Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 19
Grand Line, Invasão pirata! (Pulvereta)


Notas iniciais do capítulo

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Flint e Morgan sentaram-se de costas a divisória de madeira que separava a piscina feminina da masculina, sem trocar olhares ou dizer uma sequer palavra, apenas esperando atentamente o barulho das demais companheiras entrando n'água. Não demorou muito para que ouvissem, em meio a conversas despretensiosas de Poyo — que dificilmente poderiam discernir se ela estava de fato tentando disfarçar, ou se havia se esquecido que havia uma missão a ser cumprida —, o primeiro "splash", seguido de um remexer suave na água e mais um pequeno barulho de alguém encostando a nuca na parede de madeira; um dos sinais para avisar que estavam a postos, esperando que Bertruska trouxesse a vagabunda para o ninho de cobras. Por precaução, assumindo que a ex-marinheira poderia colocar o plano a perder se decidisse que era mais justo defender a fraca e oprimida estranha do que seus companheiros de bando, decidiram que era mais sensato não contar a ex-marinheira o que estava planejando fazer em primeiro momento, e então tiveram de apostar todas as suas fichas na hipótese de que ela, uma completa sem-vergonha, não perderia a chance de ver a biscate sem roupas em um banho compartilhado. Não deu outra. Menos de cinco minutos depois, tempo suficiente para uma mulher desenvolta e exímia galanteadora convencer que era bom tomar um banho para acalmar as ideias, ouviu-se a porta de correr se abrindo uma segunda vez, seguido da voz da guerrilheira:

— Ah. Vocês estão aqui. — ela pareceu decepcionada. Morgan imaginou que seu rosto, antes sorridente e confiante, havia murchado para um biquinho caído, desapontada por não ter alguns minutos sozinha com aquela bela pirata de cabelos cacheados.

— E você esperava o que, exatamente? Nós atravessamos a porra do mar para vir até aqui, numa balsa imunda e que não foi barata, e você achava mesmo que íamos desistir por conta daquele viado brigando na entrada? Só porque você quer. — Belka ralhou, e os dois homens quase puderam vê-la erguer o lábio superior em uma expressão de desdém. — Depois que vocês saíram, um velho decrépito veio ver o porquê da barulheira e o levou para acertar as contas no casebre dos donos, então assumimos que não teria problemas em vir aproveitar.

— É! Ele veio e... bum! — Poyo gritou, seguida de um inconfundível som de água sendo jogada ao ar.

— Ei, cuidado, pirralha! — disse a pirata desconhecida: uma confirmação segura de que a presa já estava rondando a arapuca, no caminho de morder a isca. Faltava pouco para que ela se sentasse na água e fosse engolida pelas demais sanguessugas.

— Qu'é isso, acha que pode me chamar de pirralha assim, sem mais nem menos? — a capitã levantou a voz e, por causa do barulho da água, assumiram que ficou de pé também, pronta para avançar rumo à moça. — Você vai ver se eu não te molho direi-...

— MORCEGO, TEM UM MORCEGO AQUI! GERÊNCIA! — Morgan gritou desesperado. Aquilo não fazia parte do plano, mas por sorte Flint entendeu o que ele queria fazer e saiu da água, simulando que era o médico quem havia fugido em disparada. Felizmente, essa agitação foi o bastante para chamar atenção de Poyo, que entendeu o recado e murmurou um "Vou deixar passar dessa vez", voltando a se sentar na água (embora continuasse emburrada).

Então, do outro lado da divisória, Merin sussurra calmamente: — É "morceguinho", morceguinho... Mas vou aceitar como o sinal — e deu um risinho lúgubre ao fim; sabia que seu noivo estava tendo um calafrio por sua causa e ela, tal qual um cão que acaba de urinar para marcar o território, se sentia imensamente satisfeita, quiçá orgulhosa, com aquela reação.

— Isso é o Morgan do outro lado? — sondou Bertruska, desconfiada.

— Aparentemente, não mais. Aquele viadinho deve ter fugido — Belka deu um riso debochado, tentando manter a personagem (ela com certeza riria se, de fato, ele estivesse correndo por causa de um morcego). — Vocês duas não vão entrar na água? — perguntou, fingindo despropósito.

— Hum... Pensei que o médico estaria junto de Flint. Por algum tipo de... lealdade masculina, talvez. — Bertruska comentou enquanto soltava uma alta gargalhada e não demorou para que ouvissem o quarto e quinto splashes. — Mas não me surpreende; são dois frouxos mesmo. Eles se merecem. — ela disse quase num suspiro, como se o calor daquela piscina estivesse drenando sua potência vocal. Pelo tom de voz, imaginaram que estava com a cabeça encostada a alguma pedra, de olhos fechados e cabeça ao céu. Por sua vez, Flint não pôde evitar um levantar de sobrancelhas para o médico, não pela afirmação da ex-marinheira (tinha certeza que Morgan não o acompanharia numa briga e, inclusive, preferia que não o fizesse), no entanto, depois de anos convivendo com toda a malícia que a pirataria impunha sobre si, simplesmente não conseguiu deixar de achar estranho o que sua colega queria dizer com "se merecem". Ficou mais atento a conversa, esperando sinceramente que não fosse o único a ficar desconfortável com aquele tom (se seu amigo não notasse, estaria perdido; significava que ele, sozinho, teria de mudar ou Merin o mataria pelo seu ciúmes infundado).

— O Morgan eu tenho certeza. O Flint, não. De jeito nenhum. — fora a vez de Belka adentrar ao tópico, cortando o assunto com um tom ríspido, como se estivesse não só interessada como também muito, muito incomodada com aquela afirmativa.

— Do que vocês estão falando? — a mulher azul interpelou as duas; até então estava com seus ouvidos focados em seu morceguinho, contudo sua atenção foi capturada após a suposição da felina.

— Nada, Merin. Nada. — disse Belka. Morgan e Flint ouviram alguém se levantar na água. — Você também deveria sair da água, eu não vou te arrastar para fora se ficar fraca demais.

— Você não me respondeu! — a voz de Merin se esganiçou por um segundo, indignada por ser ignorada.

— Ora, não vão ainda, agora estou começando a ficar interessada nessa conversa. — a estranha pediu com um riso cínico e cheio de presunção — De onde vocês conhecem o Ivan? — perguntou, cuspindo o nome do meliante como se as demais mulheres fossem obrigadas a conhecê-lo por outra alcunha.

— Que Ivan o quê, sua mocreia! Tenha mais respeito com o Flinny! — a capitã respondeu de nariz empinado e bochechas inchadas em fúria — E, respondendo a sua pergunta, eu salvei o Flint da execução — enfatizou o nome com bastante arrogância, como se estivesse lhe ensinando algo óbvio. Nesse ponto, estava pouco ligando para o plano e se não fosse a ameaça de Belka puxar suas orelhas, já teria feito bom uso de sua nova arma bem no meio da testa daquela maluca. — Agora ele cozinha para mim.

— Salvo por uma pirralha ranhenta e putinha do mauricinho! — a mulher gritou, completamente indignada, levantando-se da água. Entretanto, antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, uma risada escandalosa irrompeu pelo local: era Morgan, da piscina masculina, que por um segundo não conseguira conter o riso diante daquela afirmação, deixando-o sair brevemente até cobrir a própria boca no susto (quando se lembrou de que estava no meio de um plano sigiloso). Não houve mais tempo para reações; as mulheres se encararam por um segundo de confirmação, apenas para Belka lançar-se sobre a algoz do cozinheiro, pressionando suas garras na pele de seu pescoço: era agora ou nunca, pensou.

— MÉDICO FILHO DA PUTA! NÃO CONSEGUE CALAR A PORRA DA MATRACA POR UM SEGUNDO, SEU MERDA?! — a gata gritou, bem alto, ao outro lado da parede. Ao fundo, podia-se ouvir o som de alguém lutando contra o próprio afogamento, e também Bertruska, que num grito furioso não levou meio segundo para se levantar e começar a ir em direção a briga. No entanto, antes que pudesse chegar até elas, Poyo pergunta, autoritária:

— Quem é mais importante para você, Bertruska? Eu ou essa vaca leiteira? — zombou. A guerrilheira, pega desprevenida pela aquela frase, travou no mesmo lugar que estava para ouvir atentamente o que a menininha, sua capitã, tinha a dizer — Pode escolher. Mas se você me trair, eu vou te matar agora mesmo, junto dela.

Com exceção do debater incessante na piscina, fez-se outro segundo de silêncio mórbido. Todos foram tomados por um súbito sentimento de apreensão e mais puro pavor porque, mesmo que não pudessem vê-la, sabiam qual era seu rosto naquele instante: o gato da bandeira, debochado e desafiador, mas com uma sinceridade horripilante que só trazia a certeza de que aquele recado não era só para Bertruska, e sim para todos eles. "Quem desobedecesse a capitã morreria nas mãos de seus lacaios, mesmo que na noite anterior estivessem alegres e bebendo juntos" — essa era a verdade absoluta; a tal da "lei dos mares" que tantas vezes fora dita como a única pelo próprio diabo a quem deram suas vidas.

Naquele instante, Poyo estava quieta, mas dizia, firme e clara: "Os mares não cultivam o perdão, e sua lealdade é sua única lei". E então, sem que pudesse fazer nada para impedi-la, a mulher, obediente como um cão, voltou a se sentar, assistindo complacente ao que quer que fosse o destino daquela estranha.

≈≈≈

Se dissesse a si mesmo que não estava se culpando pela'quela merda toda que estava acontecendo, Flint estaria mentindo. E mentindo muito mal, diga-se de passagem. O que a princípio lhe parecia apenas uma coincidência terrível, se tornou bem mais tangível quando, abicado sobre a areia de Polvareda, notou o mesmo barquinho pirata do porto, estrategicamente posicionado como um pequeno lembrete do universo de "Eu te avisei". Pois avisou o quê? Que era problema desembarcar em uma ilha com piratas?, Flint pensou. O caralho que me avisou! Sinceramente, como o universo poderia querer que ele, depois de dois dias desacordados e um nariz quebrado, se lembrasse daquela carniça desbeiçada que encontrara mais cedo amarrada ao porto da outra ilha?! Com todo o respeito aos capitães que serviu durante sua vida, era um completo absurdo pedir que um relé cozinheiro conhecesse todos os botes de seus imediatos; e ainda mais que se lembrasse deles depois de meses longe da tripulação! Foda-se que não se lembrara — e também foda-se que talvez não fosse se lembrar nem que estivesse em plenas faculdades mentais. De qualquer maneira, sentindo a culpa sobre as costas ou não, nada mudava o fato de que, agora, o mais pesado era a mulher dependurada como uma velha boneca de pano em sua coluna, desacordada e sem ter a menor noção do que estava prestes a acontecer consigo.

Sob a penumbra da noite, saíram quase sorrateiros da pousada, logo depois de colocar suas roupas (e as da moça) de volta, e então, ao chegar na praia, depositaram, sem muito cuidado, a estranha em seu próprio bote, amarrando-a contra o mastro com a corda do porto. Não estava morta ainda; "deve ter desmaiado pelo choque", Morgan apontou — mas infelizmente esse diagnóstico não poderia durar por muito tempo, já que até o amanhecer ela deveria estar abraçando o Papai do Céu. Com ela presa ao barco, até pensaram em roubar tudo que tinha e depois apenas jogá-la à deriva até que a inanição a calasse para sempre, mas, apesar de ser a ideia mais limpa — nada ligaria eles ao crime —, também não era uma garantia de que ela morreria antes de ser encontrada, e se ela fosse resgatada, seria o fim da linha para eles. Dessarte, sabendo que não tinham muita escolha senão matá-la de uma vez por todas, os gatos discutiam sobre o que era melhor ser feito:

— Rouba todo o ouro, corta a garganta dela e deixa afundar! — Poyo sugeriu, sorridente como o próprio diabo.

— Não. Ela vai boiar e vão achar o corpo. E daí é questão de tempo para o meu antigo capitão vir se vingar da gente. — explicou o cozinheiro.

— E daí? Derrotamos ele também. Pode vir a tripulação inteira, nenhum deles é páreo para meus músculos — Bertruska cerrou os punhos, muito orgulhosa.

— Eles sabem demais sobre mim. Precisam todos desaparecer, sem exceções. — Flint respondeu com a cara amarrada, um tanto preso em suas próprias problemáticas, entretanto ativo na discussão dos demais tripulantes.

— Eles sabem demais e nós de menos, né... — Belka resmungou, os olhos revirando aos céus. — Mas pouco importa agora. O que você quer que façamos, outra chacina?

— Sabe de mim o mesmo tanto que sei de você, Belka, o suficiente. — o cozinheiro respondeu, colocando a mão sobre o queixo, a ideia da chacina esteve em sua mente durante todo o caminho (talvez até um pouco antes de sair daquela tripulação), mas não tivera certeza se seria bem quista pelos demais. — Eu... não faço a menor ideia. — suspirou.

— Ó, por favor, vamos matá-los! Chacinas piratas são demais! Eu quero ter uma na minha história! — a capitã interrompeu, levantando sua arma (até então descarregada) para os céus. A gata arregalou os olhos.

— Onde você conseguiu essa porra, Pirralha? — perguntou Belka.

— Roubei de uma doida! — mentiu, porém sua face era presunçosa e repleta de orgulho, não queria deixar Flint em maus lençóis no fim das contas e, acima de tudo, era uma ladra. Ninguém questionaria.

— E você não impediu!? — Belka questionou ao loiro, que apenas deu de ombros.

— Melhor ela, que não gastou um centavo nessa "aquisição", do que você, que desperdiçou comida por nojinho. — o médico provocou, olhando-a de cima com um sorriso de puro deboche — Precisamos focar na missão.

— Cala boca, Morgan. — a gata ralha, fazendo pressão nas têmporas com as patas felpudas. Na verdade, queria dizer: "Você se mijou de medo o dia inteiro e ainda estragou a porra do plano! SÓ CALA A PORRA DA SUA BOCA, SEU MERDINHA!", mas resolveu se segurar porque já tinha problemas demais no momento (e a última coisa que queria se preocupar era naquele almofadinha lhe dando lição de moral). — Atacaremos então, dane-se. 

— De que maneira? — Bertruska indagou, numa curiosidade que não cabia em sua habitual faceta de imprudência (talvez não estivesse conformada com o destino da tripulação daquela tão bela jovem, mas, por mais difícil que fosse se assumir errada, uma pequena parcela de si já sabia que era melhor confiar em Flint do que nela). Contudo, antes que pudesse receber uma resposta, notaram que a mulher, até então desacordada, pareceu dar sinais de que estava prestes a acordar, soltava pequenos grunhidos de descontentamento e mexia-se entre as cordas. 

A gata riu consigo mesma, não havia mais como planejar merda nenhuma. 

— Improviso. — informou e em seguida esticou as patas, dirigindo-se para próximo da pequena embarcação e a empurrando em direção ao mar. Não precisou pedir ajuda, pois Flint a colocou sobre os ombros e assumiu o serviço, tomando o barco pela proa para guiá-lo em cima das ondas. Os demais gatos apenas tomaram seus lugares, sentando-se calados nos bancos de madeira enquanto ouviam os resmungos da "estranha"; o cozinheiro então deu um último empurrão, certificando-se de que estava fundo o suficiente, e logo em seguida saltou para dentro, deixando que a maré os levassem rumo à destruição.

Não muito tempo depois de entrarem completamente no mar, a mulher desconhecida abriu seus olhos, retomando a consciência após o curto apagão. Ainda confusa, tentou gritar por ajuda inúmeras vezes, e mais ainda quando se vira cercada e amordaçada, entretanto, eventualmente notou que seus esforços eram inúteis; no meio do oceano, ninguém viria lhe buscar — além de que era fútil se machucar com aquele pano velho na boca por conta de uma causa perdida. Isto é, arrogante o quanto fosse, mesmo ela sabia reconhecer quando estava derrotada, e diante daquela imensa perda (certamente a última de sua carreira), decidira levar seus algozes até a embarcação como desejavam e dar-lhes o gosto da vitória.

Não havia arrependimentos em sua vida. Poderia afirmar isso com tranquilidade, afinal, se não à beira da morte, qual momento melhor para repensar sobre tudo que vivenciou? Calíope era uma mulher completa: quebrou todas as regras que desejou quebrar, gozou das riquezas que conquistou com as próprias mãos e fez seus inimigos padecerem sob os seus pés — não Flint, mas sua hora há de chegar, como chega a todos. A grandeza não lhe importava, estava pouco se fodendo para o sonhos alheios; fosse a imbecilidade de um homem ao perseguir um peixe imaginário — e ignorar as demais belezas da vida, principalmente ela —, ou o capitão a quem servia, que mesmo ciente de sua incapacidade acreditava estar a par dos grandes que lutavam pelo título de Rei. Eram tolos, nenhum conseguiria; os fracos não deveriam ter o direito de sonhar — mas ainda assim, por que se sentia tão desolada naquele ponto de sua história? Era completa, sim. Superior à eles em todos os aspectos — ela não se deixava levar pelos sonhos triviais e vivia o dia de hoje como se fosse o último. Contudo, sob os olhos julgadores daquela gente desconhecida (e eram desconhecidos, todos eles), sentia uma tremenda vontade de começar a chorar, como se eles pudessem ler seus pecados e sentenciá-la ao fogo do inferno. Pois, no fim das contas, mesmo aqueles que não tem grandes pretensões podem ter medo daquele sentimento; da certeza absoluta de que está beirando a morte e, acima disso, que será punido pela eternidade pelo o que fizera em vida.

Então, naquele momento, enquanto petrificada de medo da inevitável morte e hipnotizada pela luz da lua refletida no mar, Calíope, que nunca desejara por nada que estivesse fora de seu alcance, hoje — pela última vez —, carregava em seu peito um desejo absolutamente mundano e alcançável: uma vingança. Queria ser o tormento de Ivan até o último suspiro; deixar uma cicatriz grande o bastante para que ele nunca se esquecesse dela. Não pudera conquistar o amor dele, mas não se permitiria partir sem ser lembrada; o mundo pirata não sabia seu nome, além de nunca ter permitido que houvesse alguém para testemunhar seu legado, mas ele saberia. "Flint" seria sua última vítima e aquela que levaria seu legado até o inferno.

— É aquele seu barco, bruxa? — a menininha perguntou, e a mulher apenas anuiu em silêncio absoluto. O navio pirata de sua tripulação flutuava no horizonte, de velas afronhadas e âncora baixa, a pouco mais de cem metros de distância. Em sua mente, contudo, aquele amontoado de madeira e metal era o último pensamento de sua mente, porque um questionamento mais importante lhe assombrava: quando criança, será que meus olhos tinham um brilho tão diabólico assim? A resposta... não era importante (nem para ela, e nem para ninguém naquele bote). De qualquer forma, estava vidrada demais na quantidade de malícia que um rosto infantil poderia carregar para dizer algo, então só sorriu debaixo da mordaça, sentindo a pistola do rapaz de cabelos escuros roçar em sua têmpora.

— Você sabe o que fazer, não sabe? — Flint se direcionou para a mulher, sem se importar com o sorriso cínico que ela lhe direcionava. — Essa aqui vai garantir que você não vá sair da linha, então nem pense em fazer uma besteira — apontou Merin, que desapareceu em um único instante, mas pelos sons sabia que ela estaria na retaguarda do cozinheiro. — Irá avisar aos seus companheiros que me trouxe. Da maneira que o faria, caso tivesse me capturado.

A mulher afirmou com um acenar de cabeça e Morgan guardou a arma, posteriormente partindo sua mordaça. Uma breve sensação de insanidade passou por seu corpo, desejou cuspir no rosto do cozinheiro, que, a sua frente, tinha um semblante frio e fechado; o mesmo que tantas vezes vira na cozinha e que a fizera se apaixonar em primeiro momento — era essa indiferença dele diante de qualquer situação que a atraía. Contudo, ela sabia que não era o momento de arriscar; o plano necessitava de frieza e aquela vontade passageira de denegri-lo por ora nem de longe seria tão satisfatória quanto a marca que deixaria para o resto de sua vida. Respirou fundo, observando os gatos se esconderem na penumbra até que sobrasse ao seu lado apenas Flint, de pulsos amarrados em um nó falso e face dura, parecendo se negar a olhá-la nos olhos — Calíope se perguntou se era sua presença que o incomodava ou então a da garota invisível em suas costas, mas por razões egoístas preferiu acreditar na primeira opção.

Quando o barco chegou perto do navio, ela sabia o que fazer, e nem sequer hesitou em gritar para que os vigias a notassem. Um simples "O trouxe de volta" foi o bastante para despertar um burburinho baixo na grande embarcação, e em seguida algumas cabeças curiosas se espreitaram pelo parapeito e cesto do mastro, olhando curiosos para baixo como se não acreditassem naquela afirmação — e, de fato, ninguém acreditava nela até vê-lo ali, preso de pé sobre o bote; antes disso, achavam se tratar de um blefe da putinha da tripulação e não se deram ao trabalho de chamar seu capitão em primeira instância.

— Joguem a merda das cordas d'uma vez, está frio para caralho aqui embaixo! — ela exigiu, lançando-lhes um olhar inexpressivo; sem brilho. — Ou vão me dizer que vocês não querem colocar esse traidor para dentro da cozinha de uma vez? Eu estou cansada de comer ração.

— Carma lá, princesinha, tem de esperá o Capitão acordá primeiro — disse um dos homens de braços cruzados sobre o balaústre, com um cigarro aceso entre os dedos e um sorriso pútrido de dentes faltando. Ele levou o cigarro a boca e continuou a falar, dessa vez com a voz abafada pelo objeto: — Mas se quisé que nós vai mais rápido, usa tua moeda de troca e vâmo buscá agora, que tal? — fez um movimento de aperto com ambas as mãos na região dos seios e soltou uma risada tão asquerosa que Bertruska sentiu um ímpeto fortíssimo de se levantar e esquartejá-lo no ato, mas fora segurada por Belka, escondida ao seu lado.

— Ele aqui não é o bastante? — Calíope insistiu, sem qualquer paciência, estava em seus últimos momentos e não queria desperdiçá-los com a estupidez masculina. — Esse covarde nos abandonou às vésperas de virmos à Grand Line, deixando-nos chupando os dedos e a base de rações terríveis, e agora, veja só, onde estamos? Garanto que não é o East Blue. Ele mentiu. Nos abandonou por outra tripulação. Estava roubando nossos segredos!

O homem então crispou os lábios, convencido de que, além de não conseguir um agrado da estimada confrade, estavam tratando de algo maior do que apenas o maldito desertor. Fosse pelo seu jeito apressado de falar ou a absoluta insistência em ver o capitão, algo naquela mulher lhe fazia suar frio, pressentindo que algo de ruim estava prestes a acontecer, e que nela queimava mais além da vontade de se vingar. O silêncio se fez por uma fração de segundos, antes de ser interrompida pelos gorgolejos e passos apressados do capitão, no fim das contas, Flint era um assunto de interesse do homem. Ainda que sua personalidade fosse detestável, como a da grande maioria dos pequenos piratas que aterrorizam os Blues, a aparência daquele capitão não era das piores e fora por isso que Calíope o escolheu. Era nova demais e dentre os dentes podres e pançudos que ofereceram-lhe imensuráveis riquezas (algo que jamais conseguiriam lhe prover), optou pelo que tinha a melhor aparência, o mínimo de asseio e algo além de promessas. Nunca se arrependeu; mesmo com todos os desvios de caráter, ele era dotado de bons atributos e não tentou lográ-la com meias verdades. Afirmou no primeiro contato que a pirataria lhe envenenaria a alma, mas que nunca mais desejaria estar sã após a experimentar.

— Veja o que temos aqui! — o acento pesado em sua voz perturbou os pensamentos do cozinheiro e uma onda de estresse invadiu seu corpo. O passado precisa ser enterrado, pensava. — Muita coragem retornar para nós, sabe muito bem que não aceito traidores. Contudo, posso pensar em lhe perdoar se mover essa bundinha seca e cozinhar algo delicioso para nós, o que acha? — o homem sorriu sacana, passando levemente a mão pelo queixo quadrado e com um olhar maldoso, lançou uma densa escarrada na face do antigo subordinado. Sabia que ele não reclamaria, Flint nunca reclamava.

— Para de enrolar e me deixa logo subir — Calíope interrompeu, sentindo uma pontada de ansiedade lhe atingir ao notar um forte aperto no ombro: a garota invisível estava lhe punindo pelo tempo perdido com as falas arrastadas dos tripulantes da embarcação maior. Mordeu os lábios, nervosa. A cada segundo de enrolação suas chances de ser morta ali, naquele barquinho decrépito, aumentavam; e isto ela não poderia aceitar de jeito nenhum. Precisava realizar a última etapa de seu plano.

— Claro, claro... — O capitão riu jocoso e apontou sua cimitarra em direção ao cozinheiro, mirando exatamente o meio dos olhos. — Deixe-o livre para subir, docinho. Ele não tem para onde fugir. — pediu a mulher, que prontamente soltou o nó e observou os olhos de Ivan tornarem-se baixos e uma expressão derrotada tomar o seu rosto; ele secou o rosto com a manga branca de sua dólmã e tomou a frente sem dizer uma palavra, agarrando o cordame que os ex-companheiros lhe jogaram para subir. Aquele era o Ivan que conheceu e por um segundo sentiu um aperto no peito; o homem que não trocava mais de meia palavra com os demais cavalheiros, que se negou a tocá-la e, sobretudo, o único que desejou amar. Não sabia ao certo se realmente o amou, ou apenas não estava acostumada com qualquer cortesia, entretanto lembrar dos seus esforços para conquistá-lo lhe queimava as bochechas: nem mesmo lançar-se ao mar despertou qualquer ímpeto do cozinheiro em salvá-la. Suspirou derrotada, olhando o mar um instante, até tomar a escada atrás dele; sentiu um balançar nas cordas logo ao seu lado — Merin estava subindo junto de si. Estava na hora.

Não houve tempo para raciocinar; no momento em que seus pés tocaram a madeira maciça, sentiu a presença da mulher invisível se tornar ainda mais densa e, em questão de segundos, um esguicho quente de sangue veio ao seu rosto: as mãos que seguravam o colarinho de Flint perderam a força e caíram sem vida no chão gelado. O primeiro lacaio estava morto. O barco pendeu para o lado onde as cordas foram içadas e um alto grito no parapeito os trouxe de volta a realidade: "ESTAMOS SOB ATA...", e foi silenciado, possivelmente pela gata. Calíope, ainda atordoada, mas com um objetivo claro em sua mente, teve tempo apenas de ouvir o barulho das botinas dos invasores tocando o convés e os primeiros tilintares das espadas se chocando antes de correr em direção ao castelo de proa para se esconder.

As cordas ricocheteiam outra vez e o som das botas pesadas de Bertruska tomaram o ambiente. Ela não se importou em esconder a própria presença, afinal, não havia nada que qualquer um daqueles homens fracos pudessem fazer contra ela. Dessa vez sóbria, aproveitou para olhar com atenção cada homem daquele barco, buscando reconhecê-los de suas mais terríveis memórias, mas nenhum deles lhe despertava nada; eram jovens demais para terem feito seu passado. Frustrada, mas igualmente irada pela forma que aqueles canalhas tratavam mulheres, decidiu que descontaria toda decepção naquela gente mesmo, e por isso ajeitou o soco inglês em sua mão esquerda e lançou-se em meio aos piratas. Algumas espadas lhe cortaram a pele e poucos socos chegaram a encostar em sua face (estava mesmo ficando enferrujada), mas nada disso foi o bastante para parar de seguir em frente, golpeando os poucos dentes que restavam em suas bocas imundas e quebrando a maior quantidade de maxilares que poderia encontrar. Aos poucos não restou mais homem algum, todos foram subjugados pelo poder de seus punhos e jaziam desacordados sob seus pés. A partir dali, restava que Belka ou Merin os finalizassem com as lâminas, mas antes que pudesse chamar qualquer uma delas, o médico, um exímio carniceiro, veio sorrateiro detrás de si, usando a vorpal (que originalmente comprara para Flint) para roubar falanges e outras partes moles — apenas aquelas que poderia cortar sem esforço ou resistência de ossos. Bertruska sentiu náusea e apenas murmurou para que Morgan os finalizasse antes de qualquer coisa.

— E se eles acordarem e vierem me bater? — Morgan retrucou, encolhendo-se como um verdadeiro rato.

— AÍ O PROBLEMA É SEU, INFERNO! — a mulher o censurou, o mais alto que pôde debaixo daquela onda de fedor metálico se espalhando aos ares. O médico abaixou a cabeça rapidamente, temendo que, se não apanhasse deles, que ela viesse lhe espancar, e então só voltou ao seu trabalho, agora seguindo as instruções da guerrilheira: mate primeiro, roube depois.

Não a muitos metros dali, depois dos gritos que foram aos poucos cessando, e também das pequenas explosões de pólvora que por fim pareciam acabar, o capitão do navio levantou a cimitarra na direção do pescoço de Flint, que sorria abertamente, como nunca havia o feito.

— VOCÊ É O RESPONSÁVEL POR ISSO? — bradou, perdendo o controle de sua voz em meio ao desespero. Seus olhos passavam por todas as direções, quase uma dúzia de homens haviam sido mortos diante de si, contudo não havia um bando a quem jurar vingança: não sabia de onde aquela gente viera, ou a quem serviam, mas de alguma forma se infiltraram ao barco em silêncio e, como marionetes do cozinheiro, continuavam a derrotar os marujos um a um, sem demonstrar hesitação ou piedade. Ainda por cima, como se tudo aquilo não bastasse, Flint não movia um músculo desde que embarcara; apenas sorria a sua frente, um riso demente, de dentes à mostra e perversidade a cada dobra da face. O capitão pensou que nunca o vira rir assim antes. Oras, sequer o vira sorrir para começo de conversa! Mas agora, sem dúvida alguma, ele estava ali. — FALE OU CORTAREI SUA GARGANTA! — gritou ao homem.

Flint não respondeu. A espada forçou a garganta, cortando a epiderme e começando a formar uma pequena gotícula de sangue na ponta da lâmina, mas ele continuou em silêncio, só sorrindo feito um retardado enquanto um fantasma chacinava seus antigos companheiros. Não tinha silhueta ou sombra, apenas dançava pelo barco em movimentos animalescos, desferindo os golpes que derrubaram um a um os mais treinados soldados. As espadas não sabiam onde mirar e os tiros eram arriscados demais. Finalmente, o último homem de sua tropa caíra ao chão.

O recente silêncio da tripulação era enlouquecedor.

— VOCÊ É O RESPONSÁVEL POR ISSO? — o capitão tentou pela última vez, a empunhadura da cimitarra tremelicando em sua mão, mas estava pronto para fincá-la naquele traidor se ele ousasse continuar com aquela alegria delirante. Contudo, antes que pudesse mover o braço, ou que Flint pudesse responder, o pirata sentiu-se envolvido por algo no peito e notou a foice meia-lua brilhando em seu pescoço. Ninguém a segurava. — Que porra de fruta você comeu? — murmurou. A voz havia perdido a força.

O cozinheiro respondeu, sem hesitar: — Nenhuma.

E então seu corpo parou de responder e a visão foi ao céu; imediatamente caindo para ver o chão imundo do seu convés. Teve tempo apenas de ver duas mãos azuis emergindo do ar ao seu lado antes de, para sempre, apagar.

— Morceguinho! Eu peguei para você! — disse Merin, radiante como nunca: havia jogado a nova foice no chão para pegar a cabeça decepada e agora olhava para Morgan, ignorando completamente a presença do cozinheiro. — É uma cabeça para você estudar!

— Me dá! Me dá! Eu quero por no meu quarto! — Poyo pediu.

Belka estalou o chicote no chão. — Você não tem o mínimo de empatia? É óbvio que não vamos levar essa merda para a Carniça! Como eu vou dormir com isso me olhando?

— E se ficar no meu quarto? — Morgan iniciou, ainda estava completamente puto com ela, mas não poderia negar que desejava muito estudar com afinco e nada melhor que peças reais para o auxiliarem. 

— Nem fodendo! — o cozinheiro tentou responder, sua mente não havia retornado completamente para o corpo, mas tinha sanidade o suficiente para impedir o médico de tamanha imbecilidade. — Se você levar isto eu vou te jogar para viver junto com os reis dos mar–

— EU O ENCONTREI! — Calíope berrou em plenos pulmões e em seu rosto um genuíno sorriso de satisfação brotava. Os olhos insanos esbugalharam-se e certamente poderiam sair de orbita a qualquer momento; uma imagem aterrorizante, em que toda e qualquer beleza fora extraída de seu corpo durante os poucos minutos que batalhavam para ser substituída apenas pelo sentimento tácito de vingança que a obrigava a mover os joelhos adiante. Havia algo em suas mãos, um objeto que todos pareceram reconhecer, entretanto somente o cozinheiro soube dar o verdadeiro peso para aquele ato. O caracol comunicador tinha a face obesa, com vagarosas rugas e marcada por uma característica rigidez, as sobrancelhas juntas em um único vinco e abaixo deles, os olhos que julgam e condenam. — ELE ESTÁ- 

As palavras foram retiradas e a eternidade abraçou o corpo da pirata. Em uma última onda de insanidade absoluta, o cozinheiro arrancou a faca que pendia sobre as mãos de Morgan com agressividade e, sem pensar duas vezes, cravou-a na testa de Calíope. Era o fim. 

— O QUE ESTÁ ACONTECENDO? ONDE ESTÁ O INÚTIL? — o bichinho gritava com uma terrível voz empostada, mal podia acompanhar a intensidade de seus gritos. — TRAGA IVAN AGORA-!

Com a musculatura tensa e movido pela irracionalidade, o homem se abaixou ao corpo, tomando o caracol das mãos sem vida, que ainda tencionavam os dedos para segurá-lo — estava quente. Insuportavelmente quente. Ignorou, precisava ignorar. Sentiu uma dor insuportável em sua cabeça, mas conseguiu conter a tontura e o impulso que lhe consumia; não deixaria que o ódio o comandasse. Não iria apagar mais; nunca mais.

— Ele está morto. — anunciou ao pé do comunicador, firme o quanto podia diante daquela respiração pesada. Não importavam as leis de sangue e as tradições tolas que regiam o mundo; a sobrevivência pertencerá sempre ao mais apto e para que Flint pudesse viver e sobretudo, ousadamente existir, Ivan deveria estar morto. Das cinzas do passado, amanhã renascerá, junto de sua capitã e seu bando.

Mas, por hoje, só desligou a ligação.

Seu cordão umbilical se rompeu, para sempre dessa vez. 


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