", pensou Ivan, sentindo as duas pálpebras começarem a pesar, ao mesmo tempo que a inquietação que precedia um assassinato o mantinha acordado. Havia uma tontura por causa da pancada na cabeça, mas resolveu ignorá-la e caminhou em direção ao seu quarto (um cômodo repleto de caixas lotadas de itens empoeirados, um colchonete velho e algumas roupas limpas dobradas) e, sem qualquer temor, tirou uma bolsa velha de pano marrom debaixo do armário — fazia anos que havia a roubado da caixa com a escrita “FROUXO" em letras garrafais e a escondido em meio à poeira, apesar de nunca ter pensado que criaria coragem de usá-la. Sua mãe nunca a encontrou, provavelmente porque ela nunca se deu ao trabalho de procurar, mas sabia muito bem que estaria encrencado se ela descobrisse da existência. Ele parecia demais com seu pai, e vê-lo com aquela mochila poderia lhe despertar uma fúria que não seria capaz de lidar. Guardou sua muda de roupa mais decente, todos os cigarros que tinha e um tanto de dinheiro que havia guardado de pequenos furtos, não era muito, a maioria vinha de mãos leves nas caixinhas de doações ou então de trocos errados, porém bastava para sobreviver por alguns dias. Calçou sapatos decentes, aqueles que eram permitidos usar somente quando os parentes da Senhora apareciam na casa e guardou seu melhor casaco; o soar da chaleira estava um pouco mais alto. Não poderia deixá-la apitar.

Andou em direção ao quarto principal, vendo pela pequena fenda na abertura da porta um fio de luz. Estava com sorte. Respirou fundo e se aproximou da entrada, a madeira estalando baixinho sob os pés, alta o bastante apenas para atormentá-lo, mas não para vê-la se revirar nos lençóis. Sem nem respirar, empurrou levemente a ponta do pé próximo ao vão inferior da porta, abrindo-a devagarinho, dando de fronte com as costas gigantes da velha, suada como um porco gordo, com as dobras da camisola coladas entre as calotas de suor amareladas e banhas da pele.

O som da chaleira ficou mais intenso.

Pensou que, se precisasse silenciá-la, talvez fosse preciso uma faca maior, pois não poderia alcançar além da gordura com aquela. Mas agora já era tarde demais para voltar atrás; a água estava borbulhando. Deu alguns passos quarto à dentro, vendo as costas subirem e descerem ritmadamente.

Precisava se apressar, ou entraria em ebulição.

Ivan puxou a faca do bolso, levantando-a na direção do rosto, ainda distante do corpulento indivíduo que dormia, porém muito mais próximo do que jamais havia chegado. Poderia lançar a faca, tinha força o suficiente, ou apenas poderia dar mais dois míseros passos e acabar de uma vez por todas com aquilo, contudo…

A chaleira estava prestes a apitar.

Jogou a faca dentro da bolsa e caminhou em passos rápidos em direção a cozinha, recolhendo o máximo de frutas que conseguiu e o maior pão que havia no armário para a viagem: estava pronto e a chaleira borbulhava de maneira assustadora, como se esperasse o momento correto para enfim apitar. Colocou toda a força que restou nas pernas e fugiu, pela janela da cozinha, carregando consigo muito mais do que tinha no momento em que acordou e com um sentimento sufocante em seu peito. O sol já dava indícios de que iria nascer e se quisesse fugir precisava chegar lá antes que os pescadores saíssem para esticar suas redes.

Ouviu, ao longe, o apito soar incessantemente.

Sorriu consigo mesmo e, sem que ao menos percebesse, deixou que um pedaço fundamental de si mesmo se esvaísse com o vapor. O medo e a insegurança continuariam o perseguindo, tal como o cheiro desagradável de peixe daquela cidade, eram marcas internas, fundas demais para que somente a água e o sabão pudessem retirar. Ivan era sujo, fedia a peixe tanto quanto qualquer morador e por isso precisava ir embora, havia purgado por tempo demais e agora, mesmo que não se sentisse digno, desejava viver como viveu Ismael Ludwig, o homem que deixou o diário de suas aventuras. Ao chegar no porto, enfiou-se na primeira embarcação que viu atracada, agradecendo por não se tratar de um barco pesqueiro: era definitivo. Arrumaria um novo nome e faria de sua vida algo útil, talvez Ivan nunca fosse conhecido por nada além de "o coitado que apanha da mãe", mas não importava, porque seu outro eu sairia para desbravar o mundo.

≈≈≈

O amanhecer vinha tímido do leste enquanto os gatos, exaustos por conta de mais uma invasão, remavam o bote de Calíope de volta a praia de Poluora. Não tiveram ímpeto de conversar durante esse tempo, ou mesmo perguntaram o porquê de Flint parecer tão pensativo; por via de regra, é sempre melhor assumir que o passado é difícil de se engolir, e portanto ninguém resolveu meter o nariz onde não foi chamado. Apesar disso, por mais que a maioria deles parecesse bem quieta, apenas olhando o sol nascer com os olhos de quem viveu para ver mais um dia — regalia que, para muitos, não seria permitida —, no final da barca, Morgan e Poyo pareciam bastante inquietos, sussurrando entre si algo sobre razões e outras justificativas que a capitã não tinha o costume de dar. 

— Você tinha mesmo que fazer isso? — perguntou o médico, talvez assombrado com o cheiro de enxofre que nunca havia sentido tão forte, mas muito mais provavelmente só sentindo a culpa pesar em seus ombros.

— Mas é claro que sim! — ela respondeu em tom baixo, o que não era de seu costume, com a sobrancelha arqueada e o peito inflado. — Nem todas as garotas são misericordiosas. Eu, por exemplo, não tenho um pingo de remorso.

Morgan sentiu um nó na garganta ao ouvi-la daquele jeito, mas por ora apenas agradeceu por estar no mesmo lado que ela, pois não aguentaria estar nos sapatos dos inimigos do bando. A destruição os rondava, fosse por mais uma tripulação interrompida, ou então pelas outras vidas que viriam a tirar em sua jornada e, como nunca os fantasmas do cemitério fizeram antes, dessa vez ele sentia absoluta vergonha de seus feitos. Enquanto médico, muitas vezes despiu da honra dos mortos, violando tumbas para retirar o que poderia estudar, mas nunca o fez sem um bom propósito: precisava delas para compreender a ciência do corpo humano e então salvar vidas. Entretanto, devido aos caprichos de sua capitã, fizeram questão de humilhar quem jamais poderia se defender, por nenhum motivo em especial, apenas pela fama; pela marca. Naquilo, não havia um pingo de humanidade. O mar sem dúvidas era uma das maiores fontes de esquecimento, mas certos horrores não se vão assim. A cada dia, Morgan sentia um pedaço de si se sucumbir à bandeira pirata a qual devia sua vida — e temia sinceramente que um dia não sobrasse nada para se orgulhar. 

Finalmente, a orla da praia se tornava cada vez mais evidente, e o mar, aos poucos ficava mais raso naquela metade mais distante do cais. Abicaram num intervalo de pouco menos de cem metros da entrada para o desembarcadouro, em uma faixa de areia molhada que era coberta quase por completo pela restinga e findava somente na estradinha de terra que juntava o porto à encruzilhada do menininho caloteiro — não que Flint estivesse em plenas faculdades mentais para perceber onde estava, mas é sempre válido se lembrar de quando se é passado para trás. Uma vez fora do bote, as quatro mulheres se levantaram de prontidão,  vestindo os desfalques em seu próprio corpo, já que eram em grande maioria jóias e peças pequenas de ouro (dessa vez, por mais que doesse muito em Belka, decidiu que, pelo bem do cozinheiro, não levariam daquele navio nada que não fosse essencial para a sobrevivência, isto é, apenas uma quantidade pequena de ouro e que o resto ficasse para enfeitar os peixes). Entretanto, por um vislumbre qualquer, antes  que seguisse suas colegas em direção à Carniça, a gata percebeu que tanto Morgan quanto o cozinheiro não estavam as acompanhando, e então virou-se de volta à canoa, esperando explicações pelo corpo mole: 

— ‘Tá comendo mosca, Morgan? — perguntou provocativa, despertando o médico de seu transe no mesmo instante que ouviu seu nome. Ele estava olhando o mar, ainda sentado no último banco do bote, e por mais que Flint estivesse tão apático quanto, estavam a uma fileira de distância um do outro, e portanto os motivos de tamanha depressão deveriam divergir. Belka continua: — Chega de preguiça, viadinho! Levanta essa bunda gorda daí, já está amanhecendo! — ralhou. E então, depois de um breve segundo pensando, acrescentou, de cenho franzido em preocupação: — E traga o Flint contigo. Ele ainda não parece bem. 

— Quanto favoritismo — Morgan dramatizou, cerrando os olhos em direção a gata, mas não demorou para seguir sua ordem, pulando as madeiras para chegar ao cozinheiro e dando um tapinha para que acordasse. Quando Flint pareceu minimamente desperto, lhe ofereceu o ombro para que pudesse andar apoiado. A gata "tsc"ou, voltando a sua rota.  

Depois disso, não levou muito tempo para que Bertruska, sozinha, subisse com todos os pertences recém-adquiridos — fossem eles roubados ou não — e os demais tripulantes, após se limparem, começassem preguiçosamente os preparativos para içar velas. Ninguém parecia com muita pressa, embora talvez fosse uma cautela necessária em dada situação, já que não poderiam arriscar mostrar sua bandeira pirata por aí. Quando por fim tudo parecia aprontado para seguir viagem, uma voz estridente irrompe da estradinha de terra, seguido de um trote altíssimo de rodas batendo contra a madeira do porto e tralhas se sacolejando. 

— Oi! Esperem! — a voz pediu em um berro muito esganiçado. 

Como ninguém se prontificou a checar, a guerrilheira dá uma breve buscada com os olhos dentro do navio, confirmando que Poyo havia sim embarcado (estava sentada próxima do mastro, vestindo um Flint catatônico com anéis e colares roubados) e então se volta ao píer, de sobrancelhas franzidas, para ver quem, senão a capitã, estava gritando tão cedo da manhã. Era Autumn, a estranha que os atormentou durante o dia anterior inteiro, e que enfim aparecia mais uma vez para os infernizar — ou conseguir mais dinheiro de um bando de otários, quem sabe? Independente disso, dessa vez, a mendiga parecia mais exausta do que em qualquer outro momento que a encontraram; até andava torta com seus saltos, o que não parecia fazer jus a sua postura ereta que viram outrora e, além disso, ela arrastava um carrinho-de-mão cheio de caixas de madeira que parecia bastante pesado. 

— O que você quer? — Bertruska perguntou, autoritária e direta: não queria dar papo a Falsa-Poyo, pois seu coração doía ao se lembrar daquela desilusão. 

— Você! — Autumn imediatamente fecha a cara, largando o carrinho no chão e apontando ao nariz empinado da ex-marinheira. — CADÊ A FIONNULA? 

— A minha galinha está descansando no navio, por que deseja saber? — respondeu sem qualquer paciência, desviando os olhos e, por coincidência, notando que Belka havia erguido as orelhas com aquela conversa. 

— Galinha? — indaga a gata, largando as cordas que segurava no chão do deque e aumentando seu tom gradativamente: — Sua galinha?! Você arrumou uma galinha, Bertruska?! — estava quase gritando agora. Seus  bigodes tremiam em fúria. Por que diabos aquela imbecil havia arranjado um outro bicho para colocar no barco? Já bastava lidar com Merin! 

— Não te interessa! Aqui é conversa de gente grande, gatinha. Eu não bato papo com quem compra estilingue e espada de esgrima — a vendedora rebateu em alto e bom tom, pisando firme seu salto agulha e cruzando os braços. — Onde está a Fionnula? Se você a colocou para cozinhar, você vai…

— Ela está dormindo na cama que eu preparei para ela. — Bertruska a interrompeu — E, veja bem, docinho, — acrescentou uma dose de deboche no apelido, afinal, não a via mais como mulher, e sim como uma Poyo — se estivesse na panela agora, o problema não seria seu, visto que você vendeu a galinha para mim. Com muita insistência, inclusive. 

Belka sentiu sua pressão ir ao chão; não só pela afirmação de terem adquirido um galináceo sem informar ninguém sobre a decisão (e o fato de não poderem cozinhá-la, aparentemente), mas principalmente porque aquela mendiga havia a rebaixado a posição de uma criança qualquer, sem permissão para adentrar naquele assunto de “gente grande” — ora, era ela quem mandava e desmandava naquela porra! Quem aquela piranha pensava que era para mandar em quem dita a lei? Naquele momento, toda a empatia que poderia ter desenvolvido por Autumn depois de ter sido sua salvadora dos canibais, foi ao inferno. Ela não merecia respeito algum, e ainda por cima estava julgando suas escolhas de armas sem nem saber que o estilingue nem ao menos era para ela! Havia o comprado para a pirralha, de boa vontade e como um presente, mas isso foi antes de saber que a desgraçadinha havia furtado uma pistola de uma maluca enquanto saía com o... 

De súbito, tudo pareceu se elucidar diante de seus olhos felinos. Sem sequer titubear, Belka tomou pela orelha Poyo e arrancou a pistola do bolso de seu shorts, imediatamente oferecendo a vendedora como tratado de paz: 

— Pegue — disse, jogando a pistola nas mãos da mendiga. — Não precisamos de roubo para sobreviver. 

Autumn fez um pequeno malabarismo para pegar a arma, dando graças a Deus por estar descarregada, mas quando finalmente a estabilizou em suas mãos, não deu outra: jogou de volta ao navio. 

— Eu não quero essa porra. O loiro pagou por ela e por esse trambolho aqui — deu um risinho sacana e chutou o carrinho de mão que estava arrastando até então — Não sou caloteira. Se me pagou, é de vocês — finalizou com uma piscadela, voltando-se novamente a Bertruska, pois ainda não havia terminado aquela conversa "penosa". — E quanto a porra da minha galinha…

— Você acabou de dizer "Se me pagou, é de vocês!". Nós pagamos! É nossa! — Foi a vez de Merin invadir a conversa e, surpreendentemente, ela tinha a refém, Fionnula, a galinha preta, aninhada em seus braços

  Por mais que quisesse, Autumn não pôde responder aquilo de outra forma senão com um estalar de lábios muito descontente. Desejava discutir, lutar por sua amiga de plumas, mas a guerra parecia perdida; havia feito um negócio — ainda que muito, muito bêbada — justo e, mesmo prezando por um bom trambique, não poderia ir contra sua palavra de maneira tão descarada. Era louca, sim; mas não tanto — e ir contra um bando pirata inteiro por conta de uma galinha não estava em sua lista de coisas a serem feitas antes de morrer (apesar de que deveria estar). Sem dúvida alguma, havia sido derrotada no seu próprio jogo. Abaixou a cabeça, desolada. 

— Bom... — Morgan, que havia acabado de se escorar no parapeito, decidiu retomar o assunto, já que Belka parecia bastante entretida com uma discussão com Bertruska sobre a compra e Merin e Poyo brincavam com Fionnula sem sequer pensar na vendedora ali embaixo. — E o que tem nas caixas? — perguntou descabido, vendo Autumn dar um pulinho no lugar, parecendo recobrar o que havia vindo fazer ali para começo de conversa. — Você disse que o Flint comprou. Espero que não seja nada ilegal. 

Talvez seja. Em algum lugar — ela deu de ombros — Mas vocês seriam os piores piratas que já conheci se estivessem se importando com isso. 

O médico sentiu as bochechas corarem, envergonhado pela afronta (normalmente era ele quem dava as respostas ácidas), mas antes que pudesse respondê-la, Poyo, que só ouvia quando era conveniente, decidiu dar com a língua nos dentes: 

— Nós somos os piores piratas. Os mais cruéis! — bateu no peito, se empoleirando no parapeito quase por inteiro, prestes a cair para fora do navio — Se não acredita, saiba que nós acabamos de-

Suas palavras foram caladas por uma chicotada na panturrilha. Depois de um grito altíssimo de dor, Poyo caiu de volta ao deque e a gata assumiu o comando: — Só manda essa caixa aqui para cima de uma vez, mulher, não temos tempo para isso… — resmungou, cansada. 

— Eu preferia que Flint viesse buscá-la pessoalmente — Autumn declara, atrevida. Belka sente uma pontada na têmpora: 

— Por que você quer falar com ele pessoalmente? — pergunta em tom ácido, abandonando completamente Bertruska e Poyo, abatidas no chão, para saltar e parar em pé no balaústre, olhando-a de cima. Em sua cabeça, estava conseguindo esconder muito bem, mas seus bracinhos cruzados e feição irritadiça não mentiam: estava morrendo de ciúmes. 

— Porque ele comprou. — insistiu. — E também pediu para que eu buscasse outra coisa... — E deu uma risadinha, palpando a barra da saia como se procurasse algo — Aqui — mostrou a todos um Log Pose, um pouco desgastado pelo tempo, talvez tivesse passado pelas mãos de muitos viajantes antes de chegar até ela, mas que ainda parecia cumprir seu papel de bússola. 

— Um Log Pose? — Morgan inquire, confuso — Por que ele iria te pedir outro Log pose? 

— Não sei. Talvez ele não confie em vocês com um só? — Autumn debocha, dando uma risada esganiçada que faz Belka querer voar em seu pescoço.

… Na verdade, a gata já tinha todos os argumentos na ponta da língua do porquê ela não poderia ver Flint — poderia desenrolar um monólogo de até dez minutos sobre isso apenas para fingir que não era por mero ciúmes — mas, no fim das contas, aquele lhe pareceu um motivo bastante razoável: de fato era perigoso viajar com apenas um Log Pose, principalmente quando se estava naquele bando, e se fosse isso, não tinha motivos para impedir aquele “encontro” de acontecer. Por mais que não quisesse dar o braço a torcer, foi obrigada: deu um suspiro porque não tinha nada a ser feito e então o chamou: 

— FLINT! — Belka grita bem alto — ACORDA E VEM AQUI AGORA!

— ONDE ESTÁ O MULLET? — ele gritou de volta, como um completo alucinado, sendo retirado de seus devaneios à força e saltando do lugar onde estava escorado (estava semi-deitado no chão, com as costas no mastro principal), com uma porção de jóias penduradas em si. — O que aconteceu? — perguntou, em um tom de voz baixo e desconexo, olhando atônito para seus arredores e parecendo não conceber o que estava acontecendo. Quando foi que haviam retornado à Carniça? Sem dúvida, seus devaneios foram longe demais dessa vez. 

— Tem uma maluca ali embaixo querendo te entregar alguma coisa — explica Belka, dando de ombros, ao mesmo tempo que Morgan soltava um “Que raio é Mullet?” bastante consternado, sendo prontamente ignorado pela imediata e respondido pela capitã: “Uma pequeniníssima espécime de faca que somente os cozinheiros podem usar”. 

— Estranha? — o cozinheiro também ignorou a segunda pergunta. 

— EU ESTOU COM SEU ARPÃO! VENHA BUSCAR! — Autumn gritou lá debaixo. 

Não deu outra. Mesmo que não pudesse ter certeza do que estava acontecendo, no instante que ouviu da vendedora sobre a arma, uma memória distante, quiçá primordial em sua essência, pareceu se encaixar em seu cérebro: era uma louca com seu arpão. A melhor arma para a caçada. Dentro de si, um desejo que há muito estava esquecido no fundo de seu peito junto de tantas outras amarguras e esperanças desperdiçadas, voltou com força máxima, como uma lâmpada se acendendo em seu peito; seu maior porto seguro quando as memórias eram dolorosas demais para aguentar, o escape do Diário de Ismael Ludwig e o Mullet, agora parecia mais palpáveis que nunca. 

De repente, tudo fez sentido para si: ele estava atrás do peixe. Do seu peixe. 

Isto é, Flint sempre esteve atrás do seu próprio Mullet, porém, seu passado era como uma pesada bola de chumbo que o impedia de ir longe demais; embora tivesse conseguido fugir de casa e, consequentemente, das torturas físicas e psicológicas de sua mãe, continuou preso aos seus medos e incerteza que ela impôs sobre si, sentindo-se insuficiente e incapaz de encontrar felicidade. Mas agora não mais. Os medos de antes não o atormentavam mais, e a prova disso foi a ligação da velha na noite anterior: não sentiu nada ao ouvir sua voz. O medo paralisante que antes o impedia de respirar… havia ido embora completamente. Ivan Koch havia ido embora, deixando-o livre para seguir com o nome que escolheu para si e fazer sua própria história. 

Flint sentiu uma súbita vontade de gargalhar. Primeiro enquanto caminhava pelo deque do navio, olhando seus companheiros de viagem; depois quando desceu o cordame para ver Autumn; e, por fim, quando tocou seu arpão. 

Estava leve como uma pena. 

A vendedora lhe ofereceu o artefato com um sorriso jocoso que o cozinheiro sequer deu bola, além de entregar-lhe também o Log Pose (convenientemente já regulado com a rota da próxima ilha, apesar de ter sido coagido a pagar um “extra” por conta disso) e uma caixa enorme “de souvenir” — alegou que havia “comprado demais” daquilo, e que por isso decidiu presentear os melhores clientes da semana, mas, no fundo, talvez ela apenas estivesse se sentindo culpada por roubar tanto dinheiro da tripulação da (suposta) irmãzinha. Depois disso, e também de uma sentida despedida à galinha preta, que agora seguiria sozinha para conhecer o mundo, Autumn partiu com um sorriso largo e um carrinho-de-mão vazio. Não quis acenar muito: desde que os reencontrou, pela primeira vez com todos juntos, sentia uma sensação muito ruim em seu peito, como se algo estivesse pesando mais do que o normal, mas também não se aprofundou demais porque, no fim, não era de sua conta. Finalmente, quando ela sumiu na estradinha da encruzilhada, o sol já havia saído completamente do horizonte, e portanto era hora de partirem. Foi Belka quem deu as ordens: “Erguer a âncora e ir sem parar para nada” e, quando perguntada por Merin sobre o que fariam se encontrassem alguém no caminho, apenas sorriu cínica, deixando que Poyo desse a resposta:

 — Matem todos. É aqui que nossa bandeira começa a escrever sua história! 

≈≈≈

Por volta do meio-dia, quando Merin era liberada para mais um cochilo intermitente — a “coitadinha” era a única que não poderia dormir de fato porque precisava estar sempre atenta à rota —, Belka acordava para buscar uma boa refeição na cozinha, mas, enquanto subia as escadas, foi surpreendida por uma conversa que lhe chamou muita atenção.

— Era só isso que havia na caixa? Um envelope endereçado à Poyo? — pergunta Morgan, intrigado. — Era tão grande para só um papel…

— Isso é o que lhe diz respeito — respondeu Flint. — Como a Pirralha não sabe ler, preciso que você mostre à ela.

— Ora, e por que você não lê para ela? Afinal, me disse há pouco que queria escrever um diário. Ler é o mínimo para concretizar seu objetivo, não? — o médico caçoa e, pelo tom, Belka não precisou nem ver seu rosto para adivinhar o pútrido sorrisinho que esboçava. Enfim, ouviu-se um altíssimo estrondo metálico: Flint havia o atingido com uma panela ou frigideira (e, com sorte, atingiu-o na cabeça, pensou a gata).

— Fora isso, também havia uma boa quantidade de lagostas vivas. Devem durar por três dias–

Mas dessa vez foi a Belka quem não o esperou terminar: de estômago roncando e já salivando com a sedutora promessa de provar novamente um prato chique, saltou eufórica para o andar de cima, esperando para ver as belíssimas lagostas que seu cozinheiro havia preparado e…

Sua saliva se evaporou no mesmo instante e tudo que sobrou foi gritar o mais alto que pôde, querendo que todos naquela merda de navio a ouvissem. Sobre a bancada do bar, chegou a tempo de presenciar o último resquício de vida de mais um temível baratão dos mares vulcânicos — um breve relance de seus olhinhos esbugalhados implorando por ajuda antes de, sem dó, ter sua cabeça cortada pelo cutelo de Flint, que o preparava para o almoço: o bicho morreu sem delongas no mesmo passo em que o cozinheiro se assustou com o berro, dando um pulo no lugar e em seguida travando no meio do corte, com um sorriso tenso em seus lábios e pálido como papel. Não disse nada.

— Que porra foi essa, Belka? — Morgan perguntou, bastante indignado.

— Seu viado de merda! Foi você quem trouxe essa aberração para cá?! — Belka acusou sem titubear, agarrando a cabeça decepada do artrópode com suas patinhas felpudas e imediatamente a jogando na direção do médico. O acertou em cheio no rosto. Depois disso, a gata nem pensou em esperar por uma resposta; em vez disso, somente ditou, muito orgulhosa: — Isso é para você aprender a não desviar dos meus golpes, seu covarde! Agora suma com isso daqui! — terminou com um ar de extrema prepotência e um nariz arrebitado, como se fosse a rainha daquela tripulação.

Mas ela não era rainha porra nenhuma. Podia ter nascido nobre e com certeza desejava continuar mandando e desmandando nos outros, contudo, a realidade — vez ou outra assumindo a forma de um cozinheiro loiro por mero capricho — estava bastante longe de sua idealização de mundo e, num piscar de olhos, sempre tinha “um” Flint para esmagar seus sonhos aristocráticos. Assim sendo, enquanto posava arrogante no chão com o dedo apontado para o médico, de supetão sentiu seu corpo inteiro desmoronar com o próprio peso e, quando abriu os olhos, estava a alguns pés do chão, sendo erguida pelo o cozinheiro sem dignidade alguma, pelo cangote, como se fosse um gato qualquer. Sequer conseguiu argumentar: seu instinto felino não a permitiu mover-se. Finalmente, foi posta sentadinha comportadinha no sofá, completamente indignada pela petulância do homem, que nem ao menos falou com ela — ou a chamou para almoçar, o que seria bastante polido dado o horário; só cuspiu em seu orgulho e, como quem não quer nada, voltou à cozinha com um sorriso de canto nos lábios, desferindo uma porrada forte na nuca de Morgan e lavando as mãos para voltar a cozinhar. Sem mais, nem menos, a rebelião foi cortada pela raiz — e esse era o modo Flint de resolver as coisas.

— Como eu ia dizendo antes de ser interrompido, Morgan, — o cozinheiro inicia em tom brando, sem olhar para o amigo, que nesse momento, mesmo aborrecido, se ajoelhava com um guardanapo em mãos para pegar a cabeça do bichano do chão — Essas lagostas foram um brinde de Autumn e vão nos garantir comida por três dias — olhou Belka de relance, de forma provocativa, e ao notá-la ainda sentada no sofá de braços cruzados e bico, volta a falar, risonho: — Além do envelope p’ra Poyo e a comida, havia um uma porção de flechas para minha besta. Eu havia encomendado ontem.

— É isso? Você não comprou nada além? — perguntou o médico.

— Como se fosse pouco... — Belka, mal-humorada, murmurou do sofá.

— Foi  isso — Flint interrompe — Sem mesas externas ou móveis. Só o necessário para sobrevivermos.

O silêncio pairou por alguns segundos e, nesse ínterim, Morgan, um tanto perdido em seus pensamentos, apalpou o próprio bolso, lembrando-se das compras que ele próprio havia feito no período que estiveram na Ilha. Quanto dinheiro aquela mendiga conseguiu tirar do bando?, se perguntou, embora, bem no fundo, nem quisesse saber a resposta — provavelmente porque já sabia que haviam sido feitos de otários desde o início. Autumn certamente jantaria por semanas às suas custas e nada poderia ser feito quanto a isso; era dinheiro perdido e sua indignação não renderia mais do que alguns tapas.

Segurou um suspiro melancólico e engoliu o sapo. — Inclusive! — ele inicia em falsa animação, retirando um pequeno pano (claramente manchado de sangue seco) do bolso de sua calça. — Eu comprei isto aqui para você, mas me esqueci de entregá-la antes — e deu nas mãos do cozinheiro a adaga que havia adquirido em meio a fuga na cidadela. Estava completamente suja, porém não menos bela por isso.

Flint não respondeu, apenas pegou o objeto e o analisou por alguns momentos os próprios olhos no reflexo fosco pelas manchas de sangue seco. Se sentiu como um crianção gigante: seus olhos brilhavam e a sujeira não parecia incomodá-lo de forma alguma, como se já estivesse acostumado ao sangue.

— Testei-a para você, meu caro. Nunca vi dedos serem arrancados tão rápido! Só peço que não use esta aí na comida. — comentou o médico, em tom irônico (ainda que nada daquilo fosse suposição), dando risada de sua própria piada de mal gosto sem perceber a cara de desgosto que a gata fizera ao ouvir aquilo.

— Ah, mas eu já estou cozinhando os dedos agora. Você não quer comer gente hoje? — rebate Flint, guardando o presente em sua dólmã e andando em direção à pia a fim de higienizar suas mãos. Não foi necessário dizer mais do que isso: um riso nasalado e um balançar de cabeça em direção ao médico era o bastante para ambos, que não eram bons com agradecimentos.

Conquanto, não eram apenas eles no cômodo naquele momento, e Belka fez questão de ser notada forçando um (muito) audível som de golfo, ainda que não soubesse dizer por qual motivo estava tão enojada: se era o canibalismo, ou o seu ciúmes corrosivo. Ordena:

— Apenas me faça uma comida decente e sem dedos, Flint, ou eu mesma farei questão de assar os seus! — então olhou-os da mesma forma olharia merda nos sapatos, logo em seguida pisando duro e batendo a porta ao deixar a cozinha para ir em direção ao deque: precisava tomar um ar e cochilar ao sol, talvez assim pudesse recuperar um pouco de seu humor.

Entretanto, a realidade, cheia de embrionária maldade, sempre vem àqueles que ainda almejam por minutos de sossego e, dessa vez, tornou a Belka na forma de, nada mais, nada menos do que o galináceo em sua frente, ciscando pelo seu navio sem a menor preocupação. Malditos sejam os animais que não reconhecem o seu local de pertencimento!, ela amaldiçoou — e a maldição era que já não havia mais diferença entre a carniça e um chiqueiro. O chão estava polvilhado de pão velho e penas soltas, o que inspirava a ideia de que Fionulla não era a única a se esbaldar naquele banquete. Acima disso — literalmente acima, apoiada ao balaústre do castelo de proa —, como não poderia ser diferente, a responsável pela bagunça, Bertruska, jogava mais sujeira ao chão, alimentando aquela vidinha miserável que de nada servia se não fosse devidamente temperada na panela. A jornada mal havia começado e sentia seus músculos rangerem.

Passou a patinha sob a testa, massageando-a na expectativa que sua cabeça parasse de doer — uma vã esperança, pois um gritinho estridente da capitã retirou-a completamente de sua pequena meditação; não havia qualquer paz no mundo, a gata poderia jurar.

— VOLTA AQUI, BICHO! — a capitã gritou, do topo do mastro, com o pássaro jornaleiro, pois ele estava distante demais para que seus bracinhos o alcançassem. Sejam quais foram os motivos para a ave não voar alguns centímetros em direção a pirralha, certamente foi sua pior (e última decisão), uma vez que a garotinha catou a arma do cinto e começou a atirar ao céu sem dó ou piedade: — VAI ENTREGAR JORNAL NO INFERNO, SEU BICUDO! — e então disparou outras duas vezes, sucedida de um grasnado altíssimo de dolorido.

Quando o cadáver da ave despencou como um saco de bosta em direção ao solo, logo ao lado da galinha preta, a gata não conseguiu conter o ímpeto de estapear a própria face. Foda-se. Foda-se muito, murmurou.

— ISSO É PARA VOCÊ APRENDER A RESPEITAR UMA GRANDE CAPITÃ! — Poyo gritou outra vez, mas com muito mais força e petulância.

Sem qualquer paciência e certamente desejando ser ignorante àquela situação como era Fionnula, que só se alimentava, Belka ergueu a cabeça com hesitação para ver o estrago além do assassinato do pássaro-jornaleiro: a capitãzinha estava pendurada no cesto do mastro, olhando para baixo com raiva enquanto uma chuva de papéis planava devagar pelo ar, alguns indo para fora do navio, mas em grande maioria vindo para o chão do convés. Em situações normais, apenas daria uma bronca em Poyo e mandaria, aos berros, a garotinha limpar, porém, por mais surpreendente que pudesse parecer, algo chamou mais sua atenção do que a bagunça em si: se seus olhos não estivessem enganados — e quase nunca estavam, diga-se de passagem —, poderia jurar que, de relance, notou em uma das imagens o inconfundível rosto irritado de Bertruska, tentando cobrir sua face com a mão aberta em direção a câmera.

Um vinco se formou na testa da imediata, algo naquilo estava cheirando muito mal.

Belka sequer precisou se mover para confirmar seu mau presságio, pois o destino fez questão de entregar-lhe a folha de bandeja enquanto ria alto de sua cara: a dita página caiu diretamente em seus pés e com os dizeres escancarados para cima, como se quisessem ser lidos, e a vertigem que tomou-a foi inevitável. Involuntário, porém não menos potente, um grito ardido escapou por sua garganta, tão forte que até mesmo os reis dos mares fugiriam de sua fúria.

— O que aconteceu? — perguntou Morgan estarrecido, após escancarar a porta da cozinha. Atrás de si, Flint empunhava o cutelo, pronto para arremessar em quem quer que fosse o invasor (afinal, com um grito daqueles, um invasor era o mínimo a se imaginar).

A gata virou-se trépida aos homens: as garras já haviam destruído os cantos do papel, porém, os dizeres na folha eram límpidos para eles, "Procurada viva ou morta", e logo abaixo uma recompensa gigantesca. Tão grande que sequer poderiam imaginar que algum dia teriam um alvo desse tamanho convivendo próximo a si.  

— Ela destruiu a gente… — afirmou Belka. Com os olhos cheios d'água, ela largou o papel e aponta o dedo à Bertruska: — ESSA VACA LEITEIRA DO CARALHO ACABOU COM A GENTE!

Seus grunhidos de raiva e inquietação davam voz ao mais puro desespero. Consternada, ela voltou-se novamente às folhas do chão, remexendo-as uma por vez enquanto desejava do fundo de seu coração que não tivesse relação alguma com o bando. Por sua vez, os homens estavam estagnados próximos a porta, junto de Bertruska, que descera encolhida dentro de si mesma, bastante envergonhada pela situação — não temia a fúria da felina, mas sua irritação era mais do que compreensível, já que sua recompensa os jogou mais próximo do precipício.

— Eu sinto muito. Pensei que tivesse apagado esse repórter quando saí da junta — ela explica, cabisbaixa — Se soubesse que o caracol sobreviveria embaixo d’água, eu o teria quebrado também.

Belka não respondeu; estava concentrada demais nas outras recompensas para dar atenção aquelas desculpas insignificantes — no fim, nada mudava o fato de que estavam fodidos.

— Na praia de Poluora, eu também descobri que– — Bertruska começa a falar, mas é interrompida:

— BOCETA! — Belka berra em alto e bom tom. Em suas patinhas mostrava outra recompensa, dessa vez muito menor em valor, mas indubitavelmente pertencente à Merin. — Você disse que não haviam sido vistos em Loguetown! — apontou o nariz de Morgan, acusando-o.

— E não fomos. Essas roupas que ela está usando são do dia em que embarcamos — ele explica, fechando os olhos; tentava parecer calmo como sempre, mas também não estava conseguindo esconder sua inquietação (se havia um adjetivo que nunca faltava para Morgan, esse era “medroso”). — Provavelmente pensam que foi ela quem atirou na cidade com o canhão aquele dia.

— Mas fui eu! — reivindicou Poyo, orgulhosa, agora junto dos demais tripulantes.

A garotinha, que não era boba nem nada, havia descido o cordame como uma flecha, empolgadíssima com a ideia de estarem criando fama e agora averiguava cuidadosamente as páginas no chão, em busca de seu tão sonhado cartaz de procurado. Sem dúvidas havia cometido alguns crimes desde o início de sua jornada, sobretudo um atentado contra um reino de suma importância no governo mundial (desde que ouvira essas exatas palavras de Morgan gostava de repeti-las de boca cheia para quem quisesse ouvir), logo deveria estar ali também, junto dos verdadeiros piratas, contudo… Não avistou nada. Pior do que isso: seu feito havia sido completamente roubado pela navegadora.

Suas bochechas se tornaram rubras e quentes, junto de um bico infantil. A face entortou-se numa careta de total desaprovação, sentia os olhos arderem um pouco, mas, veja bem, não iria chorar, já estava crescida demais para se aborrecer com tão pouco, mas… era uma capitã, precisava daquilo para ser uma capitã.

— Eu… EU VOU QUEIMAR TUDO NA PRÓXIMA CIDADE QUE PARARMOS. A MARINHA QUE ME AGUARDE! TERÃO DE ENGOLIR MEU NOME!

E correu, como um pequeno ratinho que volta para toca após usurpar um pedaço de queijo, com os punhos cerrados ao lado do corpo e seu pequeno coração — e seu ego, partidos em milhões de pedaços.

≈≈≈

Ainda no deque, Belka recobrou a consciência e por mais que desejasse lançar ao mar Bertruska e Merin, aquele não seria o momento ideal. Em vez disso, apenas soltou uma lufada de ar, observando os rostos tensos e, enfim, tomando coragem para dizer:

— Pois então, minhas nobres baratas do mar — enfatizou, tentando (de forma frívola) parecer mais calma do que realmente estava. — Como é que resolveremos essa porra? — pisou firme no chão, colocando uma das patas na cintura e arqueando a sobrancelha direita, enquanto com a outra pata mostrava não dois, mas três cartazes: Bertruska, Camerin e Flint, postos lado a lado.

— Porque o meu está aí no meio? Eu já tinha um muito antes de conhecê-los! — afirmou o cozinheiro enquanto acendia um cigarro.

— Vai se fazer de imbecil agora? — alfinetou Bertruska ao cozinheiro — É só ler, babaca. Sua recompensa claramente aumentou da última vez que a vimos. Eu sei porque eu estava responsável de te marcar como morto.

— Então deveria ter me matado direito. E me vê essa merda aqui! — Flint, agora segurando o cigarro em sua boca, arranca o papel de Belka para analisá-lo melhor e, talvez pela primeira vez em toda sua vida, nota que Bertruska se mostrou com razão, pois sua recompensa de fato havia aumentado. E muito.

— O que vocês fizeram antes de Goa Kingdom? — perguntou Morgan, espiando a folha por cima dos ombros do cozinheiro.

— A Pirralha e Belka me tiraram da berlinda... — respondeu o cozinheiro, soltando a fumaça pelo canto da boca.

— Disso eu já sei. Mas não acho que seja motivo o bastante para ser taxado com 10 milhões. Sua recompensa mais do que dobrou!

— Então me deixe terminar de falar, porra! — rugiu, olhando sério para o médico, que se encolheu em si mesmo. — Eu e Poyo podemos ter destruído algumas coisas durante a fuga, talvez mais do que me lembro. E a Belka apagou alguns marinheiros — pausou o raciocínio para uma nova tragada — Diz aqui "fruta do diabo desconhecida", acredito que eles tenham atribuído o serviço dela a mim. Disponha — fez um singelo sinal com a cabeça em direção a imediata, que automaticamente inflou as bochechas: o cozinheiro estava afiado demais para seu gosto, mas teve que engoli-lo mesmo assim.

— De todo modo, — Belka começa, de braços cruzados e olhos fechados, pensativa — acho bastante estranho que não tenham subido sua recompensa no momento em que você roubou o galeão — fez questão de enfatizar o “você”, já que, legalmente, não estava envolvida naquela sujeira — Quero dizer, um cozinheirinho de quatro milhões de bélis de repente foge da execução, derruba mais de uma dúzia de soldados e rouba um navio militar? Para uma base daquele calibre, pensei que fosse ser, no mínimo, um evento de grande destaque.

— Acontece que ele não foi o único evento daquela semana — afirmou Bertruska, cerrando os punhos; suas memórias pulsavam na testa, ou talvez fossem apenas as memórias ruins latejando em sua alma — Antes de deixar o quartel, as coisas estavam um tanto insanas. A hierarquia havia ido por água abaixo por conta de outro pirata novato; mas não era um reles cozinheiro, como Flint, e sim um capitão.

Nesse instante, Bertruska toma do chão outro cartaz, cuja imagem chamava bastante atenção entre as demais, já que o sujeito aparecia dando um imenso sorriso à câmera. A recompensa, surpreendentemente tão chamativa quanto a própria foto, era de trinta milhões.

— É o garoto de Logtown? — perguntou Belka, um tanto temerosa.

— O próprio. — pontuou severa — Antes de fazer aquele show no palanque de execução de Gol D. Roger, ele fez uma “palinha” na junta e acabou com as minhas chances de destruir Morgan — bradou, cerrando os punhos com força. O médico, até então quieto, se sobressaltou: imaginava que daquela vez o ódio não era direcionado a si, porém nunca deixaria de temer a ex-marinheira. Por sua vez, Bertruska não deu a mínima — Mão-de-Martelo deveria padecer diante dos meus pés, mas infelizmente não tive o prazer de arrancar o braço daquele maldito déspota!

A mulher continuou resmungar com uma veia saltada em sua testa. Naquele ponto, estava mais do que claro para todos que a Marinha era algo sensível para ela, no entanto, não se atreveram a interrompê-la, achando que pudessem extrair mais alguma informação importante daquele infindável discurso progressista — ou talvez somente temendo levar um tabefe de ódio acumulado ao seu antigo chefe. Foi só depois de alguns minutos de sentenças embaralhadas em puro desdém que ela pareceu se acalmar um pouco, e quando ela parou o sermão para recuperar o fôlego e ajeitar as ideias, Morgan, muito esperto, decidiu aproveitar a deixa para tentar conduzir aquela “conversa”:

— Se eu bem entendi, — inicia, olhando Belka e Flint por um breve segundo, como se pedisse aprovação para continuar. Eles assentiram brevemente, aguardando a conclusão; e assim também fez Bertruska — Ele não tinha antecedentes antes de derrotar um oficial da marinha, sim? E, mesmo assim, está com o dobro da sua recompensa, Bertruska.

— Não foi só um oficial — interrompeu Flint — Quando estávamos no Baratie, ele havia acabado de reformar o restaurante inteiro, e está na boca do povo que ele derrotou três dos piratas mais famosos do East Blue dentro de um mês, embora não haja provas.

— Então, se esse é o caso, não temos que nos preocupar por enquanto. Os caçadores de recompensa e marinheiros urubus estão atrás dele, achando que foi um erro. — pontua Morgan.

— Muito pelo contrário, Mon cheri — Belka o corta, pisando forte no chão e cuspindo o apelido carinhoso como um palavrão ácido — Se ele os derrotou mesmo, quer dizer que é uma questão de tempo para desistirem de caçá-lo e virem atrás de vocês, peixes pequenos. Não é hora de relaxar. Precisamos nos preparar para ser caçados.

— Bom — Bertruska inicia, com a mão no queixo, pensativa — É verdade que estarão atrás dos mais fracos logo mais, porém há algo que vocês não notaram com tudo isso: nós não somos uma tripulação formal — sua voz saiu um pouco mais baixa que o comum; não menos severa, é claro, mas como se tentasse ocultar um segredo para que ninguém além deles ouvisse (e, especialmente, para que Poyo não os ouvissem) — Não há nada que nos aproxime, nossa bandeira não tem força alguma e tampouco sabem o nome do bando. Individualmente, não somos nada.

— E a baguncinha que deixamos em Pulvereta? — questionou o médico, sentindo um arrepio passar por sua nuca.

— Nós não fizemos nada, meu caro. Ao menos, nenhum dedo será apontado para nós.

Os adultos ficaram em silêncio, com as palavras entaladas na garganta e uma forte angústia no peito. Estavam caminhando em um labirinto com infinitas saídas, contudo não saberiam dizer qual de fato era a correta: um passo adiante e suas cabeças estariam presas em estacas, dois passos para trás e sua vida salva. Precisavam ser cautelosos, medir suas ações e, principalmente, mostrar suas faces em momentos estratégicos. Os dados estavam sendo jogados e cada segundo era crucial; eram sobreviventes e não lutadores, e por isso poderiam abrir mão dos holofotes para os peixes grandes, contanto que na sombra desses encontrassem o sossego que merecem.

— Não sei porquê, mas tenho um bom pressentimento quanto a isso — afirmou o cozinheiro, apagando a bituca de cigarro na própria bota e caminhando em direção a cozinha — Já está feito, agora nos resta sobreviver — disse, mas quando tocou a maçaneta, não conseguiu abri-la. Despistando as palavras otimistas, sentiu-se impotente.

— Flint — chamou Belka, com muita seriedade em sua voz. — Nós não vamos parar mais. Você-sabe-quem não vai nos permitir.

Nesse instante, o improvável tomou vez. Ao ouvir a confirmação, em vez de se afligir ainda mais, Flint deixou com que seus ombros caíssem, completamente relaxados, e um sorriso involuntário se formou em seus lábios. Sabia muito bem no que havia se metido e por isso não temia o caminho pelo qual iria trilhar; todas as cartas estavam na mesa e, se não tinham percebido até então era porque mantinham os olhos fechados para o óbvio. Poderia morrer amanhã, quiçá naquele exato momento e não poderia culpar ninguém além de si mesmo, porque sua sina era abraçar o desconhecido.

— Isso nunca foi uma escolha, Belka. Estamos a par de todos os riscos desde o momentos em que embarcamos, e não há mais como fugir, se é que em algum momento tivemos essa opção. 

E então soltou uma longa lufada de ar junto de um riso baixo, por fim girando a maçaneta da cozinha, mas antes de entrar virou-se em direção aos companheiros e esboçou um sorriso no mínimo estranho; sem felicidade ou tristeza, apenas a plenitude de um homem que por vezes demais deu-se de face com a morte.


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