Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 2
East blue, Baleen Beach (Marine 153rn)


Notas iniciais do capítulo

Bom dia, tarde ou, quiça, boa noite, caros marujos!
Sou a entidade das notas, nem Denise e nem Gisela, apenas uma entidade. Nessa noite de quarta-feira, lhes presenteio com o primeiro capítulo, um gostinho do que será a jornada de nossos heróis.
Espero que gostem, ou não, as autoras que precisam de comentários. Sou apenas um comentarista, afinal. Desejo a todos os navegantes uma excelente leitura e uma boa viagem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/791492/chapter/2

 

  April não pensou muito antes de sair de casa aquela madrugada escura; sua maior qualidade sempre foi a iniciativa, não a inteligência. Acontece que, desde que percebeu que seu mundo inteiro não passava de uma fazendola quase vazia, explorar se tornou a prioridade de sua vida, e nada impediria uma criança arteira de seguir seus sonhos — nem mesmo o teto, ou o bom senso. Começou por baixo, indo além dos hectares de sua casa, mas logo isso deixou de ser o bastante para ela. Quanto mais avançava em suas expedições, mais descobria sobre os exteriores da terra dos pais e, com isso, sua vontade de ir mais longe só aumentava: desejava estar o mais alto o possível, onde pudesse encontrar a mais bela das visões e embaixo de si, diversos pescoços esticados, procurando o limite de toda a sua grandeza. Pequena o quanto fosse, tinha certeza de que era capaz de realizar façanhas grandiosas, se tentasse. Mas como poderia, se não arriscasse? Iria ao mundo para o tê-lo, porque a vida na fazenda não a comportava (e ainda dizem que os pequenos não ocupam espaço!). 

  No fim disso tudo, foi necessário apenas um pingo de coragem para juntar a trouxa pela primeira vez, planejando ir embora para sempre. Isso e mais umas oito tentativas frustradas por ser pega roubando os alimentos da despensa, mas essas não contavam de jeito nenhum. Quando saiu rumo a cidade, carregava na mochilinha algumas roupas leves, os alimentos já citados e o melhor par de botas da casa — uma vez que era a mais nova, os sapatos que de fato pertenciam a si não eram os da melhor qualidade —. Gritou a plenos pulmões um “Adeus” que nunca seria correspondido, talvez pelo horário, talvez porque não era essencial para a vida ali, nunca se importou realmente. Estava tudo bem! Somente sua infelicidade poderia florescer naquelas terras e o caminho de conquistas que almejava só poderia ser trilhado por ela mesma. Até um idiota saberia disso, ainda que a confirmação a fizesse chorar um pouquinho. 

   A estrada até a cidade foi árdua, principalmente para quem tem pernas tão curtas. Dormiu entre o mato e o chão de terra, às vezes torcendo para que ninguém a visse dessa forma, outras apenas implorando aos céus que fosse resgatada. Antes disso, nunca nem tinha imaginado como seria a vida nas ruas — como ninguém o faria, diga-se de passagem. Por mais temível que fosse a vida na fazenda de onde veio, tinha seus irmãos para ajudá-la, e os abraços quentes durante as noites no celeiro a faziam ter força para continuar existindo.  Sempre viveu um dia após o outro, se escondendo dos pais e comendo o que lhe davam de bandeja, bem longe do medo de não saber se vai durar mais um dia ou não. Aquele cenário estava bem longe da visão idealista que tinha de seu futuro. Estava com fome, doente e beirando a insanidade, a ponto de duvidar se estava ou não avisando uma cidade ao longe. Suas casas pareciam turvas, mas sem dúvida alguma podia ver figuras passeando pelas ruas. “Civilização, enfim!” pensou, e correu. Correu com suas últimas forças, cruzando os dedos para que sua maré de azar acabasse ali — e por acaso se tratava de azar? Adentrou de cabeça erguida, vestida de cordeiro e agindo como se fosse parte deles. Percebeu que uma ou outra conversa se interrompiam enquanto passava: mulheres bem vestidas trocavam olhares maldosos entre si, comentando sobre  suas roupas maltrapilhas e rosto imundo. Mesmo assim, isso não fora o bastante para impedi-la de andar. Precisava ser segura e sabia disso. 

Com os olhos atentos àquele novo mundo, viu desde vitrines cheias de jóias à vendinhas de artesanato. Pelo sol, ainda era cedo, mas já conseguia ver toda a vida que sempre almejou achar. Sorriu por pensar que, finalmente, não estaria mais sozinha e continuou pela rua principal, analisando as barraquinhas e lojas uma a uma até encontrar, por fim, a primeira que lhe chamou atenção: uma bancada com as mais variadas frutas e verduras, cheirosas e expostas pelas cores do arco-íris: do vermelho ao violeta. Salivou. Não havia nada no mundo que queria mais naquele momento. 

Num impulso incontrolável tentou apalpar uma das frutas, visto que a uns bons minutos comia-as com os olhos, entretanto antes que suas pequenas e calejadas mãos pudessem alcançar o tão inestimável alimento, fora cortada pela silhueta do vendedor, que entrou em sua frente, com uma face de puro desagrado pedindo-lhe uma determinada quantia de dinheiro. Sabia o que era dinheiro, afinal não esteve presa em uma caverna durante todos esses anos. Mas como poderia usá-lo se nunca aprendeu a contar além dos números de sua idade? E, principalmente, de que maneira os adultos da cidade conseguiam esse tal dinheiro? Era muito para sua cabeça processar. Nunca precisou disso antes; quando desejava algo, tratava na base da troca, tanto comida, quanto brinquedos. Tudo se resolvia de uma forma natural. Eventualmente brigas ocorriam, é claro, as “divergências” quanto aos valores nem sempre eram resolvidas só no diálogo. Entretanto, não haviam muitas opções, em uma região tão pequena guardar mágoas era o mesmo que atestar sua solidão. Desta forma, a pequena caipira não tinha nem ideia do que deveria ser feito naquele momento. O homem à sua frente não lhe passava confiança alguma e tinha certeza de que ele não estava interessado em trocar nada com ela  — não tinha nada valioso, mas ele não sabia deste fato, ou ao menos pensava dessa forma.  Olhou novamente as frutas, não pode evitar o impulso de torturar-se mais um pouco, a fome lhe apertava o estômago. Sinceramente, já podia sentir o gosto delas em seus lábios, fantasiando com a sensação de fartura de alimentar-se com uma mísera maçã que fosse. Um era o bastante naquele momento, e faria qualquer coisa para tê-la. Afinal, tinha outra escolha? Sentia-se cada vez menor em meio aquelas pessoas e se ao menos tivesse uma em suas mãos, poderia recompor suas forças e se tornar alguém melhor no dia seguinte. Sua única opção era a fuga, suas costas ardiam com tantos olhares e  pela primeira vez o peso do julgamento foi jogado sob si, todas as cartas estavam na mesa, para aqueles cidadãos sua presença era tão apreciada quanto a do mais sarnento cão e por isso deveria ir. 

Sob o julgamento do homem, que a secava etiquetando seus bens como se soubesse de todos os seus pecados (que, puxa, eram tantos! Tinha doze anos completos, já não era criança ingênua), April sabia exatamente o que fazer. Seu instinto de sobrevivência soava como um alarme, e retribuiu o olhar de escárnio com seus olhos vidrados pela fome, o intimidando mesmo sem querer. No minuto que o mais velho vacilou, agarrou a primeira fruta que conseguiu com suas mãozinhas com o mesmo cuidado e força que faria se agarrasse seu filhote  e fugiu. 

 Correu como se não houvesse amanhã, tornou a cidade um vulto perante seus olhos, suas pernas não pararam até que seus pulmões exigissem descanso e quando finalmente aceitou que não poderia continuar sua fuga, parou Estava consideravelmente distante, de volta ao mato e longe dos julgamentos cortantes de antes. Titubeou em baixo da primeira árvore que encontrou, apoiando-se com umas das mãos enquanto com a outra apreciava seu mais precioso bem: uma maçã vermelha, um pouco amassada pela força que apertou, mas ainda belíssima. Os olhos marejaram e se saciou como nunca fizera antes. Sentiu-se como o capitão das histórias fantásticas ao achar uma cidade inteira de ouro, naquele momento a grama era o convés de seu navio, a árvore sustentava as velas e o horizonte brilhava diante de si, chamando para mais uma aventura. Pode-se permitir sonhar e o desejo da tão longínqua infância voltou para si como uma esperança: era uma pirata e havia conquistado seu primeiro tesouro. 

 Agora entendia o desespero de seus familiares com a cidade, o medo e as histórias que contavam, o lugar realmente não era dos melhores. Não cheirava bem como a fazenda e parecia claustrofóbico com tantas pessoas e casas amontoadas, aquele lugar jamais teria a imensurável beleza do campo, mas já era melhor do que viver enclausurada pelas cercas dos seus pais.  Almejava por mais que aquilo, é verdade, porém podia ser paciente. Sabia que teria de aprender a se virar para crescer como uma temível criminosa, começaria por baixo mais uma vez e, assim como no dia que saiu de casa, iria além para buscar seus sonhos. 


≈≈≈

   O tempo passou, e as frutas ensinaram a April a melhor forma de sobreviver na cidade grande: com suas mãos leves. Os vendedores das feiras já a conheciam de rosto, mas quem disse que ela o mostraria tão facilmente? Aprendeu a ser sorrateira, rastejando com os ratos durante a noite para roubar o que conseguia. As verduras se tornaram roupas, depois jóias e outros objetos de mais valor. Sabia reconhecer cada som na cidade e notar se estava sendo vigiada ou não  — todavia, o tempo e a experiência a fizeram confiante e logo nem isso era o bastante para pará-la. Sentia-se parte do ecossistema, como um bicho da região. De vez em quando trocava olhares com as meninas de sua idade e a expressão destas rapidamente fechava pelo medo; verdadeiramente temiam a garota. Era falada por todos, como uma lenda local. Teria sido essa a sensação que Roger, o rei dos piratas, sentiu quando teve seu primeiro cartaz de procurado? Euforia. Felicidade. O caminho parecia se abrir finalmente para si. 

Mas… havia algo de errado com tudo aquilo. 

De repente o silêncio da noite parecia mais barulhento. Muitas vezes parecia um farfalhar desordenado entre as folhas, outras um passo um pouquinho — e só um pouquinho — dessincronizado com seu próprio andar. Era sutil, mas não imperceptível. Apesar de se manter atenta às movimentações, talvez fosse alguma das suas vítimas tentando se vingar, poderia lidar com isso com facilidade, se este fosse o caso. Estava insegura, mas ainda não desesperada. Afinal, era rápida e ágil, nenhum civil normal poderia alcançá-la (havia observado os moradores da cidade por algum tempo agora). No entanto, o que mais a incomodava era a possibilidade de não se tratar de um qualquer… Por que estaria sendo perseguida, numa cidade tão pequena? Não era tão conhecida assim, tampouco procurada. Teria alguém a denunciado por seus crimes? E, se fosse o caso, a marinha se importaria com uma ladrazinha numa cidade tão pequena? Improvável. Quem quer que fosse, estava atrás de si por outros motivos, e não saber sobre o que se tratava estava a corroendo por dentro. Porque, no fim das contas, não era uma menina tão inteligente assim. Na verdade, não existia um único momento que a palavra “inteligente” aparecia na mesma frase que seu nome sem ser antecedida por um imenso “NÃO É”.

Criada com isso desde sempre, tinha total conhecimento que não saberia como resolver aquela situação sem prejuízo. E, no entanto, não queria perder nada do que havia conquistado. Se manteve cautelosa, olhando por trás do ombro  volte e meia e prestando atenção a cada passo que dava, decidida a flagrar quem quer que estivesse atrás de si. Entre os becos da cidade, foi cortando por caminhos que só ela conhecia, tentando despistar o sujeito estranho… Mas nada aconteceu. Os passos continuaram a vir, cada vez mais perto, quase debochando de seu esforço para fazê-lo se perder. Quando chegou no décimo beco sem saída, April perdeu a paciência e, sem se virar, gritou, no tom mais intimidador que conseguiu forçar: 

— Quem é? — bradou a plenos pulmões, sentindo um ardor em suas cordas vocais. Tentou ao máximo não vacilar em suas palavras. — Quem está aí? Responda de uma vez — retornou a gritar, não sabia para onde direcionar seus apelos.

O som dos passos cessou, por um momento acreditou que havia sido deixada em paz, ou que havia afugentado seu inimigo. Ledo engano, dentre as folhagens e arbustos uma figura, realmente muito menor do que jamais imaginaria ser possível —  tendo em vista que sempre se viu como a mais baixa plebe da cidade —, seu adversário estava ali, de olhos brilhantes a encarando com desdém. Diante a si, sorria com os caninos afiados, um verdadeiro afronte para a menininha. Um gato. Selvagem como nunca havia visto antes, mas de pé sobre as duas patas traseiras, imitando a postura da mais rica e elegante dama. Sua feição mesclava o felino comum, de bigodes e esnobe, porém com um sombrio escárnio que apenas um humano poderia alcançar. Parecia gente. Era gente. Em todos os aspectos. April cambaleou para trás atordoada. 

— O gato mordeu sua língua, bonitinha? — diz a figura humanoide, numa voz melódica e feminina, enquanto lambia a pata da frente. Com o espanto da menininha, deu um passo à frente e completou com uma singela e infame piscadela, apenas para mostrar que estava no comando da situação.  

Podia ter pouco mais de meio metro, mas sua atitude lhe dava ao menos outros dois. Parecia gigantesca comparada a ladra. Entre a meia luz, sua pelagem brilhava cor-de-rosa — nada natural para um simples gato. Se tratava de um monstro, sem dúvida alguma. Apesar do porte refinado, que era humano com certeza, não havia nenhuma chance daquilo ser natural. A cabeça era grande demais, equilibrada em um corpinho infantil que não podia aguentar todo o peso; e os olhos, ah! Nunca poderia descrever como eram realmente. Ocupavam um espaço imenso da face, com a íris fosforescente mesmo na luz da noite. Suas pupilas, contraídas, sinalizavam a vinda do bote aterrador. April se encolheu em si mesma, futilmente buscando uma proteção contra aquela coisa tão surreal. Por sua vez, a gata, muito confiante, volta a falar:  

— Se não tem nada a dizer, deixe-me tomar as rédeas desta conversa: quero que vá embora desta cidade. — ditou severa, a analisando dos pés a cabeça. A menina não pode responder pois estava paralisada diante de tamanha imponência. — Se me obedecer sem reclamar, estará segura na próxima noite, e nunca mais tornará a me ver. — terminou com um riso de deboche. 

— Eu… — April gaguejou, seus olhos enchendo de lágrimas. — não posso ir embora, essa cidade é tudo que tenho! — forçou firmeza. 

— Não é. — a gata respondeu  de imediato. — Você veio de fora, eu sei. Pode sair daqui e procurar outra cidade para roubar. Mas, aqui, você não tem espaço. 

April engoliu seco, mas não vacilou dessa vez: 

— E por quê? — demandou. Se estava sendo expulsa, ao menos exigiria o motivo para tamanha grosseria. — Você não pode se adaptar, se tiver uma concorrente? 

Mas que menina abusada! A gata “tsc”ou, fechando os olhos em desaprovação. Antes mesmo que a ladrazinha pudesse reagir, já estava pulando para cima dela com as garras armadas, a derrubando no chão num só impulso. April se debateu, gritando por ajuda — mas no fundo sabia que ninguém viria para ela: não era bem vinda ali. Quando percebeu, estava caída no chão e com o céu noturno sendo tomado pela figura escura: a cabeça cobriu a realidade e, vista de baixo para cima, já não tinha mais nenhuma iluminação senão os faróis gigantescos apontados para si, a cegando com sua fosforescência azulada e perversa. Nada em volta deles tinha luz ou forma; a figura de um gato se transfigurou para um vulto deforme feito pelas sombras da noite. Fechou os olhos, com medo. Sentia o pescoço arder pelas unhas enrijecidas roçando a carótida, prontas para cortá-la. Mesmo não sendo inteligente, tinha noção de que aquilo seria seu fim. Um corte e nunca mais teria chance de realizar seus sonhos… Tinha sua vida na mão daquela fera. 

O medo estava decorando a face da menina, era óbvio para a gata que a situação estava a seu favor, tinha-a na palma de sua mão. Ou, ao menos era o que pensava. Ainda suando frio, mas agora com os olhos abertos, April abre um sorriso sacana: — Faça o que quiser, não irei embora! — ditou a queima-roupa, sua atitude havia mudado, não parecia mais a mesma humana de poucos segundos atrás, os olhos antes cerrados tinham um ofuscante brilho, a luz daqueles que não temem a morte. A gata hesitou em executá-la. 

— Mas que coisa — a gata suspirou rendida, desta forma não tinha graça. Saiu de cima da menina. — Não me darei o trabalho de matar alguém que, hora ou outra, vai acabar caindo por aí por imprudência. Ao menos posso saber seu nome, para procurá-la nos obituários locais?

— Não precisa ser nos obituários, verá meu nome na capa dos jornais no dia que for executada! — respondeu confiante. De fato não temia a morte, mas almejava por algo grandioso. — Serei capitã de um navio pirata, Poyo é o meu nome! 

Se fosse perguntada, não saberia dizer o porquê da mentira. Desde que nascera fora April e agora, sem mais nem menos, assumiu outra forma, como se sua identidade antiga tivesse sido morta no momento que foi derrubada pela fera e, agora, tivesse renascido como outra pessoa. Uma capitã temível, é claro. Era seu espírito aventureiro tomando conta. Pouco importavam as ameaças, estava crescendo naquela cidade, porém quanto mais se acostumava com aquele mundo, mais distante se encontrava seu sonho. Precisava voltar para a estrada, voltar para o mundo. 

— Bem, se não se importar, Senhora Gata, tenho um mundo para explorar. Está cidade será toda sua, sinto que esse pedaço de terra lhe seja o suficiente. — Completou, se levantando e ajeitando as roupas (como se tirar o pó do chão a deixasse menos imunda.). Olhou de cima, com a feição de quem havia virado o jogo. — Adeus, gatuna. 

E se foi, deixando a gata rosa caída no chão, a vendo desaparecer rápido pelos becos até não sobrar mais nada que provasse sua arrogância ao dizer tais palavras. Derrotada por uma pirralha qualquer. Em toda sua vida (ao menos na primeira das sete), nunca havia sofrido tamanha humilhação. Ficou no chão, pensando sobre o que havia ouvido e nas promessas de alguém tão jovem — e ingênua, de certa forma. Pensou sobre quem havia sido a anos atrás: uma menina também, cheia de sonhos e sem nem saber o significado da palavra “amargura”. Em que momento havia deixado seus desejos escorrer pelo ralo? É verdade que o mundo não havia sido bom consigo, desde que, na infância, fora obrigada a se tornar o monstro que era hoje. Mas isso não era o bastante para parar ninguém. Ainda vivia. Respirava pelos próprios pulmões. Quem quer que fosse o desgraçado que havia lhe tirado a beleza e felicidade dos anos passados, não havia a tomado para uma vida inteira. Não poderia dar esse gostinho a eles, deveria ser feliz, com toda certeza! Era óbvio, se amargurar, definhar em arrependimentos e melancolias, nada disso a tiraria do lugar. Precisava reagir, e o faria. Havia uma nova perspectiva em si, algo dentro de si estava ridiculamente mudado. Talvez, não conseguiria assumir, mas com toda certeza a pirralha não foi a única a renascer naquela noite. 

≈≈≈

Em outro canto da cidade, na região portuária, os murmurinhos eram altos e constantes, uma nova ladra infernizava os comerciantes locais. Frutas, quantias relativas de dinheiro e jóias de uma semana para a outra começaram a “magicamente” desaparecer dos cestos e bolsos, contudo não tinham ideia de quem tivesse feito. Seja lá quem fosse, não seria pego de jeito nenhum, pois, por acaso, uma menininha loira se aprontava para ir embora com uma grande quantidade de objetos de procedência duvidosa enfiadas em sua bolsa, desamarrando um barquinho de madeira sofrido na última doca do cais. Não era nem de longe o melhor, muito menos o que desejava possuir para desbravar os cinco mares, entretanto era paciente; o futuro lhe traria algo melhor, não tinha dúvidas quanto a isso! E, mesmo se não trouxesse, ela era dona de seu futuro. Se o mundo não fosse gentil,  arranjaria um na força, apenas para mostrar seu devido valor a seja lá quem estivesse testando sua força de vontade!

Com tudo a postos, instalou uma vela remendada no mastro, esticando-se sobre os pézinhos para alcançar a parte superior. O barco se mexeu um pouquinho, indo em direção ao horizonte, foi o suficiente para fazê-la relaxar e observar seu novo mundo: o céu estava limpo, velejava devagar mas tinha esperança que o vento forte viria em breve. Sentou-se na banqueta embutida no centro do navio e esperou. 

E esperou mais um pouco... 

Um pouco mais...

E, por fim, esperou ainda mais. 

Não havia sequer uma brisa naquele dia. O topo das árvores estava imóvel, tal como as folhas, flores e até as minúsculas gramíneas.

 — Não é possível! — esbravejou. — Como pode, um dia sem vento algum?  Eu estou no mar! Deveria ter ao menos um pouco de vento, como posso ser tão azarada? — lamentou-se, os deuses, definitivamente não estavam de seu lado. 

— Com problemas, exímia Capitã? — uma voz melódica debochou de si. 

— O que acha? — Poyo respondeu brava, mas não havia ligado os pontos ainda. Não estava em alto mar...? Quero dizer, ainda via a cidade ao longe, mas não estava mais grudada ao porto. Como uma voz teria vindo de tão perto? Se virou bruscamente, deparando-se com um velho pano se mexendo atrás de si. De onde veio isso?!  Tinha certeza que embarcou sozinha! 

E o pano se mexeu outra vez. A capitã se amaldiçoou por não ter checado algo assim antes. Mas, como fora dito várias vezes por todos, lhe faltava cérebro. 

— Estou logo aqui, capitãzinha — a voz novamente se fez presente, Poyo desconfiada olhou para todas as direções antes de seguir a voz, não poderia ser feita de tola novamente (não que girar igual uma tonta fosse um grande motivo de orgulho)  — Vai rodar para todo lado feito peão antes de ir pro óbvio? Você é, de fato, uma menina muito complicada. — riu em deboche, cobrindo a boca com uma pata. Pata?!

— O que faz aqui?! — Gritou surpresa ao encarar sua até então maior inimiga, a monstruosa felina da antiga cidade. Por que ela estava ali? Não fazia sentido, havia feito o que ela desejava: deixou a preciosa cidade. 

— O que acha? Não se pode ser capitã se não tiver alguém na tripulação, certo? Pois bem, serei sua imediata e não aceito não como resposta! — Sorriu doce para a menina, sentiu-se vingada. — A propósito, sou Belka. — ergueu as pontas da saia de marinheira em uma reverência, demonstrando uma educação no mínimo curiosa. 

E assim se deu o começo daquela tripulação tão… peculiar. Iniciou-se ali uma nova jornada.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Aqui poderia ter um spoiler do próximo capitulo, mas não tem. Lide com isso, a vida não é justa.
Como minha função exige, peço a todos os leitores (Olá, existem leitores aqui?) que comentem, expressem suas opiniões, já que as autoras são carentes de aceitação, duas fracas. Acrescentem suas criticas e expectativas, palpites sobre o próximo membro a ser apresentado, este é um espaço com poucos julgamentos.
Creio que já fiz mais do que o necessário por aqui, me despeço e até a próxima.

Sou a entidade das notas e espero não ser necessário aqui no próximo capitulo.
Adeus!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Prisão de Gato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.