Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 14
Grand Line, Montanha Reversa (Reverse Mountain)


Notas iniciais do capítulo

Estimados companheiros de viagem, é com muito prazer que vos digo: chegamos a Grand Line. Foi uma viagem longa até aqui - as escritoras desse conto infernal não economizaram nas palavras em momento algum -, mas fico feliz em saber que alguns de vocês continuam por aqui, mesmo que a maioria sem comentar.
É meu dever salientar outra vez que, a partir de agora, a história tomará seu rumo principal. Isso também significa que as personagens que enviaram começaram a aparecer com mais frequência. Contudo, não se acanhem com isso! Ainda dá tempo de participar.
Tendo em vista que estamos diante de um capítulo enorme, vou encerrar meus discurso por aqui, deixando os demais avisos para as notas finais. Por favor, não deixe de lê-los ou vai me deixar falando sozinho, e isso seria uma tremenda falta de educação. No mais, espero sinceramente que tenham uma excelente leitura.



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— COLOCA TUDO NA MESA QUE MINHA BARRIGA TÁ NERVOSA, FLINT! — exclamou Bertruska, a primeira a colocar a cabeça para fora do alçapão. Em seguida vieram Poyo, Merin e Belka, nessa ordem.

No entanto, ao subirem para a sala de refeições, não havia uma mesa posta como o habitual para esse horário: isso porque, enquanto Belka e Poyo já tinham a primeira cama montada e foram dormir antes de todo mundo, sobrou para os homens não só montar a beliche de Merin e Bertruska (que ao menos puderam dormir um pouco), como também a deles. O resultado disso era um cozinheiro acabado atrás da bancada da cozinha, com os olhos fundos de quem não dormiu e, evidentemente, nada de comida feita (ou do médico).

— Podem fazer outra coisa enquanto isso, eu nem comecei — diz o homem, calmamente lavando os ingredientes que usaria para a refeição. Em sua bancada haviam algumas frutas já limpas, grãos, ovos e leite (uma iguaria que nem sempre tinham acesso em alto-mar, era hora de aproveitar).

— Como assim não está pronto? São sete da manhã! — a ex-marinheira vocifera indignada, mas não teve tempo de obter uma resposta pois Belka saiu atropelando sua fala:

— Quanto tempo?

— Não muito. Uns quinze minutos, vinte no máximo.

— Não é o suficiente para içar as velas, então. — Belka conclui. — Vamos esperar aqui mesmo, te fazer companhia — e deu uma risadinha ao ver Flint erguer uma das sobrancelhas, claramente consternado com aquela afirmação: mesmo que fossem da sua tripulação, não se dava bem com mulheres no geral.

Indiferente, a gata deu uma reboladinha, se preparando para saltar e tomar seu lugar de direito: a banqueta da cozinha americana. Uma vez sentada, cruzou as pernas como se fosse a madame mais chique de todas — de fato era, naquele navio — e somente ergueu a pata dianteira, esperando que o cozinheiro entendesse seu gesto. Flint suspirou; ela queria seu primeiro drinque do dia. Em que momento havia se tornado empregado daquela gente?, se perguntou, enquanto já ia secando as mãos na dólmã para ir buscar uma taça e garrafa de rum (afinal era um escravo muito treinado; desde criança teve dez montados em suas costas).

Colocou-as na bancada e despejou, sem pressa, até que ficasse a um dedo do limite. Antes de voltar a comida, Belka lhe pediu para colocar açúcar na mistura, para rebater o álcool, e então teve de outra vez largar seu posto para procurar entre os armários de condimentos (aprendera da pior maneira que não era bom preparar nada com açúcar no café da manhã da capitã).

— Por que a Belka tem prioridade e eu não...? — resmungou Poyo sentada, se esparramando na mesa principal.

— Porque ela é mais velha que você — Flint respondeu, ignorando os olhos furiosos que foram direcionados a sua cabeça.

— Mas eu tô com fome... — a menininha diz.

— Se você esperar, vai ficar com ainda mais fome e poderá comer mais! — ele respondeu em tom divertido, sem dar a menor importância quanto a veracidade dos fatos, apenas queria evitar gritos descontentes da pirralha. 

Poyo se calou, enquanto coçava a cabeça com uma das mãos, completamente aflita: conseguia ver total sentido no que Flint falava, entretanto estava irritada em demasia com o cozinheiro para dar-lhe razão sobre algo. Resmungou calada, pensando em alguma forma de rebater, mas nada além de "imbecil" e um dar de língua passava por sua cabeça. Era uma tolinha, afinal. Uma tolinha completamente faminta.

Os minutos passaram arrastados depois disso, se alongando ainda mais com o cheiro embriagante que vinha da cozinha. "De quem foi a ideia de fazer uma cozinha embutida na sala, afinal?", Poyo se questionava; se pudesse, o mataria. Quando finalmente a comida veio a mesa, tinha certeza de que estava no meio de um delírio, de tão faminta que estava. Flint pôs as travessas em sua frente e, se não tivesse sido tão rápido, com certeza teria perdido o braço junto (porque, de repente, ele parecia um delicioso salsichão nos olhos da capitãzinha). Não obstante, o cozinheiro só andou em direção ao balcão, acendendo o segundo cigarro do dia — aquele que somente se permitia apreciar após servir a tripulação — e deliciando-se com a primeira tragada se juntou a gata, servindo a si mesmo uma grande xícara de café. Para ele, enquanto Bertruska e Poyo se digladiavam pela garrafa de melaço, era mil vezes preferível ficar ao lado de Belka, onde não correria o risco de ser acertado por nada ou, na pior das hipóteses, também virar refeição.

— Você não vai comer? — a imediata interpela, mexendo o conteúdo de sua taça ao mesmo tempo que fisgava um morango com suas garras afiadas. 

— Você já devia saber, não tenho o costume de comer minha própria comida. — explicou, sem rodeios. 

— Mas deveria — Belka o encarou pelo canto dos olhos — Saco vazio não fica em pé, e hoje em especial, o dia será bem cheio. Principalmente para ti e o senhor sabe bem disso.

— Ora, diga isso para a vagabunda, então. Não para mim — o cozinheiro deu um trago (ignorando o comentário sobre suas obrigações). A gata ergueu uma sobrancelha, olhando para trás.

A alguns passos, parada próxima a porta que levava ao corredor, estava Camerin mexendo os pés descalços inquieta, como quem procura algo. Não se dera o trabalho de sentar-se à mesa, e tampouco parecia interessada na comida (o que era bastante incomum para ela). Em vez disso, somente enlaçou os dedos das mãos, tentando se concentrar em qualquer coisa que não fosse sua preocupação. A imediata e cozinheiro trocaram um olhar cúmplice, ainda que não dessem grande importância para as maluquices da navegadora, estavam a cada dia compreendendo melhor seu comportamento no mínimo estranho e desvendando seus trejeitos selvagens. No final das contas, a mulher azul era nada mais que um animal selvagem em processo de domesticação.

— Você não vai comer, querida? — pergunta Belka, forçando um tom amigável. Tinha uma noção do que a incomodava, mas não tinha muita vontade de abordar aquele tópico em especial: acompanhar os delírios apaixonados da navegadora lhe custavam uma parte circunstancial de sanidade mental, já que detestava a paixão e, sobretudo, sentia náuseas ao pensar em amor.

— Estou sem fome. Quero saber onde está meu morceguinho, o procurei por toda embarcação.

A gata deixa escapar um risinho frouxo com a menção do apelido, mas logo se recompõe: — O que você fez com ele dessa vez, Flint? — acusa, sem mais nem menos.

O homem apenas deixou a xícara sobre o pires na bancada muito calmamente, pensando em como responder para uma completa maluca.

— Nada. Ele 'tá dormindo no consultório. — ele disse.

A moça olhou de volta, confusa: — Que consultório?

Flint deu um longo suspiro. Queria evitar a palavra "quarto" para não desestabilizar a vagabunda — ela ainda não havia sido comunicada que os homens dormiriam em um quarto separado.

— A segunda porta da sala, a direita do quarto de vocês. — o homem explica.

— O meu closet?! — Belka pareceu indignada, não pôde aproveitar a fartura por sequer uma semana.

— Não, não é um closet. É um consultório... com beliche. — diz, medindo sua fala com a altura do fogo nos três olhos que o encaravam.

— Ah, o seu quar-! — a gata se interrompeu depois do sinal do cozinheiro; olhava para ela e para a doida, intercalando desesperado. Das duas opções uma era certeira: ou a garota tomaria o quarto para si, ou tentaria novamente assassinar o cozinheiro. Nenhuma dessas era agradável. — O consultório, sim. Certo. — soltou outro risinho.

— Vou esperá-lo para comer, então... — Merin diz, fingindo confiança em sua fala, mas cheia de reticências.

— Não acho que ele vá acordar tão cedo. — Flint levantou da banqueta, tomando a própria xícara e taça de Belka para colocar na pia — Depois de conversar com você ontem, ainda ficou para me ajudar a montar a beliche. Só dormiu depois que o sol nasceu.

— Como um morcego... — a gata falou baixinho, olhando somente para o cozinheiro, que se segurou para não começar a rir.

— Eu... — a moça hesitou um instante, olhando para baixo (talvez medindo sua fome), porém no outro já abria um sorriso sonhador: — Tudo bem, eu espero.

A expressão de Belka se torna sisuda com aquela atitude de submissão. Aquela menina tinha merda na cabeça? Sem pensar duas vezes, saltou da cadeira, batendo os pezinhos:

— Vá comer de uma vez, mulher! — elevou o tom, descompassada. Merin tenta recuar, mas tem as costas tomadas pela gata — Eu vou te quebrar na porrada se você desmaiar esperando o outro vagabundo! Vai comer agora!

Empurrou-a pela sala; fez sentar-se na mesa; e ainda mandou Flint, que já tinha começado a limpeza dos instrumentos, preparar algo — pois em frente a Bertruska e Poyo restava somente os pratos. O cozinheiro deixou sair um suspiro penoso, mas assentiu, desligando a torneira da pia e voltando ao fogão. Nesse meio tempo, Poyo, muito ligeira, ao notar que a imediata estava ocupada demais ficando brava com a mulher de três olhos, pensou que não fosse dar em nada e aproveitou para dar um arroto bem dado, levantando-se depressa com o comunicado:

— Vou subir o mastro! Logo vamos partir e eu quero ter um último vislumbre desse mar! 'té! — e saiu voando da cabine, antes de ver uma reação dos subordinados. Belka deu um murro na mesa:

— PORCA DO CARALHO! VOLTA AQUI, SUA SUÍNA! — ralhou, já indo correndo atrás da garota, pronta para lhe dar uns bons cascudos. Flint riu sozinho enquanto cozinhava. 

De fato não estava de mal humor por voltar a cozinhar: amava seu ofício demais para se deixar irritar com uma besteira dessas. Contudo, ao ver que Bertruska também sairia para o convés com a desculpa de ir se exercitar, não pôde evitar de contorcer seu corpo. Isso... era demais. Ficar sozinho com a maluca, eu quero dizer. Estava acostumado a cozinhar o tempo todo; e ser tratado como escravo também era aceitável (não seria nem a primeira e nem última vez). Apanhar da gata de vez em quando já considerava vacilo, mas podia tolerar isso também. Agora... ser abandonado por todas com sua assassina convicta; bem, isso era um pouquinho demais, mesmo para ele. Por "algum" motivo, preferia muito mais continuar com dez mulheres no quarto do que só com aquela. Sentiu suas mãos suarem frio quando a porta se fechou. Estava nu diante da predadora.

Mesmo receoso, fez seu melhor para servi-la: fritou um ovo, e fez algumas torradas pinceladas com manteiga, além de um copo de suco preparado com frutas frescas. Poderia servir mais, porém, como não tinha certeza se Merin comia tanto quanto as outras, optou pelo básico que era garantido — quer dizer, devorava carnes como ninguém, mas outros alimentos eram sempre uma dúvida. Finalmente, deixou sobre a mesa, parando ao seu lado, como se a esperasse terminar para outra vez começar a limpeza. Ao ver e sentir o cheiro da comida, ela o amaldiçoou mentalmente. Afinal, era algo tão simples, como poderia cheirar tão bem? Deu a primeira mordida, ressabiada. O homem não largava de sua cola, por mais que não olhasse diretamente em seus olhos. Sabia que não estava envenenado — não vivia mais na selva e não era tudo que poderia a matar —, entretanto, ainda assim algo naquela situação a deixava muito acuada. Mastigou sem pressa, apreciando o sabor. Estava maravilhoso, como esperado. O cozinheiro realmente não era uma pessoa ruim — ela era. 

Antes que pudesse dar outra mordida, sentiu um soluço fugir e junto dele algumas lágrimas. Se sentia perdida.

— 'Tá ruim? — Flint pergunta afobado. Não parecia estar ruim. Aliás, tinha certeza de que não estava. Ainda assim, teve o impulso de tirar o prato da mesa (porque, para evitar discussões desnecessárias, aprendera que o cliente sempre tem razão), mas antes que conseguisse puxá-lo, a moça o segura pelo outro lado. Engoliu seco.

— Não se atreva! — ela ralhou, rapidamente enxugando o rosto e, com a outra mão, enfiando meia torrada na boca sem nem pestanejar — Eu bou cober isso aqui! — ia continuar a falar, mas foi interrompida por um forte solavanco: a âncora havia sido erguida e com o nivelamento no navio, sentiu o grosso pedaço de pão encobrir sua garganta. Em meio ao sofrimento de tentar colocá-lo para fora, tossiu e bateu na mesa, pedindo ajuda, até que uma das mãos gigantes lhe estapeou as costas.

Sobreviveu, mas a que preço? Estava de cara nos ovos do prato. Aquele homem... queria trucidá-lo.

— Caralho. O que é isso, a essa hora? — ele amaldiçoou alto, e sem nem ver o que tinha causado ali, apressou o passo para fora do convés, deixando-a sozinha com toda a bagunça.

A mulher azul sentiu um lapso de raiva passar por seu corpo, porém antes que fizesse algo errado, tratou de engolir outro pedaço de pão, a fim de tratar o ódio com o doce alimento. Não compreendia o que estava acontecendo no convés, mas ao notar um guincho de pura indignação do cozinheiro soube que o destino tratou de vingar-se por si. Num instante enfiou o resto da comida na boca e deu um jeito em sua cara com um guardanapo: precisava ver o quanto antes o que o carma havia preparado para aquele filho da puta.

Ao atravessar a porta, pôde ver uma cena no mínimo bizarra: Flint fumava exasperado, ao mesmo tempo que subia o cordame para desamarrar as velas; e, a gatuna, no meio do convés, gritava para Bertruska (e também aos quatro ventos) que a imbecilidade da tripulação iria matá-los hora ou outra. Não chegou a ver a capitã, mas seus batimentos cardíacos entregavam que estava por perto — não que isso fosse um bom sinal. De modo geral, não conseguiu compreender o que estava acontecendo ali; isso ao menos até olhar bem a ex-marinheira, que estava casualmente com o tronco virado ao parapeito do casco e, em suas mãos, carregava a causa daquela bagunça toda: nada mais, nada menos, que a âncora do barco, suspendida ao ar apenas com a seus braços. Mesmo que não entendesse o instrumento, Merin sabia muito bem que aquilo não deveria estar ali, tampouco nas mãos daquela... desequilibrada — é assim que diziam? 

— Você é burra pra cacete ou o quê, sua burra?! Eu nunca vi algo desse tipo! — gritava Belka, tão alto que sua voz saía esganiçada. — Acho que nem a Poyo faria isso! Você podia ter quebrado o navio!

E, no entanto, contrapondo toda a seriedade daquele sermão, a ex-marinheira só murmurou sem muito pensar: — Ela não faria porque não conseguiria levantar...

— Puta merda, acho que vou vomitar... — a gata ameaçou cair, mas conseguiu colocar uma pata atrás antes de despencar no chão: esse era o preço que pagava diariamente pela sua tripulação de imbecis (ou então por tomar álcool puro logo depois de acordar).

De repente, veio do alto um berro retumbante:

— Belka! Flint! Olha o farol! — era Poyo, de olho roxo, batendo palminhas no cesto do mastro principal. O "dito cujo" estava ali desde a noite anterior na verdade; mas dada as circunstâncias que fora dormir (isto é, não havia nem jantado com os outros), sequer havia notado que estavam tão perto de seu objetivo. Em breve, seria uma capitã na Grand Line. — VAMOS LOGO! NÃO TEMOS TEMPO A PERDER! 

Merin não esperou que lhe chamassem, sabia que aquela era sua deixa e o momento em que precisava mostrar serviço, nem que fosse só para a capitã. Pouco sabia sobre navegação, e em toda sua vida nunca passou em sua cabeça que estaria comandando um navio em alto-mar (não sabia nem a diferença entre navios e barcos até pouco tempo, oras!), contudo, de todas as tarefas que poderia ter naquele bando, servir como amplificador dos mares não era nem de longe a pior delas. Ao passo que terminavam de esticar as velas, dar um jeito na âncora e se preparavam para ir em direção a Montanha Reversa, subiu para o terraço da cabine, assumindo o timão pela primeira vez. E como era estranho, aquele instrumento! "Uma roda cheia de pontas que era capaz de girar um monstro de madeira gigantesco", pensou, tocando a parte metálica e sentindo um pequeno arrepio pela temperatura. Era mais pesada do que parecia, talvez precisasse de ajuda para girá-la, mas, ainda assim, aquele era seu posto. Em toda sua vida, a única coisa que era só sua. Compreendeu, ainda que sem grande emoção, que a partir daquele momento não seria mais um peso morto; iam partir.

Olhou para a imediata no andar de baixo, buscando confirmação para agir. Belka grita:

 — TODO MUNDO CALADO, NEM RESPIREM!

Então a mulher fechou os três olhos, escutando a melodia da brisa casada com o som baixo da água batendo no casco. O mar parecia calmo, mesmo depois da tempestade do dia anterior: nenhuma desafinação em longos nós de distância — ou, melhor dizendo, não havia nenhuma até onde podia ouvir. Largou a roda do leme por um segundo, andando até o parapeito da popa, tentando enxergar alguma movimentação nos arredores, mas não encontrou nada de estranho. As correntes estavam tranquilas e o vento parecia seguir na direção certa (rumo ao barulho de cachoeira, no caso: Morgan havia lhe ensinado que esse era o único caminho para entrar no quinto mar). Suspirou alto, aliviada por não encontrar problemas em seu primeiro dia de trabalho, porém, antes que pudesse se virar para dar suas ordens, um barulho lhe chamou atenção.

Palavras não eram suficientes para descrever aquele terror, mas se precisasse mesmo, diria estar entre um guincho de puro desespero e o barulho do ar escapando de um balão. Sentiu todos os pelos de seu corpo arrepiarem e uma sensação de mal agouro entojar a garganta. Tratava-se de uma gargalhada horrorosa, esganiçada e nefasta, que certamente subia pelas cordas vocais como gato arranhando as paredes. Nem de longe conseguia imaginar um humano fazendo aquele ruído — inclusive, duvidava até mesmo que as criaturas que matava na floresta seriam capazes de tal. 

Desesperada, pensou em seus confrades e em como eles estavam reagindo aquela gritaria dos infernos. No entanto, se esquecera que ninguém além dela tinha "aquela" habilidade. Quando se virou, Belka, Flint, Bertruska e a Capitã, que há pouco descera para ajudar com os preparativos da viagem, a aguardavam com muita expectativa, olhando diretamente para seus olhos. Naquele instante, quis sumir do mapa. Estragar os sonhos dos quatro com um "não podemos seguir" era um peso que não queria carregar em seu primeiro dia de trabalho, porém, simplesmente não tinha forças para ir em direção daquilo.

— Nós... — ia começar a falar, mas sua capitã interrompeu logo no início:

— Ela tá sumindo, que irado! — apontou com o indicador para as "pernas" de Merin, chamando a atenção dos demais tripulantes, que quando olharam, não viam nada além de barco.

Se deixasse o medo a consumir, sumiria por completo, por isso precisava tomar uma dose de coragem.

— Não podemos partir. — diz, em alto e bom tom. Os quatro abaixo a encararam confusos, esperando por uma explicação. Merin continua:— Acho que tem outro bando agora, é perigoso trombar com eles.

— Você acha? — Flint pergunta desconfiado.

— COM CERTEZA! — a mulher de chifres bate no parapeito, voltando a sua opacidade habitual no mesmo instante. O cozinheiro deu um pulo no lugar, dando as costas e correndo para subir o cordame e recolher as velas outra vez (as memórias da foice no pescoço ainda eram fortes demais para desafiá-la de peito aberto).

≈≈≈

Não demorou muito para que o som desaparecesse e ainda que Merin desejasse esperar mais uma hora ou duas, Poyo cortou toda e qualquer iniciativa, uma vez que não desejava esperar mais um minuto sequer para dar início a sua grandiosa aventura. "Os covardes que se lancem ao mar" bradou, assumindo a postura correta para uma capitã, mas não para seu porte — fazer o quê? O relógio mal dava a décima badalada quando voltaram a navegar, e pouco tempo depois de perderem o farol no horizonte, a montanha Red Line tinha tomado todo o campo de visão.

Flint era pirata a mais tempo que os outros do bando, e apesar de nunca ter ido para a Grand Line de fato, sabia que a única saída do East Blue e, consequentemente, a porta para um mar desconhecido, era uma correnteza que subia para além das nuvens. Bem, não que ele acreditasse muito nisso, de qualquer forma. Contudo, de nada vale a descrença quando se vê o absurdo diante de seus olhos (e sua imediata era um gato falante, não podia esquecer disso). Ao avistar a pequena rachadura e cachoeira reversa, os cinco piratas queriam chorar, mas nem todos pela emoção de ver um milagre desses: para o bem e para o mal, estavam cada vez mais perto do seu objetivo; cara a cara com a terra dos maiores tesouros da humanidade, mas também um passo mais perto de uma inevitável morte — a partir dali, não dependeriam mais da habilidade, os mares traiçoeiros da Grand Line só se baseavam na sorte.

Porém, por mais que (alguns) quisessem dar para trás diante do perigo, agora era tarde demais para voltar: a montanha já começava a puxar a embarcação e antes que os temores tomassem suas mentes, foram engolidos pela correnteza. Não foi nem preciso tomar o leme nesse ponto: o mar revolto fazia a maior parte do trabalho, levando a caravela pelo caminho estreito das montanhas, tremendo como se fosse se partir em dois. Belka cravou suas unhas na madeira, temendo ser lançada para fora do barco.

— Daqui só vai ficar mais forte. Se não tiver um lugar para se segurar, é melhor entrar — diz Merin, olhando para a gata. Nesse instante, o navio passou por um pedregulho, planando por alguns metros até voltar ao mar.

— Você não vai mudar a direção? — Flint pergunta de cenho franzido, um pouco indignado pela calma da navegadora e enquanto segurava Poyo pela gola da camiseta, na tentativa de impedi-la de se aproximar da beirada (ou sairia voando com certeza). A capitã, por sua vez, esticava os braços querendo bater asas e remexia o corpo para fugir do aperto; estava completamente insana. Gritava algo como "PUTA QUE PARIU, COMO ISSO É LEGAL!", ou uma variante sem palavrões.

— Não precisa, estamos em num trecho seguro por enquanto. — explicou a mulher azul, ao mesmo tempo que sentiam o impacto do casco batendo em outra pedra. — Quero dizer, vamos ficar bem se as velas não abrirem. Você amarrou bem, certo? — e olhou para o cozinheiro, que apenas lançou um olhar de descaso. Ela abriu um sorriso maldoso. — O navio vai partir em milhões de pedaços e nunca mais vão achar nossos corpos.

— Vira essa boca pra lá, agourenta! — Belka reclama, agora grudada nas pernas do cozinheiro como se fosse um tronco de árvore: estava tentando caminhar até a cabine, mas a ventania era forte demais para concluir o plano. — E trata de desviar dessas pedras! Eu não sei que tipo de navios sua "civilização" selvagem construía, mas esse aqui não vai aguentar! — finalizou com uma tentativa de chicotada na panturrilha da mulher que só atingiu o ar: Merin utilizou seu poder para se desviar do golpe. A imediata resmungou; teria de achar outro jeito de colocá-la na linha (mas não agora).

No meio desse fuzuê, Bertruska, que até então estava em silêncio (o que não era o habitual para ela), virou-se para o grupo com um olhar confiante e, sem largar a grade da proa, anuncia: — ESTAMOS CHEGANDO NO TOPO! — sorriu largamente. Merin assentiu com a cabeça e voltou para o leme sem pestanejar.

— OBA! — Poyo gritou, e num segundo de distração, aproveitou que Flint afrouxou sua gola para jogar a gata dentro da cabine e se largou de suas garras, correndo em direção a proa do navio.

Num segundo, a viu correr; e noutro nada mais.

Antes que o cozinheiro a puxasse pelos cabelos, a embarcação foi engolida por uma densa massa de ar úmido; tudo que se via era branco. Com a cegueira, só conseguia sentir o chão sob os pés e as partes do navio que tateava para se encontrar — ao menos o mar se acalmara por um breve momento, suspirou. Pensou em gritar pela capitã, achando que pudesse ter voado por aí, mas quando abriu a boca lhe veio uma súbita falta de ar e não conseguiu falar nada. Enfim concluiu que, se o ar era rarefeito e a água mais calma, só podiam estar no topo da montanha; era questão de tempo para começar a descer. Sem ter o que fazer, prendeu o máximo de ar que seus pulmões avariados poderiam aguentar e só cruzou os dedos para que todos chegassem em segurança (ou pelo menos alguns deles; não ligaria muito se perdessem Bertruska ou Merin no meio do caminho). A qualquer segundo, o navio tomaria velocidade máxima.

E foi exatamente o que aconteceu. Antes mesmo da névoa se dissipar, o deque arriou para diagonal, encaixando-se sobre a água e tomando mais velocidade a cada metro. Não levou mais de dois segundos do momento que o barco se endireitou para descida até poder ver os rostos de seus companheiros novamente: Bertruska segurava Poyo em cima de seus ombros, esta que esticava os braços para o alto para aumentar sua adrenalina; atrás de si viu Belka colada na escotilha da porta com os olhos arregalados em puro pavor; e, por fim, Merin estava colada no timão como se fosse uma boia salva-vidas — embora parecesse mais empolgada do que aterrorizada, diga-se de passagem.

Descendo, descendo e descendo.

O vento vinha forte da frente, balançando os cabelos e tentando futilmente soltar as velas da gávea. Diferente da primeira metade da montanha, não haviam mais tantos obstáculos — por mais que algumas pedras saltassem para fora d'água, nem de longe pareciam capazes de danificar o casco, além de que a navegadora agora parecia mais familiar com sua função, e estava tentando de fato desviar do que vinha.

Descendo, descendo e descendo.

Estavam cada vez avançando mais rápido. Em menos de um minuto já podiam ver o fim da queda, e Bertruska tratou de descer Poyo das costas (não sem reclamações), a fim de deixá-la bem na pontinha da proa na hora do impacto. Segurou-a firme e também se agarrou a grade.

Descendo, descendo e...

Splash!

A frente do navio foi engolida quase até o parapeito, mergulhando com tudo até empuxo trazê-lo de volta ao nível do mar. Estabilizaram. Parados no convés, nenhum pirata se expressou: os olhos vidrados no vasto céu azul eram o bastante. Quem desconfiava, mordeu a língua! Venceram o desafio da pirataria de verdade; o primeiro de muitos, aliás! O futuro se abria diante daqueles miseráveis. Contudo, por mais encantador que fosse o outro lado, com seu bonito farol e um universo de possibilidades, havia uma pergunta não respondida que tirava a atenção de todos naquele instante:

Como diabos o médico não acordou com essa gritaria toda?

≈≈≈

Não chegaram a pensar que Morgan havia morrido no quarto, longe disso: apostariam todo o ouro contra quem duvidasse que o homem sequer abriu os olhos nesse meio tempo (a linhagem nobre impunha um preço e um desses certamente era a propensão a vagabundagem, ao ócio e aos péssimos costumes). E depois, não era exagero dizer que só o cozinheiro e a navegadora se importavam com ele; para os demais, assumiam o mantra de "quem morreu, morreu. Paciência.", e desde que não fosse a capitã a perder a cabeça, seguiriam em frente até onde quer que fosse o final.

Porém (sempre tem um porém), não podiam ignorar o fato de serem os responsáveis por ele e, nesse ínterim de dúvidas, Belka perdeu sua paciência e pediu educadamente a Poyo que fosse fazer o que fazia de melhor: importunar (e gritar com) o médico até que acordasse. Não foi preciso pedir duas vezes. A garotinha correu, ainda encharcada pela água do mar, deixando no deque somente os demais adultos.

— Será que eu posso ir com ela? — Merin perguntou, batendo um dos pés no chão, ansiando correr paras o braços de seu príncipe adormecido.

A gata a olhou feio e não titubeou em responder um "Não" enfático, que surpreendentemente saiu ao mesmo tempo que a negativa de Flint. As mulheres encararam o cozinheiro, que apenas coçou a garganta e, ignorando os olhares de estranhamento, pontuou: — Nós precisamos navegar o quanto antes, estamos expostos aqui. 

— Ele está correto, desta vez. — interrompeu Bertruska. — Viu como a última cidade estava movimentada? E você mesma disse que havia outro bando por aqui há pouco.Do jeito que está, a marinha pode aparecer a qualquer momento e nos interceptar. 

"Se livrou dessa, otário" pensou a gata, tomando a frente da situação: — Não é hora de vagabundar, crianças. Hora de tomar nosso ru...

A frase da imediata fora interrompida pelo som de tampas de panelas sendo chocadas e o irritante som da esganiçada voz infantil da capitã. Flint sentiu a parte inferior de sua pálpebra pulsar incessantemente — jurava de pé junto que era um bom homem, mas em alguns momentos até ele desejava afogá-la. Olhando o lado bom, pelo menos não estava nos sapatos de Morgan. Respirou fundo e, aproveitando que tinha a voz mais potente das quatro, começou a batalhar com a barulheira da capitã:

— VOCÊS JÁ DECIDIRAM PARA QUAL ILHA VAMOS? TEMOS QUE REGULAR O LOG POSE. 

— REGULAR O QUÊ? — Belka perguntou, colocando a mão no ouvido.

— O LOG POSE.

Os quatro adultos se silenciaram. Ao fundo, os gritos e paneladas se tornaram uma chamada para o caos. 

— Não me diga, por favor, não me diga. — Flint respirou fundo, sua voz estava estranhamente mansa — Que vocês esqueceram do Log Pose? Eu sublinhei na lista e repeti, várias vezes, que sem um nós iríamos morrer.

Belka olhou para Bertruska, que a olhou de volta, sem saber o que dizer; em suas cabeças, tinham uma vaga lembrança do dia anterior, quando jogaram fora o lixo do barco porque a gata não suportava mais viver em um chiqueiro de papéis inúteis. Perguntou a ex-marinheira: "O que é isso em sua mão?", e como não obteve uma resposta razoável, ambas assumiram que era lixo também. A partir daí, convenientemente não lembravam mais de nada — e mesmo essa parte se recusaram a contar. Estavam todos num silêncio mórbido, o cozinheiro travando a mandíbula para não gritar. Os olhos se afundaram num segundo, como se o espírito saísse do corpo. Soltou uma lufada de ar. 

— Certo. Eu vou pegar a besta, nós formamos uma fila e... 

— O QUÊ? — gritam em uníssono. 

— NÓS VAMOS MORRER. É ISTO. — Dá um murro na parede da cabine. Não há como cobrar sanidade de um homem que enxergava a luz no fim do túnel. — Já não estamos na porra do East Blue. Sigam meu raciocínio: ou resolvemos isso aqui, ou morreremos amanhã na mão de outros piratas. Então, quem quer ir primeiro?! 

— CALA A BOCA, SEU MERDA! — Belka estalou seu rabo no chão. Assim que conseguiu a atenção de todos, continua: — Não adianta se desesperar. Temos que parar, respirar fundo e pensar em uma forma de resolver isso.

Deu um minuto de completo silêncio — Poyo também parecia ter desistido das panelas e gritos (deve ter mudado sua estratégia).

— Voltar pela cachoeira? — Merin questionou. 

Um gutural "NEM FODENDO" fora proferido por Flint. Os três olhos da mulher brilharam como se fosse começar a chorar, mas Bertruska tomou sua frente para protegê-la:

— E VOCÊ TEM UMA IDEIA MELHOR, HOMEM? — bateu de frente. — Vê se para de falar merda e gritar com todo mundo, ninguém merece ouvir seus desejos suicidas! — finalizou apontando o dedo na cara do homem, só justificando a tese de que "coragem é igual a imprudência". 

— Então tá bom, gênia — tira um cigarro e isqueiro do bolso da calça. — E como você pretende subir essa suave montanha, de barco? É a porra d'uma cachoeira. O navio não vai voltar. — segura a fumaça no pulmão, observando a confiança da ex-marinheira querendo fugir dos olhos, mas ela não hesitou. — E digamos que consiga escalar isso tudo, onde irá encontrar um Log Pose? Irá nadando até a próxima ilha ou quiçá pegar carona com golfinhos? Deixa de besteira e vai pra fila. Não tem outro jeito. 

Bertruska, com o rosto em chamas e o ego ferido, bradou: — Vamos escalar. É nossa melhor aposta. 

— Boa sorte. — o cozinheiro afirmou, desafiando-a.

— Flint. — Belka chamou, puxando-o pela camiseta. O olhou severa, pedindo (sem palavras) que se acalmasse; ele fecha os olhos descontente, mas assente. — Certo. Se vamos seguir com esse plano maluco, é melhor que não seja só Bertruska. Precisamos garantir que esse Log Pose vai chegar até aqui.

Por mais que ninguém tenha falado, todos sabiam quem Belka havia escolhido. Não havia jeito: Deus certamente havia o abandonado.

≈≈≈

Dentre todos os seus desvios de caráter — e demais problemas que não vinham ao caso naquele momento —, Morgan era um homem paciente. Posto isso, não haviam palavras para descrever o alívio que sentiu quando ouviu o bote tocar no mar, e posteriormente o barulho dos remos contra água, indo em direção da Montanha Reversa. "Havia se safado dessa, graças a Deus".

Sem o menor pudor, levantou-se da cama completamente desperto, dando de cara com os olhos indignados da capitãzinha, que de tudo fizera para acordá-lo. Com um sorriso satisfeito nos lábios, apenas lhe desejou um "bom dia", antes de caminhar em direção ao convés: precisava ver aquela cena com os próprios olhos. Sentia a dor do cozinheiro, mas não o suficiente para tomar seu lugar, longe disso; se o sedentarismo não fizesse o trabalho, Bertruska lhe derrubaria no cascalho (e diria a Merin que foi um acidente). Desta forma estava no local onde deveria estar: relativamente seguro em um navio tripulado, neste momento, somente por desequilibradas.

Subiu as escadas-de-mão com a menininha logo atrás, o empurrando pela bunda para ir mais depressa. Quando chegaram ao deque, só deu tempo de ver a marinheira e cozinheiro remando um botezinho, distraídos demais com suas encaradas de mais profundo ódio para notá-lo na grade, assistindo-os partir. Teve vontade de acenar e desejar boa sorte, mas optou pelo sorriso silencioso — se o vissem, voltariam para buscá-lo. 

— Então... — o homem iniciou, recebendo os sorrisos calorosos da navegadora e algo como um grunhido de insatisfação da imediata. Ela sabia.

— Então o que, seu viado de merda? — Belka tiritou seu olho direito: queria jogá-lo ao mar. — Pegue o esfregão e limpe essa pocilga. Descansou tão bem, não terá problemas em fazê-lo, certo? 

O garoto torceu o nariz ao observar a situação: as poças de água passaram a se tornar pequenas concentrações de lama e, junto disso, havia um rastro de pequenas pegadas — de humano, não bicho —, que não precisava nem seguir para saber que só terminavam no seu quarto. Certamente era o rastro de destruição que Poyo fizera quando veio o acordar. Havia muito o que ser limpo, visto que antes de ser convocado para a infeliz missão Flint não tivera tempo de finalizar o serviço (alguns talheres restaram na pia, a roupa ainda não estava estendida no varal e, obviamente, o convés não fora polido como em todas as manhãs). Um completo caos, sem dúvida alguma — nesses momentos que desejava ao máximo voltar para sua vida inerte, quando ainda não tinha a cabeça a prêmio. Suspirou alto, quase soprando seus pulmões para fora. Não queria trabalhar de jeito nenhum. Derrotado, olhou para sua vassala de rabo de olho, tentando passar uma mensagem por telepatia enquanto forçava uma carapuça sem-vergonha de "dó" (e preguiça comedida).

Merin, que não era boba nem nada, prontamente notou que seu príncipe estava em perigo e tomou o problema para si: — Não se preocupe, meu morceguinho, eu- 

— Nem pense nisso. O vagabundo vai limpar sozinho dessa vez — a imediata cortou, Morgan poderia se considerar genial, mas para Belka ele não passava de um pirralho mimado. — Nesse barco de fodidos, é melhor aprender a trabalhar o quanto antes. Não queiram saber o que vou fazer se pegar você o ajudando e ele parado. 

— E eu, Belka? O que faço? — Poyo se intromete na conversa. Mas antes que pudesse exigir uma tarefa (já que Fulinte cozinhava tão rápido, deveria ser super fácil! Queria tentar também), recebeu um olhar atravessado e a ordem de ir direto ao chuveiro, antes que infestasse ainda mais o barco.

— Estamos entendidos? — Belka diz, mas era uma pergunta retórica. Não queria (e nem iria) responder nenhuma dúvida.

Foi assim que se deram as primeiras horas na Grand Line: fazendo exatamente o mesmo que fariam em qualquer outro lugar. Naquele ponto da viagem, ao pé do quinto mar e sem poder se mover, o relógio parecia andar para trás. Sob as exigências da imediata somado a ausência dos mais fortes daquela tripulação, foram obrigados a ficar de molho naquele vasto oceano, como se fossem folhinhas de chá, enquanto o sol lhes fervia a cabeça e Deus caçoava daquela pagação de pecado — pelos céus, o que diabos tinham feito de tão errado, além de tirar a vida e sonhos de alguns piratas velhos? Ninguém merece. Mesmo Belka, controlada até certo ponto, já estava arrancando os bigodes pela demora — ou talvez fosse porque Poyo não queria lhe deixar em paz, não importa! O fato é que já estavam todos entediados; e com muita, muita fome.

De toda maneira, dizem que milagres só acontecem quando tudo parece perdido. Nesse âmbito, enquanto a gata se arrastava pelo convés, pensando que o sol forte do meio dia iria desidratá-la, de repente um som convidativo vem de sua cozinha: alguém estava mexendo nas panelas. Alucinação ou presente divino? Seja o que fosse, aquele barulho foi o bastante para recobrar suas forças, e saiu correndo nas quatro patas em direção ao seu banco especial: seja lá quem fosse o santo, tinha que lhe servir uma cachaça. 

— Ah, é você. — a empolgação evaporou de seu corpo, no usual local do cozinheiro se encontrava o médico, xeretando a dispensa como os de sua espécie. Ratazana infeliz.

— Parece decepcionada. — Morgan se virou, a olhando com desdém antes de meter um pedaço de pão puro em sua boca. — Mas se veio até aqui, é porque pretendia fazer o mesmo que eu. Roubar comida, eu quero dizer.

Belka, no arco que ligava a sala a cozinha, torce a boca em indignação: — Você está roubando do próprio bando! Tenha honra, seu pirata imundo. Eu só quero meu álcool, sou integra. — revirou os olhos, já abaixando o tom na última sentença. Esquecera por um momento que estava quase sem forças.

— Pois venha se servir. Deve ter descansado bastante, tomando sol nas cadeiras de praia; certamente não vai ter problemas. — desafiou, fazendo suas as palavras da imediata. Ela encheu as bochechas, se segurando muito para não retalhar aquele rostinho humano com suas unhas.

Respirou fundo e contou até três mentalmente.

— Certo, não vamos brigar por besteira. — a gata diz, adentrando a cozinha e parando ao lado do homem. — Somos um bando, não somos? Precisamos nos unir e vencer esse desafio. — sorriu torto.

— O culinário? — Morgan debocha, dando outra dentada no pedaço de pão.

Belka revirou seus olhos, ignorando o escárnio daquele homem que tinha de conviver e, sem hesitar mais, deu um salto para cima da bancada onde Flint preparava os alimentos. Enquanto abria os armários em busca dos instrumentos certos para comportar sua (falta de) habilidade, vai dizendo:

— Não podemos ficar sem comer até o Flint voltar. Temos que ser proativos — explica com ar esnobe, como se realmente fosse superior ao médico naquele momento e soubesse o que fazer. Entre os armários, achou por coincidência uma galinha de porcelana cheia de ovos dentro e em um potes de barro estava o arroz. Juntaria o útil ao... bem, ao que tinha a seu alcance. 

— Serão ovos e arroz, então. Enche barriga e é o que importa. — a gata afirma, com pesar na voz, como se tentasse convencer a si mesma que iria comer algo tão insosso.

— Hum... — Morgan soltou um resmungo penoso. Além de cozinhar a própria comida (o que já era um fardo), teria de se contentar com, bom... isso. Chateado, mas ainda com a barriga roncando, disse a si mesmo um "C'est la vie" melancólico e tomou coragem para erguer as mangas e ir ajudar. Ligou a torneira e foi lavar suas mãos; no final, agora era pirata e hora ou outra teria de se conformar com sua nova vida dura. — Não vou negar que preferia kobe beef... 

— Com um molhinho de caviar de beluga e ostras. Hum... — colocou a pata na bochecha — Mataria pelas iguarias que provei na infância. 

— Acho que beluga não produz ovas, é mamífero como você e eu. — olha por cima do ombro, enquanto despejava o arroz direto do saco em uma panela de água e colocava sobre o fogão. — Você já foi burguesa, Belka?

Ignorando a última parte, a gata largou a vasilha que segurava no chão em completo estado de choque. — Como assim, ovas? — pergunta. Chacoalhou sua cabeça em incredulidade.

— O caviar. São ovas de peixe, não sabia? — acendeu a chama do fogão, ao mesmo tempo que aproveitou para queimar a ponta de "seu" (da caixa de Flint) cigarro. Levou a boca, sem se preocupar em sair de perto da panela. 

A felina, sem acreditar no que havia ouvido, olhou para o médico uma segunda vez, esperando que desmentisse a informação, mas como ele não deu a entender que o faria, no mesmo instante tirou a língua para fora, enojada e prestes a golfar.

— FILHOS DA PUTA! Mentiram para mim! — parou de falar por conta de outra engasgada — Criados de merda! E ainda diziam que fazia bem para pele!

— Bom, nesse ponto, não estão errados. — Morgan deu um risinho nasalado com a reação; era médico e sabia muito bem que se tratava de exagero — Minha mãe já fez muito creme com ovas. Não é à toa que não parecia ter a idade que tinha... — deu outra tragada no cigarro, dessa vez mais forte: a morte de sua progenitora ainda lhe machucava muito. Depois de uma lufada triste, fechou a panela com a tampa e se virou para a gata. — Mas você não me respondeu. De onde você era, para ter criados? 

— E de que importa minha origem? Ela não impediu de tornar-me um gato. — a gatuna suspirou amarga, detestava tratar dos assuntos referentes ao seu passado (especialmente quando não havia uma garrafa de rum ao seu lado), contudo percebeu que não conseguiria fugir do radar do médico, afinal ele também não tinha nada melhor para fazer. 

Quebrou um ovo na frigideira e sentiu o olhar de Morgan pesar sobre si. 

— Tenho uma boa origem, assim como o nobre morcego que me atormenta — ironizou, tascando uma patada de sal na gema. — Parentes ricos, pai mãe em casa... Nunca me importei em saber a origem de tanta riqueza, da mesma maneira que nunca titubeei em aproveitá-la. Vivi como uma rainha, meu caro. Isso eu posso lhe garantir. 

— Por que deixou esse local? Parecia uma vida bastante confortável. 

A gata torceu o nariz e sem pensar duas vezes se virou em direção ao médico; os ovos poderiam esperar. 

— Deixei perguntar algo? Enxerido. Obviamente não abandonei a minha vida, haviam servos aos meus pés e pretendentes preparados para lutar por minha honra. Fui a mais bela garota nascida naquela cidade, algo que nenhum homem jamais havia visto! Mesmo você, viadinho de merda, teria se apaixonado por mim enquanto humana. Não havia competição e era por isso que tantas me odiavam, jamais poderiam me alcançar. 

— Você foi humana, então! Estava curioso quanto a isso. 

— Achou o quê? Que eu era um gato que comeu fruta de humano? Que bobagem. — debochou —  Ainda não existe uma sociedade de gatos burgueses e serei eu a precursora desta. Fui uma belíssima humana, não uma qualquer! — a gata finalizou, levantando o focinho, acidentalmente dando uma tragada no ar — ... Você está sentindo esse cheiro?

— É cheiro de queimado. — Morgan dá de ombros, concentrado demais no próprio cigarro.

— Você jura, gênio? — Belka bate com o pé na bancada. — Eu quero saber de onde vem, não o que é!

— Ah. Da sua panela.

— O quê?

— Tá queimando! — Merin escancara a porta do convés, adentrando primeiro o corredor e depois a cozinha. Não pensou duas vezes: arrancou a frigideira pela parte de metal mesmo, imediatamente jogando na pia. — Estão malucos?!

A mulher azul os encarou indignada: havia sido proibida de mexer com o fogão e agora cometiam uma irresponsabilidade como essa? Começou com as mãos na cintura: 

— Vocês queimaram a frigideira e desperdiçaram comida, o cozinheiro vai ficar puto e não ousem culpar a capitã! — Merin poderia ser bobinha e não compreender a maior parte das normas sociais, mas nesses poucos dias em que viveu com os gatos, percebeu que precisaria se impor. Antes que pudesse continuar seu discurso, se deu conta que havia outra panela no fogo: sentiu suor frio escorrer da testa. Se conseguiram queimar um ovo frito, o que poderia lhe aguardar ali dentro?

O "morceguinho" se afastou do fogão de cabeça baixa, deixando que ela se aproximasse. Trêmula, foi devagar até a tampa, fechando os três olhos pelo nervosismo. Ao abri-la, a situação estava muito pior do que imaginou: a água cinzenta começava a desaparecer, dando local a uma papa asquerosa e igualmente cinza, adornada por cinzas de cigarro e, como se não bastasse, as bordas queimavam lentamente. Era um terror. 

— Por que tem cinzas no arroz, meu amor? — olhou diretamente o médico; os olhos queimando de raiva. Nem mesmo ele poderia ser perdoado. Estava pronta para pular em seu pescoço quando...

— HYA-HYA-HYA! — uma risada ensurdecedora veio do lado de fora. 

— SENHORA PALHAÇA! VOCÊ TAMBÉM ESTÁ AQUI, QUE LEGAL!

E correram desesperados, ao ouvir o animado grito da capitã.

≈≈≈

 


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Notas finais do capítulo

Disse que teria outros avisos aqui, e cá estou eu.
Caros leitores, como estamos terminando o primeiro momento da história, nossas autoras fizeram uma enquete rápida para medir a popularidade das personagens no bando principal.
São apenas duas perguntinhas de múltipla escolha; creio que não vá cair o braço de ninguém tomar um segundo de seu tempo para responder - dou meu próprio braço àquele que ficar aleijado depois de marcar.
O link é este: https://bit.ly/30FSGjN
Caso essa ideia de interação funcione, pretendemos fazer para os demais bandos posteriormente - isto é, quando apresentarmos direito todos eles.

É isso. Espero que tenham gostado e, se quiserem, deixem um comentário para me alimentar. Obrigado pela atenção.



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