Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 15
Grand Line, Cabo Gêmeo (Reverse Mountain)


Notas iniciais do capítulo

Estimados marujos, se eu disser que meu expediente deveria terminar às seis da tarde, mas graças a minhas irresponsáveis contratantes sou obrigado a ficar de plantão até meia noite, vocês acreditariam em mim? Pois bem.
Não vou me prolongar mais — espíritos também precisam de folga.
Espero que gostem de mais um capítulo.



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Enquanto Morgan e Belka saíram frenéticos da cabine à procura da capitãzinha, Merin seguiu congelada; lívida, sem a menor pretensão de se mover. Mesmo a raiva que sentia pelos dois parecia sumir agora; a comida queimada foi considerada irrelevante quando o medo, um sentido tão primordial, a atacou. Ouvir aquela risada, agora tão de perto, havia a pego de surpresa — não só porque estava dentro de seu barco (apesar deste ser um dos fatores para estar desaparecendo gradativamente em puro terror), mas sim porque... Bem, seu morceguinho estava lá fora e ela não tinha a menor capacidade de ir salvá-lo. Ainda que desejasse muito, não poderia mostrar a face ao perigo; acima de seu amor e o companheirismo que adquiriu na tripulação, era movida pelo instinto desde que acordara na floresta e poucos dias de civilização não lhe consertariam.

Presa no dilema de ir ou não para fora, segurou com força os próprios cabelos, puxando-os para baixo na espera de que um pouco de dor lhe trouxesse a lucidez para tratar da situação. Não aconteceu. Independente da calma que tentasse empurrar pela garganta, nada mudava o fato que seus superiores já haviam jogado uma batata quente em suas coxas, uma vez que, tomados pela emoção, não pensaram duas vezes antes de se lançar num pântano de crocodilos e se tornar presas fáceis. E depois era ela quem poderia morrer na Grand Line… Bobagem! Eles que iriam morrer feito idiotas, mordeu os lábios. Mesmo que ainda ouvisse suas vozes e batimentos regulares, quem determinaria até quando estariam estáveis?

Camerin respirou fundo outra vez, repetindo para si mesma que precisava se acalmar em prol daquele bando. Como a última de pé, era sua obrigação defender o barco, não só por ser a noiva de Morgan, mas também porque lhe confiaram a posição de navegadora (ainda não entendia ao certo o que significava). Depois de conseguir apaziguar as ideias, a voz esganiçada do outro lado da porta tornou a encher seus ouvidos, mas dessa vez não titubeou. Empurrou o medo para o fundo de sua mente e tomou a primeira arma que encontrou: a frigideira da pia, ainda com um ovo preto grudado. Iria lutar.

Sorrateira como ninguém naquele navio poderia ser, desapareceu por completo, passando devagarinho pela porta que dava ao convés e ouvindo as vozes se aproximarem cada vez mais. Tinha certeza absoluta que seus companheiros estavam a um fio de ir dormir com os peixes, afinal, os batimentos de seu amado estavam um passo a mais que o normal e, dessarte, ele também havia notado o perigo. Segurou as lágrimas com força; estava aterrorizada, mas precisava ser forte pelos dois.

Quando chegou ao deque, deu de cara com os invasores: uma rapariga de aparência chamativa (maria-chiquinhas e rosto pintado) e ao seu lado um símio em todos os aspectos, ambos de pé sobre a Carniça com um semblante terrível, obviamente coagindo a capitã, médico e imediata. Sentiu seu próprio coração querendo pular pela boca. Tudo naquela situação gritava “perigo”.

— … Isto é, quando emergimos das profundezas com o Diabo-Negro ontem de noite, vi vocês próximos da Red Line. — a invasora explicou, despretensiosa, dando continuidade a conversa que já havia iniciado (entre ela e a capitã, a propósito). — O que diabos vocês fazem aqui? — sua voz oscilou, numa clara demonstração de ódio e maldade: Merin não teve dúvidas de que ela iria matá-los agora mesmo e portanto era sua hora de impedir.

Sem pestanejar, a mulher de três olhos apertou o cabo da panela em suas mãos no ímpeto de salvar todos daquela situação tenebrosa. Como já havia matado (animais) antes, sequer hesitou em levantar os braços atrás da monstrenga, pronta para lhe atingir com uma pancada fatal — uma vez que estivesse desacordada, daria seu jeito no macaco, afinal, não podia ser tão diferente dos que encontrava em sua floresta natal, apesar de estar vestido. Contudo, antes que pudesse terminar seu movimento ofensivo, a estranha lhe olhou diretamente e, sem mais, nem menos, pergunta:

— É da tripulação de vocês? — apontou Merin e olhou para Poyo, em seguida movendo os olhos para frigideira flutuante outra vez.

Aos poucos, a mão que carregava o utensílio doméstico passou a tomar cor e dar lugar a uma mulher de pele azulada, a encarando em completo estado de choque, sem saber como seu disfarce havia sido entregue — isso nunca, nunca havia acontecido antes! Quem era ela e como podia lhe enxergar?, pensou exasperada. No que lhe diz respeito, Pieri somente soltou uma alta gargalhada ao ver aquela carinha de pânico se formando e bateu a palma na própria coxa, como se estivesse numa caricatura da própria vida: tudo a divertia, mesmo uma tentativa de assassinato — ou seja lá o que Merin realmente planejava fazer com aquela panela. 

— Então foi assim que perdi meus mapas. HYA-HYA-HYA! — a palhaça riu desenfreada junto do macaco; era a maior e mais engraçada piada do universo. Por sua vez, os Gatos Fantasmas não tinham nem como responder aquilo; para eles, não era de todo engraçado (na verdade, não era nada engraçado, mas não era educado se dizer). Foi assim então, tão de repente quanto início da risada, que ela parou, olhando-os séria: — Devolvam. Agora. — e Shari, seu macaco, desceu de seus ombros, tirando da mochilinha uma chave inglesa e batendo-a na própria mão para anunciar um combate.

Belka soltou uma risada nervosa, sentindo uma gota de suor passar por todo seu tronco peludo. Tentou imaginar milhões de desculpas, ou somente uma forma de escapar das perguntas capciosas, entretanto, antes que pudesse colocar em palavras seu total desespero, sua capitã resolveu  conversar:

— Quais mapas? A gente não têm nem bústula — falou inocentemente. A imediata sentiu que iria morrer de vergonha, a ponto de que nem se importou em usar Morgan (em vez de Flint) como esconderijo. Se pudesse, viraria um avestruz. 

— HYA! Nós temos imagens gravadas para provar e… — Pieri se interrompeu, irritada. Estava pronta para apontar o crime e salvar seus malditos mapas (ela os fez; queria de volta a todo custo), contudo, a realidade lhe atingiu como um soco. — De que merda você está falando? Vocês não precisam de uma bússola — aumentou o tom, corrigindo-a — aqui, precisam somente de um Log Pose, oras! Agora devolvam meus mapas. 

— LOG POSE! Esse é o nome! — Poyo gritou, batendo o punho direito fechado sobre a mão esquerda, como quem acabara de concluir uma ideia genial. — É isso que não temos. 

Pieri sentiu seu mundo cair. Incrédula, olhou para Shari ao seu lado: havia derrubado a chave inglesa no chão e a encarava tão descrente quanto, o beiço tremendo numa pena inconcebível. Aqueles infelizes... não podiam estar mais fodidos. Antes que pudesse se controlar, seu choro já era audível e junto do macaco soluçava pela vindoura morte de seus primeiros aliados — tão jovens…! Como o mundo poderia ser tão cruel, ceifando a vida daqueles que tinham um futuro inteiro pela frente? Se abraçaram em uma mútua consolação, derramando um pranto copioso. E eram tão promissores, com essas habilidades de furto... Injusto. Tudo era injusto.

— VOCÊS… — a palhaça deu um soluço — NÃO PRECISAM DEVOLVER-HYA. — em meio a tantas lágrimas, ela retirou o grande chapéu (o mesmo que Poyo havia elogiado alguns dias antes) em sinal de respeito, colocando-o em frente ao peito enquanto o vento levava uma das maria-chiquinhas para seu rosto, se colando na mistura de catarro e choro. Poyo pensou que sua amiga não ficava bem chorando, mas, inconveniente como era, não teve o bom senso de guardar isso só para si:

— QUE NOJO! PARA DE CHORAR! — berrou. A mais velha pareceu tentar retomar a compostura, embora ainda não conseguisse conter as lágrimas. — VAI BORRAR SUA PINTURA DE PALHAÇO!

Quase como mágica, as lágrimas sumiram de seu rosto e Pieri olhou de volta para os gatos, seríssima. Bate o pé: — Não é tinta, sua vaca! — e um segundo depois não era só Belka a se esconder: Merin se juntou atrás de Morgan e ele, muito esperto, deixou sua capitã na frente (não iria ficar na mira daquela maluca nem fodendo, a capitãzinha que se virasse). Percebendo que havia perdido a calma, a palhaça respirou fundo. — Shari! Explique por mim. — como não podia ser diferente para uma amiga da Poyo, ela deu de presente uma dor de cabeça para outra “pessoa”.

O chimpanzé encarou sua capitã com cara de enterro, esperando que ela mudasse de ideia — detestava ter de assumir o trauma dos outros —, porém, vendo que ela nada diria, tira do bolso do colete um charuto e do outro um isqueiro, acendendo-o e levando a boca. Dá uma tragada para se acalmar e só depois de uns bons trinta segundos aproveitando a fumaça no peito, torna a falar:

— A cara dela é assim mesmo, nasceu com isso — diz seco, apontando para as manchas que residiam abaixo e acima dos olhos da adolescente, pretas nas bochechas e azuis na testa; se assemelhavam às de um pierrô carnavalesco e, por coincidência, justificavam o seu nome (duvidava muito que sua mãe tivesse pensado nisso quando a batizou, já que não queria nem lhe dar nome para começo de conversa). Shari levou o charuto aos lábios outra vez e olhou para os quatro piratas, que esperavam que continuasse a falar. Esperou mais alguns segundos e lançou a fumaça outra vez. — É muito rude apontar as deficiências dos outros, mocinha — completou sério, dessa vez olhando diretamente Poyo. 

A capitãzinha inflou as bochechas, ofendidíssma com aquela afirmação: detestava ser corrigida, ainda mais por um completo desconhecido. Sem hesitar, grita a plenos pulmões: — EU NÃO FAÇO ISSO! Nunca falei do terceiro olho esquisito da Merin, imbecil. E, veja, se ligasse para isso, não teria nem a Belka comigo também. — cruzou seus braços, lançando-lhe um um olhar atravessado, certa de que a discussão estava devidamente ganha.

Sua insensibilidade era um fato; a imediata sequer perdera tempo em corrigi-la — sabia que Poyo era em seu íntimo uma péssima pessoa —, no entanto, o problema não era ela, e sim a navegadora: desde o momento que o macaco puxou o charuto e falou, assumiu uma expressão catatônica, perdida nos próprios pensamentos. Quer dizer, pouco se importava com Poyo, isso não lhe dizia respeito, mas vivera tempo o suficiente na floresta para saber que macaco assim não fala e não é como se não tivesse tentado! Durante todos esses anos de isolamento, não mediu tentativas para tentar construir alguma comunicação, mas recebia somente rosnados e grunhidos como resposta — era sensato assumir que não tinha capacidade de entendê-la, certo? No entanto, no momento em que afirmou para si mesma que era humana e que poderia sair dali, os animais todos passaram a se comunicar em sua frente (Belka inclusa), como se ela fosse o problema. Realizava enfim que sua vida era mais miserável do que imaginava.

— Por que os bichos falam...? — perguntou a si mesma, sem querer em voz alta. De repente desabou sobre seus próprios joelhos; Morgan e Belka a olharam, sem saber o que fazer (“Do que diabos ela estava falando?”). — Eu só quero ser uma humana que faz coisas humanas! Eu não sei o que é um navegador, como posso virar uma do nada? Todos falam que nós vamos morrer e eu não quero que meu morceguinho morra e não sei se eu quero morrer, acho que não! POR QUE OS BICHOS COMEÇARAM A FALAR AGORA? NA FLORESTA NENHUM DELES FALAVA. 

A gata franziu o cenho: estava certa de que não era ela quem deveria consolá-la naquele momento, entretanto, antes que pudesse mandar Morgan levá-la para dentro, a palhaça lhe interrompeu, novamente com lágrimas nos olhos e gritando mais alto que qualquer um ali:

— QUERIDA, NÓS SEREMOS HUMANAS, SEREMOS SIM-HYA! — enxugou as próprias lágrimas — SE TEM ALGO QUE EU POSSO FAZER POR VOCÊ...

A vida pareceu travar naquele instante, como se indicasse um caminho de luz no meio de todo aquele caos (quase “beijando o purgatório”, como diria Flint, o maior pessimista entre eles). E, oras, quem diria que seria a maluca a livrar suas bundas do mármore fervente do inferno? Isto é, já a dias conviviam com os surtos de Merin e geralmente esperavam que ela se resolvesse por conta própria porque ninguém tinha muito saco para aqueles delírios; mas, surpreendentemente, pela primeira vez ela parecia a única a andar pelos trilhos certos: chorar e espernear parecia a melhor solução para sair daquela enrascada com vida e, mais importante que isso, com um Log Pose em mãos.

Vendo uma lâmpada se acender sobre sua cabeça, Morgan nem titubeou: se lançou ao chão, de joelhos ao lado da mulher azul. Se a capitã aliada queria drama, era isto que iria ter.

— Não chore, minha larvinha… — diz, passando o polegar no rosto da moça para limpar suas lágrimas. Não compreendia o conceito de cortejo, conhecia somente o que havia nos livros, mas aquilo precisava adiantar, visto que após tamanho sacrifício a chance de Merin deixá-lo em paz (que já eram baixas) se tornaram nulas. — Eu sei que é seu sonho seguir pela Grand Line e descobrir sobre suas origens — deu uma pausa na fala para olhar as reações de Pieri, e ao ver que sua história parecia surtir efeito, continua: —, mas vamos dar um jeito, mesmo se não pudermos seguir de forma segura...

— Mas o Flint disse que não tinha outro jeito… — Merin soluçou, buscando alento em uma mão fria e carregada de cinismo. Abatida, mas um pouco mais calma com aquela clara demonstração de carinho, aperta os três olhos antes de abri-los outra vez, vendo seu noivo com as sobrancelhas franzidas e cheio de preocupação (pouco importava com o que estava preocupado). Puxou o ranho pelo nariz, “Tinha que ser forte, por eles”. Quanto ao desejo mencionado por seu benzinho, não se lembrava ao certo sobre estes fatos, e inclusive não tinha certeza nem se em algum momento falara algo parecido, mas se foi Morgan quem disse, então devia ser verdade. Não questionou; era melhor seguir com a história. — Nós nunca chegaremos lá! É o nosso fim. 

— NÃO! MINHA COMPATRIOTA, NÓS IREMOS VENCER-HYA! — a palhaça (maluca) mal terminou a frase e já saiu correndo para a borda do navio, lançando-se ao submarino e depois pulando para dentro da escotilha, abandonando seu macaco com aquele bando de estranhos igualmente confusos.

Nisso foram alguns minutos de um silêncio constrangedor, com a ressalva de alguns gritos incompreensíveis vindo da outra embarcação: possivelmente uma discussão com alguém ou algo. Shari, compreendendo que o que quer que fosse aquilo iria se arrastar mais um pouco, jogou no mar a bituca velha e tirou de sua mochila outro charuto, apoiando-se no mastro para fumar. Poyo até tentou, mas não conseguiu se segurar e teve que aproveitar a oportunidade para ir falar com aquela figura tão peculiar. 

— Seu braço é tão legal! — a capitãzinha segurava a parte mecânica e a encarava boquiaberta; seus irmãos nunca lhe disseram que macacos podiam ser tão interessantes! Diziam apenas que comiam bananas e jogavam cocô uns nos outros, nunca nem passou por sua cabeça que eram tão diferentes da gente da fazenda. — Você não nasceu com isso, né? Onde comprou? Gostaria de ser uma robô também, ninguém poderia me derrotar!

Shari deu de ombros, concentrado demais em seu fumo para lhe dar atenção, mas também não se importando em fazê-la largar seu braço. Distraído, analisava de longe a madeira do chão e bordas do navio estranho.

— Eu construí minhas próteses, assim como fiz o Diabo-Negro. — ele aponta com o charuto para o submarino, explicando para menina de olhos curiosos. — Sou um construtor naval.

— ‘Que diabo é isso? — Poyo pergunta. 

— Eu construo embarcações, submarinos e outras coisas... — ia continuar a falar, mas a menininha interrompeu:

— Que foda! — diz, aproveitando que Flint não estava ali para lhe bater. — Será que você pode fazer um enfeite ‘pra colocar na ponta do meu navio? Todos têm um, mas o meu não tem e eu quero muito! — juntou as mãozinhas, como quem pede “por favor” (embora essa palavra estivesse banida de seu dicionário). O símio só a olhou de rabo de olho em completo silêncio.

— Poyo, deixe-o em paz — Morgan pede enquanto arrastava Merin por aí (depois de ajudada a se levantar, ela se engatou ao braço do médico e parecia não querer soltar). — Gente-bicho não tem tempo para ficar fazendo caridade, você sabe — aproveitou para dar uma alfinetada em Belka, que não parava de tremer um dos olhos de raiva dele (por quê será?).

Descontente com aquele comentário infame, a gata rebate: — Para começar, eu não faço caridade para você, seu bosta. — olhou para cima com o nariz arrebitado; Morgan nem ligou, mas Merin retribuiu com um olhar igualmente ameaçador. Belka “tsc”ouvoltando-se a capitã e desconhecido — Quanto ao enfeite da proa, não dáNão temos dinhei-

Poyo pensou em interromper, dizer que tinham sim dinheiro para isso (afinal acordara há poucos dias em uma pilha de ouro), mas o médico foi mais rápido:

— Dinheiro não é um problema, podemos pagar com o que me pertence, certo? — olhou sugestivamente para a felina — Mas, de qualquer forma, estamos no meio do nada, como ele faria algo?

Antes que Shari (ou a gata, pronta para afirmar ao querido subordinado que nada lhe pertencia) pudessem postergar o assunto, pôde-se ouvir o barulho da escotilha se abrindo e, de repente, aquela conversa pareceu perder a importância, porque todos, sem exceção, avançaram ao parapeito, curiosos com o fim da discussão que só ouviram de fundo. Finalmente, sai do buraco um homem pálido, não tão estranho quanto os dois primeiros invasores do navio, mas com uma carranca inacreditável e, logo atrás de si, a capitã dos Pierrôs vinha radiante e devidamente amordaçada com um pano velho. Sem pular para o navio, Kristian olha para cima:

— Tomem isto, cortesia da capitã. — orientou entre dentes, lançando o artefato ao ar para que Belka o pegasse. Era o bendito Log Pose. Ao seu lado, Pieri resmungou algo, provavelmente reclamando pela falta de educação de seu maldito imediato (que só jogou algo tão importante em vez de dá-lo em mãos aos aliados burrinhos), mas ela também não tentou soltar a amarra da boca, mesmo que estivesse com as mãos livres. Ele continua: — Vamos partir, Shari. Não temos mais nada para fazer aqui.

O macaco soltou um guincho, mas nenhum dos gatos soube dizer se estava assentindo ou reclamando — ainda não sabiam falar macaquês e duvidavam que chegariam nesse ponto de loucura algum dia. Depois disso, sem mais nem menos, Shari se pendura no balaústre e se joga na outra embarcação, caindo no colo do primeiro imediato e depois saltando ao interno do submarino sem sequer dar satisfações sobre o pedido de Poyo (não que ela fosse cobrar, de qualquer forma; naquele momento estava concentrada demais em tomar o novo objeto das mãos de Belka).

— Quieta, capitã — a imedigata resmungou baixinho, lhe dando uma chicotada-de-rabo na mão. Assim que a capitãzinha se acalmou, olhou de volta para os aliados. — Quanto vocês vão cobrar por isso?

— É cortesia. — Kristian frisa. Não estava de bom humor naquele dia, ou ao menos ficara de mal humor depois da discussão sem-fim que tivera com a capitã (persistente o quanto fosse, não tinha como ganhar dela).

— Eu sei o que é cortesia. — Belka rebateu, direta. — Quero saber até quando vai ser só isso. Se forem cobrar preços exorbitantes no futuro, não queremos. — apertou o instrumento instintivamente, lembrando-se que Flint e Bertruska estavam fazendo o possível e o impossível por conta daquilo: como não sabia se eles voltariam, não podia perder esse de forma alguma, mas também não era jogo vender sua alma ao diabo.

Já há muito sem gargalhar, Pieri decide que é a hora de soltar sua boca, e sem demora arranca aquela merda só para dar um “hya-hya-hya” ensurdecedor. Ao passo que ria, Belka crispava seus lábios em desgosto e Merin ia se encolhendo mais e mais atrás de Morgan, segurando seu braço o mais forte que podia, na tentativa de se sentir segura. A imediata grita:

— Pare de rir! Não é possível que não esteja esperando algo em troca.

— Cortesia, gato, é — Pieri, oscilando o tom de voz, abre um sorriso imenso. — Uma mistura de gentileza com pena. — deu as costas, se preparando para descer a escotilha e levantando uma mão para se despedir — Em outras palavras, eu não preciso de nada seu. Não agora.

A gata contraiu as pálpebras, injuriada. Estava pronta para devolver o Log Pose, enfiá-lo na garganta da adolescente, mas, mais uma vez, fora interrompida — e dessa vez por alguém que jamais achou que tomaria a palavra naquela situação: sua navegadora.

— Vocês estavam esperando por nós, aqui, do outro lado da montanha? — ela pergunta baixinho, sem sair detrás do médico. — Eu quero dizer, vieram mais cedo, não vieram? Eu ouvi — hesitou — sua risada.

— O que disse? — a palhaça gritou, colocando a mão no ouvido.

— Não mesmo. Chegamos aqui agora. — Kristian se intromete. — Deve ter ouvido outra coisa.

Merin torceu a face. De fato a frequência sonora não era a mesma, apesar de similar — mas similar não é igual, e disso até ela, uma selvagem, sabia muito bem. Não poderia cometer um engano tão juvenil, afinal, se não soubesse refinar suas habilidades, teria sido morta na primeira semana que passou só (e continuava muito viva, diga-se de passagem). Contudo, por mais que tentasse, algo naquilo tudo não a deixava relaxar; sem dúvida alguma havia algo irritante e comum entre ambos os sons; uma imitação quase perfeita, mas com um ou outro timbre fora do lugar, tentando criar sua própria personalidade. Bem… Seja lá o que fosse, por via das dúvidas, era melhor não questionar a outra capitã — que a olhava com pesar e deboche, claramente havia deboche ali. Preferia que continuasse assim, sendo vista como uma pobrezinha, não se importaria com os julgamentos enquanto recebesse o que desejava em mãos.

— Hum... Devo apenas ter me confundido, então... — suspirou, abaixando a cabeça pensativa. Mesmo que reconhecesse a voz de algum lugar de suas memórias, não era do interesse deles e assumiu ser melhor finalizar aquela conversa por ali (até porque já estava cansada de falar tão alto). Porém, quando achou que aquilo terminaria, a capitãzinha se mete no meio da conversa:

— Acho pouco provável! — afirmou com muita certeza, querendo muito demonstrar o quão sábia era. Estava pronta para iniciar um falatório sobre isso e aquilo, e todos os outros porquês de pensar ser pouco provável, mas o chicote de Belka discretamente a calou e logo em seguida Kristian, o imediato, dá uma risada nasalada:

— Certamente pouco provável, — balançou a cabeça negativamente, ainda descompassado pelo riso — nunca vi uma risada tão única quanto a sua, Capitã — debochou, olhando Pieri com ambas as sobrancelhas altas.

— Pois eu também nunca ouvi! — a palhaça cruzou os braços.

— Parando para pensar… — Merin interrompe a birra, colocando a mão no próprio queixo — Creio que ouvi algo parecido em Loguetown. Estava distante, mas sinto que em meio às explosões ouvi algo semelhante.

O imediato no mesmo instante compreendeu do que se tratava: lembrava-se vagamente das cenas de Loguetown e, ainda que estivesse em sono profundo na maior parte do tempo, aquilo não sairia facilmente de seu imaginário — existem barulhos que não param de soar mesmo depois de morto. Também notou que não havia sido o único a ligar os pontos, uma vez que se fez um silêncio considerável depois das palavras da mulher azul, entretanto, independente do que fosse a verdade, não poderia permitir que a capitã se desviasse do caminho (ou então Shari ganharia outra aposta). Finalmente, a adolescente toma a frente com uma alta gargalhada:

— HYA-HYA-HYA! Que bobagem, não é mesmo, Kristopher? — em meio a risada, desferiu um tapa nas costas do outro, que mesmo sem sentir nada soltou um sonoro “ai”; era acostumado a algumas ações humanas.

Pieri olhou o céu por alguns segundos como se pensasse em algo e, de súpeto, solta um “Ai, estou morrendo de fome!” sem muito pensar, que foi prontamente seguido por outra voz, dessa vez de dentro do submarino:

— ESTÁ TUDO PRONTO PARA SAIR, CHEFINHA! — disse alto e com um alcance vocal tão potente quanto o do símio, mas não era a voz dele.

— CALA A BOCA E VAI FAZER MINHA COMIDA! — Pieri gritou, pulando com força no topo da lataria (queria mesmo desestabilizar o interno). Então, como se a bronca não fosse nada, olha para os gatos e sorri tranquila: — Como ia dizendo, estamos indo agora. Nos vemos por aí.

E acenou para Poyo, que olhava fascinada para a embarcação, agora tremendo um pouco sobre a água. Ao seu lado, Kristian já descia a escada e o submarino começava a se mover para distante daquele canto. Logo mais seria sua vez de sumir naquela pocilga de ferro: “nada pessoal, Diabo-negro, mas você nem se compara ao ar puro”, ela pensou. Dispersa em seus próprios pensamentos, tomou as barras de ferro, dando uma última olhada no céu azul antes de voltar ao seu sarcófago submerso — como não sabia quanto tempo levaria para chegar na próxima ilha, tinha que aproveitar o máximo aquele breve momento: era sua primeira vez na Grand Line e, portanto, tinha que viver cada momento como se fosse seu último (porque de fato podia ser). Pouco importava o que os gatos faziam naquele momento, se os viam partir ou não; queria mais é ver o mar e ficar imersa no seu mundinho, somente com o tronco para fora da escotilha, sentindo o vento balançar os cabelos e...

— QUANDO A GENTE VAI SE VER? — Poyo perguntou num berro de repente. — MUITO OBRIGADA, SENHORA PALHAÇA! ESTOU TE DEVENDO UM JANTAR.

Pieri não soube o que dizer. Ela estava debochando daqueles infelizes, tratando-os como incapazes e aquela imbecil sorriu para si completamente radiante, como se nada daquilo importasse! Do sorriso maldoso do gato, não sobrara nem a sombra; apenas uma alegria contagiante e infantil. Não estava pronta para algo do tipo… Para si, restava apenas sorrir de volta.

— ATÉ A PRÓXIMA, PIRRALHA! TE PROÍBO DE MORRER ANTES DE ME PAGAR O JANTAR-HYA! — a palhaça bradou, balançando os braços e com lágrimas nos olhos, já estavam distantes e sob a insistência de Shari, observou a pintura do gato uma última vez, antes de de fechar a escotilha e submergir junto de seus confrades para os confins do oceano.

≈≈≈

Qual é a vantagem de começar um dia de pé direito quando isso significa, literalmente, que seu “pé direito” vai ser o primeiro a tocar no pedregulho da Red Line? Bertruska, aquela puta, só dizia que tinham de ir rápido e mais rápido, ou não chegariam a tempo do jantar… Mas que porra de jantar? Ele era a merda do cozinheiro e não ia cozinhar. Nem fodendo! Isso porque, para começo de conversa, não sabia nem se iriam voltar com vida... quem dirá se conseguiria cozinhar! Puta escrota. A cada metro que avançava; a cada pedrinha entrando debaixo de suas unhas… Queria matar alguém. Sentia a ponta de seus dedos ser esfolados a medida que se pendurava nas paredes de pedra, seguida de um arrepio do mais profundo ódio a cada vez que um de seus membros deslizava pelas rochas cobertas de musgo, amaldiçoando todas as gerações de usuários de frutas do diabo e a frescura com água — “ao menos a linhagem de Belka acabaria nela”, pensava.

Soltou uma lufada de ar, completamente consternado. Haviam deixado a canoa a ao menos quarenta minutos depois, com tranquilidade, poderia constatar que não chegaram em sequer um terço da escalada. Ele sabia que seria assim desde o momento que ouviu a confirmação de seus maiores medos: a ordem de Belka para subir, isto é. No entanto, por mais que estivesse preparado mentalmente (em partes ao menos), naquele instante, preferia lançar-se ao mar invés de subir mais um metro que fosse. O cansaço do exercício físico somado com a noite não dormida e anos de fumo lhe pesavam muito, mas o ódio que sentia o motivava; estava queimando por dentro e após engolir com dificuldade a sensação de incapacidade, sentia o resto de sanidade mental se esgotar. Era mais do que capacitado — ao menos era isso que repetia entre as juras de morte — e, independente dos meios, voltaria para aquele navio nem que isto lhe custasse os últimos miolos (custariam).

Por outro lado, mais irritante que a montanha em si, era sua companheira de viagem, que parecia ter uma perspectiva completamente diferente daquele inferno (ao menos sob os olhos odiosos do cozinheiro): soltava gritos de empolgação e eventualmente desferia tapas em seus bíceps, mandando-os colocar os anos de treinamento em jogo. Entretanto, ainda que estas cenas de fato ocorressem, não passavam do reflexo do ego ferido de uma mulher forte. A ex-marinheira estava, em poucas palavras, emputecida. Se arrependeu de tudo no momento em que seus pés tocaram a base da montanha, especificamente quando olhou para cima e viu o cume coberto de nuvens e aquele barulho ensurdecedor de cachoeira lhe encheu os ouvidos. Ia enlouquecer se passasse a tarde nisso — ainda mais se não tivesse como parar no meio do caminho para descansar. Nem os anos de treinamento na marinha, ouvindo ordens, “desordens” e outras injúrias eram o bastante para treiná-la para aquilo. Desejou dar meia volta, com todas as forças, contudo o orgulho nunca lhe permitiu a dádiva da desistência; assim como Flint, queria acima de tudo vencer aquele desafio e provar que eram capazes.

Era nesse âmbito que subiam: lado a lado, mas cada um querendo se mostrar melhor que o outro, e talvez almejando o topo para empurrar o inimigo (agora já não eram nem companheiros de viagem) lá de cima.

As pedras lisas iam se tornando mais íngremes a cada braçada e o sol castigava-lhe as costas: ao contrário de Flint, que utilizava uma dólmã para se proteger, a ex-marinheira era diretamente alvejada pelos raios solares, formando uma marca rubra em volta das alças da regata que usava — olhando pelo lado bom, ao menos nem conseguia sentir a dor da queimadura solar; a dor nas mãos eram o bastante para esquecer isso. Enquanto a água salgada era responsável por lavar as feridas e refrescar os corpos cansados, sua pressão e a força das correntes também os castigava, trazendo-os um metro para baixo cada vez que subiam três. Todavia, por incrível que pareça, já não tinham mais frustração ou tristeza naquela hora; o sol havia fritado todos os neurônios que podiam produzir esse tipo de sentimento. Sem escolha, subiam e subiam, porque o primeiro que chegasse seria o algoz do outro. Enfim, ver a primeira embarcação descer a gigantesca cachoeira os despertou minimamente do transe e por consequência, lhes trouxe de volta à memória as razões pelo qual estavam vivendo tal infortúnio.

— Aquilo… — Bertruska tentou falar, mas estava ofegante demais para formular uma frase no cérebro. Tentou outra vez: — Aquilo foi um…

— navio — Flint respondeu, dando uma tossida seca para baixo e quase perdendo o apoio de sua mão enquanto o fazia.

Agora parados como duas lagartixas esmagadas na parede, não disseram nada, mas os rostos, indubitavelmente rubros de vergonha, falavam por eles próprios.

Onde já se viu, pirata voltando pela montanha? Que vergonha.”, eles, os outros piratas, diriam, embora o som das águas os impedissem de escutar. “Se não queriam a Grand Line, por que vieram até aqui?”.

Porque…

Ah, por quê?

Com uma clara expressão de descontentamento, o cozinheiro olhou para Bertruska e esperou qualquer reação, seja uma validação ou somente um olhar que confirmassem que iriam embora (ainda que a ideia de lançar ele mesmo a desgraçada ao mar fosse mais interessante). Porém, imediatamente se arrependeu de esperar “qualquer coisa”; a mulher não pensou duas vezes antes de dar-lhe as costas, retornando a escalada e agora com o dobro da velocidade. Ela não daria o braço a torcer e ele, bem… Faria com que descesse aquela merda nem que fosse da forma mais rápida.

— FILHA DA PUTA! — o homem vociferou, colocando toda a frustração em somente um urro. Flint não estremeceu em sequer uma sílaba; continuou naquele brado colérico constante, gemendo como um monstro e subindo feito aranha logo atrás daquela vaca. — VOLTA AQUI, SUA VACA! VAMOS DESCER!

— CALE A BOCA, HOMEM! — retribuiu o urro, chutando pedregulhos em direção ao rosto do desgraçado, porém não conseguiu despistá-lo e sem demora sentiu a mão ásperas apertar seu tornozelo. Sem pensar duas vezes chutou-o na face e retornou a subir, desesperadamente. — SEU INFELIZ, DESPENQUE DE UMA VEZ E ME LIVRE DO SERVIÇO DE TE MATAR!

Flint parou por alguns segundos, sentindo a pálpebra inferior retornar a tremer descontroladamente. Logo acima de si, Bertruska ia saltando de pedra em pedra, como se tivesse guardado as energias justamente para aquele momento. Trêmulo de raiva, inspirou e sentiu um ardor nas narinas que fez com que precisasse esfregar a face em seu ombro, constatando o que já imaginava: uma mancha de sangue vermelho vívido sobre o tecido (quase) branco — era o preço do chute daquele rinoceronte que se autoproclamava “mulher”. Seu rosto se contorceu em ódio: agora tinha que alcançá-la, era uma questão de vingança. Sem nem pensar, ignorou as gotas que insistiam em pingar, se resolveria com o médico quando retornasse, e no impulso de esmagar o crânio da marinheira desgraçada retornou a subir, se empenhando ainda mais.

Seu corpo parecia mais leve por hora, talvez porque tivesse atingido o máximo de sofrimento que poderia suportar de uma só vez — como recompensa desse feito, nada mais justo que seu corpo lhe presentear com o “nirvana da dor”, onde não sentia mais nada além da fúria. Mesmo sem fôlego e com o cérebro desligado, pulava atrás da ex-marinheira e por muito pouco não alcançava seu tornozelo para puxá-la para baixo outra vez. Àquela altura, já nem se importava se cairiam juntos para uma morte certa; só queria ter certeza que ela viraria um patê de chão antes de escurecer e, se para isso precisasse morrer junto, o faria sem hesitar.

Os saltos pareciam cada vez mais altos e rápidos, sempre equiparados em velocidade, mas com uma distância considerável entre os dois. No entanto, conforme Flint se aproximava mais e mais dos pés da ex-marinheira, menos prestava atenção acima dela, e assim, tão de repente, o corpo dela foi tomado numa névoa infinita e nada mais puderam ver. Na adrenalina, ainda deu mais algumas braçadas ao ar, se elevando um pouco mais, mas nada encontrou. A perdera completamente de vista. Em desespero, olhou para todos os lados, sem saber que raios de direção ficava o “cima” e o “baixo” — não só pela neblina, mas também porque, finalmente, o ar lhe cobrava os pulmões.

Berrou o mais alto que pôde.

Uma forte pressão atingiu sua caixa torácica e neste momento caiu de joelhos, necessitando de alguns momentos para recuperar o controle da própria respiração. Não demorou para que esforço físico fosse cobrado, tossiu algumas vezes, sentindo o gosto ferroso de sangue invadir sua garganta. Tudo doía e ao mesmo tempo não sentia nada abaixo do pescoço. Parecia morto. Com a respiração acelerada, tentou se recuperar minimamente, desferindo um soco no chão e gemendo em frustração ao perceber que não havia só perdido a vaca de vista; por consequência, também perdera a batalha. Sem sombra de dúvidas, era incapaz.

— Deixa de corpo mole, homem — uma voz “feminina” veio detrás de si, seguida por um pontapé leve na altura dos rins. Olhou para trás e, com a visão embaçada, notou a silhueta de Bertruska de pé ao seu lado.

Não teve forças para respondê-la, mas ela entendeu o que ele havia pensando e, por sua vez, o respondeu:

— Não estamos mortos. Acho que é o topo.

Ao ouvir tais palavras, Flint arregalou os olhos, incrédulo. “Não…”, pensou sob o fitar de maior seriedade que poderia vir daquela vaca loucaNão podia ser verdade. Instintivamente chacoalhou sua cabeça para colocar as ideias no lugar; a mão foi ao joelhos para se levantar, embora o corpo falhasse no processo. Disposta a dar uma trégua, Bertruska até lhe estendeu o braço, mas ele não aceitou: em vez disso, lhe empurrou a mão e subiu sozinho nos joelhos de quarenta (ou cinquenta) anos, ficando de pé em duas pernas de gelatina. Não buscava algo em específico, embora de muito ajudaria se encontrasse algo no horizonte que comprovasse a fala da mulher… Mas não aconteceu. A névoa cobria quase toda sua visão periférica. Inconscientemente tremeu, sentindo então o ar gélido quase congelar as roupas castigadas pela água salgada; a adrenalina estava deixando-o sofrer as consequências do despreparo. Sentiu um puxão em seu braço esquerdo que o obrigou a olhar para frente e então se deu conta de onde era o topo e, principalmente, que aquilo não era nem metade da jornada.

Os raios solares já não penetravam a região e somente o vislumbre da montanha invertida refletia nos olhos do cozinheiro. As paredes avermelhadas, e ainda mais rochosas e pontiagudas, causaram em ambos um silencioso suspiro de puro pesar. Os ventos eram insuportáveis e se antes reclamaram da força dos mares, agora somente temiam a força com o qual ricocheteavam nas paredes. Nenhuma palavra foi dita, nenhum olhar foi trocado e tampouco um grunhido de companheirismo. O mesmo silêncio dos primeiros minutos retornou a pairar, porém desta vez com a melancólica sensação de fracasso.

Não importavam mais as razões e ainda menos os motivos pelo qual chegaram lá; retornariam a carniça com muito menos do que subiram — se é que tinham algo até então. Silenciosos, foram à beirada saboreando a amargura do insucesso.

≈≈≈

Quase anoitecia quando os dois miseráveis chegaram ao pé da montanha outra vez, ambas as faces estampando uma desolação sem igual. Não tiveram forças para dizer uma palavra durante a descida e, mesmo quando estavam seguros no bote, acomodados e prontos para voltar para casa, não tiveram coragem de se olhar, porque a dor da vergonha era demais para confrontar. Ao passo que iam remando, cabisbaixos e num silêncio fúnebre, as luzes externas do navio iam iluminando aquele gato maldito, rindo em escárnio na bandeira daquele ato de covardia, isto é, quando os aturdidos incapazes desistiram de lutar. Nunca os deixaria esquecer daquele dia; a dor nas juntas, queimaduras de sol e unhas partidas também ficariam ali para lembrá-los que falharam, mas nem de longe eram maiores que as sequelas emocionais. Enfim, estavam de volta ao lugar que nunca deveriam ter saído: a amada Carniça.

Subiram quietos pelos cordames da quilha, sem causar um estardalhaço como geralmente fariam — ao menos era o que Bertruska faria sem pensar duas vezes em um dia comum. O deque estava mais limpo que antes, as cadeiras organizadas e, apesar das luzes externas estarem acesas, não havia ninguém para os receber. Algo parecia fundamentalmente errado; afinal, haviam sido designados para a missão que salvaria a tripulação e agora, bem, haviam sido deixados junto das cracas.

Flint suspirou pesado, ao contrário de Bertruska que fechou a cara em uma expressão de desgosto, o homem não costumava esperar muito da vida e certamente não apostaria suas fichas naquelas pessoas (traição não deixava de ser algo habitual no meio pirata). Tomou a frente, precisava tomar um banho e não existia cavalheirismo que o obrigasse a deixar a vaca ir primeiro, mas antes que pudesse abrir a porta, uma conversa lhe chamou atenção:

— Você não tinha contado sobre essa sua... habilidade, Merin - a gata afirmou, em um tom pensativo. — Não imaginava que sequer soubesse usar o fogo.

Antes que a selvagem pudesse responder, a capitã tomou a frente, explicando: — E foi assim que sobrevivemos no mata aquela vez! Comemos algum bichão gigantesco assado, o mesmo que tentou me matar!

O cozinheiro foi capturado pela narrativa, principalmente porque, agora tão perto da porta, pôde sentir um aroma curioso vindo pelas frestas. Hesitou com a mão na maçaneta.

— Não vai abrir, homem? — Bertruska perguntou baixo (não porque estava querendo sussurrar e sim porque não tinha forças para gritar mais). — Isso é cheiro de... carne vermelha?

— Parece que sim. — Flint respondeu de sobrancelhas franzidas. Virou o trinco.

Ao abrirem as portas se depararam com a cozinha (quase) arrumada — quer dizer, estava “arrumada” de certa forma, mas não no sentido de organização: haviam diversos enfeites e outros fitilhos espalhados pelo cômodo, além de uma faixa escrita “Não iremos morrer!”, com uma caligrafia tenebrosa e borrada, pendurada na parede, obviamente a peça principal daquela decoração festiva. Quanto aos festeiros, sentiam vergonha até de descrevê-los. A imediata estava sentada no balcão, não em uma cadeira, exatamente no balcão, o que demonstrava que já havia abusado das doses de álcool e ao seu lado o médico não parecia estar em um estado de ebriedade tão distante; mesmo com a cabeça deitada sob os braços era possível notar as bochechas rubras e as gotículas de suor que caiam sob a face. Poyo parecia a mais sóbria entre o grupo, mas nem de longe a mais contida: corria e rodopiava em torno da mesa, como se dançasse uma música muito animada, exceto que não havia nenhuma fonte de som; e, por fim, tão consternante quanto os outros, Merin usava um avental de cozinha masculino (provavelmente pertencente ao antigo proprietário do navio) e, sem pressa alguma, bem devagar mesmo, punha na mesa um prato bem cheiroso de alguma coisa que não puderam identificar a procedência, embora o cozinheiro conseguisse identificar algumas das suas misturas de temperos nas nuances do ar.

Para ex-marinheira, que não tinha o mínimo de conhecimento culinário, isso até poderia passar em branco, mas não para ele. Em conjunto com o cheiro forte de álcool, certamente uma bela peça de carne marinada ao rum, notou o que Merin havia posto sobre a mesa: uma carne suculenta, ao ponto e muito perfumada, um prato bom demais para uma... selvagem. Involuntariamente torceu o lábio.

Não planejava ser notado — uma vez que falhou na missão, apenas desejava se lavar e fumar o máximo de cigarros que pudesse —, contudo seus planos foram destruídos pelo urro apaixonado que a ex-marinheira achou de bom tom soltar:

— BONEQUINHA! — Bertruska levantou os braços; a dor das queimaduras não eram o bastante para suprir sua emoção. — VOCÊ COZINHOU PARA ME ESPERAR, NÃO FOI?

Com o berro, os quatro viraram a cabeça para a porta num sobressalto; Morgan, em especial, acordou de seu cochilo alcóolico num pulo, quase caindo da cadeira para trás.

— Vocês volta-! — Poyo começou a gritar, mas foi interrompida por Morgan:

— Que porra é essa? — se levantou da cadeira, olhando para os recém-chegados com a face torcida em indignação e apenas a parte esquerda do lábio erguida.

— Miau Deus! — Belka exclamou, dando um soluço em seguida.

As roupas sujas de sangue e areia, molhadas com a água do mar e rasgadas em boa parte; os corpos mutilados da cabeça aos pés, com vergões pontuais; e, claro, a pele impregnada num tom rosa-coral, característico de queimaduras do sol foram o bastante para derrubar os queixos daqueles que passaram a tarde aportados. Estavam horríveis, em todos os aspectos. E, se não bastasse os (tantos) vestígios da escalada, ainda lhes restavam as marcas da briga que tiveram, que incluíam uma mão na perna da ex-marinheira, carimbada com a força do apertão e com exatos cinco cortes onde ficariam as unhas; e também uma batata no lugar do nariz do cozinheiro, inchando as laterais ao ponto da protuberância parecer quase uniforme em ambos os lados.

Morgan insiste outra vez, dessa vez mais alto e apontando diretamente para o nariz de Flint: — Que porra é essa?

— Marcas de guerra. As mulheres gostam. — Bertruska respondeu, abrindo um sorriso maldoso nos lábios (não se daria ao trabalho de responder uma pergunta dessas com sinceridade).

— Caralho, mas vocês não tiveram o mínimo de cuidado?! — o médico bateu na mesa, fazendo Merin dar um saltinho, assustada em ver seu benzinho aumentar a voz tanto assim. Andou a passos rápidos até o cozinheiro, ele deveria tratar daquilo com o máximo de urgência e, mesmo se tomasse como prioridade quem menos apresentaria perigo, Flint certamente estaria na frente da marinheira maluca em sua lista de prioridades.

Entretanto, muito antes que pudesse ter noção da profundidade dos ferimentos — apesar de no fundo saber do que se tratava, considerando o inchaço surreal que ia até abaixo dos olhos —, o médico, até então alterado, não conseguiu nem encostar no outro homem, pois fora atingido com um golpe certeiro em seu queixo, sendo arremessado para trás com toda a força e empurrando as cadeiras até cair sentado no chão.

— COMEÇOU A FESTA! — Poyo comemorou, tirando da mesa uma colher e uma taça de vidro da bancada. Começou a bater, incessantemente, só para ouvir o tilintar (era sua música).

De fato, começou (mesmo porque, se não tivesse até então, agora tinham a ordem da capitã e, portanto, não deveriam desobedecê-la). Belka, ainda acima da bancada, deu uma gargalhada alta, assistindo a cena com tranquilidade — estava muito além do seu estado normal para ligar para aquilo — e tomando o álcool pelo bico da garrafa mesmo, já que agora já não tinha mais taça. Por sua vez, Camerin ia correr para socorrer Morgan todavia fora impedida por um salmão que saltou em sua frente: Bertruska não havia esquecido da “surpresinha” que a moça azul havia lhe preparado, deixando a janta pronta para quando ela chegasse.

— Esse avental lhe cai muito bem — a ex-marinheira coloca a mão na coluna da parede, paquerando-a descaradamente.

— Tá bom, eu preciso- — diz Merin afobada, tentando espiar de por cima, pelo lado, ou qualquer outra direção que conseguisse ver onde estava Morgan.

Quando finalmente conseguiu se desvencilhar da emocionada guerrilheira, se deparou com o pior dos cenários: Morgan ria, alto e abertamente, ao mesmo tempo que dava um aperto de mão no maldito cozinheiro, levantando-se com sua ajuda. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo ali, mas sentiu de longe uma cumplicidade que a fez se corroer de ciúmes. O que é isso, logo agora?, fungou, finalmente quando começara a se dar bem com o Morceguinho aquele homem veio para tirá-lo de si — e ele nem o conhecia a tanto tempo assim!

— Quer um gole, hic? — Belka pergunta a Merin, dando um risote sacana e lhe oferecendo a garrafa.

Aquilo iria noite à dentro. Sem nem hesitar, a mulher azul tomou a garrafa em mãos e a fez sua. Sentou-se na banqueta perto da bancada americana onde a gata havia se acomodado. Logo em seguida a ex-marinheira sentou-se na outra, pedindo para que a “percussionista” (Poyo e seu copo) lhe trouxesse uma garrafa de cerveja trincando.

— E realmente achei que vocês não iriam voltar… — Merin choramingou, dando uma golada generosa na garrafa de rum.

— Que fofa — Bertruska diz, apertando a bochecha da outra moça — Mas eu estou de volta, princesa, não precisa se preocupar mais.

— Eu acho que não foi isso o que ela quis dizer com isso, hic — Belka fala torto, levantando uma sobrancelha e esticando as patas para frente na bancada só para abrir seus dedinhos. — Poyo, trás mais um pra mim também — torceu a coluna até virar um “C” na tentativa de olhar para trás (se esqueceu por um momento que poderia só ter virado o tronco).

— OK! — Poyo deu um berrou abafado pela geladeira.

Camerin colocou a garrafa (vazia) na bancada: — O que eu quero dizer é que… — parou para um soluço, sentindo os três olhos marejar — Se esse merda não voltasse, eu podia cozinhar para sempre, e assim eu ia-

— Não, não ia. — Belka corta. — Ele não vai gostar de você só porque você, hic, cozinha para ele. Se fosse assim, hic, ele estaria apaixonado por Flint agora, hic. Nós todos, na verdade. 

— Se você quiser, eu posso me livrar dele durante a madrugada… — A ex-marinheira diz, como quem não quer nada.

De repente, Poyo larga as garrafas na bancada e vem correndo só para desferir um tapa na nuca de Bertruska, lhe encarando muito séria: — Não fala besteira! Se alguém vai matar o Flint, só pode ser eu! — inchou as bochechas. As mulheres (e gata) a encararam sérias, sem compreender o que aquilo deveria significar. — Quer dizer, — a menina desviou os olhos, dando um sorriso torto e ficando de bochechas coradas — ninguém aqui vai se matar, não agora que temos uma bústula para seguir viagem! — gritou.

Nesse segundo, Flint e Bertruska se calaram completamente, trocando olhares fúnebres e suando frio, sem saber como dar a notícia de que não haviam conseguido atravessar a montanha. E, puxa, eles até prepararam uma festa para recebê-los… Só lembraram agora que estavam em calças tão curtas. Como iriam dizer que falharam?

— Então… A gente... — Bertruska balbucia de olhos fechados, não tendo coragem de olhar para a capitã.

— A gente não conseguiu um Log Pose. — completa Flint, sem rodeios. Seu semblante estava sério. — Na verdade, não conseguimos nem subir a montanha. Isso significa que estamos presos aqui.

O navio foi tomado por um silêncio constrangedor outra vez, onde ninguém tinha coragem de se olhar nos olhos. Conquanto, desta vez não foi um submarino a quebrar o silêncio; a capitãzinha, depois de perceber que se não fizesse alguma coisa, teria de ficar quieta por muito tempo — uns dois minutos —, decide que é hora de parar com tudo aquilo, dando uma longa e altíssima risada pirata para que todos (do mundo) a ouvissem. Seus subordinados a olharam surpresos; não esperavam que uma menina de cordas vocais tão pequenas conseguiria dar uma gargalhada daquelas — tão forte e barulhenta, especificamente. Quando finalmente parou de cascalhar, ela diz tranquilamente: 

— Gostaram? Eu estive treinando. — abre um sorriso, o suficiente para cortar o coração do cozinheiro e ex-marinheira.

— Eu… sinto muito, pirralha — Flint murmurou, abaixando a cabeça. — Eu não estava brincando. Realmente não conseguimos nada.

E, no entanto, para sua surpresa, ela não desmanchou o sorriso.

— Eu sei que não estava. — diz.

— Então por que está rindo? — Bertruska perguntou.

— Minha amiga pirata me deu uma bústula! — esclareceu em alto e bom tom, correndo até a gaveta para pegar alguma coisa.

Flint ia mesmo dizer que não podiam usar uma bússola ali; cortaria seus sonhos pela raiz, explicando-lhe que seus sonhos acabariam ali, com eles mortos sem sair da entrada da Grand Line, contudo, antes que pudesse, notou a esfera de vidro com um ponteiro branco e vermelho pendurado no centro.

— Meu deus, é um Log Pose… — sentiu um tijolo cair sobre sua cabeça. Sua pressão foi ao chão no mesmo segundo. Olhou para Bertruska com o pescoço travando, mas ela também não conseguia dizer uma palavra; apenas piscava os olhos em incredulidade.

De todos os desfechos possíveis para aquela noite, nem de longe imaginavam esse. No fim das contas, haviam perdido o dia todo (e quase a vida) escalando uma montanha para, absolutamente, nada

 


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Notas finais do capítulo

Pieri tem parentesco com um pirata do anime original, você sabe quem é?
a) Buggy
b) Buggy, o Palhaço
c) Shanks
d) oçahlaP o ,ygguB
e) ygguB

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