Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 16
Grand Line, Cidade de Pulveres (Pulvereta)


Notas iniciais do capítulo

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Como todo bom pirata (ou manguaça de vida dura), Flint decidiu que a melhor forma de apagar seu sofrimento era com a cachaça — dessa forma não esqueceria somente da imensurável dor do corpo; o álcool também serviria para livrar-lhe da raiva que sentia da gata por tê-lo feito escalar uma montanha mesmo sabendo que era um fumante assíduo. Destarte, se conhecendo como se conhecia (ora, dos vinte e seis anos que tinha, pelo menos catorze deles passou bebendo!), foi realmente muito estranho acordar perfeitamente coberto em sua cama, sem nem uma garrafa de rum vazia ou um balde cheio de vômito por perto. Quer dizer, para começo de conversa, desde quando voltava para cama quando bêbado? O habitual era cair (morto) em qualquer lugar, porque sempre que bebia, tinha certeza de que não veria o amanhã, e portanto de pouco importava onde iria acordar. 

Com algum esforço dobrou os dedos dos pés e mãos, sentindo as ataduras — que enrolaram dos joelhos aos pés e dos ombros as mãos — dificultarem seus movimentos. Não era surpresa os ferimentos estarem tratados, certamente o médico havia o feito, entretanto quando isso ocorreu e o porquê de não estar consciente durante o ato eram dúvidas que penduravam na mente do cozinheiro, mesmo que de praxe preferisse deixar aquele assunto quieto. Pois bem, não era um investigador e de pouco importava buscar o que realmente acontecera durante as horas que passara desacordado; desde que lhe oferecesse um fogão decente, bons ingredientes e um cigarro, poderia ignorar a curiosidade e ficar quieto. Acima de tudo, Flint tinha a virtude de aturar qualquer surpresa que a vida resolvesse lhe presentear. Aliáscomo precisava fumar!

Levantou-se da cama da mesma forma que faria um idoso de oitenta anos; a coluna reclamando como se nunca tivesse visto uma cama em toda sua vida — talvez fosse verdade: não tinha certeza da última vez que dormiu em uma cama decente, se é que havia dormido em uma até então — e as pernas hesitando em cumprir seus comandos, provavelmente por causa da falta de sangue. Quando se pôs de pé, sentiu os olhos embaçarem e por pouco os joelhos não cederam; todo o líquido de seu corpo desceu de uma vez só e a tontura foi tanta que não teve outra opção senão apoiar-se na escada do beliche para não ir direto ao chão.

A partir de então, iniciava-se outro desafio: chegar até a porta do quarto sem perder o equilíbrio ou vomitar no caminho (até porque seria sua obrigação limpar depois). Foi andando desnorteado, as mãos tateando a parede para saber as direções e o embalo do mar o convidando para se jogar no chão. Fechou os olhos momentaneamente — esperando que isto lhe trouxesse de volta suas faculdades mentais, mas de nada adiantou. "Eu sou um fodido", pensou, contorcendo seu rosto em uma careta e automaticamente sentindo uma dor excruciante em sua face: lembrou-se no mesmo segundo do que ocorrera, a maldita havia lhe chutado na cara. Um choque de fúria passou por todo corpo, principalmente porque, agora tão perto da porta, podia ouvir os roncos tranquilos de sua algoz, dormindo no quarto das mulheres como se nada tivesse acontecido. Um sorriso cruel brotou em seus lábios ressecados; sem nem fazer esforço, uma ideia (brilhante) lhe veio à mente.

Não hesitaria mais; não com um plano traçado. A esganaria e, como recompensa, dois cigarros e um copo de água. Era mais do que o merecido — tanto para ele, quanto para ela. Isto é, se realmente quisesse se vingar de forma justa, não lhe daria uma morte tranquila dessas… Mas não queria chamar atenção (e muito menos tinha condições de lutar antes dos cigarros). Finalmente, Flint se desprendeu da parede e a passos largos alcançou a porta, contudo ao esticar a mão direita em direção à maçaneta sentiu seus planos serem destruídos diante de seus olhos. O pulso bambo deixava as mãos pendidas para baixo, tremendo incessantemente e quase sem forças para virar o trinco. E, vamos, se não conseguia nem fazer isso, quem ele queria enganar? Estava incapacitado. O tabagismo lhe cobrava as horas dormidas e qualquer outra necessidade tinha de ser deixada de lado: a prioridade era resolver aquele problema.

Fissurado, saiu do quarto com a cabeça estourando e as olheiras pulsando, esbarrando nas paredes enquanto tentava manter os olhos bem abertos (e funcionais) naquele breu da madrugada — somente a lua refletia pelas escotilhas e ela não era o bastante para iluminar o andar por completo. A porta do consultório (ex-closet da gata) dava direto no quarto das mulheres, por isso deparou-se diretamente com as demais tripulantes ressonando: no primeiro beliche, Belka dormia enrolada em si mesma sobre um grande travesseiro e, logo acima, Poyo por pouco não despencava. Quanto ao outro, buscou ignorá-lo; a sombra de Morgan sendo abraçado pela selvagem lhe era estranha (não saberia dizer qual bruxaria a maluca havia feito) e de toda maneira queria evitar a imagem de Bertruska, enquanto não estivesse são para… bem, resolver suas pendências. Atravessou o cômodo em silêncio e da mesma maneira subiu as escadas, segurando com firmeza nos degraus e torcendo para não despencar a qualquer momento. Enfim, chegou a cozinha são e salvo, deparando-se com sua salvação sobre a bancada: uma caixa de cigarros já aberta, com o isqueiro jogado alguns centímetros de distância e uma infinidade de papéis que Flint não fazia ideia de onde tinham surgido, mas que também não tinha o interesse de descobrir. Dando de ombros, só levou a dádiva aos lábios, abrindo a porta que levava ao deque ao mesmo tempo que puxava o ar para acendê-los.

Imediatamente, o sereno do mar e a brisa noturna vieram sólidos para cima de si. Na penumbra, uma voz se faz presente:

— Quando eu abro um paciente, ele geralmente não consegue andar mais. — murmurou baixo.

Flint quase derrubou os cigarros no chão pelo susto; era Morgan quem falava, com as costas eretas na madeira do mastro auxiliar, um cigarro aceso entre os dedos e soltando uma enorme nuvem de fumaça para cima de olhos fechados. “Esse merda não estava dormindo no andar de baixo?”, o cozinheiro se perguntou, franzindo o cenho e logo retomando a compostura — decidiu que era melhor ignorar. Deu uma merecida tragada e depois soltou um suspiro sonoro; o médico tinha sorte de tê-lo encontrado depois de já estar fumando, ou a fúria que cabia a ex-marinheira seria despejada nele. Em silêncio, seguiu até o parapeito do navio, olhando a neblina que cobria o mar.

— Está de parabéns por chegar até aqui. — Morgan abriu seus olhos. — Achamos que não acordaria mais.

— E você ficou igual a um abutre velho, esperando atrás da porta eu começar a definhar? — Flint debochou sem olhar para trás. Era uma piada, mas não chegou a rir pois os cigarros pareciam mais interessantes por ora. Por sua vez, Morgan não pareceu achar graça daquela situação e continuou em completo silêncio. Percebendo que estava sendo ignorado, o cozinheiro insiste na brincadeira: — Não foi dessa vez que você conseguiu me dissecar, Doutor Morte.

Terminou de dizer com um riso constrangido; o silêncio mortal diante daquela clara piada lhe causou um arrepio na espinha — afinal, o que diabos aquele imbecil estava fazendo?, se perguntou. Ele não podia ter realmente pensado em… Arqueou a sobrancelha, esperando, já sem paciência, uma outra alfinetada, contudo, quando se virou, apenas deu de cara com o médico o encarando estático e com um sorriso amarelo entre os dentes.

Não precisava ser um gênio para entender o que estava acontecendo. Filho da puta...

Com a bagagem de ser forjado pelas ruas, Flint não pôde evitar de, instintivamente, erguer o punho fechado, pronto para iniciar uma briga ali mesmo, no meio do convés — e, oras, quem poderia culpá-lo por querer se defender? Querendo ou não, nocautear Morgan era só isso nessa situação: autodefesa. Ou vingança. Ou os dois; tanto faz. Diante da ameaça, o único ensinamento válido é o “É ele, ou eu” e nem a pessoa mais sã de todo mundo poderia competir com seu lado primitivo de sobrevivência (era sua natureza, afinal). Todavia, quando mais precisava buscar sua essência, ela o traiu e a fraqueza que antes o tomava se fez presente outra vez, só que com mais intensidade do que nunca; seu braço fraquejou no ato de forma que mal conseguiu manter seus dedos apertados. Não lhe restou outra opção. Derrotado, apenas abaixou o membro superior e desfez a expressão irritadiça da face; em situações como essa, era melhor desistir logo.

— Ah… — Flint respirou fundo — Quer saber? Foda-se. Vou passar um café — deu de ombros, jogando as bitucas no oceano e saiu batendo os pés para o castelo de proa; era sua vã tentativa de esconder mais um dos seus (tantos) fracassos.

Morgan deu um suspiro aliviado: ainda sentia as dores do último soco que levou, e tendo em vista que sequer havia apanhado para valer, apenas agradeceu internamente a fraqueza que consumia o monstrengo — de outra forma, não iria sobreviver a sua raiva. Ainda quieto, aproveitou a última tragada para fazer uma anotação mental: “Flint não gosta de cirurgias”, embora, de modo geral, fosse compreensível ter medo de ser aberto sem precisar enquanto dorme. Jogou o cigarro no mar e foi atrás do cozinheiro, que estava quase abrindo a porta: 

— Esqueci de dizer — chamou sua atenção; Flint olhou para trás. — Não temos mais café, fizemos tudo enquanto dormia.

— Como assim? — ele indaga. — Tínhamos provisões para pelo menos duas semanas. Como vocês beberam duas semanas de café em poucas horas?

— Para começar, não foram poucas horas; foram quase dois dias. — atirou a queima roupa e, antes mesmo que pudesse reparar na feição de cozinheiro se contorcendo para a mais genuína surpresa, tornou a explicar: — Você esperava o que, que íamos ficar te esperando para zarpar? Logo depois de você dormir, a capitã ordenou “tacar o foda-se”, palavras dela, não minha — preferiu murmurar essa parte, não seria ele a entregar o vocabulário sujo de Poyo —, para suas ordens e sair mesmo assim, uma vez que você já havia regulado o Log Pose.

— Não, você ‘tá tirando com a minha cara. — Flint riu cínico, mas fechou o sorriso ao notar a expressão séria do médico. No mesmo segundo, sentiu uma pontada de estresse na nuca; morreria cedo, tinha absoluta certeza disso. Sem forças para discutir, resolveu perguntar somente o que era de (extrema) necessidade: — Sabe dizer ao menos para onde, diabos, direcionei o Log Pose?

— Porra, sei lá. Estava mais bêbado que você — Morgan ergueu os ombros, indiferente. — Pergunte para a Merin quando ela acordar, você que deu para ela.

Uma tosse tomou o ambiente, ao ouvir o nome da vagabunda azul engasgou, não poderia imaginar um cenário pior. Contra todos os conhecimentos de sobrevivência que adquirira durante os anos vivendo no mar, havia sim feito a maior cagada de sua vida: ensinado uma selvagem como utilizar o objeto mais importante daquele navio estando bêbado e, como se não bastasse, completamente puto. Sem demora, o médico deve ter percebido a cor fugindo de sua face, e então foi logo perguntando:

— Você está bem? Vamos entrar, você ficou muito tempo debaixo das cobertas. — ofereceu seu ombro para que Flint se apoiasse, mas foi prontamente recusado com um empurrão leve.

— Eu não preciso da sua ajuda. Precisava anteontem, quando vocês ficaram fazendo festa. Agora eu só preciso beber — o cozinheiro aumentou o tom em indignação. — Aliás, para começo de conversa, que porra você está fazendo aqui em cima? Não estava dormindo junto com as outras?

O médico arqueou a sobrancelha por um momento, porém logo soltou um riso divertido: — Creio que conheceu o morceguinho! Eu não medi as minhas ações, caro cozinheiro, e graças a isso precisei fazer o boneco para fugir da maluca. — O médico desejava ser o mais evasivo o possível, geralmente não se importaria em relatar suas vergonhas, uma vez que não era o tipo de homem que se constrangia com facilidade (abrir túmulos lhe garantiu uma estranha flexibilidade moral), contudo admitir que havia proferido as palavras “minha larvinha” para a navegadora era… mais do que poderia aguentar, sobretudo para o cozinheiro, que sem sombra de dúvidas, iria julgá-lo até o fim dos tempos.

Suspirou pesado sob o olhar interrogador do amigo e, a contragosto, teve de iniciar uma explicação deveras desagradável de como haviam adquirido o bendito Log Pose. Foram então os dois para sala; onde o cozinheiro providenciou duas garrafas de gim e sentaram-se nas banquetas do bar, Flint em silêncio e Morgan narrando os fatos desde o momento que fora “arrancado” da cama por Poyo — jamais assumiria a fuga, ao menos não para quem poderia afogá-lo. 

— Você não deixou nada para comermos, então a Belka resolveu cozinhar. — diz o médico, de maneira simplista, recebendo um arquear de sobrancelhas do outro (se conhecia alguma coisa da gata, é que ela jamais se arriscaria na cozinha sem um cúmplice). — Mas deu merda, como você pode imaginar. O arroz virou um bloco queimado e não conseguimos desgrudar o ovo da frigideira até agora. A partir daí, passamos os últimos dois dias comendo folhas cruas e carne, quase neandertais.

— Como voc–, quero dizer, ela queimou um arroz? — Flint se conteve para não aumentar o tom de voz, sentia dó das panelas que ficaram junto daqueles imbecis. Porém tratou de engolir a indignação e pressionar o pirralho antes que ele se esquivasse. — Vá direto ao ponto, morceguinho

Morgan riu nervoso, estava crente que a história do arroz prenderia o homem por tempo suficiente para fugir e evitar a própria vergonha. Entretanto, não havia maneira de escapar e omitindo somente o que lhe favoreceria, relatou a chegada (ou invasão) dos Pierrôs ao barco, o causo dos mapas roubados e a epopeia de Merin. O cozinheiro custou a acreditar que a maluca havia, mesmo que sem a menor pretensão, salvado o rabo de todo o bando — e gargalhou, enfiando o rosto na madeira do barzinho, tentando inutilmente evitar os ruídos, sobre o heroico ato do médico, que despojou de todos os princípios para entregar a alma à Merin em prol de uma tripulação que ele nem gostava tanto assim. Apesar disso tudo, Flint não precisou de um segundo para compreender a gravidade da situação e também como aquele, tenebroso, “larvinha” acometeu a mente da mulher azul, por isso,  mesmo que em meio às gargalhadas esganiçadas, deu um leve tapinha nos ombros do outro, compadecido. 

Quanto ao tempo que Flint dormiu, Morgan não pôde citar nada além do caos completo. Bertruska perseguia Merin como um cachorrinho e a navegadora, por sua vez, acompanhava o médico como a sombra que era, gerando uma extrema dificuldade para a realização das mais simples tarefas.

— Ela te seguiu para todos os lugares? Até quando você... — o cozinheiro insinua, mas antes que pudesse terminar de dizer, é interrompido: 

— Quase! — conteve a voz o máximo que conseguiu, não estava (completamente) bêbado, mas seu nível etílico de seu sangue já estava alto o suficiente para perder levemente a noção da própria voz. — A Poyo teve que berrar com ela! A chamou de atirada e depois de explicarem o que era ser “atirada”, ela finalmente desistiu. Mas tenho minhas dúvidas ainda.  — sussurrou em tom de pesar, olhando seu reflexo distorcido na garrafa. Parou para pensar por um breve segundo, até retomar sua argumentação mais alto que antes: 

 — Por isso fiz o maldito boneco. Eu preciso de paz! — deu uma longa golada na garrafa, batendo com o vidro na bancada. — Chegou num ponto que eu não tinha mais liberdade nem para dormir a hora que quisesse, pois se eu não dormisse, ela não dormia, e Belka não permitiria uma navegadora virada no dia seguinte!

— Entendi, entendi — disse Flint entre uma risada debochada — Agora para de gritar, ou vai acabar com seu disfarce! — pediu, tomando em mãos as duas garrafas vazias e indo em direção a cozinha. — Como você fez o boneco?

— Eu usei as almofadas da gata; nunca entendi para que ela precisava de tantas mesmo. — deu de ombros, se levantando também, mas não para ajudar o cozinheiro, e sim para acomodar-se no sofá como se fosse um divã. — As cobri com meu lençol, peguei as roupas que Bertruska escolheu para mim no Reino de Goa e, já que não iria usá-las mais, as usei para vestir o corpo. Depois disso foi só costurar e colocar um reloginho dentro, para fazer algum barulho e convencer a  Belka  jogar o boneco debaixo da cama antes da doida acordar.

Morgan não deu tempo para o cozinheiro responder; estava em sua sessão de terapia e não pararia de falar até que cansasse de relatar seus problemas — ninguém além do cozinheiro iria escutá-lo, de qualquer forma. Foram muitos “as”, “zás” e outras reclamações sobre odiar ter de cuidar do navio, nunca mais encostar em panelas e desejar tomar um banho sem sentir arrepios. Por sua vez, Flint já havia desvirtuado do assunto há um bom tempo (uma das vantagens de conviver a vida toda com piratas que detestava; aprendeu a concordar sem ouvir uma palavra do que diziam), e quando se deu por conta, o médico já havia caído no sono em meio a seus resmungos — não sabia dizer se dava graças a Deus ou se ficava chateado por perder o volume ambiente, já que este sempre o ajudava a se distrair dos maus pensamentos (e haviam tantos… Quer dizer, Grand Line, sem rota, bêbado… Foda-se).

Olhou para a pia por um instante, notando a frigideira com uma massa preta e retorcida, quase dando vida a um homúnculo e riu nasalado: não importava o que diriam, com certeza nem tentaram lavar aquela merda. Os desgraçados tiveram a audácia de deixar aquela monstruosidade para que ele limpasse. Em outro momento ficaria puto e, provavelmente, faria os responsáveis degustarem aquela massa tenebrosa, mas sob a luz do alvorecer que entrava pela janela da cozinha, somente pegou uma nova esponja e assumiu seu papel.

≈≈≈

Acordar cedo nunca era do agrado da imediata, principalmente quando o dia anterior lhe pesava tanto nas costas. De maneira geral, desejava permanecer deitada e somente colocar suas patas ao chão após degustar um bem preparado desjejum servido na cama, entretanto mal poderia lembrar quando fora a última vez que pudera apreciar tamanho luxo. Agora, no ápice de seus dias de cão, despertava com vozes — fruto de um indesejado quarto compartilhado, algo que em outros tempos jamais toleraria —, e a responsabilidade de colocar toda uma tripulação na linha. Não era a capitã, nunca desejou ser, afinal queria se manter longe dos olhos da marinha o quanto pudesse e, acima disso, jamais desejaria assumir para si as responsabilidades que com esse cargo vinham, porém, mesmo ela, que optava pela vida mansa e desejava que lhe servissem morangos na boca, tinha um papel a cumprir. Em suma, como sua capitã não era apta para o papel de comandar, propriamente dizendo, aquele bando, cabia a ela colocar os cavalos sob rédeas e, de vez em quando, chicoteá-los também, mesmo que isso significasse que teria de, sim, acordar antes de todos.

Se espreguiçou e observou a situação ao seu redor: Bertruska roncava em alto e bom tom, sendo acompanhada fielmente por Poyo e, tão irritante quanto as anteriores, Merin dava risadinhas afetadas durante o sono, apertando com o força o pescoço do boneco entre seus braços. Colocou uma expressão sisuda na face e levantou, contendo um sonoro bocejo, infelizmente sua missão não permitia sons. Ser uma felina sempre lhe proporcionou habilidades furtivas melhores que humanos, e por mais que não gostasse de sua forma de modo geral, não podia negar que, em situações como essa, isso vinha muito a calhar. Sem pensar muito, andou em direção ao beliche e posicionou estrategicamente sua cauda, mataria três coelhos de uma única vez. Com as patas retirou o boneco das garras de Merin e, antes que a navegadora tivesse a chance de reclamar, atingiu a ex-marinheira com uma chicotada, gerando um sonoro urro de dor. Depois disso, para garantir que não houvesse maneiras da maluca ignorar os sons desagradáveis, atingiu a capitã no mesmo segundo, a fim de acarretar uma segunda frequência sonora. Diferente de Bertruska, que bradava com seu tom amadurecido, Poyo berrou tal qual um apito, obrigando a mulher azul a tapar os tímpanos e, em um reflexo, fechar os olhos com força — a chance perfeita para sumir com o morceguinho de pano embaixo da cama. 

Com o plano concluído e mais uma vitória acumulada aos gatos, sorriu realizada ao observar as faces descontentes das três garotas: ser uma filha da puta de manhã sempre alegrava seu dia.

— Hora de acordar, vagabundas! Temos que aportar — e saiu, balançando o rabo, contente e serelepe, em direção ao armário e, em seguida, ao banheiro da suíte, porque era seu direito ser a primeira a se banhar.

Belka observou a banheira, desejando tomar um longo banho com seus produtos recém comprados, entretanto não poderia gastar o precioso tempo da manhã só para se embelezar e por isso preferiu tomar apenas uma ducha — era melhor meia beleza em si do que dormir de volta no relaxamento da água fervente. Guardou os demais produtos no fundo falso do armário para que ninguém esbanjasse do que era seu (estavam em sua sacolas de compras, logo lhe pertenciam) e ligou o chuveiro morno, logo se despindo das vestes de dormir infantis (porque infelizmente não existiam camisolas de mulheres adultas para seu tamanho). Longe de seus instintos de gato e temores de usuária de Fruta do Diabo, entrou tranquila embaixo d’água, pronta para lavar a preguiça e sair para mais um dia cheio de compras, contudo, antes mesmo de começar a escovar seu pelo molhado para colocar o shampoo, um grito — novamente o som do apito —, lhe retira de seu momento de relaxamento: 

— O FLINT ACORDOU! — Poyo berrou no quarto, e alguns segundos depois os sonoros passos da pirralha preencheram o navio, seguido de um outro urro de animação. — CAFÉ DA MANHÃ! O FULINTE ACORDOU, OBA!

Em situações normais, a imediata jamais despenderia tempo de seu banho — uma tradição milenar sua — para ir atrás de uma barulheira dessas (mesmo porque barulhos altos quase sempre eram notícias ruins). No entanto, seria um crime dizer que estavam em uma situação normal: os gatos estavam em crise sem o cozinheiro faz-tudo para os servir. Não pensou duas vezes: desligou o chuveiro no mesmo instante, pulando dentro de seu vestido sem ao menos se secar e saiu patinando pelo chão de azulejos em direção a porta, para então ir em disparada para o primeiro pavimento, de onde vinha aquela gritaria.

Subiu as escadas em um único salto e ao chegar — e ser alvejada pelo cheiro fenomenal das panquecas de Flint —, sentiu uma vontade incontrolável de sorrir. Cambaleou até o balcão, afinal ainda era uma usuária do fruto do Diabo, e sentou-se no banco. 

Assim que ouviu o barulho da banqueta trambecar no chão, o cozinheiro sabia de quem se tratava. Virou-se para cumprimentá-la com um prato cheio de panquecas em mãos: — Bom dia, Bel- Meu Deus! O que aconteceu com a sua cara? — perguntou, rindo frouxo de sobrancelhas arqueadas.

— Cala boca, imbecil! — ralhou ao mesmo tempo que agarrou um dos pratos de prata para ver o próprio estado. Quase não conteve a vontade de miar.

Por causa da água (e o fato de não ter se secado), todos os pelos do rosto e bigodes se emaranharam em chumaços pontuais, trocando o volume fofo de sua face por um monstro magricelo e todo espetado, com pequenas gotículas de água pingando ao chão. Parecia um de sua espécie — um gato —, mas só se fosse lambido por uma vaca. Era horrível, em todos os sentidos. Sentiu vontade de chorar, porém, antes que pudesse fazê-lo, a risada estridente da capitãzinha tomou o cômodo e, no mesmo segundo, engoliu — não podia ter mais essa vergonha nas costas.

— Do que você ‘tá rindo, Pirralha? — Belka bradou, jogando o prato na intenção de acertar a cabeça de Poyo mas, escorregadia que só ela, não teve jeito: o objeto passou reto, seguindo sua trajetória até cair diretamente no rosto do médico, adormecido no sofá. Morgan saltou como gato caindo n'água fria, completamente apavorado e depois de deixar escapar um gemido abafado pelo metal, tudo ficou em silêncio por um breve instante, até ele mesmo interromper:

— Quem jogou essa merda?! — rugiu, sem se dar o trabalho de levantar-se do sofá ou quiçá retirar o utensílio do rosto.

— Foi a Belka! — a capitã responde de pronto, apontando a gata mesmo que o médico não fosse vê-la. Em contrapartida, a imediata, espertíssima, aproveitou o segundo em que a menina parou para lhe culpar e, sabendo que não se moveria até ter certeza de que o “seu” não estava mais na reta, jogou para cima de si outro prato sem nem pensar.

Não deu outra: acertou-a em cheio. Nocaute.

Contudo, embora fosse de fato um golpe limpo (ao menos em seu ponto de vista), bem, ninguém naquela cozinha estava ali para admirar sua boa mira. Além disso, não se pode agir sem pensar ou terá terríveis consequências — era isso que sempre dizia a Poyo, por mais que, naquele momento, isso nem tenha passado por sua cabeça.

No calor do momento, Belka nem percebeu do que se tratava; foi só quando viu Flint incrédulo e tremendo seus olhos que se deu conta do que fizera: não havia jogado só o prato, mas também toda a refeição que o cozinheiro acabara de colocar em sua frente — uma pilha de panquecas com melaço novíssima e perfeita, pro chão, sem mais, nem menos. Ergueu as orelhas e tremeu os bigodes.

Indubitavelmente, tinha acabado de tomar no cu.

≈≈≈

— EU NÃO ACREDITO QUE AQUELE MERDA ME EXPULSOU! — a gata esbravejou, em alto e bom tom, após perceber que a razão de sua fúria já estava longe o bastante para não escutá-la amaldiçoar.

Belka nem se importava em conduzir o bote, tamanha era sua raiva. Carrancuda, remava com força e bufava em meio às palavras, ainda não se conformando com o fato de Flint tê-la enxotado tal qual um animal sarnento. E, oras, onde já se viu uma gata rica como ela ter essas doenças de pobre? Ao tirá-la à vassouradas daquele navio, o cozinheiro não só a insultara, mas também insultou todas as suas gerações anteriores de nobres — e por isso ele iria pagar, com certeza! Ninguém mexe com seu orgulho felino e sai impune para contar história. Quando voltasse, faria questão de fazê-lo entender a diferença de um animal sujo para uma limpinha, como ela: ele dormiria com os ratos.

Seu olho direito tremia ao dizer: — Não se tem mais respeito pelos superiores hoje em dia! Um cozinheiro — enfatizou a posição — me expulsando do meu próprio barco!

— Meu barco, você quis dizer. — Morgan imediatamente a interrompeu. — Eu que paguei-

— Você nem comece! — bradou, olhando-o sisuda e largando os remos para apontar bem no meio de seu nariz empinado — A Carniça é o preço de salvarmos essa sua bunda mole, me ouviu bem? Ou será que você prefere ser entregue agora mesmo para a marinha? — ergueu as sobrancelhas, desafiando-o.

Sem poder contra-argumentar, Morgan se calou; não tinha forças para discutir com a imediata e muito menos para lutar contra ela, caso quisesse mesmo lhe entregar — e depois de conhecê-la melhor, já não duvidava que o faria. Assim então, compartilhando o silêncio dos exilados, saíram com o rabo entre as pernas; os dois mimados da tripulação, postos para correr no café da manhã com a ordem de voltar só depois de anoitecer, com os suprimentos e, claro, devidamente arrependidos pela desfeita que fizeram com o (coitado) do cozinheiro — isto é, se é que aquilo podia ser considerado “desfeita”.

Acontece que, depois do incidente da montanha, Flint decidiu que, de uma vez por todas, não iria mais abaixar a cabeça quando estava desgostoso com uma ideia, tampouco deixar que desrespeitassem ele ou sua comida outra vez (mais a comida do que ele mesmo). Com isso em mente, pode-se dizer que apenas calhou de Belka e Morgan estarem no lugar errado e na hora errada, agindo como fariam normalmente, mas que, por uma coincidência cruel do destino, dessa vez deram de cara com um cozinheiro farto de tudo; ou então que estavam mesmo errados em agir com desrespeito aos companheiros e, portanto, sua punição era completamente cabida naquele cenário — o que quer que fosse, não importava. Estavam juntos naquela bosta de bote e investigar o motivo não levaria a lugar nenhum, somente a mais brigas. O médico deu um suspiro alto, bocejando e, por um segundo, largando os remos para descansar. Por sua vez, a imediata torceu a cara, dando-lhe uma chicotada nas costas.

— Nem pense em descansar! Eu não vou ficar suando sozinha — ordenou.

— Tá bom, pare de gritar, eu já entendi! — ergueu os braços, rendido; deu outro bocejo e depois de mais umas duas chicotadas, voltou a trabalhar, mas agora murmurando: — se não fosse por você, eu nem estaria aqui, para começo de conversa… — suspirou em descontentamento. Infelizmente Morgan não dava a mínima para o que era “o melhor” quando se sentia injustiçado.

Na verdade, “injustiçado” é uma palavra muito forte. Veja bem, com ou sem Belka, merecia sua expulsão, mas quem disse que ele aceitaria isso de bom grado? Pouco importava se havia dito para a capitã engolir o choro e a língua junto para deixá-lo dormir em paz; querendo ou não, ele era a verdadeira vítima daquela situação, e tirá-lo do barco não deixava de ser uma tamanha injustiça. Deus amaldiçoe o cozinheiro: não lhe daria mais nenhum cigarro a partir de agora.

De repente, a gata lança um olhar torto: — Vou fingir que não ouvi nada. Já basta passar a tarde inteira com você — diz ameaçadora e, como não recebeu uma resposta, assumiu que seus olhos serviram para calá-lo. Respirou fundo, se contentando em dar só mais uma chicotada (quando queria dar dez) no subordinado antes de voltar a remar.

Daí em diante não demorou muito para chegarem na costa. Largaram a canoa sem muita preocupação (Morgan não perderia tempo ajeitando algo do tipo e a gata sequer poderia cuidar destas funções, devido aos malefícios do fruto do diabo) e, olhando para aquilo de forma otimista, finalmente as discussões pareciam ter cessado entre os dois. Agora calmos, caminharam pela praia sem um rumo exato, guiados apenas por um cheiro inebriante de metal derretido (e alguma fritura, mas não saberiam discernir o infeliz bicho que fora jogado no óleo fervente). Aquela ilha parecia diferente de todas as que estiveram antes: o clima tropical dava espaço para uma imensidão de frutos exóticos, sendo acompanhados de um calor nunca visto pelos dois ex-filantropos e, mais chamativo que tudo isso, uma gigantesca montanha na ilha vizinha, com pequenos filetes de lava escorrendo do cume.

Sabiam o que era um vulcão, uma vez que tinha o mínimo de estudo, mas o pouco que viram do mundo não era o bastante para terem visto uma “maravilha” daquelas pessoalmente — e, aliás, pelo que havia nos livros sobre as destruições e perigos de morar perto de um desses, preferiam continuar sem ver aquela coisa. Não precisaram de nada mais que um acenar de cabeça para deixarem o local, em uma aceitação mútua foram no caminho contrário do vulcão, ainda havia algum bom senso em suas cabeças.

— Você ficou com a lista, Belka? — perguntou Morgan, coçando o nariz (já havia sentido muitos odores… suspeitos, mas era a primeira vez que sentia o cheiro forte de enxofre; sentia sua cabeça começar a doer).

— Trouxe, mas acho que não vamos achar exatamente o que foi escrito, vamos precisar improvisar desta vez. — resmungou a gata, pessimista. Estavam distantes do East Blue e na mesma ilha que Judas queimou as botas, teriam sorte se achassem alimentos minimamente tragáveis. Flint certamente daria um jeito e ficariam saboroso no fim, porém era enjoada por natureza e a aparência e cheiro peculiar das frutas lhe tirava o apetite.

Caminhavam em passos longos, sem perder muito tempo observando a paisagem local — um vulcão e fedores diferenciados foram o suficiente para perceberem que não desejavam fazer parte daquele ecossistema trópico por mais tempo que o necessário. Contudo, além dos motivos lógicos, também haviam razões pessoais para apressar os passos: a navegadora, que certamente estaria procurando pelo médico em pouco tempo, isto é, se já não estivesse, e principalmente, a fome desgraçada que sentiam, já que foram expulsos do café da manhã. 

Como coiotes, não pensaram duas vezes antes de entrar no primeiro estabelecimento que encontraram a vista, uma cabana xexelenta, que mais parecia um boteco qualquer. Mas, bem, “para quem já está no inferno, o melhor a se fazer é abraçar o capeta”; a gata repetia para si mesma, como um mantra, e num otimismo que não servia em seu quase-um-metro, somente aceitou que ao menos mataria sua fome (e também a sede de cachaça).

Sentaram-se em uma das mesas sem nem pedir permissão ao metre — ou seja lá o que fosse aquele homem sem camisa e de bermuda na porta —, uma vez que o estabelecimento estava relativamente vazio. Tinham noção de que estar num lugar sem muitos clientes não era um bom sinal, no entanto, a fome não podia esperar por nem mais um minuto e, também ainda tinham o horário para culpar a falta de gente nas mesas. Sempre muito educada, Belka ordenou que Morgan fizesse o pedido, dizendo que era muito deselegante uma moça se referir ao garçom na presença de outro homem — certamente alguma etiqueta inventada por ela mesma, ou qualquer coisa que o valha — e ele somente deu de ombros, pedindo a lagosta que havia no cardápio (ora, lagosta era lagosta em qualquer lugar, não teriam erros). Prontos para tirar a barriga da miséria, esperaram ansiosos pelas cloches de inox, sabendo que haviam pedido o prato mais caro do cardápio, no entanto, nem de longe receberam o que esperavam.

— O que é essa… coisa? — perguntou Belka ao garçom, enquanto encarava os olhos redondinhos da criatura, impressos com o exato medo do pré-cozimento. Diferente do que esperava, o bicho não ostentava a bela carapaça brilhante e laranja, pelo contrário, ela alaranjada e fosca, com um formato retangular que lhe lembrava algum inseto e, sentindo os lábios secarem, passou a enxergar o alimento como uma maldita barata gigante.

— É uma lagosta borboleta, senhora… gato. Muito comum na região costeira, próximo ao vulcão, nascem nas águas quentes. — o garçom explicou, via na face pálida do humano que eram turistas.

— Isso é tudo, menos lagosta! — Belka soltou indignada, batendo na mesa e mandando a etiqueta para o inferno. Iria sim falar com o garçom sobre sua insatisfação! Se a pouco reclamava das frutas, aquilo ali era simplesmente inconcebível; estava decidida a mudar de prato, ou somente aceitar a fome, porém não havia mais como voltar atrás, já que seu companheiro já degustava a iguaria.

— A cara é feia, mas a carne é maravilhosa. — falou o médico, ainda mastigando, mas com um guardanapo cobrindo os lábios.

— Jamais! — a gata torceu a cara, empurrando o prato. — Eu quero falar com o cozinheiro. Agora.

O garçom não pareceu contente com aquele tom arrogante, mas não pôde fazer nada senão assentir em silêncio, indo em direção a cozinha do estabelecimento. Nesse momento, todos os (poucos) clientes os olhavam como se fossem entretenimento, se atrevendo a cochichar entre si sobre suas roupas, tão destoantes das vestes leves e praianas que usavam naquela ilha. Morgan queria morrer de vergonha pelo jeito que sua superior agia; nunca, em toda sua vida, havia reclamado com um garçom (talvez porque era sua mãe quem escolhia sua comida quando saiam) e, depois de ouvir o que Flint fazia com as refeições quando recebia um xingamento, preferia continuar sem fazê-lo. Continuava a comer em silêncio, torcendo para que terminasse o prato antes que o cozinheiro chegasse a mesa e passasse a discutir com a gatuna: uma vez que estavam a sós em um lugar inóspito, a melhor opção era permanecerem invisíveis em meio aos locais — algo que certamente não seria mais possível — e evitar discussões desnecessárias.

— FOI VOCÊ O ALMOFADINHA QUE RECLAMOU DA COMIDA? — um homem baixinho e entroncado saiu porta a fora, berrando a plenos pulmões e apontando um enorme facão em direção ao médico. Porém, antes que perdesse a cabeça (mais ainda), o garçom sussurrou algo nos ouvido do cozinheiro, que prontamente abaixou a arma. Com a feição menos irritadiça, caminhou em direção a dita mesa e a cada passo Morgan sentia uma gota de suor escorrer por suas costas, desejando correr rumo ao vulcão (seria mais seguro). Por fim, o chefe pergunta em um tom mais baixo, tentando parecer amigável: — Bom dia, senhor. Tivemos algum problema por aqui? 

Morgan engoliu a comida que mastigava e deixou os talheres sobre o guardanapo, tentando manter a situação sob controle. Não pôde deixar de notar um levantar de sobrancelhas vindo da gata, que havia sido completamente ignorada pelo cozinheiro, mas isso também não era de sua conta: o mais importante era livrar seu rabo.

— Estou satisfeito com a refeição, obrigado. — disse, educado.

A gata sentiu uma veia pulsar na testa: — Ora, pois eu tive um problema! — iniciou, sendo prontamente interrompida pela voz do cozinheiro:

— Ouvi dizer que seu… pet, está causando problemas. — alegou, dando um “tapinha” na escápula de Morgan (tapinha este que só era fraco para ele, um brutamontes; o médico, por outro lado, conseguiu sentir a aliança do homem tilitando contra o osso perfeitamente), ao mesmo tempo que lançava um olhar capcioso a Belka. Chegou perto do ouvido do rapaz e, no tom mais baixo que conseguia com sua caixa torácica do tamanho de um barril, sussurrou: — Como você é turista, não deve saber, mas temos um bom mercado por aqui! Estou disposto a cobrir qualquer preço que lhe ofereçam por ela. — terminou de explicar com uma piscadela.

— VAI TOMAR NO C… — Belka começou, mas Morgan bateu na mesa para censurá-la.

— Irei pensar sobre! — levantou-se rapidamente, colocando a gata embaixo de seu braço como se fosse um porco. — No mais, agradeço a comida! — fez uma pequena reverência e jogou algumas notas na mesa, fugindo daquela pocilga a passos largos: temia verdadeiramente que arrancassem a gata de seus braços e, sem dar um centavo em troca, a levassem para longe de si (porque, dessa forma, estaria sozinho e largado em uma ilha desconhecida, sem ninguém para brigar em seu lugar, caso algum caçador de recompensas viesses lhe buscar).

Não olhou para mais para trás; apenas correu o máximo que suas pernas aguentaram — o que não era muito, visto que era um grande sedentário e, como se isso não bastasse, um fumante assíduo —, sentindo as pequenas mãos de Belka esmurrar suas costas e, contra todas as expectativas, as patas felpudas não impediam que o impacto lhe fizesse perder o ar (a desgraçada era forte). Entre os “Me larga, seu covarde!” e “Eu vou voltar para matar todos eles!”, depois de irem muito longe sem nem parar para respirar com medo de estarem sendo seguidos, enfim o médico decidiu que se não parasse de correr iria morrer ali mesmo, então decidiu que já haviam ido longe o bastante.

Soltou a imediata sem muito cuidado e apoiou os braços sobre os joelhos, sentindo seus pulmões queimarem e o gosto ferroso de sangue invadir sua boca. Achava genuinamente que era seu fim, mas lutava para não cair duro ali, feito uma fruta madura. Por outro lado, a gata só torceu seu focinho e cruzou os braços, esperando a boa vontade daquele frouxo de se levantar (para quem foi erguida o caminho todo, era fácil dizer). Desejava em seu íntimo chicotear o médico por fazê-la passar pela vergonha de não se defender no restaurante e também por ser erguida sem dignidade, mas naquele ponto estava indignada demais com tudo para sair brigando com quem conhecia à esmo. Com toda a calma, apenas um pensamento lhe vinha à mente: se fosse para matar alguém hoje, então que fosse Flint, por jogá-la sozinha naquele lugar infernal; não importava o que dissesse, a culpa do que havia acontecido era sim dele. Foi ele quem a abandonou junto do médico bundão em uma ilha de selvagens canibais! Quer dizer, eles, os canibais, não tinham como saber que ela era humana, é verdade… Mas foda-se! Era visível sua condição de usuária de fruta do diabo — e ainda sim queriam comê-la, como se isso fosse um motivo a mais para atiçar a curiosidade! Se não estava arrependida o bastante até agora, naquele segundo tudo que queria fazer era voltar para casa. Queria ir para bem longe daquele mar de loucos, porque ser uma pirata da Grand Line nunca coube em seu corpinho mesmo; fazer o quê? Grandes sonhos ficam para quem tem mais de um metro, eu não quero mais nada disso!, queria gritar, porém, infelizmente tinha total noção de que não havia ponto de retorno onde estava. Isto é, se nem o cozinheiro e Bertruska, os mais fortes da tripulação, foram capazes de atravessar a montanha reversa, imagine ela, que não podia cair n’água? Estava condenada. Ou virava almoço de selvagem, ou se contentava com o que tinha — e, diga-se de passagem, aturar o viadinho do Morgan parecia a melhor opção.

— Levanta daí, preguiçoso! — deu-lhe um tabefe e tomou a dianteira, sem esperar alguma resposta do médico, observando o que havia ao redor. Torceu novamente o focinho; telhados baixos, casas feitas de madeira mal cuidada e haviam plantas penduradas em todos os lugares, sem qualquer harmonia, como se tivessem sido apenas colocadas lá e não planejadas. Crianças corriam descalças por toda a cidade e ao pisar no chão, sentia a areia entrar por suas patas, ainda que a praia estivesse consideravelmente distante de onde caminhava. Aquele lugar cheirava à Poyo, e isso não era uma boa notícia.

Morgan tentou responder, mas seu pulmão chiou no momento que tentou e portanto não teve outra opção senão se calar; retomou a postura e sentiu a lagosta voltar até a glote, engoliu em seco, ordenando que aquilo voltasse a nadar em seu ácido estomacal (pagou caro demais para golfar em tão pouco tempo). Ainda tonto, passou a seguir os passos da gata, acendendo um novo cigarro, crente de que a nicotina conseguiria o levantar. Deu um trago e, assim como a gatuna, sua percepção do local não fora das mais positivas, contudo não ousaria virar a cara, ao menos não enquanto eram encarados como dois filés por boa parte dos habitantes.

— Deveríamos trocar nossas roupas para destoar menos dos outros, Belka. — pontuou, retirando o colete e abrindo alguns botões de sua camisa. Felizmente não havia optado pela gravata de lenço naquele dia.

Parando para analisar, certamente a gata não tinha nada a ver com as pessoas que caminhavam pelas ruas: vestia-se como uma dama, trabalhada no cetim e com um enfeite chamativo sobre a cabeça, com flores e babados; e, em contrapartida, todos os habitantes vestiam-se de maneira despojada, de camisetas abertas (se usavam) e vestidos bem estampados; chinelos e poucos enfeites nas orelhas e pescoços, com exceção de alguns colares de conchas e brincos pequenos. Conquanto, por mais que trocar de roupas parecesse uma escolha muito razoável para não chamar atenção, era muito difícil dar o braço a torcer e, principalmente, parecia uma ideia ruim sair andando com suas roupas chiques em sacolas (levava muito tempo para escolher seu modelito diário, não queria parecer feia diante dos outros, mesmo que fosse gato).

— Fale por você, estou muito bem com todos esses olhares. — empinou o nariz.

— Está mesmo? Bom, então não vai se importar em saber que já tem dois minutos que aquele casal ali — meneou a cabeça para indicar uma vendinha de bijuterias estendida no chão — está te olhando com muita fome.

— Cale a boca! — os pelos da felina se eriçaram, iria avançar no próximo filho da puta e ninguém poderia a impedir. — OUVIRAM, SEUS MERDAS? NINGUÉM AQUI VAI ME COMER, NÃO! — bateu o pé, dando a pata na cara de todos os moradores. O barulho das negociações cessou; conseguiram virar o centro das atenções daquela praça (e, finalmente, agora eles não pareciam só interessados na carne de gato). Incrédulos, os nativos passaram a encará-los de boca aberta, possivelmente com a fome desperta (ou então só estavam muito ofendidos com aquelas acusações). Medroso como era, Morgan colocou a mão na cabeça de Belka, chamando sua atenção:

— Vamos embora daqui… — cochichou baixinho, sentindo a terrível sensação de ser devorado com os olhos. A gata deu um passo para trás ao notar alguns comerciantes se levantando do chão. Engoliu seco, mas não recuou:

— SE QUEREM COMER ALGUÉM, COMAM MEU ESCRAVO AQUI! — deu uma chicotada atrás do joelho do médico, que involuntariamente dobrou as pernas e, num movimento rápido, fora derrubado de joelhos no chão pela gata. — É CARNE DE PRIMEIRA LINHA: MACIA E DE NOBRE! — gritou, apertando suas bochechas pálidas como papel (não havia mais sangue acima do pescoço). — MAL FAZ CAMINHADA, SEDENTÁRIO E SUCULENTO!

Os locais, em sua maioria, encaravam a cena com as sobrancelhas arqueadas — alguns rindo e outros somente embasbacados com o show —, entretanto, em meio aos descrentes, haviam aqueles que mexiam a cabeça, talvez interessados na oferta. Quer dizer, não eram canibais, ao menos não de maneira geral; não permitiam devorar-se entre si pois seguiam a lei do povo em primeiro lugar. Porém, aquele almofadinha não era parte da comunidade — e que mal teria comê-lo, então? Belka, ao notar que mais pessoas iam se aglomerando a sua volta, tratou de pisar mais firme na barra da calça de Morgan, impedindo-o de fugir.

— Que merda você ‘tá fazendo? — ele perguntou num sussurro trépido. Sua voz falhava a sair.

— Sendo louca, não é óbvio? — Belka sussurrou de volta. Na realidade, queria mesmo é livrar seu próprio rabo, mas seu plano tomara um novo rumo ao perceber que a maioria dos locais haviam se afastado e aqueles que antes lhe olhavam com os olhos famintos de um coiote, agora estavam afastados, temendo a fúria do gato.

De repente, veio da multidão um grito:

— PAGO MIL PELO GATO! — vociferou um homem sem camisa, tirando de dentro da calça uma porção de notas.

— OFEREÇO O DOBRO PELO HUMANO — outro berrou.

Os olhos de Morgan marejaram, enquanto Belka tentava se manter firme. Um terceiro interrompeu:

— LUTEM ENTRE SI! PAGAREMOS AO VENCEDOR!

— Olha o que você fez… — Morgan resmungou com um sorriso tenso nos lábios e a voz chorosa, buscando piedade nos olhos gigantescos da gata, que não parecia nem aí para seu desespero, buscando apenas uma rota de fuga naquela manada que os circundavam. Contudo, para sua infelicidade não parecia haver um jeito de sair dali: estavam cercados de gente por todos os lados, como vacas indo para o abate. Engoliu seco outra vez; não queria lutar por sua vida na frente daquela gente (mesmo porque ambos morreriam de qualquer forma), mas não parecia haver outro jeito.

 No entanto, quando pensava que tudo estava perdido, sentiu a barra da calça do médico escorregar por debaixo de sua pata: algo irrompeu da muvuca e estava o arrastando para dentro da multidão. Não soube dizer ao certo o que estava acontecendo, se aquilo era ruim ou péssimo, mas ao se notar sozinha entre os malucos, a imediata sem perder tempo montou nas quatro patas e passou a seguir os sapatos do médico em meio ao caos, se amassando entre as pernas enquanto os comerciantes discutiam suas apostas.

Não teve qualquer dificuldade em alcançá--los; depois do sufoco que era estar naquele bolo de pessoas, era muito fácil enxergar seu médico em pânico sendo arrastado pelo colarinho por uma figura encapuzada. Pararam em um beco afastado, ainda relativamente próximo ao centro comercial, mas ao averiguar não ouvia sequer uma alma se aproximar. Suspeito. A figura largou Morgan e ele apenas caiu no chão com as mãos na terra.

— QUE INFERNO! — pestanejou o homem, em meio a lágrimas e soluços desesperados. Estava completamente puto, mas como todo bom garotinho da mamãe, não sabia expressar sua frustração de outra forma senão pedindo colo. Chorava copiosamente, desejando amaldiçoar todos os habitantes daquele buraco infernal e jogar a imediata junto dos porcos.

— Quem é você, Esquisita? — Belka ignorou completamente o surto, não tinha tempo para picuinhas, ainda mais quando de frente a si a figura mais peculiar de toda ilha os encarava com olhos esbugalhados.

Era uma mulher magra e alta, de cabelos loiros encardidos, pele bronzeada e não precisou mais de alguns segundos para perceber que era caolha, visto que somente um de seus olhos se mexia, enquanto o outro permanecia estático, virado para uma direção completamente oposta de onde estavam (a personificação da expressão “Um olho no peixe e outro no gato”). Quanto às vestes… não saberia como descrevê-las ao certo; nem de longe pareciam com a moda daquela cidadezinha, tampouco com a de qualquer outro lugar que estiveram: usava uma saia de véu turquesa que ia até os pés, mostrando por debaixo da roupa uma meia ⅞ presa por uma cinta-liga e um salto agulha mais afiado que as facas de Flint. Fora isso, tinha apenas um collant muito bem apertado, que deixava os pequenos seios mais evidentes e, de ombros à mostra, as mangas iam até os joelhos, cobrindo as mãos. Por último, mas não menos chamativo que o resto, usava por cima de tudo uma capa escura e pesada que cobria sua cabeça, certamente a peça que mais contrastava com o calor desgraçado que estava fazendo.

— Serei direta, o quão interessados estão em armamento? Imagino que, após essa loucura, precisarão se defender-fiyu. — a moça riu jocosa, sem perder tempo. De alguma forma, passava a impressão de que sabia exatamente o que eles precisavam. — Eu tinha a impressão de que encontraria um médico e um gato, e os espíritos me disseram que, se encontrasse alguém estranho na cidade hoje, deveria oferecer armas para eles. Não suspeitei que seria um gato falante, mas creio que isso torne as coisas mais interessantes! — deu mais uma risada aguda, quase como um apito.

— Você é maluca também? O que raios está querendo? — Morgan engoliu o choro, levantando-se e tomando a frente antes que a imediata tomasse alguma ação imbecil novamente (estava farto de mulheres ensandecidas lhe tirarem o pouco do sossego que tinha em vida).

— Fiyu-fiyu-fiyu! Querido, sou somente uma vendedora que precisa levar a vida, qual o problema nisso? — riu, chegando perto de Morgan e dando um tapa em seu ombro, tentando parecer amável (embora não tenha dado muito certo, já que, como um gato assustado, ele apenas deu um salto e se desvencilhou do toque). — E aí, o que levarão? Eu tenho algumas espadas, pistolas… — e abriu a capa, mostrando um verdadeiro arsenal (e seus peitos, que quase pularam para fora do collant).

— Vem carregadas? — a imediata interrompeu, dando um sorriso empolgado ao receber um aceno positivo da vendedora. Decerto não confiava nela, mas que mal uma mulher armada até os dentes pode fazer? “Esquece, não quero saber”, respondeu a si mesma, balançando a cabeça para despistar os maus pensamentosDe qualquer forma, sentia-se hipnotizada pela forma das pistolas, precisava daquilo para melhorar seu humor. — Vou querer a rapieira com detalhes dourados e… um estilingue. 

A mulher riu esganiçada após receber seu pagamento em espécie; os espíritos estavam corretos, como sempre estavam. Tirou do casaco a pequena espada e entregou nas mãos de Belka, que a ergueu com os olhos gatunos brilhantes — certamente era diminuta, mas, para ela, que não tinha considerável altura, caia como uma luva. Equilibrou-a entre os dedos e em um segundo a empunhou, fazendo um corte no ar para, em seguida, virar-se ao médico e imediatamente rasgar de forma superficial sua camisa, como forma de testar o fio da lâmina. Morgan, incrédulo, somente a encarou de olhos arregalados, sem poder dizer uma palavra com medo de ter também sua língua cortada — em seus pensamentos, repetiu a si mesmo: “melhor contrariado por hora do que para sempre sem nem poder reclamar” (e reclamar era o que mais gostava de fazer, diga-se de passagem). Finalmente, a vendedora de armas volta-se para si, oferecendo-lhe um sorriso sacana, como se lesse seus pensamentos. Ela diz:

— E você, médico? O que vai levar? — mais uma vez, abrindo a capa e, de forma sapeca, insinua-se: — Infelizmente só vendo armas, não meus seios. — termina com uma piscadela.

— Não quero nada. — respondeu grosseiro, sem devolver o olhar para a moça (era comprometido e não saberia o que faria se, por acaso, seu encosto estivesse o observando; ela o mataria, sem pensar duas vezes). Antes que desse as costas, contudo, a imediata coçou a garganta, olhando sua rapieira com frieza: não precisou de meia palavra para entender, resolveu encarar as armas.

— Então vou querer a pistola... — Morgan diz, sem muita confiança, apontando para a arma com uma pequena cobra entalhada na madeira; era mais que necessário para alguém que não desejava lutar. Ia terminar a conversa por ali, porém, antes que pudesse pedir pelo preço, notou algo no bolso do casaco que quase saltava em sua visão: uma vorpal de bronze, com algumas runas incorporando sua lâmina e empunhadura. Sem hesitar, pediu: — E a faca também.

— Para quem não queria levar nada, você parece bem decidido — a mulher riu mostrando todos os dentes, incluindo um canino de ouro que brilhava com o sol.

O homem apenas resmungou, não queria gastar nem um centavo com aquela maluca, porém se sentiu incumbido a comprar aquela espada de bronze — era o mínimo que podia fazer para se desculpar pelo comportamento durante a manhã e nunca, nunca mais ter de sair com Belka novamente (seu ódio pelo cozinheiro havia sido completamente encoberto pelo medo de ser comido vivo). Entregou a contragosto o dinheiro para ela.

— Pois bem, companheiros piratasFiyu-fiyu-fiyu! — a moça iniciou, após esconder as notas dentro do collant. — Que os espíritos lhes guiem pelos caminhos seguros! Principalmente você, médico. Eles veem uma sombra atrás de ti — riu outra vez, dando uma palminha animada. Morgan ia perguntar sobre a afirmação, intrigado, mas a imediata foi mais rápida:

— Você tem ideia de onde podemos arranjar algum desses itens? — pergunta, mostrando a lista de compras que Flint lhe entregara.

— Hum, deixe-me ver… — ela diz, olhando para o papel atentamente e estudando cada item. Depois de alguns bons segundos (mais longos do que deveriam ser), ela finalmente diz: — Bom, eu não sei ler, mas tenho certeza de que estão procurando comida e suprimentos, não estão?! Fiyu-fiyu-fiyu! Vocês podem seguir em frente até o fim dessas ruelas, assim que voltarem a praça, é só ir ao leste e chegarão na feira turística, com as melhores iguarias daqui! 

Assentiram, agradecendo brevemente e, em seguida tomando seu caminho, contudo, após alguns passos ouviram a voz esbaforida lhes chamar novamente: — Antes que eu me esqueça, se preferirem evitar multidões, há uma outra feira, num lugar mais escuso, é verdade, mas tão promissora quanto a primeira! Se seguirem o mar evitarão não só os maus espíritos, como também possíveis dores de cabeça!

— Para que lado do mar? — Morgan se vira para perguntar, mas quando termina sua volta, a mulher havia desaparecido.

Um ar gélido, muito diferente do clima abafado da ilha, passou por suas espinhas. Se arrepiaram de imediato.

— Bom… — Belka ia dizer, mas fora interrompida:

— Eu não vou para nenhum lugar “escuso”. — disse o médico, sério. — Quer dizer, se nos pontos turísticos já querem nos comer, imagine nos locais distantes? Viraremos jantar, ou pior que isso.

— Mas estamos armados agora. — insistiu, não se conformando com o quão bunda mole o homem poderia ser (é por isso que preferia sair com Flint, esse sim era corajoso e não se recusaria a cumprir suas ordens). Além disso, estava em ânsias para experimentar sua nova espada.

— Belka... — ele suspirou, quase desistindo de assumir qualquer postura minimamente sensata, precisava somente de um motivo minimamente convincente. Piscou, tocando a bolsa transversal de couro e percebendo que algo não estava mais ali, por cima dela. Era sua deixa. — Preciso encontrar meu colete na cidade, deixei-o cair no chão no momento que aquela… — parou um instante para pensar em um adjetivo para dar àquela pessoa que encontraram, mas como não conseguiu, optou pelo genérico: — mulher, me puxou-

De súbito, as orelhas de Belka ficaram em pé e, sem deixar que terminasse de falar, pulou sobre suas costas, tapando sua boca para impedi-lo de falar mais uma palavra sequer. Morgan titubeou reclamar, mas ao ver a pata apontada em direção ao centro comercial, ficou em completo silêncio: ali estava o colete, são e salvo, nas mãos de Camerin. Imediatamente sentiu a lagosta-borboleta (ou baratão-do-mar-vulcânico, como Belka preferia chamar) nadando na direção oposta e a pressão ir ao chão. Não precisaram discutir; a aceitação novamente fora tácita. Precisavam fugir dali o mais rápido possível.

Escondidos entre entulhos do beco, os dois observaram, a poucos metros dali, Merin andando como um cão farejador e, ainda que a ex marinheira estivesse ao lado para controlá-la, sua expressão beirava a insanidade. Não havia como adivinhar o que passava na cabeça da navegadora, contudo era impossível que aqueles olhos carregassem algo de bom. Abraçava o colete de maneira teatral, como se em seus braços estivessem desfalecido o corpo do amado. Caminhava por todas as direções, em busca daquele som tão característico, não obstante somente corações incômodos alcançavam em seus tímpanos. Não era possível. Ela ouvia a voz de seu morceguinho, estava a cada momento mais próxima dos tão amados batimentos, quando, como em um passe de mágica, eles simplesmente desapareceram! Não podia estar mais indignada.

— Você ouviu, não ouviu? Eu não estou louca! — gritava, batendo o pé no chão enquanto apertava a roupa em seu peito. Caminhava a passos largos na frente da ex-marinheira, olhando de um lado para o outro, buscando em cada centímetro da cidade tal qual uma fera buscando sua presa.

— Louca, não. Eu nunca diria isso de você. — Bertruska lhe respondeu, acariciando uma galinha viva que segurava em seus braços. — Entretanto, não tenho a mesma capacidade que seus lindos ouvidos e portanto não posso dizer que ouvi. — deu um sorriso amarelado enquanto a mulher azul se virava para si com os três olhos arregalados, pronta para pular em sua garganta. — Mas acredito em ti! Garanto que iremos o achar, logo.

Morto, de preferência”, pensou consigo mesma — mas somente pensou. Jamais ousaria sequer sussurrar algo do tipo próximo a Merin (mesmo porque o menor sussurro para ela era como um grito diretamente em seu ouvido). Não era novidade para ninguém a falta de apreço de Bertruska por homens de maneira geral e também nunca fizera a menor questão de esconder; sumiria com Flint e Morgan na primeira oportunidade, era um fato, entretanto evitava expor seus desejos (relacionados ao médico, obviamente), quando estava próxima a sua musa; isso porque, mesmo ela, que custava a entender as coisas, tinha o mínimo de bom senso (e apreço a sua vida). Desta forma, mesmo que apertasse o coração, aguentaria todos os homens que Camerin escolhesse, se este fosse seu desejo. E, sem o menor arrependimento, claro, destruiria todos aqueles que ela não desejasse mais. Acima de tudo,  era uma lutadora irredutível e esta era a vantagens dos fortes; eles tinham o privilégio de escolher a quem querem se submeter. A marinheira, por sua vez, escolheu que se renderia somente as mais belas mulheres — isto é, mesmo que estas tivessem três olhos, chifres e pele azulada.

— Não é possível! Eu já olhei por toda essa cidade! — Merin gritou, chutando as pedras do chão e dando meia volta. Morgan e Belka titubearam sair do esconderijo, mas antes que pudessem, a ex-marinheira toma a fala:

— Você olhou aquele beco ali, Bonequinha? — perguntou, sem muita pretensão, apontando para onde eles, gata e médico, estavam. Os dois sentiram os corações congelarem no peito e, menos de um segundo depois, voltarem com pressão máxima, bombeando sangue sem parar.

— Não quero entrar ali! O som dali incomoda meus ouvidos, não parece nada com o do meu morceguinho! — a mulher azul bateu um dos pés no chão, impaciente. Morgan queria respirar aliviado, mas se segurou pelo medo. Ela continua: — Vamos começar de novo, onde achamos o colete! Vou ter uma conversinha com quem me esconder mais alguma coisa — e nesse momento tirou algo de sua bolsa que, pela sombra, parecia se tratar de sua foice meia-lua.

Os foragidos do beco passaram a suar frio, apenas imaginando o que ela, uma selvagem, queria dizer com “conversa” e o porquê da ex-marinheira parecer tão nervosa de repente.

— Guarda isso! Não podemos dar bandeira assim. — repreendeu Bertruska, empurrando o que quer que fosse novamente para a bolsa e olhando para os lados visivelmente preocupada. — Vamos sair daqui — disse, puxando a garota pelo braço.

E foram embora, deixando a sombra na parede e, por fim, nada mais além dos dois fantasmas do beco. Entretanto, mesmo que parecessem seguros, era um longo caminho até ter certeza de que poderiam sair da toca sem que os predadores voltassem. Nenhuma palavra foi dita, nenhum olhar foi trocado. Ficaram ali, parados por um instante, esperado até ter certeza de que não voltariam mais e, quando se viram seguros, foram como dois ratinhos assustados para fora, olhando para os lados para confirmar que não estavam sendo observados.

“Ga-li-nha”, a gata soletrou, sem emitir sequer um som e tremendo a pálpebra em completo estado de descrença. Estava toda arrepiada, da cabeças aos pés,  e em seus pensamentos já criava mil e uma teorias para o que diabos aquelas duas estavam fazendo.

Por sua vez, Morgan só assentiu trêmulo, sem forças para qualquer coisa senão o acenar instintivo de cabeça. Afinal, o que elas fariam com uma foice, seu colete e uma galinha senão um ritual? Não era religioso, nunca acreditou em Deus em especial; mas, veja bem, não acreditar em uma entidade benévola não exclui a existência do Diabo. Dessarte, Merin era, em todos os sentidos, a personificação do mal — enquanto Bertruska lhe seguia como uma fiel muito poderosa e, principalmente, palpável na realidade (o que significava que poderia e com certeza viria lhe machucar).

“Va-mos – em-bo-ra” Belka balbuciou outra vez, aumentando um pouco o tom para um sussurro quase inaudível.

E assim foram, para a feira do lugar “escuso” — que com certeza era bem menos escuso que ali


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