Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 3
East blue, Eel Tongue (Marine 153rd)


Notas iniciais do capítulo

Ora, ora quem está de volta? Isto mesmo, a entidade das notas (minhas rima são podres, lidem com isso)! Após uma curta espera, para minha infelicidade, aqui está a nova página deste infortúnio que chamam de história.
Não lhes direi que estou esperando reações positivas desta vez, uma vez que sequer as recebi anteriormente, saibam que a falta de comentários é descontada do meu salário, monstros. Por fim, aos navegantes desejo uma excelente leitura e uma boa viagem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/791492/chapter/3

Velejar pelos mares, assim como tantas outras decepções em sua vida, não era nem um pouco como imaginava. Poyo já havia aceitado o barco pequeno, a gata falante que lhe dava ordens sobre como racionar a comida e bebida para que durasse mais, e até podia tolerar o fato das ondas invadirem seus sonhos — pois toda vez que fechava os olhos para dormir, a água espirrava por cima de si e a afogava —, mas aquele tédio era demais para suportar. Mesmo com a grandessíssima idade de treze anos completos, ela, uma adulta formada (pensava que era), tinha um limite de quanto tempo poderia ficar à deriva sem ter o que fazer. Oscilava em observar as nuvens pela tarde e contar as estrelas durante à noite, pedindo de mãos juntas para que sua companheira de viagem parasse com as mil e uma groselhas sobre qualquer assunto que ela não tinha o mínimo interesse de ouvir. Se estivesse sozinha, talvez, não fosse tão chato, pensava. 

No entanto, sabia bem no fundo que estava errada. Embora fosse uma dupla muito oposta — Belka tinha gostos refinados e uma eterna paixão pela graça e a feminilidade, bem diferente de uma pirralha que nem sabia comer de boca fechada, muito menos o que era um “estojo de maquiagem” —, entre os poucos momentos que os monólogos se tornavam conversas, até tentavam achar assuntos em comum: moda e bebidas não serviam, lutas de espadas e histórias de pistolas tampouco. Houve também o momento que a capitã tentou inquirir sobre o passado da felina, porém não deu frutos e logo percebeu que esse assunto não deveria ser tratado por agora. Com tudo isso fora de questão, não restava muito senão o que as uniu naquele momento: o amor pela pirataria. E que vasto assunto esse! Aos pouquinhos iam construindo uma cumplicidade, falando sobre seus crimes e o quanto admiravam a vida dos sem-leis, almejando para si tamanha liberdade. 

As transgressões e delitos sempre estiveram na vida de ambas. Decerto não podiam ser comparadas; a idade pesava muito quando se tratava de assuntos desse cunho, porque, de modo geral, crianças não são tão maquiavélicas assim na hora de cometer suas pequenas infrações. Ainda assim, estar predisposto a criminalidade já é meio caminho andado para quem quer ser pirata e ao menos nisso concordavam. A moral não serviria para outra coisa senão afundar o navio nessa vida futura. Se, por acaso, o mundo tivesse poupado o mínimo de ética nelas, tinham completa noção de que era a hora de se livrar daqueles empecilhos. 

— Apesar de que mesmo os piratas tem seus princípios, eu sei... — Belka divagou em voz alta. Não esperava por uma resposta de Poyo porque acreditava firmemente que esta não tinha ideia do que eram princípios. 

— O que vale é a palavra do capitão — A menininha diz, sábia e de nariz sujo, como se recitasse o óbvio: — Quero dizer, se o capitão julga certo roubar dos moribundos, não cabe a ninguém contestá-lo. É por isso que só se jura lealdade àqueles que se concorda completamente, dando-lhe o direito de decidir seu dogma daqui em diante. Renegar os preceitos a partir de então é uma falha sua. 

A gata arqueou uma sobrancelha. 

— E quais são os seus princípios, se é que posso saber? — perguntou ressabiada. Não parecia certo ver aquela criança tão séria. 

— Não tenho. Nenhunzinho. 

— Como assim? Há pouco parecia tão certa de tudo! Não é possível que não tenha pensado sobre isso antes.

— Não posso dizer que tenho se não sei o que é. — Poyo piscou um olho, pondo a língua de fora em uma careta de deboche logo em seguida, por mais que não houvesse o mínimo de falsidade em sua frase. Não sabia de fato o que eram. Nunca soube de nada. Contudo, havia esse lapso de informações que aprendera nos contos “piráticos”, os chamava assim, que, de vez em quando, escapuliam sem pensar, como uma sapiência encastoada e escondida em seu âmago. — As ondas varrem tudo, e muitas vezes os significados vão com elas! É por isso que eu não guardo muita coisa. Estou me deixando fluir junto com o mar. 

Sem poder se conter, Belka dá uma alta gargalhada, a examinando de cima à baixo (já o fizera tantas vezes que poderia ser considerado um ritual). Não podia crer no que ouvia, e era necessário confirmar se estava falando com alguém de verdade. Aquela garota parecia surreal demais para ser verdadeira. Os cabelos, tão loirinhos, refletiam a luz do sol e os olhos espelhavam um universo de possibilidades para um futuro brilhante: podia ter sofrido em suas mãos há não muito tempo, mas via no sorriso inocente que não carregava mágoa daquela noite. Como podia ser tão otimista? Depois de tudo que passou para sobreviver — a observou por tempo suficiente para vê-la sendo marginalizada e roubando (da sua área, diga-se de passagem) para se alimentar —, seria natural desenvolver alguns receios de se envolver com alguém. Era esperado o mínimo de desconfiança! Todavia não era esse o caso, e essa boa vontade diante do mundo a tornava encantadora. A ponto de, inclusive, a gata nem perceber a costa se aproximando de tão fascinada que estava. Foi só quando Poyo berrou em seu ouvido um “TERRA À VISTA!” tão alto que o East Blue inteiro deve ter ouvido que despertou desse estado contemplativo, quase caindo para fora do barco pelo susto.  

— Finalmente um pouco de diversão! Vamos atracar, Belkinha, se prepare! — exclamou a garotinha, sorrindo com todos os dentes. Era notável o quanto o marasmo afetava a tão escassa capacidade cerebral dela: estava sedenta por aventuras, e um barco melhor, pois tinha certeza que a gata não se sujeitaria a andar naquela “carniça”, como insistia em chamar, por mais tempo que o necessário (e o “necessário” acabaria agora, aliás). 

— Certo, certo! Não precisa rugir no meu ouvido! — A gata reclama, mas Poyo não se dá o trabalho de dar de ombros, pois estava completamente vidrada na baía que se formava perto do horizonte. 

A medida que se aproximavam da praia, algumas casinhas e edifícios que se espalhavam numa área elevada em relação a areia iam se tornando cada vez mais visíveis. Para a felicidade da capitã, aquele definitivamente não parecia ser um lugar remoto; além de que a extensão da ilha por si só era bem maior que a visão periférica. Um bom sinal, certo? Teriam um lugar imenso para explorar, além de muita gente para conhecer e, possivelmente, roubar — chegar em uma cidade nova, onde não se tem fama alguma, é um prato cheio para ladras como elas. Entretanto, a imediata parecia bem mais apreensiva que animada com a ideia de aportar. Pendurada sobre a borda do barquinho, só tinha olhos para o porto, que era bem maior e mais bem-estruturado que o comum naquela região. Era, certamente, uma cidade voltada à pesca. Confirmando essa hipótese, havia na areia vários barcos pesqueiros abicados, alguns amarrados em árvores, outros só jogados por ali mesmo. Mas não havia nenhum no mar. Nem sequer uma rede estendida. “Onde diabos estão os pescadores?”, pensou. 

Ao atracarem, observaram os arredores, em busca de alguém: não havia uma alma sequer. Belka instantaneamente sentiu um arrepio passar por toda a espinha, até a ponta da cauda, algo ruim estava por acontecer. Ia indicar a capitã sobre seu pressentimento, e sobre o quão importante era aquilo (nunca falhara antes), contudo, fora interrompida bem antes de fazê-lo por gritos eufóricos e passinhos apressados. Mal teve tempo de olhar, Poyo já corria em direção a cidade, sem ao menos considerar os perigos que poderia encontrar. Era inevitável, viajava com uma inconsequente e nada poderia ser feito quanto a isso (além de alguns puxões de orelha). Restava a gata torcer pelo bem estar da menina e seguir com suas obrigações: garantir a sobrevivência de ambas tanto no mar quanto em terra firme. Como primeiro passo do protocolo (deveria realmente começar a pensar em um), decidiu seguir as pegadas deixadas pelas botas na areia, e depois mais alguns punhados que vieram junto da praia para a calçada. Todavia, infelizmente era só isso tinha; depois da primeira curva, a desgraçada da pirralha já tinha sumido no mundo e, rápida como era, não deu nem tempo de deixar um rastro para seguir. Bastou um único segundo de distração. Belka suspirou de cansaço, sabendo que teria de caçá-la por aí mesmo que sem rumo. Entretanto, de nada valia sair por aí como cego em tiroteio sem ter para onde voltar depois, por isso, seu segundo passo foi retornar ao barco a fim de amarrá-lo à algum lugar (qualquer lugar!). 

Quando chegou mais uma vez em frente a infernal carniça, não pode deixar de lamentar. Era de longe o pior dos barcos: pequeno, fétido e extremamente castigado pelo tempo. “Eu deveria estar alucinando no momento que me coloquei nisso”, pensou e em sua face era nítido o desagrado. Teria de arrumar um barco melhor e teria de fazê-lo para hoje. Um segundo a mais espelunca seria o suficiente para surtar. No entanto, por mais prioritário que isso fosse, precisavam muito mais de suprimentos para seguir viagem (descobriu que a pirralha, uma vez entediada, passava a comer por ao menos três homens adultos), além de alguns medicamentos essenciais e, por último, mas não menos estressante, deveria encontrar sua queridinha capitã. Olhou o horizonte (nem mesmo aquele magnífico céu melhoraria seu humor) e suspirando com pesar ajeitou graciosamente sua saia: era hora de colocar as patas para trabalhar. 

≈≈≈

Já bem longe dali, a razão de tantos aborrecimentos corria pelas ruas desconhecidas como se não houvesse amanhã atrás do som das vozes, que a cada passo se tornavam mais audíveis e, de certa forma, animadoras — ao menos eram animadoras para ela. Aquelas juras de morte, pragas rogadas no mais alto tom e gritos de terror só poderiam ser destinadas a uma classe: os piratas. E se havia um pirata naquela cidade, era sua obrigação como capitã encontrá-lo e propor um desafio! …Ou uma dose de cachaça, não lembrava ao certo o que os contos ensinavam. De qualquer forma, seguir as regras exatas não era nem um pouco importante! Por hora, a emoção de encontrar um legítimo criminoso diante de seus olhos era o suficiente para si. Tomou o caminho que julgou ser o mais rápido, esmagando-se em quase todos os becos e cantinhos apertados que encontrava pela frente (não teve muito tempo para pensar se aquilo era ou não a melhor estratégia). A gritaria ia se intensificando a cada passo que dava e como a pequena luz que surge no fim do túnel, ela apareceu: a muvuca enfurecida.  Ainda não tinha noção do que a causava (mesmo fantasiando as mais diversas opções, como dúzias de piratas grandiosos à paisana ou até mesmo uma inesquecível execução), mas o que quer que fosse, estava lhe causando maravilhosos arrepios de ansiedade e excitação. Queria fazer parte daquilo. 

 Como um raio atravessou dois marinheiros, que não pareciam estar com toda a atenção voltada ao trabalho, uma vez que a pirralha passou completamente despercebida. Inclusive, nem ela notou de quem se tratava — não que perceber a presença da marinha fosse impedir de ir atrás de seus sonhos —, de tão rápida que estava. Em uma corrida eufórica, empurrou quem quer que estivesse à sua frente, tentando chegar ao centro daquela multidão barulhenta e ver quem era o pobre coitado que recebia tamanha hostilidade. Após muitos esbarros e xingamentos, enfim pode avistar no centro da praça um homem a alguns poucos metros de distância, preso com as mãos e cabeça na berlinda enquanto recebia o (talvez merecido) linchamento popular. Estava sozinho no centro: seus carrascos o observavam de longe entre os becos, parte para evitar que alguém viesse tentar salvá-lo e outra para não serem atingidos por nada. Os cidadãos, por outro lado, circundavam o homem numa meia lua, jogando pedras a frutas para cima deste, por mais que não tivessem coragem de ir mais perto. Era ele, seu estimado pirata! E mesmo que não tivesse a imagem que desejava (forte, imponente, de sorriso confiante no rosto e com um característico chapéu), estava certa de que estava olhando para um malfeitor genuíno, que com certeza deveria ter algo para contar sobre suas aventuras e infortúnios no mar. Em transe, aproveitou que todos estavam distantes e correu em direção ao criminoso, sem ao menos perceber os olhares de indignação dos cidadãos comuns; seus olhinhos estavam hipnotizados na figura loira, agora a centímetros de si. O homem não a encarou em primeiro momento, estava ajoelhado, seu rosto direcionado para o chão, melancólico e derrotado, sem a menor intenção de fuga. Tinha nos olhos baixos um espírito de pura aceitação, como se estivesse cansado de fugir por aí sem rumo — não que isso tivesse passado na cabeça da garotinha; só conseguia pensar que estava diante de um herói de guerra. Completamente entusiasmada e sem noção alguma das consequências que isso poderia lhe causar, urrou em uma única puxada de ar:

— VOCÊ É UM PIRATA DE VERDADE? — O homem então notou a presença da pirralha.  — Qual sua tripulação? Qual é sua recompensa? — como não recebeu uma resposta, pensou que estava fazendo perguntas bobas demais para ter a atenção que desejava. Pensou por uns dois segundos antes de novamente se direcionar ao desconhecido: — Qual é a sensação de estar aí, Sr. Pirata? Você tem um último desejo?

— Eu… —  a voz do desconhecido vacilou. Não entendeu ao certo o que aquela pergunta queria dizer. Seria uma ameaça? Um deboche? O que quer que fosse, lhe despertou um súbito interesse, pois ninguém no mundo já havia se dado o trabalho de caçoar ou ameaçar de si; normalmente nem o viam como ser humano. Decidiu externalizar um pedido qualquer: — Gostaria de um cigarro, poderia acender para mim? Tenho uma caixa no bolso esquerdo da minha calça e, no direito, um isqueiro. 

A menininha pareceu confusa na hora, mas resolveu cumprir o desejo. Foi desajeitada até a parte de trás do tronco, metendo as duas mãos nos bolsos traseiros para tirar os ditos objetos. Com eles em mãos, colocou, sem muita delicadeza, um cigarro na boca do indivíduo, que sorriu em agradecimento. Em seguida, após uma ou duas tentativas de acender o instrumento e um longo segundo de admiração em ver faísca se tornando chama, o acendeu, passando a encará-lo enquanto saboreava a nicotina. Estava vidrada com visão daquele homem tão gigantesco empoleirado sobre a madeira, como um animal. Apreciava a visão do cigarro diminuindo com as mãos alinhadas ao corpo, na tentativa de se demonstrar respeitosa àquele tão temível pirata (já havia criado mil e uma histórias na sua cabeça sobre suas aventuras e o porquê de ser tão cabisbaixo e mal-encarado). Não podendo se manter quieta por muito tempo, ela anuncia: 

— Me chamo Poyo, sou a capitã de um navio pirata! — a menina sorriu com todos os dentes. Não havia sido perguntada, mas fazia questão de frisar sua posição de capitã a todos que conhecia (e principalmente para alguém da mesma casta, já que supunha se tratar do mais terrível capitão a sua frente).

— Poyo, é? — ele diz após uma longa tragada. Não se importou em responder as perguntas anteriores, mas, ainda que não soubesse como dizer, em seu rosto havia um pequeno sorriso de gratidão pela atenção que recebia. — Nunca ouvi um nome desses. 

— É porque sou única! — respondeu prontamente, o interrompendo. — Não quero ser confundida com ninguém porque estou trabalhando para fazer história! 

— Então você deseja encontrar o One Piece? — perguntou com um riso contido, abafado pelo cigarro ainda na boca. Já imaginava a resposta que receberia, era apenas mais uma criança sonhadora. 

— Não exatamente. Quero dizer, para que eu iria querer ser Rei dos Piratas se já existiu um? Não quero ser a segunda de nada! Não te falei que quero fazer história? Serei primeira e única em alguma coisa, ainda não decidi o que, mas serei.   

O homem não conseguiu segurar o riso e gargalhou sem medo pela primeira vez em anos. Uma força incrível surgiu em si depois de ouvir as proclamações e, com ela, uma estranha vontade de viver para ver onde aquela menininha queria chegar. Levantou-se e disse: — Você disse ser capitã de um bando?

A menina assentiu nervosamente com a cabeça, as íris estaladas encarando a figura curvada pelo peso da berlinda que não fora retirada em momento algum, apesar de agora estar de pé. A multidão também ficou em silêncio com a visão. Todo o ódio antes despejado sem medo das consequências foi substituído por uma quietude mórbida, temendo o próximo passo do homem, outrora tão inofensivo, agora de pé e carregando aquela imensa estrutura nas costas e coluna sem aparentar dificuldade. Além do mais, estava a sua frente uma criança qualquer. Não ouviram a conversa, alguns sequer haviam notado a presença dela até aquele momento, mas naquele momento receavam vê-la massacrada pelo pirata — não necessariamente por pena, e sim por temerem ser os próximos. Finalmente, os marinheiros dos arredores começaram a agir. 

— Me aceite como parte de seu bando. — o homem pediu, sem abaixar a cabeça mas com certo tom de pressa na voz, provavelmente ansioso pela movimentação dos homens da lei. — Deixe-me ir embora como seu subordinado!

O tempo pareceu se atrasar depois do soar daquelas palavras. Poyo olhou para o homem, incrédula; não podia nem por um minuto acreditar no que havia sido dito. Ele queria se juntar ao seu bando? Por quê? O que um capitão experiente iria querer fazer como seu subordinado? Sabia que era promissora, mas não tanto assim! Parecia uma cilada, e deveria ser! Não podia de jeito nenhum aceitar essa proposta. Porém, antes que pudesse falar qualquer coisa para ele, viu pela visão periférica um dos soldados da marinha se aproximando com uma espada bastarda, pronto para atacar. Não teria tempo de desviar, já estava perto demais. Ia ser pega de surpresa porque estava concentrada demais no pirata. Tchau, tchau, gatuna nanica! É o fim da era que nem comecei. Sentiu a lâmina gelada lacerando seu braço esquerdo em um corte diagonal, vindo do fim da escápula até a altura do peito. Entretanto, a dor não parecia tão ruim quanto a repentina sensação de desequilíbrio. Quando se deu por conta, estava caindo para trás por conta de um peso descomunal: o condenado havia a empurrado para o chão com o peso do próprio corpo, desviando o ataque para a madeira da berlinda invés de seu braço. 

O arranhão podia doer, mas estava viva. Graças àquele homem. O tempo voltou ao normal. 

Com o impacto, a espada conseguiu atravessar alguns centímetros da espessa estrutura, mas não teve força o suficiente para fazer o caminho de volta. O loiro aproveitou a surpresa do soldado em ver sua espada presa a madeira para impulsionar seu corpo a direita, jogando-o para o lado. A força era tamanha que não pode aguentar segurar a bainha: caiu de joelhos no chão. 

— Vamos embora daqui! — Poyo gritou, levantando-se rapidamente do chão e agarrando a roupa de seu salvador com as mãozinhas ligeiras. O puxou junto consigo antes que ele respondesse. 

Saíram os dois correndo pela multidão paralisada: não conseguiam se mexer por causa do choque de presenciar um soldado treinado ser derrubado por um prisioneiro (literalmente). Aqueles que ficaram no caminho foram atropelados pela berlinda-desenfreada que era guiada por uma menininha de treze anos. Foram em frente, de beco em beco — dessa vez só aqueles que o homem conseguia passar —, tentando futilmente evitar seus perseguidores, mas não tinha jeito: onde quer que virassem, eles continuavam logo atrás. Isso quando não os encontravam na frente, quando sem querer davam a volta e paravam no mesmo lugar onde começaram. Era o problema de sair correndo por aí sem conhecer a cidade… 

 Em meio ao caminho tortuoso, os olhinhos de Poyo tornaram a ver uma figura familiar: o vulto da tripulante felina. Rezou para sua imagem passar despercebida, contudo em sua atual situação não haveria disfarce para o gigante que a seguia. Isso sem contar que não havia nada mais chamativo que o pedaço de madeira em suas costas! Ou pelo menos pensava. 

 Ledo engano. Quando os olhos de Belka se encontraram com os de sua capitã, o fato do homem estar carregando uma prisão enquanto corria era, por mais estranho que seja dizer, a característica menos chamativa nele. A gata, que até então se recuperava dos resquícios do estresse do cais, automaticamente sentiu suas pernas fraquejarem, não era possível que a pirralha havia realmente, com toda a falta de educação existente nos mares, fodido tudo. Via a sua frente um estranho de quase dois metros, todo curvado e de rosto amedrontador, usando roupas de cozinheiro bizarramente manchadas de sangue — algo que certamente não fora percebido pela honrável capitã —, e como se não bastasse tamanha atrocidade, no pequeno vão aberto entre a dolmã pode enxergar algumas facas de diferentes tamanhos e lâminas, isto sem contar o gigantesco cutelo preso no bolso da calça e, pasmem, uma besta pendurada em um cinto transversal! Aquele homem cheirava a perigo em todos os sentidos. Seus pelos da nuca se eriçavam só de pensar no que aquele maluco havia feito. Sua única esperança era que Poyo tivesse o bom senso de não enfiá-lo junto a elas na carniça, porém a quem queria enganar? De nada serviam suas preces quando junto deles caminhavam uma quantidade infindável de marinheiros enfurecidos. Quem se importava com o bom senso naquele momento? 

Num golpe só voou para cima do homem, atingindo em cheio sua estufilha com as duas patas. Era uma gata, mas não indefesa: a madeira se estilhaçou no momento do impacto e, puft, o psicopata estava livre. 

— Quem é esse, pirralha? — perguntou a gata, sem parar de correr, mas com os braços cruzados em frente ao peito indicando sua pura irritação, como uma mãe ao dar bronca em sua prole. O homem titubeou responder, porém fora cortado pelo olhar julgador de Belka. Não desejava a resposta dele.

— O novo guerreiro do nosso barco! — Poyo diz, orgulhosa. 

— Sou cozinheiro. — o homem corrige. Com um sorriso amarelo, já imaginando a decepção da garotinha. 

— Sério?! — os olhos da menina brilharam, talvez até mais do que se ouvisse a confirmação da posição. Agora tudo fazia sentido! Por mais que não fizesse realmente. 

— E quem disse que ele faz parte da tripulação? — Belka grita com indignação. 

— Eu, ué — a capitã dá de ombros, sua palavra já estava dada. A gata suspira, não havia mais o que ser feito. Os sons das botinas se tornou mais alto, eles estavam se aproximando. 

— Vamos até o porto, eu tenho uma ideia — dita, tomando a frente. Era uma ordem da imediata. 

Foram mais algumas curvas em fuga e alguns minutos de puro de desespero. A cidade era sem dúvidas um labirinto e tomavam os mais improváveis caminhos, a fim de dificultar, ao menos um pouco, a perseguição. Para a menina e sua gata era fácil correr por aí, mas o cozinheiro (como um bom fumante) sentia as consequências de seu vício, sofrendo para acompanhá-las. Chegaram ao porto com o sol a pino, e nem sabiam dizer como finalmente acharam o caminho certo — Belka tinha certeza de que estava pagando por seus pecados no inferno. Perderam alguns marinheiros para o caminho irregular, mas atrás de si ainda havia uma meia-dúzia de gatos pingados, igualmente exaurida pelo calor e corrida. O píer lhes dava vantagem, já que o trio tinha certeza de que ninguém viria por trás. Além disso, todas as docas estavam ocupadas por barcos, garantindo uma rota de fuga se tudo desse errado (se desse errado. Mas não daria!). Era hora de tomar o controle daquela situação. 

A felina, como boa mãe que era, não deixaria Poyo lutar, por motivos óbvios. Até podia pedir para o cozinheiro lhe ajudar, todavia, não confiava nem um pouco num homem que anda com uma coleção de armas na dolmã. Com isso, só sobrava ela mesma para aquela tarefa: precisaria sujar suas delicadas patinhas com aqueles marinheiros imundos. Como a vida é cruel, pensou, largando as sacolas de suprimentos no chão e ajeitando suas vestes. Se posicionou nas quatro patas (tamanha humilhação) e partiu para cima do inimigo como um animal feroz. Na corrida, sua cauda se partiu em duas, apontando para frente como duas lanças pontiagudas em posição de bote. Foi rápida como predadora, sua velocidade era impulsionada pelas quatro patas: chicoteou um por um com o rabo elástico, marcando seus corpos com a ponta fina.  Sequer podia chamar aquilo de batalha, uma vez que os inimigos caíram sem tempo de resposta. De repente, ela estava de pé e os adversários no chão, cheios de cortes fininhos ocasionados pela parte fina do rabo. 

Um pouco distante, o restante da “tripulação” observava a imediata boquiabertos, ninguém que a olhasse imaginaria que tinha tanto poder, mesmo Poyo — que já havia sofrido as consequências de irritá-la — não conhecia as habilidades mortais da gatuna. O cozinheiro, por sua vez, pareceu encantado com a bizarrice da situação. De certa forma, se sentia acolhido pelo grupo estranho, pois um circo de horrores como aquele era o único lugar onde conseguiria se encaixar, dado suas próprias anormalidades. Soube enquanto assistia o “massacre” que havia tomado a decisão certa em pedir para seguir a menina. Aquele era seu lugar. 

— Se olharem muito, vou começar a cobrar. — Belka piscou, voltando ao andar bípede e indo em direção ao grupo. Atrás de si, os homens se contorciam de dor: estavam muito bem acordados e vivenciavam cada segundo daquele sofrimento. — Tomem um barco, não conseguiremos fugir em três na Carniça. — e tomou de volta suas compras quando chegou perto dos dois companheiros, em seguida jogando-as nos braços do cozinheiro. — Você leva. — ordenou.

— Por quê- — o homem foi interrompido. 

— Qual deles? — perguntou Poyo eufórica, alheia as encaradas de desgosto da imediata para o recém-chegado.

— E eu que vou saber? Um grande! E que não feda, de preferência. — a gata diz enquanto se espreguiçava. Aproveitou que estava livre do peso (o homem havia tomado as compras, afinal) para se alongar; ter uma filha imbecil a deixava fora de forma. 

— Então esse! — a capitã aponta para um galeão gigantesco, que estranhamente não parecia estar no porto antes (estavam no mesmo porto, aliás? A praia dos barcos pesqueiros e a carniça não estava em lugar nenhum!). 

Parecia não haver os mesmo problemas de odor que o antigo, além de não ter nenhum dano no casco. Era o barco ideal para um bando promissor, afinal, que pirata não deseja uma imensa embarcação para abrigar seus companheiros? Até ir a Grand Line seria possível com ele! Poyo estava orgulhosa de sua escolha e feliz pela sorte que teve em encontrá-lo. Entretanto, nem tudo era um mar de rosas… Como a capitã não sabia ler, ela pareceu não ligar muito, mas o cozinheiro e a imediata empalicederam imediatamente ao notar um pequenininho problema estampado nas velas: nas duas principais, havia uma gaivota azul e, ainda mais assombroso que isso, as auxiliares grafavam em letras garrafais: MARINHA.

 — Você não pode estar falando sério. 

Mais uma vez, Belka perde seu chão. Não podia negar agora: a palavra da capitã era sua lei. O erro não fora da garotinha em escolher aquele barco e sim da felina em lhe dar o direito da escolha, entretanto faria este azar — ou descuido, chame como quiser — lhe dar frutos, afinal havia sim algumas vantagens em viajar sob a bandeira do governo: ninguém iria pará-los e poderiam atracar nos postos da marinhas se precisasse (não que quisesse fazê-lo, não era nem louca de desejar algo assim). Estava convencida, aquele seria o barco. 

— Vamos embarcar de uma vez, então — ditou tomando a frente, sendo seguida pelo olhar incrédulo do cozinheiro — Você também, rapazinho, — ironizou —, talvez tenha uma cozinha para que nos prove seu valor.
— Me chamo Flint, senhora. — respondeu de cabeça baixa, temendo negar as vontades da felina. — Vou procurar meu lugar. — e saiu, segurando as compras e com dificuldade acendendo um novo cigarro.

Seria uma longa viagem. 

≈≈≈

A noite chegou mais rápido do que esperavam por conta da exaustão do dia. De fato, o navio não fedia nem um pouco, mas medo de ouvir uma ligação no caracol-comunicador não deixava ninguém descansar. No convés, Belka estava limpando o ferimento no braço de Poyo, enquanto ouvia seus gritos de puro desespero pela ardência do álcool esterilizando a pele. “Fraca”, pensava, espremendo o algodão no machucado com um sorrisinho sádico no rosto: vingança por ter causado tudo naquele dia. Na cozinha, Flint, apesar de também exausto, assobiava alegremente enquanto preparava uma janta que pudesse impressionar suas superiores. “Será que a gata comia peixe, ou por acaso ficaria ofendida se eu lhe desse algo tipicamente de gato?” eram os receios de sua mente, bem longe do pavor de estar invadindo um barco militar. Por fim, optou por um prato neutro: uma sopa de rabanete caprichada. Tinha leite, que com certeza agradaria um felino, mas também parecia um prato refinado e “adulto”, para não dar bandeira sobre o que estava tentando fazer (conquistá-las pelo estômago, no caso). Serviu a mesa gigantesca para três, deixando vazio pelo menos uns vinte lugares; e ainda teve a capacidade de dizer que nunca havia cozinhado para tanta gente quando encontrou as meninas. Foram comer em silêncio, esperando um descanso muito merecido. 

A comida se provou “decente”, nas palavras da imediata — embora um ronronar tenha escapado de felicidade enquanto se alimentava. Por sua vez, a capitã parecia cabisbaixa, provavelmente porque, passada a adrenalina da tarde, seu braço começara a doer. O cozinheiro já imaginava que isso pudesse acontecer, por isso preparou um agradinho para a menina: num dos curativos, pintou com um carvão do fogão à lenha um (rascunho) de bandeira pirata, com um gato de tapa olho sorrindo na frente. Não era um exímio artista, mas pensou que pudesse agradá-la, já que era tão fã de piratas. Pós-janta, começa:  

— Capitã. — chamou, tentando ser gentil. 

Poyo foi, sob a tutela da gata que espiava por cima do ombro, preocupada com o que o homem (ainda de roupas sangrentas) podia fazer. Quando a menininha chega perto, ele cola por cima do machucado o bendito curativo. Completa, sorrindo torto da melhor forma que conseguiu: — Nenhum bando é um bando sem uma bandeira pirata. 

A menina olha o braço e ocorre um longo segundo de silêncio, o suficiente para Flint pensar que havia feito merda. Não desenhava tão bem assim, afinal. 

Mas, felizmente, estava errado. Poyo abriu um sorriso de orelha a orelha, mostrando todos os dentes. Agora, de verdade, tinha começado sua tripulação! 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Venho novamente exercer a parte mais humilhante de meu oficio: exigir de vocês, ó nobres leitores, a menor das avaliações. Veja bem, sou apenas uma entidade, certamente não ligo para estas bobagens, mas não posso renegar o motivo de minha existência: a humilhação. Sendo assim, façam o mínimo, para que eu continue existindo e as autoras continuem escrevendo.
Com essa me despeço, grato pela leitura e desgostoso por existir.

Sou a entidade das notas e espero não ser necessário no próximo capítulo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Prisão de Gato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.