Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 18
Grand Line, loja de armas e outras vigarices (Pulvereta)


Notas iniciais do capítulo

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A brisa fria alcançou os corpos inertes, causando um pequeno desconforto na pele; ainda que o dia estivesse extremamente ensolarado, os ventos dos mares nunca eram gentis. Contudo, isto não pareceu atingir o cozinheiro, visto que havia uma perturbação sobre si imensamente maior do que um mísero ventinho. De primeiro momento, nada respondeu, esperou que a dita cuja mostrasse a face (e talvez presas) para si, uma vez que ainda se mantinha em suas costas. Respirou fundo, não poderia surtar, independente do gênero ou espécie do que viria a lhe perturbar, era uma das malditas situações onde não poderia contar com ninguém além de si mesmo e, sobretudo, ainda tinha uma pirralha sob seus cuidados.

— Quem é? Não reconheço sua voz. — respondeu sem virar o rosto, a voz imponente o quanto podia. Gostaria de evitar o mal estar o quanto pudesse e, se fosse possível, afastar a sujeita antes que ela resolvesse fazer algo pior. Já era de praxe, sempre empurrava com a barriga, até mesmo as urgências que estapeavam a face.

— Vejo que carrega uma bela arma! — a pressão que antes estava em seus ombros passou para o armamento, sentindo o peso aumentar e um imenso aperto na região do abdômen em decorrência do estresse e ansiedade. Os músculos do homem travaram e, ainda que fosse impossível, sentiu-se mais rígido que uma rocha: se a estranha cogitou segurar a besta em suas próprias mãos, desistiu no mesmo instante que ele tensionou seus músculos. — Vejo diversas marcas e imagino quantas histórias este belo armamento não vivenciou. As pontas das flechas gastas e com a aparência de que foram polidas inúmeras vezes, sinto que ela chegou já gasta em suas mãos, como um presente... ou uma maldição-fiyu. Ao menos é o que os espíritos sussurram para mim.

O súbito embrulho no estômago, antes fraco e suportável, se transformou em uma inexplicável vontade de golfar no mar. Estas histórias de espíritos e divindades não lhe atingiam normalmente, não tinha mais vinte anos para ser enganado por um trambiqueiro qualquer, entretanto, por mais que todos os seus instintos gritassem para ignorar aquela mulher, não olhá-la e apenas seguir viagem, algo em si parecia pressentir uma aura de caos em volta dela e, tomado pelo instinto de sobrevivência, resolveu repetir sua pergunta:

— Quem é você? — questionou, com a voz dura e sem qualquer vacilação, para então virar-se de frente ao inimigo. Não pôde deixar de sentir um ar de familiaridade e estranheza ao encarar a mulher esguia a sua frente, no entanto, não havia tempo para julgamento e, de toda forma, ele não estava em posição de julgar a aparência de ninguém: estava inteiro, mas sua face continuava completamente fodida devido ao chute de Bertruska.

— Irrelevante. — ela diz jocosa, olhando-o através dos olhos. Seu único olho era azul vívido, como um infindável mar de mistérios que Flint não estava nem um pouco a fim de desvendar. — Há quanto tempo tem sua arma?

— Uns sete anos, comprei de um vigarista antes de sair em jornada. E agora, qual o seu nome? — insistiu.

— Vejo que é insistente-fiyu! Me chamo Autumn, satisfeito? — respondeu entre risos, parecendo se divertir com a clara frustração do cozinheiro. — Me dirá o seu e de sua acompanhante?

O homem tinha uma das sobrancelhas arqueadas, ainda era preciso uma apresentação formal? Era evidente que aquela maluca já sabia sua identidade. Entretanto, por mais que se sentisse tentado a perguntar de onde se conheciam, uma informação lhe chamava mais atenção no momento: como ela sabia que viajava junto de Poyo? Quer dizer, ela poderia tê-la visto antes de embarcarem, ou então sentados juntos na balsa, mas não mudava o fato de que mal haviam conversado desde então — a menininha havia saído para caçar algo o que fazer já tinha algum tempo e, para todos os efeitos, eram no máximo conhecidos de momento.

— Não tem nenhum doce nessa carniça, Flinny... — a voz estridente da capitã alcançou seus ouvidos, se arrastando no apelido como forma de birra. Por que infernos essa imbecil precisa chegar justo agora?, ele pensou consigo mesmo, sentindo uma veia de estresse pulsar em sua testa. Se dissesse um nome qualquer a garotinha iria o interromper, berrando aos quatro ventos que era a capitã Poyo, desbravadora dos mares e não somente estaria nas mãos da maluca, como também deixaria a fachada de civis aos frangalhos. Só havia espaço para perdas. Finalmente, a capitãzinha para no lugar, olhando a estranha: — Quem é a mocreia? — perguntou.

— Me chamo Flint e esta ao meu lado é minha irmã, Poyo. — afirmou, olhando diretamente nos olhos de Autumn, sentindo uma longa gota de suor passar desde sua nuca até o final das costas. Felizmente a capitã não ralhou, muito pelo contrário, colocou um sorriso orgulhoso em sua face. 

— Sua... irmã. — a estranha repete para si mesma, intercalando seu olhar ora para o cozinheiro, e ora para a menininha. Flint podia estar errado, mas pensou ver seus lábios se apertarem um contra o outro por um segundo, esticando em um risco, até ela voltar a sua expressão normal e abrir um grande sorriso de ouro, prontamente seguido de uma gargalhada. — Vocês não se parecem nadinha! — debochou, batendo a mão na coxa como se fosse uma situação hilária. 

— Parecemos sim! Sua medonha. — a pirralha interrompeu, parecendo se conter para não berrar. Sentou ao lado do cozinheiro, um tanto emburrada e sem tirar os olhos da estranha. Como ela ousava dizer que eles não eram parecidos? Eram loiros e esquisitos, e isto já era mais do que suficiente! Além de que havia salvado o homem da berlinda, logo era da sua família aceitando ele ou não.

A vendedora sentiu um gosto amargo em sua boca; de todos os infortúnios e contratempos que deu de frente em suas viagens, certamente aquele era o menos agradável de se lidar e por sua vez também o que menos tinha ideia de como resolver. Não poderia afirmar com toda a certeza — afinal, fugira das fazendas a muito tempo e nunca mediu esforços para deixar o passado enterrado sob os fardos de feno e caixas de cenouras —, porém algo dentro de si apitava em familiaridade ao encarar aquela garota desbocada e com feição de pivete. Talvez fosse os cabelos loiros encardidos ou o sorriso zombeteiro, mas podia jurar que o fantasma de um de seus irmãos pairava sobre a cabeça dela. Eram em sete meninos e duas meninas na fazenda; ao todo, nove crianças piolhentas para se lembrar, então sua mente poderia estar cometendo loucuras (não seria a primeira vez que via algo estranho), mas, se aquela fosse realmente April, a infernal garota criada dentro de uma caixa de sapato pelos irmãos, que chorava muito mais alto do que os porcos roncavam, algo de amaldiçoado era alimentado naquelas terras do East Blue. O mar era gigantesco demais para que se encontrassem em uma ilha qualquer da Grand Line, tão distante de casa.

Mas então, no momento que se lembrou de sua trajetória até ali, aquela terrível sensação de desamparo se dissipou; era mais jovem do que deveria quando saíra de casa, fugindo antes mesmo que seus irmãos mais novos pudessem gravar sua face — eram bebês demais para isso. Sendo assim, não poderia exigir daquela menina lembrar-se de si, ainda mais quando existia a gigantesca possibilidade dela não passar de uma completa estranha. Se sua própria memória era confusa, quem poderia lhe garantir que estava mesmo de frente a um familiar? As únicas pessoas que poderiam confirmar que se tratava da verdadeira April eram aqueles que conviveram com ela por mais tempo do que só os primeiros anos de idade, o que a excluía completamente daquela equação. Querendo ou não, pelo que podia observar, tinha tanto direito de se chamar de irmã quanto aquele estranho cozinheiro a sua frente — talvez até menos que ele.

— Certo, então! — Autumn deu um risinho desconfortável e depois uma palminha, como que para finalizar aquele assunto (ou afastar os espíritos ruins) — Bem, os espíritos não os trariam aqui por qualquer motivo. Se estão aqui, imagino que precisem de armas, estou correta-fiyu?

— E no entanto não viemos até você, e sim o contrário — apontou o cozinheiro. Nesse instante, o apito da balsa encheu-lhes os ouvidos, estavam finalmente chegando em terra firme. Os demais passageiros, que antes olhavam a paisagem no parapeito, foram obrigados a se sentarem.

— Fiyu-fiyu! Sinto que o senhor não confia em minha afinidade com os espíritos e portanto tudo que eu lhe disser será prontamente invalidado, contudo, se for para garantir sua credibilidade, pode chamá-la de instinto ou quiçá sorte, a força que guia meus eventuais encontros.

— Huhuhu! Espíritos! — a garotinha, que até então mantinha-se quieta e com a feição sisuda, caiu em gargalhadas, apontando o dedo indicador para a face da estranha, enquanto a outra mão repousava na barriga (como se segurá-la fosse findar as dores do riso). — Taca essa vigarista no mar, Flinny! Ordens da capit...

Mas ela não pôde terminar sua frase, pois um solavanco no barco fez com que se calasse de pronto: o comandante da balsa dera o nó na pilastra do píer para que pudessem desembarcar. Ele anunciou que os passageiros poderiam tomar seus pertences do chão e se dirigirem à terra firme com calma, pois a ilha não iria a lugar algum. Finalmente, quando Poyo poderia voltar a zombaria, notou que Autumn já havia se levantado e estava prestes a sair, como se não desse a mínima importância para ela. A capitã encheu suas bochechas com raiva — se tinha uma coisa no mundo que odiava, era ser ignorada.

— Venham até minha loja-fiyu! Posso garantir que as minhas vigarices são as mais belas da região. — afirmou, entre risos, ainda que não fosse uma deles, sabia muito bem como atrair jovens piratas; bastava brilho para que caíssem em seus pés. Deu-lhes um sorriso de ouro. — Não precisam se preocupar, não vou tentar matá-los — assegurou em tom de brincadeira — Se o quisesse teria feito a muito tempo, estou armada até os dentes-fiyu. De vocês, piratas, me basta o dinheiro.

Fodam-se as armas, pensava Flint, ficar longe de malucas era o que precisava naquele momento. Não disse nada em resposta, e ainda sentado, reparou que Autumn, já de costas, segurava na mão direita meia dúzia de flechas pelo cabo, sem se preocupar em escondê-las de vista. Deu um riso nasalado, por um minuto se perguntando se era mesmo seguro deixar armas tão evidentes assim naquela ilha. Instintivamente, tomou sua besta nas costas, se preocupando com o perigo de ser furtada — mas logo notou que já havia tomado no meio do cu.

— VAGABUNDA! — bradou, sentindo as orelhas esquentarem e uma pontada agressiva no nariz (respirar sangue já estava começando a irritá-lo). Se levantou num pulo, agarrando o braço de Poyo antes que saísse correndo em direção da maluca e a colocou sobre suas costas novamente. Não se sentia confortável em seguir aquela estranha, visto que flechas podiam ser compradas por um preço bem razoável e portanto ele não precisava recuperá-las, mas já não era ele que tomava as decisões de seu corpo; fossem os puxões de cabelo que a capitã lhe dava ou uma impulsividade recém-descoberta, não importava, iria até o fim desta batalha, mesmo com os neurônios insistindo em sua cabeça: você é retardado?

Embora com menos atenção do que da primeira vez, tratou de observar seus arredores quando desembarcou; diferente do primeiro porto, esse era bem menos convidativo, sendo recoberto desde o início da praia por uma mata tropical densa e uma porção de trilhas de terra bifurcadas. Felizmente, não teve dificuldades para acompanhar Autumn — ela não queria perder sua venda — e logo não havia mais ninguém no caminho a não ser eles três, já que ela optara pelo que chamava de "atalhos", longe dos caminhos habituais e com uma boa dose de aventura. Alguns gritos infantis eram ouvidos em meio a corrida, junto de eventuais gargalhadas; ao menos a capitãzinha parecia estar se divertindo (ele, por sua vez, não parecia muito contente com aquele caminho alternativo, reconhecendo muito bem aquelas áreas como perfeitas para desovar cadáveres).

E então, sem qualquer aviso, Autumn parou de correr e virou-se em direção ao seu algozes, com um sorriso ladino em sua face. 

— Bem-vindos-fiyu! Não sabia que estavam tão animados para conhecer minha loja-fiyu-fiyu. — era clara a ironia em sua palavras, até o mais tolo perceberia a acidez mascarada pelo tom doce. — Vamos, servirei uma água aos meus compradores cansados.

Flint estava trincado por dentro. Como um delicado objeto de porcelana ao ser lançado da sacada ao chão; seu interior dividiu-se em tantos pedaços que sequer teria o trabalho de juntá-los; estava na hora de criar um nova personalidade ou, talvez, lançar-se ao mar para viver como um peixe de uma vez por todas (talvez dessa forma tivesse mais chances de encontrar seu objetivo). Não havia nada de grave ou uma novidade, apenas fora feito de otário novamente: estavam de frente a uma casa caindo aos pedaços, cheia de vinhas nas paredes de madeira e uma quantidade insalubre de infiltrações: aquela pocilga com certeza fora um cativeiro antes de ser loja, e ainda por cima não parecia ter a menor capacidade de abrigar algo de valor, uma vez que as portas não pareciam ter trancas e as janelas estavam quebradas. Conquanto, depois de tantas vezes quebrando a cara em um mesmo dia, sentia-se tão vazio quanto um boneco de louça, e o ódio simplesmente o deixou. Dane-se todos, agora que estava ali, afogaria suas mágoas com um pouco do bom e velho consumismo.

— Se possível uma água com gelo para a pirralha. Acho que ela engoliu alguns insetos no caminho. — disse em tom monótono, observando a capitã retirar as folhas e teias de aranha que ficaram presas nas madeixas loiras.

— Desde que não seja um besouro cor-de-vinho, ela vai ficar bem — Autumn deu de ombros, soltando uma risada nasalada e abrindo a porta de sua residência com fortíssimos pontapés. Os outros dois continuaram num silêncio mórbido, até que a vendedora virou-se para esclarecer, séria: — Não é uma piada se só eu rir dela... — suspirou — É um besouro parasita. Se você engolir, ele vai colocar ovos dentro de você e te transformar em um zumbi. — e colocou a mão na barriga da menininha, pálida como papel, usando todos os seus botões para se lembrar se havia realmente engolido um bicho e, se fosse o caso, de qual era sua cor.

— Cala a boca — o cozinheiro falou, sem mudar o tom de voz, e foi logo empurrando a moça para o lado para também passar pela portinha. — 'Cença, — murmurou, quase educado, porém interrompeu a si mesmo com um inesperado grito. — EU QUERO!

Nesse instante, Poyo, que ainda estava sobre os ombros de Flint, não conseguiu nem se agarrar aos cabelos do cozinheiro: pulou tão alto pelo susto que bateu de cabeça no teto, imediatamente despencando para trás. Quando atingiu o chão, pôde-se ouvir um inconfundível som de vidro se quebrando, mas nenhum dos adultos pareceu dar bola para si: estavam mesmerizados à algo a sua frente (uma estranhíssima parafernália de guerra). Então, com todo a criatividade embutida em sua mente de treze anos (e meio) de idade, a coitadinha pensou com seus botões: enquanto estava distraída, aquela criaturinha parasita cor-de-vinho veio e deixou seus ovos para controlar o cérebro de Flint e Autumn, e por isso (só por isso) não ligaram para ela, machucada no chão. É óbvio! Hipnotizado como um zumbi, seguiram em frente em completo silêncio, em direção a coisa — porque ela não tinha a menor ideia do que aquilo era — mais linda que ele vira em toda sua vida. Um arpão velho e muito maltratado, mas sem marcas de ferrugem ou então danos irreversíveis.

— Quero este arpão! Está a venda? — indagou o homem, com a voz consideravelmente menos exagerada, porém ainda com brilho de empolgação no olhar, algo quase infantil.

A vendedora, por sua vez, não perdeu tempo e respondeu-lhe um valor obsceno de notas de dinheiro, afinal, ela sabia que ele compraria de qualquer maneira. — E aí? É pegar ou largar-fiyu. — o provocou.

— Façamos assim: você cobra o valor real deste artigo, sem os acréscimos e como agradecimento levo outro item junto comigo. Temos um acordo? — Flint não era tolo e tampouco aquela era sua primeira negociação: estava disposto a pagar os valores abusivos que a vendedora lhe ofertaria desde que não saísse daquele barracão com somente o arpão nas mãos.

Autumn não pôde evitar de levantar as sobrancelhas ao ouvir a proposta do pirata a sua frente; infelizmente ele não era tão burro quanto gostaria e, acima de tudo, não cairia em alguma de suas geniais lorotas. Mesmo com a promessa de levar algo em troca, era sua palavra contra a dele — quem lhe garantiria que falava a verdade? Era um maldito pirata, oras! Todos querem negociar; tirar o lucro da pobre coitada desabrigada... E se é ela quem sofre um calote, onde pode ir reclamar? Em lugar nenhum!, mordeu os lábios, cogitando por um segundo desenrolar outra mentira, mas sabia que não daria em nada. Podia dizer que o armamento fora roubado diretamente das mãos de Poseidon, e isso só lhe renderia um riso frouxo ou, na pior das hipóteses, uma bela cusparada em sua cara. O filho da puta queria um objeto sem histórias, sem fantasmas e principalmente, com a porra do preço justo.

— Vocês, céticos, ainda irão destruir meu negócio-fiyu-fiyu! Isto é, se eu mesma não cortá-los pela raiz antes que se multipliquem. — ameaçou em tom de brincadeira, logo soltando uma lufada de ar resignada: já havia lucrado bastante naquele dia, é verdade, mas dinheiro nunca é demais e ela gostaria mesmo de ter seu jantar garantido por uma semana inteira. — Darei o desconto, contudo deverá levar ao menos dois itens. Última oferta.

Flint deu um sorriso vitorioso. — Feito. Eu quero minhas flechas de volta e mais uma dúzia das melhores que tiver. — pediu prontamente, já contando mentalmente quantas notas precisaria entregar nas mãos da vigarista. — Você tem algum aparador de facas por aqui? — perguntou, ao ver a mulher partir para os fundos da loja para buscar os itens requisitados. Por um segundo se permitiu baixar a guarda e distraído, observou os itens pendurados nas paredes e espalhados nos balcões, nada parecia ser repetido, ao menos nisso a charlatã parecia se esforçar.

— Você acha que eu vendo de tudo por aqui?! — ela gritou de volta, o barulho das tralhas se movendo e metais se batendo se tornando mais evidente que sua voz. Mas então, um puxão em sua dólmã o fez perder a concentração na vendedora.

— Flinny... — era Poyo, chamando-o com uma voz chorosa e fazendo biquinho. — Eu caí e você nem viu... Eu podia ter morrido... 

— O que você quer? — o cozinheiro a cortou, não faria aquele teatrinho durar mais do que o necessário, conhecia a pirralha o suficiente para saber que ela não havia sentido absolutamente nada.

— Isso aqui! — diz, radiante, mostrando em suas mãos uma pistola de cano longo e empunhadura de madeira, que cabia como uma luva em suas pequenas mãos. Instintivamente, recuou um passo, até perceber que não havia nenhuma munição ainda, felizmente (pois não se surpreenderia caso ela atirasse ali dentro, seja nele ou no teto de madeira e palha). — Também precisamos de uma nova bústula. E não aceito broncas como resposta, você quase me matou!

— 'Quê? Por que vocês iriam precisar de uma bústula aqui, na Grand Li- — Autumn, que voltava do final da loja, começa a dizer, mas sentiu sua voz travar no momento que olhou para as patinhas da menina: Poyo segurava um Log Pose em mãos, mas completamente quebrado. — Pelos espíritos! — gritou, correndo para colocar as mãos perto na cabeça da menininha, quase encostando, mas só gesticulando o quanto queria esmagar aquele crânio. — Como você me dá uma dessas, Ap-, digo, garota?! — sua voz quase falhava nos dizeres de tão nervosa. Então, por um segundo, olhou para o cozinheiro, que deveria estar tão consternado quanto ela, mas parecia calmo, apenas com a mandíbula travada. — Por que você deixou isso com ela?! — o culpou.

— Eu não deixei. Será que você teria um para nos vender, por gentileza? — ele pergunta, sem erguer o tom de voz ou mudar a expressão de pura apatia de uma sentença a outra; no entanto, dessa vez Autumn pôde reparar em algo que deixou passar despercebido a princípio: seus olhos. Diferente da serenidade opaca e descabida para aquela situação, os olhos, traidores por natureza, denunciavam o que ele realmente sentia; um pequeno fragmento de Flint que, contra todos os princípios de se manter forte, simplesmente desistiu de sua existência, e agora vinha a íris pedir por socorro para quem quer que fosse — mas era tarde demais, porque Poyo nem na morte lhe permitiria paz (ou uma folga normal).

— Eu... vou ver o que posso fazer por vocês — anunciou com um suspiro de pesar: sabia que, depois daquela reação, não tinha outra escolha senão ceder alguma ajuda para aqueles desgraçados. — Não posso garantir que irei conseguir um, mas tenho meus contatos. Vou cobrar caro também.

— POR FAVORZINHO, CALOTEIRA! FAZ DE GRAÇA PARA A GENTE! — a capitãzinha pediu, com ambas as mãos juntas e se ajoelhando, sem medo algum da iminente humilhação. — NÓS SOMOS DOIS FODIDOS! A BELKA VAI ME MATAR, SE ELA DESCOBRIR!

— Levanta do chão, menina! Garanto que aquela gata vagabunda vai ficar mais brava com você se ficar suja do que se voltar de mãos vazias! E, de qualquer forma, o que garante que seu cozinheiro não vai te entregar para ela? — a vendedora lhe deu um fraco pontapé nas mãos, como um reforço para a ordem. Contudo, foi Flint quem se intrometeu na conversa:

— Como conhece a felina? — interrompeu o cozinheiro, com uma das sobrancelhas arqueadas e, aparentemente, recuperando suas faculdades mentais.

— Uma maluca com chifres estava gritando pela cidade que mataria essa tal de Belka, enquanto a chamava de "gata vagabunda". Numa hora dessas já devem ter se matado — respondeu dando de ombros, não se importando em encarar a face do homem, entretanto um pensamento ácido passou por sua mente e, com movimento suaves, virou somente a cabeça em direção ao loiro e soprou-lhe algumas palavras com um maldito tom de aconchego. — Ouvi o seu nome na lista negra também. Evitaria as mulheres azuis por alguns dias-fiyu.

O cozinheiro escureceu o rosto, pensando por um segundo no que ela havia dito, mas resolveu que não deveria entrar naquele assunto por ora, pois poderia sim ser outra armadilha da caloteira para lhe vender um spray anti-Merins ou qualquer merda do tipo (o que não era má ideia, diga-se de passagem). — E o Log Pose, afinal? — o cozinheiro insistiu.

— Não sei. Mas já disse que irei tentar. — Autumn ergueu os ombros em um ato de indiferença (bastante mentirosa, porque já estava se importando com aqueles dois).

— Não sei não é o bastante! — Flint aumentou o tom, e sinalizou com as sobrancelhas em "V" que iria começar uma discussão mais acalorada. Enquanto isso, Poyo, que assistia aquilo com a cabeça indo de um lado para o outro, como quem acompanha uma bolinha de pingue-pongue, finalmente não se aguentou mais e deu com a língua entre os dentes:

— ESCUTA AQUI, CALOTEIRA! QUE TIPO DE CAPITÃ PIRATA VOCÊ ACHA QUE EU SOU? — a garotinha berrou a plenos pulmões — Se o Flinny me entrega, eu corto a língua dele e faço andar na prancha! E você vai conseguir essa bústula para a gente sim ou eu vou fazer o mesmo com...

A cabeça de Poyo travou no momento em que percebeu a vendedora dando-lhe as costas, ao mesmo tempo que coçava a parte traseira da cabeça, como quem matutava alguma ideia com considerável força. Percebeu, sem muito esforço, que ela não estava prestando atenção nela e nem iria prestar, então desistiu, não por acreditar estar errada, e sim porque entendeu que aquela caloteira estava lhe prestando um favor — e não se discute com quem você deve a vida.

Depois de pensar, por fim, a vendedora anuncia: — Vou precisar sair da loja para procurar e não posso e nem irei deixar vocês sozinhos aqui-fiyu. Aproveitem um tempo na pousada aqui do lado, enquanto eu não volto — sugeriu aos compradores, estalando os dedos das mãos e esticando as costas, sabia que teria muito trabalho pela frente. — Deixem as notas sobre a mesa que avisarei aos responsáveis que podem entrar-fiyu. O valor da entrada não costuma ser alto, mas vou garantir um desconto para vocês já que compraram de mim, além de poder retirar seu brinquedo — apontou o arpão por um breve segundo — direto na saída, Cozinheiro — deu uma piscada amigável, o sinal de que era um negócio imperdível.  

Foi num suspiro, então, que Flint tirou mais algumas notas da carteira e lhe entregou, desta vez retirando das economias da capitã — dinheiro este que nem mesmo a própria sabia existir. Não pôde negar que sentiu um desconforto ao entregar mais dinheiro para aquela estranha, mas preferiu ignorar e deixar que ela tomasse o próprio rumo. Antes que Autumn saísse da loja, enfim, ela tocou o ombro do homem, sussurrando ao pé de seu ouvido:

— Eu bem que gostaria de te acompanhar nas fontes termais, mas vai ficar para a próxima. — e deu outra piscadela, sem demora correndo para o meio das árvores, deixando-os à própria sorte.

A capitã soltou um suspiro audível, havia perdido a paciência com aquela maluca e sinceramente mal podia esperar a hora de voltar para o barco e comer mais. Por sua vez, Flint só pensava na quantidade surreal de dinheiro que havia gastado naquele lugarzinho, mas ao menos agradecia porque logo toda a tragédia teria um fim e poderiam, de uma vez, deixar aquela ilha infernal.

≈≈≈

Bem como Autumn havia dito, não muito distante dali, encontraram novamente um dos diversos caminhos de terra bifurcados, e seguindo-o até o fim, chegaram em um palacete de madeira e pedras naturais, adornado com diversas plantas e vasos pintados a mão. Não haviam muitos quadros nas paredes ou outros enfeites além dos vasos, somente alguma espécie de planta trepadeira cobrindo os espaços vagos e um ou dois espelhos em formatos um tanto peculiares — redondos demais, ou então zen demais... Tanto faz.

 Ao adentrarem, não encontraram ninguém na recepção, o que fez Flint imaginar que a caloteira já havia deixado um aviso e, desta forma, poderiam se instalar da forma que achassem melhor. Segurando a mão de Poyo foi em busca de um lugar onde pudessem descarregar as tralhas que carregavam, visto que não se arriscaria a adentrar nu e armado em um local tão calmo — segurar a besta em meio a diversos homens desnudos não estava na sua lista de tarefas a realizar (ao menos não na sua lista sóbrio). Os armários eram de fácil acesso e estavam na parte de fora dos vestiários, certamente deixados ali para que nem a umidade e tampouco a água dos chuveiros pudessem estragar os objetos. Enfiou os pertences com cuidado, tomando a precaução de esconder os itens de valor em meio a sua dólmã e repousando sua arma com delicadeza na parte inferior do armário: um pequeno aviso para quem quisesse mexer com suas coisas. Finalmente, jogou sem demora sobre o ombro o roupão e toalha que antes descansavam no armário, calçou os chinelos oferecidos e guardou as costumeiras botas; quanto ao resto de suas vestimentas, voltaria para deixá-las após retirar a sujeira nos chuveiros. 

Já pronto, virou-se para checar Poyo, e embora ela tenha insistido que era crescida e poderia guardar os próprios pertences em um armário separado e sem sua ajuda, não foi uma grande surpresa ver a chave presa na fechadura e a garotinha (já descalça e vestindo o roupão branco sobre as roupas encardidas) marchando em direção ao banheiro masculino. Soltou uma lufada de ar: a placa com um desenho de caveira de bigode e cartola certamente seria o suficiente para que alguém como a capitã, distraído, ou apenas muito desprovido de inteligência, acreditasse que aquele era o banheiro destinado aos piratas. Não aos homens piratas, mas sim a todos que assim se designavam. 

— Pirralha, esse é o banheiro dos homens. — informou para a menininha, tomando a chave do trinco não só de seu armário como também do dela.

— Foda-se. Se tem uma caveira branca em cima do preto, eu posso e vou entrar!

— A outra porta também tem uma caveira, você apenas a ignorou. Aquele é o banheiro destinado às mulheres.

Se vendo sem ter como argumentar contra o homem, mas acima disso odiando dar o braço a torcer, Poyo somente encheu as bochechas e cruzou os braços, trazendo a tona qualquer justificativa que veio a sua mente, pois sabia muito bem que, como Belka sempre demonstrava, não era necessário ter conhecimento algum do que se fala, somente falar com muita autoridade (ou era propriedade?). Disse:

— Dá azar entrar num banheiro de caveira com laço. Nas histórias piráticas, caveiras de laço significam uma tremenda onda de má sorte, ou a morte de...

— Você. — uma voz a interrompeu. Era imponente, mas não como a de Bertruska, que irrompe os pensamentos e transmite uma confiança inabalável; camuflada naquela evidente presunção, havia incerteza e, principalmente, algo de insanidade. — Seu bosta, imprestável... Como você pôde? Que vergonha, Ivan

A figura se aproximou como um vulto, uma verdadeira assombração; seus olhos brilhavam de uma maneira maníaca e os dedos, completamente trêmulos, estavam esticados, apontando diretamente para a face de Flint. Não era uma mulher singular, sua face não carregava traços incomuns e junto com seus cabelos castanhos curtos-encaracolados  e olhos igualmente escuros certamente não teria dificuldades para perder-se em meio a uma multidão. O loiro não havia a reconhecido, sequer reconheceu o tom de voz, era uma completa estranha, isto é, até que o maldito nome fosse dito. Não o ouvia a anos e por vezes pedia as noites de bebedeira para que finalmente o levassem embora de sua memória, que tirassem o peso das sequelas de seu passado e, principalmente, para que alguma divindade o permitisse morrer como Flint, não Ivan — nunca Ivan, ou qualquer nome que pertencesse ao seu maior fantasma. O nome que escolhera para si, Ludwig Flint, era desta maneira que desejava finalizar sua jornada.

— Com quem pensa que está falando, vaca? — afastou os dedos da mulher de sua face com um tapa, porém sem força o suficiente para machucá-la; ainda não partiria para a ofensiva, apenas se livraria da maluca e tomaria um banho relaxante, talvez algumas garrafas de saquê e um sono prolongado pudessem apagar este pequeno inconveniente. — Não conhecemos ninguém com esse nome.

A garotinha encarava tudo com uma sobrancelha arqueada, pronta para lançar-se sobre a desconhecida e lhe desferir alguns bons socos; quem ela pensava que era para dizer que seu cozinheiro tinha outro nome? Pouco importava quem ele foi, ou com quem viajou antes de se tornar um dos seus: Flint era só Flint, um de seus subordinados e jamais permitiria que fosse reconhecido por outro bando pirata senão o seu próprio — seu juramento de lealdade era mais do que uma formalidade; naquele momento, havia matado seu passado para se tornar um lacaio do Gato-fantasma, nada mais, nada menos que isso. 

— Não me diga que esqueceu de mim, IVAN? Fugiu como um maldito covarde do nosso bando, delirando sobre um peixe e agora está na maldita Grand Line? — a mulher inquiriu, sentindo algumas lágrimas começarem a cair pelo seu rosto, não poderia estar mais possessa. — Após falar que jamais entraria neste mar. Deve estar curioso, eu imagino, mas foi mais fácil do que imagina descobrir o seu segredinho, apenas uma ligação e consegui o contato da mamãe. Você é um brocha mesmo. Está se acovardando agora!

E era verdade. Não bastou mais do que a menção do substantivo para se encolher em si mesmo, recuando pálido e inquieto enquanto a ouvia falar:

— Fique feliz por estarmos distantes do East Blue, saiba que eu moveria montanhas para lhe levar para casa. — cuspia as palavras sem qualquer freio, deixando que toda a frustração lhe consumisse, todos os anos de tentativas falhas, todos os anos apaixonada pelo frouxo e, principalmente, que a mágoa do abandono falasse por si. — Tenho certeza que a senhora Koch, ficaria feliz em rever o pirralho arrogante e fujão. 

Um grunhido de raiva saiu pelos lábios do cozinheiro, seu autocontrole, seu maldito autocontrole estava a um fio de acabar. Armas, armas... trancadas no armário... péssimas decisões. Tenta raciocinar, mas nada além de ordens para matar e ansiedade eram processadas pelo seu cérebro. 

— Olha aqui, vagabundinha — respondeu entre dentes, tentando manter-se entre as estribeiras por causa do medo do que seus impulsos poderiam causar. Isto é, não pela integridade da mulher, estava pouco se fodendo para a saúde dela naquele momento, apenas não queria descontrolar-se na frente da capitã (poderia jurar que ainda não havia o feito em sua frente e poderia continuar desta forma). Puxou a gola da camiseta da mulher, precisava a assustar. — Nunca dei a mínima para você e se tem algum amor pela sua saúde indico que SUMA DAQUI! OUVIU? DESGRAÇADA. VOCÊ E A VELHA PARA O INFERNO! 

Logo a soltou, com um pouco mais de força do que planejava, observando o corpo da mulher chocar-se com os armários e seu rosto se encher ainda mais de lágrimas: não de dor ou ódio dessa vez, e sim de absoluta tristeza. Não gostava de ser um homem ruim, desejava da vida somente a cozinha, bebidas e o fumo, com estes sentia-se pleno o suficiente para nunca mais pisar em um navio, porém não poderia evitar de sentir um pouco de satisfação ao vê-la cair. As memórias retornavam em flashes: a cozinha velha da embarcação, os homens sujos e desdentados, que por alguma razão tentavam conquistar sua amizade (possivelmente para receber um prato mais recheado no final dos dias), não lembrava ao certo quando se juntou a eles, mas tinha a certeza que foram os últimos antes de lançar-se da montanha e por pouco escapar da execução. Quanto aquela mulher... jamais concordara quando a colocaram junto dos demais tripulantes, não somente pelo seu gênero e pelo temor que ele o causava, mas sim pelo olhar petulante e insano que carregava. Ela tinha certeza de que estava certa. Mesmo agora, caída no chão feito um animal, se sentia superior; a única capaz de consertá-lo. Poderia compará-la a Merin, obsessiva e sem qualquer escrúpulo, ou senso de realidade, porém a vagabunda-azul tivera a sorte de viver em meio aos bichos e portanto não carregava aquela mimadice e absolutismo insuportável; ao contrário de sua algoz. Nela, não havia a inocência dos selvagens. 

— O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, HOMEM? 

Ali estava ela, pensou o cozinheiro ao reconhecer a voz imponente de Bertruska, a salvadora das malucas indefesas sempre surgia nos momentos menos oportunos. Poucos passos atrás estavam os demais tripulantes, com as feições diferentes do normal, o cozinheiro não saberia dizer o que se passava na cabeça de Camerin — certamente nada de importante, no máximo alguma nova declaração, ou talvez um apelido vergonhoso para o médico —, entretanto Belka e Morgan sem sombra de dúvidas presenciaram o show e não conseguiam compreender. Dentre todos os companheiros, a face da gatuna era a que mais o incomodava: de olhos arregalados e sobrancelhas arqueadas, ela assistia aquela cena como se visse na mulher caída no chão algo que ninguém além dela poderia ver. Um espelho de si própria. Mais aterrorizante que ver Flint naquele estado de nervos, ou então de ver Bertruska pronta para avançar sobre o homem a fim de proteger aquela indefesa donzela, era pensar que naquela puta, de roupas apertadas e seios quase à mostra, via-se uma Belka que, se não fosse gato, estaria naquela mesma situação: aos pés do cozinheiro, esfregando-lhe informações como se fosse seu direito saber delas — não eram. Da mesma forma que não gostaria de ter seu passado exposto, ele também tinha o direito de esconder o seu.

— Bertruska! Você já fez mais do que o suficiente quebrando a porra do meu nariz.... Só suma com essa mulher, por favor. — o homem pediu, sôfrego.

— Acha mesmo que vou lhe obedecer após ferir uma jovem inocent...

— Não ligue para mim. Um covarde morrerá covarde, Ivan! — e a mulher sorriu, com todos o dentes e os olhos brilhando, não morreria ali. Se morresse, não ligava, mas tinha convicção de que estava diante do maior frouxo de todos os tempos. A rejeição não a machucava, agora o homem jamais iria a esquecer; muito melhor do que um amor passageiro, tornou-se um lindo trauma.

— BERTRUSKA! VAI LOGO, EU ESTOU MANDANDO! — a gatuna ordenou, batendo o rabo no chão diversas vezes, como um chicote; aquela pessoa estava começando a tirá-la do sério. A ex-marinheira então seguiu para longe dos companheiros de tripulação, guiando a mulher pelos longos corredores do local. 

O silêncio era desconfortável. 

— Ela foi a Merin da minha antiga tripulação... sem a parte selvagem, obviamente. — o cozinheiro explicou e ainda que a informação tenha passado batida pelos ouvidos da própria navegadora  (que neste momento estava agarrada a um dos braços do médico, com a cara amarrada e ouvindo atentamente seus batimentos cardíacos), para Belka e Morgan meia-palavra bastaria. — Deixei a tripulação alguns dias antes de ser salvo por Poyo. Ela zombou dos meus... objetivos. Quanto a todo o resto, sei que é pedir demais, mas prefiro que não perguntem sobre.

— Você vai nos abandonar, Flinny? — a pirralha perguntou, preparando-se para morder o braço do cozinheiro. — Eu não esqueci da prancha!

Flint deu um risote fraco, seguido de um sorriso sincero e um afago em sua cabeça. — Não irei. Estou contigo até a morte, capitã.

— Pois se pretende ficar, não pode deixá-la andando por aí. Ela sabe que rota você está tomando. — Belka deu um suspiro pesado, sabia dos riscos de andar junto de um pirata e por isso mesmo desejou abandonar Flint na primeira noite, mas agora era tarde demais. Não o abandonaria, estava muito longe de sua capacidade emocional abandonar qualquer um de seus amigos neste ponto da viagem, e por ele, em especial, estava disposta a sujar suas mãos outra vez, caso ele se negasse a resolver aquele... problema sozinho.

— Ela sabe demais, Flint! — a capitã reforçou, trazendo as informações ditas pela imediata e as traduzindo para sua própria linguagem. Não satisfeita, passou o polegar direito pela garganta lentamente e colocou a língua para fora após o pequeno dedo completar o caminho.

Aquilo era visual até demais, o cozinheiro pensou, sentindo as pernas amolecerem pela ansiedade desprezível que antecedia um crime daquele calibre. Não estava tramando um roubo, tampouco matando pelo calor do momento: estava, conscientemente, planejando uma queima de arquivos que ia muito além daquela moça. Precisava pensar em um plano o mais rápido possível, não era um dos mais geniais e sorriu cínico ao perceber que quem deveria ajudá-lo tentava fugir, se esgueirando pelas paredes. Em dois passos agarrou Morgan pela parte traseira da camisa e o guiou até os armários, já havia traçado em sua mente, mas precisava do aval do amigo para seguir em frente; ele era o cérebro da equipe.

— Entrem com a doida nas termas e tentem descobrir alguma informação relevante sobre o bando e se possível façam-na falar o mais alto possível, Morgan e eu ouviremos através das paredes de madeira. Precisamos saber o quanto eles sabem. — informou, coçando a barbicha e percebendo o quanto precisava de um cigarro. — Peça que Merin foque completamente na voz de Morgan assim que ouvir a palavra "morceguinho". Passaremos as informações por ela. — sussurrou a última parte, somente para a imediata, que lhe sorriu sarcástica. "Ao menos desta vez eles teriam um plano", era o que ela desejava falar, mas preferiu ficar calada; os comentários ácidos poderiam ser guardados para depois, quando obtivessem sucesso na nova missão.


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