Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 17
Grand Line, Praia de Poluora (Pulvereta)


Notas iniciais do capítulo

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Um pouco mais cedo naquele mesmo dia, a paz reinava na Carniça, e nem mesmo os miados mais altos de Belka, resmungando por qualquer coisa que fosse no andar de cima, poderiam tirar Bertruska de seu nirvana pessoal. Quem diria que teria tamanho privilégio logo de manhã? Estava à poucos metros de sua musa, observando-a após sair do banho enquanto penteava seus cabelos com tranquilidade e cantarolava alguma canção relacionada a morcegos que havia acabado de inventar. Sem dúvida alguma, um anjo incompreendido. Junto das liras sacras — que certamente só ela, em toda a sua maluquice, poderia ouvir —, sua vozinha sombria lhe aquecia o peito e, claro, seu corpo semi-exposto lhe dava arrepios na nuca, imaginando que, por baixo daquela toalha, apenas a felicidade lhe aguardava. Tendo sido marinheira por tanto tempo, sabia que não deveria se deixar seduzir daquele jeito, mas, bem... Conscientemente havia escolhido se afundar no mar com aquela belíssima sereia.

Contudo, como não poderia ser diferente para aquele bando, nenhuma calmaria durava muito e, sem dó nem piedade, seus delírios foram interrompidos por um súbito salto de Merin, que mesmo após deixar sua toalha cair no chão pelo susto, pretendia correr exasperada em direção a cozinha, a fim de auxiliar seu amado médico que agora era alvejado pelos gritos furiosos do cozinheiro.

Ao ver aquela sem-vergonhice (isto é, decerto correr nua por aí era um sinal de pureza, tendo em vista que na vida selvagem isso era visto como aceitável, mas, droga, estavam em um barco pirata, não no meio da floresta, e tampouco num bordel!), Bertruska sequer titubeou em agir: se levantou do beliche no mesmo segundo que a mulher azul ameaçou abrir a porta do quarto das mulheres e fez o que toda mãe deveria fazer quando sua cria inicia uma crise de birra: tomou-a pelos ombros e a guiou de volta ao banquinho da penteadeira — de onde nunca deveria ter saído —, colocando-a de castigo.

— Termine de se trocar, e depois você vai ver o que aconteceu. — disse a ela, com um semblante sério. A índia pensou em dar uma resposta, explicando o porquê de ser imprescindível ir atrás de seu amado, mas o olhar sobre si secou sua garganta e não pôde responder.

No andar de cima, houve um pequeno minuto de silêncio, e em seguida os gritos se intensificaram — com o adendo de que, dessa vez, Poyo havia se juntado ao coro e chorava alto também.

Era sempre assim: quando a capitã resolvia se meter em uma briga, começava a chorar, e a partir daí todos os sentidos de Merin se embaralhavam, a impedindo não só de patrulhar o mar como também, bem mais importante que isso, de monitorar o que seu amado fazia e por onde andava. Sentada na banqueta, travou cada centímetro de seu corpo, concentrando-se apenas em reencontrar seu morceguinho em meio aos berros desesperados, mas infelizmente não conseguiu. Enquanto convivesse com aquela matraca, jamais serviria como o amplificador que deveria ser — ou que esperavam que fosse, que seja. Num suspiro cansado e de sobrancelhas franzidas, apenas uma coisa vinha a sua mente: "De que adiantava ter uma habilidade se a fraqueza desta estava a poucos metros de distância?"; Poyo era o pólo oposto de sua habilidade, e como duas forças contrárias, se anulavam mutuamente. Mordeu os lábios com força. Queria eliminá-la.

Era inútil por causa dela.

De repente, um urro do cozinheiro atravessou as paredes do quarto: — VAI LAVAR ESSA MERDA, SIM! — vociferou, seguido de um grito de dor: a capitã havia chegado na parte das mordidas (o terceiro item do modus operandi; quando Poyo não consegue o que quer, ela esperneia, chora e morde).

Depois de mais alguns guinchos de desespero (por vezes masculinos, mas na maior parte das vezes infantis), somado ao barulho de alguém descendo as escadas para o deque inferior, puderam ouvir alguém se aproximar dos quartos, e então o barulho de duas portas se abrindo: do corredor para o hall do banheiro e, por fim, para o banheiro em si.

— NÃO! TUDO MENOS ISSO! — Poyo gritou, batendo nas paredes, provavelmente tentando se soltar dos braços do cozinheiro ou se segurar na porta.

Era um banho. Com certeza era um banho. Mas... se colocá-la na banheira era o motivo da confusão, por que Morgan e Belka estavam envolvidos anteriormente? Algo não se encaixava naquela história.

— EU PREFIRO A MORTE, ME MATA! — a menina chorou alto.

— FICA QUIETA. É SÓ ÁGUA! — Flint berrou de volta, tentando inutilmente usar a razão contra ela. Alguns segundos após o último grito, pôde-se ouvir o barulho do chuveiro sendo ligado, e então imenso estrondo molhado acompanhado por outro grito de dor do cozinheiro. Fez-se silêncio no cômodo ao lado. As duas mulheres tentavam, sem sucesso, descobrir o que diabos estava acontecendo ali.

Num tom mais baixo, o homem continua a dizer: — Trate de ficar dentro desse banheiro, vou buscar uma roupa e uma toalha seca para você.

— Nunca. — a menina diz séria, seguida por um inconfundível som de cuspe.

Mesmo sem entender exatamente o que estava acontecendo no banheiro, guiada pela última fala do cozinheiro, Bertruska sabia muito bem qual seria seu próximo passo: a suíte. Num segundo, olhou para sua colega de quarto, completamente nua e sem nem pensar duas vezes saiu em disparada em direção a porta do hall que conectava o quarto com o banheiro, querendo a todo custo evitar uma situação ainda mais desagradável, contudo, rápido como era, o Diabo está sempre com o fósforo aceso, prontíssimo para acender o barril de pólvora. Não deu tempo. Quando foi notar, Flint já havia invadido o quarto, segurando firme Poyo pelo pulso, ambos molhados dos pés à cabeça numa maçaroca de melaço, massa de panqueca e água. Merin deu um berro ensurdecedor, e no mesmo instante que a porta se escancarou, foram os dois, cozinheiro e capitã, chutados para fora.

— MEU NARIZ! — Flint berrou.

— SUMA DAQUI, HOMEM! — Bertruska disse em troca, a voz mais empostada do que nunca. — NÃO TE ENSINARAM A BATER? — continuou. Por sua vez, o cozinheiro não disse uma palavra; apenas soltou um sonoro resmungo, como se estivesse juntando a fala com o que havia visto dentro do quarto (foi tão rápido que nem tivera tempo de assimilar).

— SOCORRO, BERTRUSKA! — Poyo pediu. A ex-marinheira olhou para a mulher azul, pedindo autorização para intervir, mas notando o rosto de puro constrangimento de Merin, não se atreveu em abrir a porta. Não respondeu mais nada e, poucos momentos depois, o chuveiro tornou a ser ligado e os berros cessaram. A paz (muito estranhamente) retornara ao barco.

De modo geral, Bertruska podia se orgulhar por ser tão boa no papel de proteger sua selvagem, contudo, isso infelizmente não era um fato para todos os cargos que gostaria de assumir, uma vez que, enquanto cavalheiro, estava bem longe do serviço perfeito. Agia por impulso, e isso era sua sina. Quer dizer, de fato conseguira proteger as vergonhas de sua musa, mas a que preço? Mal hesitou antes de sacrificar a capitãzinha, trancando-a para fora do quarto com um sujeito sem qualquer escrúpulo — e, acima disso, sendo posta para banho por ele, um homem.

Todos os pelos de ser corpo se arrepiaram ao compreender o que havia feito. O que diabos havia feito? Estúpida. Estúpida!

Como um raio, correu para o hall do banheiro, o rosto fervendo e prestes a colocar Flint no lugar em que ele merecia estar. Conquanto, no fim das contas aquela raiva toda não foi necessária nem para arrombar a porta: assim que foi do corredor para o hall, não pôde ficar mais surpresa ao encontrar o cozinheiro do lado de fora, parado feito uma estátua e acendendo um novo cigarro.

— O que foi, diaba? — ele diz entredentes, segurando o cigarro nos lábios e ao mesmo tempo soltando a fumaça por suas narinas inchadas. Mais parecia um touro queimando em fúria do que qualquer outra coisa.

Bertruska congelou onde estava, a história que criou sendo desfeita diante de seus olhos. A sua frente, o homem lhe encarava de olhos apertados e cenho franzido, carregando dentro de si um ódio que não podia conceber. Engoliu seco. Não por Flint, é claro — poderia lidar com ele normalmente. No entanto, algo naquela situação parecia diferente, de alguma forma. Aqueles olhos, tão cruéis que sequer pareciam pertencer àquele que outrora cozinhava para todas elas... Não conseguiu conter um medo instintivo lhe tomar a espinha, pedindo para que recuasse. Abaixou a cabeça, mas não se assumiu derrotada: para não desperdiçar sua postura (ou perder sua moral diante daquele homem), aproveitou a força que usaria na porta do banheiro para desferir um tapa bem dado no rosto de Flint e dizer, bem alto:

— Acha mesmo que pode invadir o quarto das mulheres assim? — bateu o pé.

— E você? Pelo visto acha que pode quebrar meu nariz sem qualquer consequência. — o homem segurou o cigarro nas mãos e a encarou profundamente, dando uma piscadela cínica. Bertruska, contra todos seus princípios e também a sua última ação, sentiu o corpo contrair e deu um passo para trás; poderia lutar, mas aquela não era a hora correta de enfrentá-lo. O verdadeiro cozinheiro era fraco e pouco obstinado, não aquela bestialidade a sua frente. Uma gota de suor frio percorreu sua espinha.

— Você... — resmungou baixo, mas antes que pudesse formular uma frase, a segunda porta do banheiro (a que dava para o quarto) se abriu, e dela saiu Merin, já devidamente vestida e penteada. Sem hesitar (e também sem pensar), ela enfia o indicador na tala que segurava o nariz de Flint:

— Você tem sorte de ter gritado com meu Morceguinho enquanto eu estava no banho! Da próxima vez, não vai ficar barato. — ameaçou, os três olhos com um ar desafiador. Aviso dado, saiu marchando torta, na fútil tentativa de se equilibrar nos saltos da sandália. O som de seus passos ecoaram alto junto do barulho do chuveiro.

— Ele não está lá em cima. — disse Flint, dando de ombros e colocando o cigarro de volta na boca. Bertruska o olhou pálida, em completo estado de choque; desde quando ele falava grosso com a onça?, pensou.

Por sua vez, a mulher azul  virou a cabeça, dando-lhe um ríspido "Como assim?", agora parada no lugar.

— Eu disse que ele poderia ficar, mas ele preferiu acompanhar a Belka. — tragou o cigarro e encarou a garota, lhe dando um aceno com as sobrancelhas. — Saíram tem quase meia hora, já devem estar explorando a ilha agora.

Seus olhos direitos tremeram.

— Eu não acredito em você. — ela diz, contorcendo a boca em desdém e empinando o corpo para subir as escadas íngremes.

— Você pode acreditar no que quiser, mas tenho certeza de que já não está o escutando. — "Flint" deu um sorriso sacana. — E também não deve ter escutado seus batimentos acelerarem, estou certo? Até que se prove o contrário, ele foi por livre e espontânea vontade.

A garota trincou os dentes, controlando o impulso de esmurrar o cozinheiro de uma vez por todas e, com os pulsos cerrados, deu-lhes as costas e correu escada acima, inconformada.

≈≈≈

— EU NÃO ACREDITO QUE ELE ME LARGOU! — Merin berrou, para todos os ventos e para quem mais quisesse ouvir seu pranto. Caminhava com o pé arrastando na areia, sofrendo para se movimentar pelo peso do abandono que caia sobre suas costas. Bertruska, a alguns metros de distância de si, queria enfiar seu rosto no chão e sair do outro lado do mundo, com vergonha do que sua musa estava a fazendo passar (e, diga-se de passagem, nunca fora uma mulher fácil de se constranger).

— Garanto que ele foi comprar um presente para você, Bonequinha — tentou explicar num murmúrio, buscando contê-la só com palavras (porque não queria usar a força contra ela, era uma luta injusta). Entretanto, nada adiantava.

— ELE FOI COMPRAR PRESENTE PARA AQUELA GATA VAGABUNDA, ISSO SIM!

— Docinho, é só a Belka, ela não tem a menor chance... — Bertruska falou da boca para fora, e soltou um suspiro aliviado ao ver que havia conseguido capturar a atenção da outra por um instante. Merin olhou para trás, esperando que continuasse a dizer. — Quero dizer, ele com certeza prefere humanos...

— ELA JÁ FOI HUMANA! — gritou, chutando a areia da praia para o ar. — Eu sempre fui monstro, e por isso ele me trocou! Porque ele gosta de humanos!

A ex-marinheira se calou de pronto, percebendo que era inútil discutir com ela naquele estado. No fim das contas, estavam andando em círculos desde que chegaram naquela ilha e, como uma verdadeira maluca, Merin só parava de correr quando precisava berrar alguma insanidade (e de vez em quando derrubar algumas lágrimas de pura ansiedade). Parecia desesperador, visto de fora — quer dizer, quem quer acompanhar os delírios de uma selvagem louca por "amor"? Todavia, apesar de considerar o percurso problemático, ver sua bonequinha tão focada em um objetivo era algo... fofo, até certo ponto. Bem, ao menos fofo o bastante para ela, que também não era a epítome da doçura... De qualquer forma, precisava ajudá-la porque ela não conseguiria se virar sozinha.

Estavam longe o bastante para não verem mais o barco, mas também não perto da civilização, uma vez que Merin estava descrente de que seus companheiros já estariam na cidade — afinal, eram os dois maiores folgados da tripulação e jamais poderiam andar por aquela restinga tão rápido (embora não tenha pensado na possibilidade deles terem tomado outro percurso). Em sua cabeça, pôs que eles estavam em algum lugar ali mesmo, escondidos em meio a mata ciliar que adornava a praia e provavelmente rindo de sua cara agora — uma completa ingratidão! Depois de tudo que fizera por ele, era isso que recebia em troca: uma faca em seu coração, e uma (segunda) galhada de chifres muito bem posta em sua cabeça, cortesia daquela gata filha da puta. Em completa exaustão, seus berros saíam arrastados, mais por hábito do que por esperança, e quando não tinha voz para gritar aos céus, se contentava em mandar Bertruska parar de respirar, a fim de procurar os sons na mata.

No que diz respeito à marinheira, esta sequer abria a boca, caminhando pouco e tentando encontrar algum lugar a sombra, visto que o sol escaldante já castigava suas costas recém-queimadas. No fim, não havia nada em volta sem ser a flora natural e alguns caranguejos estranhos que corriam horizontalmente na areia. Poderiam estar longe dali, tomando um copo de água gelada e descansando em uma cadeira confortável, já que os comércios pareciam despontar a menos de um quilômetro de onde estavam, contudo não havia como discutir com Merin: sua única opção era esperar que sua sanidade voltasse.

— ACHEI! Eu sei que te achei, venha logo, morceguinho! Não me obrigue a te buscar! — a moça berrou a plenos pulmões, a voz falhando nos dizeres e, tal qual um animal feroz, saltou para dentro da relva, sem nem se importar em avisar a guerrilheira sobre o que iria fazer. Ouviu-se do mato um gemido feminino que Bertruska não pôde reconhecer.

Um... Dois... Três segundos de total silêncio.

Finalmente, Merin saiu empalidecida de dentro das folhas vermelhas de palmeira, os três olhos arregalados e não conseguindo dizer uma palavra sobre o que vira. Logo atrás de si, uma estranha se levantou:

— Fale mais baixo, moça! — a estranha (não haveria melhor palavra para descrevê-la) pediu, andando com dificuldade em direção às gatunas, com a face amassada devido ao sono e somente um dos olhos abertos e parecendo não se importar em chutar algumas das garrafas de vidro que antes a envolviam no processo. — O que desejam-fiyu? — inquiriu, em tom jocoso.

Bertruska sentiu seus olhos sair de órbita e a cabeça rodar. Estava somente a alguns dias na Grand Line, mas já poderia agradecer a todas as deusas pela nova musa que lhe presentearam. A moça a sua frente era definitivamente estonteante, algo que jamais encontrou em seus anos no mar; seu corpo semi-exposto pela saia transparente, somado a pele bronzeada e curvas acentuadas; os cabelos loiros caídos sobre os ombros, os seios pequenos saltando pelo collant... tudo isso a deixava sem palavras.

— Poyo. — Merin soltou de repente, dando um "tsc" alto seguido de uma torcida de cara.

— Quê? — sussurrou Bertruska, em direção a navegadora.

— O que é um Poyo? — a estranha perguntou. 

— Nossa capitã. Vocês são parecidas. — a mulher azul concluiu, sem pensar muito na resposta. — Apesar que ela é mais encardida, se é que é possível. — murmurou a última parte, lançando-lhe um olhar arrogante que qualquer um pensaria ter saído de Belka, se fosse em outra ocasião.

O mundo de Bertruska caiu. Uma rainha fora destronada diante de seus olhos e nada podia ser feito em relação a isso, suas mãos estavam completamente atadas e não havia nada que tiraria esta visão de si. Como poderia ela desejar desposar de alguém tão parecido a sua pupila? Em um segundo, com tão poucas palavras, o seu futuro promissor ao lado da bela moça lançou-se diante aos seus pés: o olho torto da bela dama se transformou nas bolas de gude da capitã e, para todo o sempre, veria naquele nariz uma infindável fonte de catarro. Quis chorar; agarrar Merin pelos ombros e perguntar o porquê de ser tão má. Contudo, antes que pudesse fazer qualquer coisa, a mulher loira começou a falar:

— Obrigada-fiyu! — deu uma palminha, sorrindo animada. — Eu sempre quis ser capitã da marinha, mas eles não contratam mulheres com um passado criminal hoje em dia. Uma grande injustiça. Fiyu-fiyu-fiyu. 

— Não somos marinheiros, bobinha. — Merin explicou, com um sorriso um tanto cínico; algo que não era característico da navegadora. — Somos piratas, ou algo do gênero.

— Ah... Bem, eu acreditei que tivesse alguma ligação, afinal já vi uma de vocês com uma camiseta da marinha—fiyu, mas devo ter me enganado! — a moça riu boba e puxou a bolsa lateral que carregava para sua frente, abrindo-a e buscando algo dentre os infinitos papéis que haviam ali. Não demorou muito para segurar um em mãos e colocá-lo frente aos olhos de Bertruska, com um sorriso no rosto. — Aqui está, marinheira! Onde eu te vi. — piscou o olho bom.

A imagem estava amassada e dobrada algumas vezes, porém foi o suficiente para guerrilheira perder o chão e, sem demora, arrancar a página das mãos da falsa-Poyo. Não pôde evitar de sentir um desconforto em sua respiração, era uma maldita procurada agora! Desdobrou, ainda incrédula, desejando que não passasse de um terrível engano ou alguma brincadeira de mal gosto, entretanto a realidade lhe espancou a face: era de fato uma mulher de interesse da marinha e, sobretudo, uma com a recompensa consideravelmente avantajada. Sentiu suas mãos tremerem, já imaginava que seu momento chegaria hora ou outra — afinal, sua baixa da marinha foi, sem sombra de dúvidas, honrosa —, porém aquilo era alto demais, mesmo para ela. Colocando em parâmetro, Flint era procurado por anos e não tinha nem a metade de sua recompensa inicial. Eram onze milhões a mais do que a do cozinheiro e, como se não bastasse, agora valia o mesmo que um dos maiores piratas do East Blue, Buggy, o Palhaço. Aquilo era assustador, para dizer o mínimo. Mal conseguia se considerar uma pirata, quiçá uma das grandes, e de repente lhe jogavam nas costas um preço maior do que todo dinheiro que acumulara em sua vida, como se tivesse feito uma chacina igual as que o Palhaço fez quando bombardeou cidades inteiras por diversão. Como poderiam taxá-la como igual aquele homem? É verdade que não tinha certeza se matou alguém além do jornalista que tirou a sua foto, mas este não contava, pois nunca respeitou jornalistas para começo de conversa. Em todo caso, era uma injustiçada até que se provasse o contrário! Precisava reaver aquele mal enten...

— E é por isto que estou procurando meu amado Morgan! — Bertruska foi tirada de seus delírios mentais pela voz de Merin, que antes tão mal humorada, agora contava alegremente sua jornada para uma completa estranha. Não sabia dizer por quanto tempo ficou presa em devaneios, mas teve medo que fosse tempo o suficiente para Camerin ter falado mais do que devia. A falsa-Poyo, mais do que nunca, representava uma ameaça para elas, porque, por qual outro motivo alguém carregaria tantos cartazes de procurado senão para caçá-los? Já estivera naquele exato lugar e não pôde evitar de dar um passo para trás.

— Então a tentativa de assassinar o cozinheiro loiro fez seu noivo se apaixonar-fiyu? — perguntou a moça, abrindo um sorriso sacana entre os lábios secos e mostrando seu dente de ouro (mais do que nunca Bertruska sabia que mendigos normais não tinham dinheiro para ter um desses).

— Sim! Inclusive, ele vai amar esta foto, foi neste dia que ficamos juntos e selamos nosso amor eterno! — segurava em seus braços como tesouro outro pedaço de papel, bem menos amassado que o primeiro, porém igualmente cartaz.

A ex-marinheira engoliu seco, sabendo o que lhe aguardava. Nele, havia uma foto de Merin com as mesmas roupas esfarrapadas que usava no momento que fugiram de Goa Kingdom, e abaixo de seu rosto, uma recompensa relativamente pequena, mas nem por isso menos preocupante. Eram duas procuradas, e estavam juntas, prontas para serem capturadas — se ainda fosse marinheira, com certeza aproveitaria essa oportunidade. Apertou o braço da garota de pronto, puxando-a para irem embora dali, mas ela não parecia ter noção do perigo e continuava a conversar:

— Eu pensei que seus batimentos pudessem se tratar do meu morceguinho, mas acho que me enganei... Já não ouço mais algo arrastado. — ela suspirou, olhando para cima (talvez buscando esperança).

— Como assim? — a mulher perguntou, o que seria uma dúvida razoável para quem não convivia com a habilidade de Merin, mas não tão normal para quem acabara de ouvir toda sua epopéia.

— Estou ouvindo uma frequência mais acelerada agora. Não sei para onde foi a outra. — a garota azul explicou pensativa. — Eu devo ter me confundido, a não ser que... — arregalou os três olhos e franziu a sobrancelha. — Você por acaso não estaria escondendo meu noivo de mim, não estaria? 

A mulher dos cartazes, compreendendo com o que estava lidando e antes que a garota lhe atacasse novamente, tomou a dianteira: — Ora, não tenho nenhum marido comigo não, mas tenho algo que pode te ajudar a caçá-lo, se quiser! Fiyu-fiyu-fiyu! — afirmou com um sorriso faceiro, vendo nelas uma chance de enganar e fazer dinheiro, nessa ordem (não vendia nada a dias e hoje, não amanhã e muito menos semana que vem, seria o dia de tirar a barriga da miséria). Colocou a mão dentro do sobretudo, como se procurasse algo — Nenhum homem resiste a uma mulher bem armada e os espíritos me disseram que a lâmina de uma boa foice afasta o mau agouro das mulheres invejosas, querida. — apontou para Merin, puxando algo para fora da roupa...

— SE AFASTE AGORA! — bradou Bertruska, temendo que o movimento da estranha não passassem de uma tentativa de emboscá-las. — OU FAREI JUS AO MEU CARTAZ DE PROCURADA AGORA MESMO! — ergueu seus punhos.

— Ei, ei! — a estranha parou no mesmo instante, levantando os braços rendida. — Não precisa de nada disso, por favor. Quero apenas dar a minha amiga uma forma de amarrar seu homem.

— Isso! — a bonequinha gritou. — Não me atrapalhe, Bertruska, ou serei obrigada a desconfiar de você também. — abaixou o tom, erguendo uma sobrancelha; não queria matar ninguém além daquela gata biscate hoje.

— Boa garota! Fiyu-fiyu-fiyu — A falsa-Poyo incentivou (como a verdadeira faria), abrindo de volta seu sorriso amarelado — De todo modo, Marinheira, — debochou de Bertruska — Não acho que seja bom usar as mãos com lixos como eu, e isso sem contar que você pode encontrar outras ameaças no caminho... — deu uma piscada, sabendo como desenrolar. — Talvez eu tenha algo para te ajudar também. O que acha de olhar?

A garota fez um sinal com o dedo pedindo para que a mulher se aproximasse. Receosa, Bertruska deu um passo à frente, ao mesmo tempo que a mendiga colocava a mão no sobretudo e novamente o abria, dando abertura para que as garotas enxergassem sua mercadoria. Puderam notar um pequeno arsenal de armas, das menores até as de médio porte, diversas facas e, em especial, a magnífica foice prateada, que parecia estar estrategicamente colocada para os olhos de Merin. Ao contrário daquela que carregava em suas mãos — quase sem fio e com diversas marcas do tempo —, a ofertada pela vendedora era um verdadeiro deleite para os olhos, prateada e muito afiada, com entalhes florais no metal e uma haste arredondada de madeira escura, como um velho carimbo. Os olhos da navegadora brilharam; com certeza desbancaria a gata vagabunda com uma daquelas em sua mão! Era imponente, digna das melhores mulheres.

Pouco a pouco a dita vagabunda azul se familiarizou com o mundo, com as aparências e, a passos lentos, com o dinheiro e as relações monetárias. Se antes andava despenteada e aos trapos, hoje jamais se permitiria caminhar sequer na proa desta maneira. A vida era muito melhor longe da floresta e por mais que tivesse um apego a sua velha lâmina, eram outros tempos, uma nova vida e um novo nome a ser carregado.

— Vou querer a foice! — afirmou irredutível, não deixaria a ex-marinheira sequer pensar em interromper sua compra. Aliás, "compra" não definiria exatamente o que estava pensando naquele momento; uma "troca" faria mais jus. Sem hesitar, tomou sua foice velha em mãos, oferecendo para a vendedora com um sorriso quase inocente no rosto.

— O que é isso? — perguntou a Falsa-Poyo, colocando seu monóculo no olho funcional para avaliar a peça. O metal era velho, mas como não parecia estar oxidado, poderia valer alguma coisa depois de restaurada.

— Uma troca, oras! Lhe darei a minha em troca da nova.

— Eu posso dar um pequeno desconto, mas não trocar, obviamente! — a vendedora sorriu amarelo, segurando a vontade de mandar a garota ir para o inferno porque infelizmente ainda precisava vender. Reafirmou o valor, com um pequeno desconto e sorriu abertamente ao notar o rosto realizado da garota: ela se sentia genial por conseguir negociar míseros centos, e a estranha por conseguir roubar dinheiro daquela maluca (a foice que estava vendendo não custaria metade do quanto cobrava se não tivesse os entalhes engana-trouxa).

— Bom... — Merin mexeu na pequena bolsa de notas afobada, buscando dinheiro para receber seu "prêmio". Para ela, contas não faziam muito sentido e de jeito nenhum conseguia compreender em que momento papel passou a valer tanto, contudo, não podia deixar de achar aquele conceito "humano" fascinante (talvez por culpa de Morgan, mas não queria falar dele naquele momento). — Isso deve cobrir o valor! — A garota pegou um bolo de notas e ofereceu para a vendedora: não tinha certeza do quanto precisava oferecer, mas se o valor era alto, supôs que precisava de muitas notas para cobri-lo. 

Com tanto dinheiro em sua frente, a coitada da vendedora quase caiu para trás, assustada com aquele maço saltando nas mãos de duas tontas — se elas, que não pareciam muito espertas, tinham tanto, considerou seguro afirmar que os outros do bando tinham ainda mais. Talvez a mulher de três olhos não fosse a única a procurar o médico naquele dia, pensou.

— Me dê isso aqui — Bertruska interceptou as mãos da companheira e contou as notas com muito mais esmero do que geralmente faria e entregou nas mãos da mendiga uma quantidade consideravelmente menor de notas. — Aqui está, ficaremos somente com a foice!

— Você tem certeza que não deseja nada? Uma pistola ou quiçá uma faca? — tentou argumentar com a marinheira, seus olhos quase umedecendo só de pensar em seu jantar de lagosta borboleta nadando para longe. 

— Não preciso de nada além dos meus punhos. — Bertruska esclareceu, mais categórica do que nunca, e antes que aquela mendiga pudesse convencer Merin de comprar alguma outra coisa, tomou-a pelo pulso, voltando ao caminho.

Ao ver suas clientes se afastarem, a vendedora colocou suas engrenagens para trabalhar em velocidade máxima, pensando rápido numa solução para arrancar mais dinheiro delas antes que fossem embora para sempre. Quando notou que a moça de cabelos curtos não pretendia voltar de jeito nenhum, como seu último recurso, atira à queima-roupa: — Eu tenho algo perfeito para você! — mentiu, cruzando seus dedos para que nenhuma das duas notasse suas intenções (porque, depois de ouvir toda a aventura da estranha de chifres, já tinha certeza de que ela poderia ler suas mentiras, mas só se estivesse desconfiando).

— Eu já não te disse que não quero nada? — a ex-marinheira parou, virando só a cabeça. Não gostava de bater em mulheres bonitas, mas depois de vê-la quase aceitando o bolo de dinheiro de Merin de má-fé, poderia abrir uma exceção.

— Sim, mas meus búzios estão dizendo que não posso deixá-la partir! Dizem que nosso encontro foi predestinado. — piscou os dois olhos, passando a língua levemente nos lábios e virou-se de costas, puxando sua bolsa lateral consigo. O fato era: não tinha algo ideal, mas iria encontrar! Para fazer dinheiro em cima daquelas trouxas, estava disposta a tudo.

Abriu a bolsa e não havia nada realmente valioso ali, somente alguns dados, algumas cartas de tarô — que posteriormente usaria para enganar um outro tipo de otário — e alguns grãos de milhos. A única coisa importante ali era sua fiel escudeira, uma pequena galinha preta adormecida, que carregava para todos os cantos e eventualmente lhe garantia um gostoso almoço, entretanto, do que adiantava garantir um único ovo se precisava almoçar e jantar todos os dias? Puxou a plumosa em seus braços e após um breve pedido de desculpas, virou-se em direção a compradora.

— Esta galinha! Seu nome é Fionnula, uma companheira de longas viagens e amiga para todas as horas. — suspirou, vendo a face da marinheira relaxar ao encarar o bicho. — Como é dito em seu nome, um dia este animal se tornará um belo cisne e enquanto isso não acontece minha amiga emplumada viaja pelo mundo, conhecendo todos os cantos. Não posso dar-lhe de presente pois precisei comprá-la de um matador quando aportei aqui, esta cidade tem uma grande predileção por animais exóticos, porém farei um preço amigável. Temos um acordo?

Bertruska crispou os lábios, não queria comprar nada com aquela linda e traiçoeira vendedora, mas não poderia permitir que aquele pobre bichinho voltasse para dentro de uma bolsa fechada. Sendo cisne ou não, Fionnula teria um futuro melhor longe daquela maluca e ainda que o destino guardasse a galinha num caldeirão, sua consciência estaria limpa, pois permitiu que vivesse um resto de vida em sua liberdade.

— Temos um acordo. — entregou a contragosto as notas requisitadas e pegou o pequeno ser em seu colo, recebendo uma bicada em seu pescoço e um pequeno cacarejo, antes de se aninhar nos largos bíceps da guerreira.

Depois disso, não precisaram sequer se despedir da vendedora, pois no primeiro momento que ambas mulheres tiraram os olhos dela para olhar Fionnula, a maluca tratou de sumir. Assim mesmo, como poeira no ar. Desapareceu sem deixar sequer suas pegadas; e dela só sobraram as garrafas de álcool jogadas. Mas, no fim das contas, não deram grande importância. Merin parecia em ânsia para testar seu novo armamento e Bertruska queria sair do sol mais do que qualquer outra coisa, já temendo a nova queimadura que surgiria sob a anterior. Ajeitaram as tralhas, colocaram a galinha no ombro e seguiram em frente: rumo à Morgan. 

≈≈≈

Após o banho (e alguns socos repletos de mágoa por obrigá-la a vestir algo limpo, sendo que ela havia decidido a camiseta que queria usar antes), Poyo terminava seu café da manhã reforçado enquanto Flint era quem fazia todo trabalho braçal, desde limpar a cozinha da bagunça que seus companheiros haviam feito até secar o banheiro. Não que isso o incomodasse, de qualquer forma. Na verdade, era muito pelo contrário: uma capitã de barriga vazia lhe daria bem mais trabalho que uma simples embarcação, e disso ele sabia muito bem.

Com a caravela limpa, bastava iniciar os preparativos para aportarem. Nem se deu ao trabalho de checar o relógio pois a altura do sol denunciava passar das dez horas da manhã. Deu um suspiro cansado, secando seu suor em seguida; já havia perdido metade da manhã e o trabalho mal havia começado. Estingou as velas e arriou a bandeira preta do mastro — não poderiam arriscar mostrar uma posição por serem novatos na Grand Line e também porque haviam "queimado" sua bandeira (literalmente, no braço do capitão decrépito) com a chacina de velhos confrades dos mares. Não satisfeito com isso, fez questão de amarrar algumas redes no casco e a instruir sua capitãzinha a não mencionar, em hipótese alguma, que era pirata e tampouco que estava viajando com alguém além dele, isso porque tinha total noção de que seus companheiros eram "merdeiros" de carteirinha e de jeito nenhum queria ser associado a eles — estava de folga... naquele dia

Quando finalmente desceram do barco, a menininha não perdeu tempo em sair correndo em sua frente, prontíssima para analisar o novo território. Flint, por outro lado, a seguia a passos mais lentos, observando seus arredores com determinada hesitação. Apesar de muito apreensivo com a chegada no quinto mar, mesmo ele não parecia ver diferença daquela ilha para as outras que estivera. Não havia um bloco de ar sólido, ou então uma gangue da marinha esperando sua chegada logo na entrada; longe disso, a propósitoO porto era... um porto. Igual a todos os outros do East Blue, com vários barcos pesqueiros e afins, ainda que este parecesse um pouco mais acolhedor para piratas de modo geral — notou um barco pequeno com velas pretas enfronhadas na gávea, mas como a capitã havia deixado esse pequeno "detalhe" passar batido,  preferiu não dizer nada também (ou ela pediria para colocar suas velas de volta). 

Tudo parecia absolutamente mundano, muito diferente do que imaginava ouvindo as histórias de outros piratas. Quer dizer, era isso que estava evitando por tanto tempo? Uma ilha com vulcão? Ele poderia se assumir um covarde, mas não tanto assim; oras, que sua fraqueza ao menos fosse justificada pelas ilhas tenebrosas da praia à fauna, e não com um píer comum que não parecia ter nem metade das grandiosidades prometidas àqueles que cruzam a cachoeira invertida! Os piratas que abandonou com certeza estavam rindo de sua cara até agora por ser tão frouxo (bem como sua mãe apontou). Com todos os neurônios enfim cedendo, desistindo de trabalhar — não fritaram ou diminuíram as funções: desistiram —, o cozinheiro, anencéfalo,  só podia pensar em uma hipótese: dormira demais e não haviam saído do lugar. Que se fodam as cicatrizes que adquirira subindo a Red Line, aquilo tudo era só um pesadelo também! Como de praxe, sentiu-se um merda. 

A saída do pequeno porto dava direto para uma estrada de terra no meio de uma zona arborizada e com poucas casas, todas de teto de palha e paredes de madeira sem tinta, provavelmente a zona mais humilde da cidade (se é que ali já poderia ser considerado parte da cidade). Poyo nunca foi uma menina muito focada, mas se tinha uma coisa que ela fazia como ninguém, era sair correndo de um destino ao outro. Posto isso, eventualmente chegaram lá — onde? Que seja! O destino nunca foi mais importante que a jornada... Ou talvez só dissesse isso para si mesma depois de perceber que aquela estradinha cascalhada findava em uma encruzilhada velha e chata. Suspirou, desapontada. Na esquerda, havia uma pequena placa enfeitada com uma flecha indicativa em sua ponta e os dizeres "Vulcão Agni", enquanto o outro caminho não necessitava de um indicador: era mais curto e com pouco esforço era possível notar os telhados das casas e as vozes dos comerciantes. Flint não tinha dúvidas em que caminho tomar — que diabos faria num vulcão, afinal? Naquele instante, apenas torceu para que a capitã não tivesse interesse o bastante para perguntar o que estava escrito na placa, ou seu dia de descanso seria arruinado ao pé de uma montanha de fogo, porém, esquecera que o médico mesmo não estando presente no dado momento sempre dava um jeito de foder com suas vidas. Ela, uma analfabeta, soletrou: 

— Vú-cão... Como se lê isso? "Aguí"? — pergunta, tirando os olhos da placa para encará-lo com seus olhos gigantes.

— Águini. — jogou sem pensar no que estava acontecendo, mas não levou mais do que outro segundo para se dar conta da situação: — Espera, você acabou de ler a placa?

— Não, eu sou adivinha — ela zombou, mostrando a língua. — O que é um vucão?

Flint gaguejou antes de conseguir formar uma resposta, fora pego tão desprevenido com aquele comentário "na lata" que sequer tivera vontade de censurá-la com um tapa na nuca, como faria em ocasiões normais; em vez disso, somente engasgou com suas próprias palavras, precisando de um momento de silêncio com seus neurônios para se recompor e, só então, dizer ríspido:

— É uma montanha de fogo. — ele esclarece.

— Mas eu não estou vendo fogo daqui... — Poyo replica.

— Bem... — desviou os olhos dos dela, embaraçado com o encarar inquisitório. — Está dentro dela, o fogo. É por isso que sai fumaça só de cima.

— Hum... — Poyo olhou para a montanha por um segundo e depois voltou-se novamente a placa, colocando a mão embaixo do queixo, pensativa. — Flint, o-

— Não mesmo. — a interrompe.

— Você nem deixou eu terminar falar! — a capitãzinha inflou as bochechas e cruzou os braços. — Eu nem ia falar para irmos para lá...

— Ah, é? E ia falar o que, então? — deixou escapar uma risada debochada; achava conhecer Poyo muito bem (mas não conhecia).

Ela bate seu pé. — Eu ia perguntar o que está escrito aqui embaixo! — vociferou, apontando com o dedo indicador para as letras cursivas abaixo da nomenclatura, que ele, em todo o seu frenesi de não querer perder sua folga de jeito nenhum, ignorara prontamente. O cozinheiro sentiu as bochechas esquentarem no mesmo minuto. Fora desarmado pela pirralha uma segunda vez naquele dia e não tinha buraco que pudesse esconder sua vergonha. Quis morrer.

— Es-está escri-crito: "po-po-pousada e-t-te-termas" — disse uma terceira voz, fazendo com que ambos, cozinheiro e capitã, dessem um pulo pelo o susto e então travassem no ato; toda e qualquer desavença que poderia se forma ali, findou.

Emperrados como bonecos velhos, viraram suas cabeças para trás de forma hesitante, buscando quem quer que fosse o dono daquela voz com um tremendo receio (não estavam fazendo algo errado naquele momento, mas é como diz o ditado: "Quem não deve, não teme", e eles deviam. Muito). No fim, não passava de um negrinho banguela de olhos apreensivos, aparentemente mais novo que a capitã e sem camisa; apenas com uma bermuda de praia e um par de chinelos de dedo. Não era ameaçador — ao menos não com aquele tamanhico (Poyo ficava tão eufórica quando se sentia melhor que alguém que até seu vocabulário crescia, daí o sufixo "ico" na palavra). Isso pareceu tirar um peso de suas costas. Prontamente, a menina estufa o peito e ergue o nariz:

— 'Que que é, pirralho? — o peitou, arrogante.

Flint a olhou com indignação, sussurrando um "Qu'é isso?" esbaforido que foi completamente ignorado — a menininha só lançou de volta um olhar debochado, erguendo os ombros como provocação.

— P-pra ond-de vo-vocês v-vão? — o menininho perguntou.

— Não sei! Importa? — ela empostou a voz e lhe ofereceu sua melhor cara de má. — Talvez estejamos indo ver esse tal de Termas, e aí? Vai fazer o quê?

O cozinheiro, percebendo que se não tomasse frente naquela conversa logo sua capitã iria avançar para cima do menino pronta para mordê-lo (o poder de ser mais velha e mais alta que alguém havia subido a cabeça), colocou a mão sobre seu ombro e pediu com uma voz calma, mas nem por isso menos ameaçadora: — Poyo... Já deu, certo? — apertou sutilmente a clavícula e escápula com uma mão, apenas para mostrar que poderia apertar mais forte, se fosse necessário. Mas não seria, porque a menina compreendeu o recado e fechou o bico na hora. — Com "termas" você quer dizer "Fontes termais"? Ao pé do vulcão? — pergunta.

— Vo-vocês n-não po-podem ir at-até lá! — o menininho protestou.

— Por quê? — Flint insiste. Poyo não se atreveu a abrir a boca, mas queria ter perguntado também (talvez de forma mais... inquisitória).

— Bu-bu-bruxa... — o menino inicia, mas é interrompido pela menina:

— Que bruxa o quê, moleque! Fala direito comi-

— Cala a boca, Poyo! Ele é gago — o tapa foi inevitável dessa vez, seguido de um momento de arrependimento instantâneo ao ver se formar biquinho trêmulo em seus lábios: havia batido forte demais na pirralha. Culpado, pensou em se desculpar por perder a calma, mas não foi necessário pois a vergonha de chorar na frente daquele molequinho foi o bastante para calá-la antes mesmo de começar (ela era a opressora, de jeito nenhum podia mostrar fraqueza). Deu um suspiro aliviado, voltando-se novamente ao menino, apenas para notar que tinha outro problema: ele recuava aos poucos, aparentemente assustado com aquela relação de cão e gato.

— Espera! — Flint pediu.

Mas o menino só se virou e passou a correr mais, para bem longe daqueles loucos antes que decidissem arrastá-lo ao manicômio também. Sem ter outra escolha, o cozinheiro agarrou a mão da capitãzinha, apertando o passo para ver se conseguia alcançá-lo dentre as folhagens. Estranhamente, não foi nada difícil: por mais que o garoto pudesse se sumir nas árvores — uma vez que conhecia aquele caminho muito melhor do que dois forasteiros —, parecia optar por uma rota mais fácil, como se quisesse que o seguissem. E foi o que Flint fez. Não porque acreditava em bruxas, é claro, porém, a ideia de cair em uma ilha completamente pacata ainda não havia descido por sua garganta e por isso sentia que precisava investigar mais. Em outras palavras, a burrice e curiosidade de Poyo estavam o contaminando porque ele não podia assumir que ficar sem fazer nada o deixava entediado.

Seguiu pelo caminho das casas dispersas até elas se tornarem só árvores, e depois até as árvores se separarem outra vez para dar lugar a outro caminho de terra. Foi quando, contra todas as expectativas, o perdeu de vista. Mesmo que não tivesse lugar para ele se esconder; mesmo que ele não estivesse tão distante assim... Puft, de repente apenas uma reta se fazia presente, além de algumas placas indicando o que estava no final do caminho de cascalhos. Diziam: "Pousada da bruxa" — e no mesmo instante Flint entendeu o que havia acontecido, largando o pulso de Poyo e parando de correr. O caminho terminava onde iniciava um imenso casarão; evidentemente, outra pousada. 

— Que filho da puta... — resmungou, descadeirando—se sobre os joelhos para recuperar o ar. Enfim notou a voz de sua capitã soando como um apito ao fundo:

— AGORA VOCÊ VAI ME EXPLICAR O QUE ESTÁ ACONTECENDO? — ela gritava, e pelo tom já tinha algum tempo que repetia a mesma coisa.

— Eu não acredito nisso...

— NO QUÊ?

— Caímos feito patinhos...

— NO QUÊ? NO QUÊ?

— Me deixa falar, cacete! — aumentou o tom, crescendo só de arrumar a postura. A menina deu um passo para trás, talvez temendo outro tapa, mas não era com ela que Flint estava irritado; aparentemente, todo ódio acumulado caíra sobre suas costas de uma vez só: — Ele nos fez de idiota, é isso! Aquele cretino deu a maior volta para nos atrair até a pousada do pai dele, FILHO DA PUTA! VIGARISTA SAFADO! QUERO QUE VOCÊ VÁ SE FODER! — esbravejou em meio a alguns outros grunhidos incompreensíveis, muito provavelmente latidos rosnados, Poyo pensou. Ele continua: — SAI DA SUA CASA, QUERO VER SE VOCÊ TEM CORAGEM! VOU METER UMA FLECHA NO MEIO DA SUA TESTA, SEU BOSTA!

Mesmo sem entender exatamente o porquê dele estar tão irritado,  a capitã não perderia aquela oportunidade de incentivar a violência, então gritou — Atira! Atira! Bem no meio do olho! — ergueu o braço, dando um saltinho. 

Mas todo aquele entusiasmo teve o efeito contrário sobre o cozinheiro, que ao ver os olhos endiabrados daquela menininha teve um lapso de sanidade, percebendo que ele não era tão ruim assim — e principalmente que era uma cagada imensurável matar a luz do dia e na frente de uma pousada (jamais conseguiria se safar dessa). Insatisfeito, porém prudente, engoliu sua raiva e virou as costas, erguendo Poyo pela cintura e colocando-a sobre seus ombro, no intuito de saírem daquele lugar.

— Ei! É só isso que você sabe fazer?! BRIGA FEITO HOMEM COMIGO! — ela se rebateu em meio aos gritos furiosos e agitando os pés no peito do homem para tentar chutá-lo.

Flint deu uma risada alta. — Vai precisar de mais do que isso para se soltar — desafiou em tom de brincadeira, recebendo uma forte dentada na cabeça em retorno

— Ai, meu dente! — Poyo gemeu de dor, cruzando os braços sobre a cabeça do cozinheiro e afundando seu rosto neles.

— Você é burra?! — ele gritou de volta. O silêncio em resposta foi o bastante para que não precisasse mais segurar o riso.

Então, sem amarra alguma, gargalhou, sentindo a menininha se contorcer de dor (e vergonha) em seus ombros. A verdade veio clara para si: nunca fora tão feliz quanto era agora. Isto é, caminhando para completar trinta anos, nunca nem passou por sua cabeça que um dia encontraria uma tripulação que comportasse tão bem sua existência miserável; afinal, nem em casa se sentia acolhido, imagine se iria encontrar amor mundo afora? Era ingênuo pensar que alguém lhe receberia de braços abertos, por isso pulou de barco em barco sem se preocupar com os rostos que deixaria para trás e fugiu de compromissos como o diabo foge da cruz, gostando da ideia de ser visto como “esquecível” — porque, do jeito que vivia, como um fugitivo da marinha, não podia se dar o luxo de criar laços com alguém. O melhor caminho era a substituição: dele mesmo nos bandos que fez parte, e dos companheiros, quando partia para um novo porto. Contudo, contradizendo tudo que acreditava até então, ainda tinha Poyo em suas costas, rindo feito boba da própria idiotice, como se a autodepreciação fizesse parte de si; do seu bando. Eram piratas terríveis, pensou. Não iriam para lugar nenhum.

— Afinal, o que é “vigarista”? — a menina perguntou.

— Bom… — Flint parou para pensar por um segundo, colocando a mão no queixo de barba mal-feita. — É um enganador; um ladrão. Como aquele menino, que fez de tudo para capturar nossa atenção, e depois nos fez segui-lo até a pousada dele para roubar nosso dinheiro. — ergueu os olhos para olhar a menina, pensativa sobre sua cabeça.

— Então é como a gente. Somos ladrões também. — ela conclui.

— Somos mercenários, não vigaristas. Não servimos a ninguém-

— Mas servem a mim! — gritou, puxando-lhe as orelhas.

— Pois então ‘tá — riu outra vez — O que a capitã diz, é a minha verdade. Eu só posso obedecer.

— Sério? Então eu tenho uma ordem para você!

— Qual é?

— ME LEVA PRO VÚCÃO! — berrou, se jogando para trás com os braços para o alto.

— Você disse que não queria ir!

— Eu nunca disse isso, uhuhu.

≈≈≈

Acontece que, ao chegar no fim do caminho, Flint e Poyo descobriram que o Vulcão Agni não ficava na ilha de Pulvereta, e sim em sua ilha irmã, Polvareda, a quase duas milhas de distância sobre o mar. Como era quase duas da tarde quando chegaram ao cais, perceberam que não valia a pena voltar ao navio, desenfronhar as velas e erguer a âncora, porque todo esse trabalho lhes roubaria a tarde, então decidiram que teriam de tomar a balsa com os outros turistas e moradores.

Embora um pouco inseguro com a ideia de entrar em um lugar tão turístico, ao ver os olhinhos brilhantes da pirralha não pôde evitar de “amolecer”. De maneira geral, bastava que mantivessem a discrição, sem os costumeiros gritos e exageros da capitã e, obviamente, a besta sempre em mãos, para qualquer eventualidade.

Subiram na balsa junto de mais uma dúzia de pessoas, em silêncio e atentos a qualquer movimentação que pudesse significar perigo. Haviam alguns piratas ali, é claro, mas nenhum parecia especialmente ameaçador, cheiravam a medo e confusão: certamente coitados que caíram na Grand Line com uma mão a frente e outra atrás. Não muito diferentes deles, isto é, estavam em uma situação semelhante quanto os infortúnios da vida, contudo ao menos mantinham a cabeça erguida e a pose de vencedores — talvez porque estivessem tentando não parecer tão piratas assim, ou eram burros demais para enxergarem a si mesmos como os verdadeiros fodidos. No fim das contas, tinham Flint para guiá-los para longe da morte vindoura e, até então, isso parecia mais do que suficiente para acalentar suas almas.

Entretanto, só de calmaria não se faz a vida nos mares, e então, como não poderia ser diferente, detrás de si surgiu algo que quebraria completamente o clima de paz que os acompanhava: uma mão sobre seu ombro, chamando-o; cutucando-o. Provocando.

— Meus cumprimentos, cozinheiro! Soube que escapou da morte, fiyu! — uma voz soou e Flint sentiu no mesmo instante um arrepio passar por todo seu corpo. Não havia um momento para que pudesse suspirar em paz. 


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