Prisão de Gato escrita por Ana e Sabrina


Capítulo 13
East Blue, Alto-mar (Loguetown)


Notas iniciais do capítulo

Depois de um breve descanso no mundo dos mortos, retorno para tomar o que é meu por direito: as notas dessa infeliz história. Sim, sou eu de volta, a Entidade das Notas (mais uma vez com essa rima porca?).

Cabe a mim dizer que este capítulo é o interlúdio do East Blue à Grand Line: o momento em que, finalmente, nossos heróis saem rumo ao desconhecido. Respostas virão, marujos; estamos entrando na parte principal dessa jornada — é só o começo para esse mar de mistérios.

Quanto tempo irão durar, ninguém sabe. Para nós, meros espectadores, basta ler e apreciar.

Uma boa leitura a todos!



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Belka estava apreensiva quanto deixar Merin no comando da embarcação, mas, contra todas as expectativas, sua habilidade se provou a escolha mais assertiva para fugir daquela tempestade: estavam a apenas alguns nós de Loguetown e as nuvens escuras já haviam se perdido no horizonte, ficando para trás junto daquele dia tão estranho. Ora, quem ia adivinhar que a vagabunda-azul tinha um talento escondido para navegação? Quando a encontrou no Monstro dos Mares pela primeira vez, quase nua e pronta para matar seu cozinheiro, certamente não passou pela sua cabeça que em algum momento iria confiar a vida de toda a tripulação (e principalmente a sua própria) àquela estranha, contudo, de alguma forma chegaram até ali — ainda por cima com todos vivos, o que é mais importante e de certa forma surpreendente. 

Acontece que, desde o momento que conheceu a garota, julgou-a como um completo peso morto e ainda que tentasse ajudar — eventualmente invadindo a cozinha de Flint e tentando dar pitacos culinários —, não parecia ter êxito em qualquer outra atividade senão perseguir o médico. Era “simpática”, sim (conseguia conversar mais com ela do que com Bertruska), mas só isso não mantém um navio no mar. Foi por um acaso que, no meio de seu casual conformismo (por tê-la à bordo, no caso), fez uma pergunta despretensiosa e acabou por descobrir em Merin uma joia a ser lapidada. A desgraçada tinha outro “poderzinho” que estava omitindo até então: conseguia ouvir as correntes marítimas e as tempestades, dessa forma podendo indicar rotas bem mais seguras que as anteriores. Uma putinha, se quer saber sua opinião — mas tinha sorte de estar com ela no barco. 

Com pena do que passaram até agora, Deus os abençoou com uma tremenda sorte, e enfim os caminhos para o triunfo estavam se abrindo.

Podem gritar e protestar! Que digam o que quiser sobre nós! 

Se engana quem pensa que só com sorte e vida não dá para velejar.” 

Não eram bons piratas: longe disso, aliás. Mas viviam, e isso para alguns é o bastante. Por mais que não fizesse a menor ideia do que passava nas cabeças dos marujos, Belka tinha convicção que todos se sentiam da mesma forma; conectados e dispostos a seguir até o fim, seja lá qual for. As dores do passado existiam, jamais esqueceria suas próprias, mas em alguns momentos passava por si a sensação de desapego completo. As memórias — até as mais vividas e tortuosas — eram carregadas junto das ondas do mar, restando a si um pouco de esperança que quando o dia chegar ao fim, dormirá tranquila com suas próprias incertezas. Os planos não lhe cabiam mais da mesma maneira, não porque deixara de ter sonhos ou desejos, e sim porque adotar a postura de sua capitã diante da vida parecia o mais sensato a se fazer para prevenir as rugas de cansaço. No fim das contas, arquitetar um amanhã do começo ao fim parece besteira quando posto ao lado da grandeza do mundo e todas as suas possibilidades; o despropósito, por outro lado, cabe como uma luva na vida dos coitados que almejam baixo. 

Bom, se o preço por isso tudo era aguentar as imbecilidades da capitã, pagaria de bom grado, pensou, abrindo um sorriso sincero e pondo sobre a mesa um coquetel preparado por Flint especialmente para ela. Comparado com tudo que passou, estava vivendo no paraíso, sem dúvida alguma — e por ele lutaria até o fim. 

De súpeto, uma interjeição incrédula de Merin (destoante com seu tom tão sereno) tira a gata de seus pensamentos; só assim se deu conta do tempo que passou distraída consigo mesma, sequer se lembrava do tópico que discutiam, mas tinha certeza que não era nada relacionado às histórias de marinheira vividas por Bertruska. A mulher azul reagia ativamente a cada ação e questionava tudo, querendo desta forma compreender um pouco mais do mundo. Ela também parecia realizada com a vida de pirata. Olhou para seus arredores, o céu iluminado pelas infinitas estrelas e o convés pelas lanternas de papel. Em sua direita, a ex-marinheira bradava sobre as vitórias de um passado próximo e mais atrás Flint e Morgan esticavam sobre a madeira envelhecida algo que preferia não encarar diretamente (o resultado de uma tarde escavando tumbas) — aceitou desgostosa o argumento do médico sobre a necessidade de ossos reais em seus estudos, e contanto que não fosse os dela na mesa, poderia lidar com essa peculiaridade. Por fim, notou uma figurinha peculiar sentada ao pé da porta da cabine: 

— Você acordou, Poyo — Belka diz alto para que todos ouvissem e olhassem para a menininha. Após o súbito desmaio, a capitã acabou dormindo nos ombros de Bertruska e após a confirmação do médico que não havia nada de errado, deixaram-na ressonar numa das camas novas (a primeira das beliches a ser montada). Finalmente iriam jantar, pensou e então diz: — Desmancha esse bico e venha sentar com a gente, ficar de cara feia só vai te deixar enrugada.

Já tinha um tempo que estavam a esperando para tirar a barriga da miséria, uma vez que o cozinheiro se negava a servir algo sem a capitã por perto. Lépida e faceira, a gata apontou para o homem ao vê-lo retornar da cozinha, carregando consigo uma lindíssima prataria. 

— Oba, peixe! — juntou suas patas e pulou da cadeira, comemorando sua refeição favorita. — Não é o que você mais gosta também, Poyozinha

— NÃO SE PREOCUPE, EU TÔ MUITO BEM AQUI — Poyo se levanta, batendo o pé e torcendo o nariz: — PODEM CONTINUAR CONVERSANDO SEM MIM, EU NÃO SOU IMPORTANTE ‘PRA NINGUÉM MESMO! — pensou que ninguém fosse notar, mas ficou evidente que fechou os olhos e segurou a respiração para não sentir o cheiro daquela delícia. — ALÉM DO MAIS, NEM PARECE TÃO BOM ASSIM!

Flint soltou um sonoro resmungo, razoavelmente puto da cara.

— Faça como quiser — Belka deu de ombros — Nós vamos aproveitar! —  e aproveitou que os olhares estavam em si para passar lentamente a faca no assado, fazendo os cheirosos temperos atingirem cada um deles. As batatas gratinadas brilhavam na travessa e adornavam o prato principal, Bertruska salivou como um coiote.

Depois de mais algumas idas e vindas à cabine, o cozinheiro terminou de trazer o que restava do banquete: legumes salteados na manteiga, pasta ao molho pesto e uma peça (gigantesca) de carne vermelha grelhada, tudo preparado por suas habilidosas mãos. Todos, exceto a capitã, sentaram-se juntos à mesa externa — uma aquisição novíssima, que chegara ao barco essa tarde — e arregaçaram as mãos para comer, mas antes que pudessem atacar, a imediata interrompe: 

— Morgan, Flint. Vocês lavaram as mãos antes de se juntar a mesa? —  perguntou irônica, mas internamente temendo a resposta que viria. O loiro apenas levantou a sobrancelha, decerto indignado por ser questionado dessa forma (era um chef de cozinha, puta merda). Morgan apenas se levantou em silêncio e sem pressa andou até o banheiro externo; suas ações serviam como resposta.

Poyo continuava emburrada no canto, fingindo ignorar seus subordinados.

— CACETE, VOCÊS NÃO SABEM O QUE ACONTECEU! — Bertruska desferiu um soco na mesa, dando algumas pausas para engolir um gigantesco pedaço de carne e se direcionado especialmente para Flint, que ficara no barco a tarde inteira. — ‘TAVA TENDO UMA COMPETIÇÃO MALUCA DE COZINHA! Uma linda dama cozinhava lindamente, mas a Belka não me deixou assistir. — a ex-marinheira suspirou apaixonada, puxando um pedaço de carne e mastigando de boca aberta sem nem se importar com os olhares de reprovação da gata. 

Nesse momento, o médico e Merin voltam para a mesa, sentando-se lado a lado (ao passo que a vagabunda roubou a cadeira de Morgan quando este a puxou, portanto não teve chances de sentar-se longe dela). Poyo, por sua vez, apenas ergueu uma sobrancelha e acelerou a velocidade do pezinho batendo no chão, fazendo seu melhor para não ceder a tentação de se juntar a conversa.

— Como?! — o cozinheiro se exaltou, quase engasgando com o vinho. 

— Eu sabia que iria se interessar! Nem você resiste uma bela dama, estou errada? — a mulher gargalhou alto, arrebentando outro pedaço de carne com os dentes enquanto o coitado do cozinheiro franzia o cenho de olhos fechados — Não vi mais que dois minutos da apresentação, mas estava em todos os lugares que era uma das melhores cozinheiras de East Blue. Ela queria desafiar os mais habilidosos para provar que era excelente, e sem dúvida alguma venceu todos!

Poyo perdeu a batalha contra ela mesma. Gritou: — É MENTIRA, ELA NÃO VENCEU NINGUÉM! EU ‘TAVA LÁ! — e correu para bater as duas mãos na ponta da mesa, fazendo os talheres pular por um milésimo de segundo. Todos olharam para si — SEM CONTAR QUE AQUELA HORROROSA ERA O MENOR DOS PROBLEMAS! EU VI O FALSO-FLINT! EU IA MATAR ELE, MAS A SENHORA PALHAÇA CHEGOU PRIMEIRO E ME APONTOU A ARMA.

A tripulação encarava a garotinha sem entender aonde ela desejava chegar. Ainda que acostumados com sua falta de sentido em alguns (na maior parte deles) momentos, Poyo parecia apenas latir qualquer coisa, talvez delirando em cima do que realmente viveu naquela tarde.

— Explique direito o que aconteceu, capitã. — Merin diz animada, não sabia o que era um palhaço e não compreendia direito as armas de fogo, mas era um assunto que de muito lhe interessava. A menina recuperou o ar antes de retornar a falar; a atenção era sua

— Eu acordei entediada e aproveitei que o Flint estava lavando roupa para fugir, ele nem me viu! Corri pela cidade e ouvi uns gritos de pessoas chamando pelo tal “Sanji” e pensei irritada: ESSE MERDA ESTÁ AQUI? TENHO QUE MATÁ-LO. — explicou atentamente, como quem ensina alguém, desejava dar todos os detalhes possíveis de sua epopeia. — Assim que vi o loiro esquisito, fui ao lugar onde os cozinheiros descansavam, ia só esperar ele chegar e PÁ!, dar o bote, mas acabou não dando certo porque encontrei uma outra pirata, com um chapéu muito irado.

A capitã se cala, começando a murmurar os motivos pelos quais ela deveria ter um chapéu também, contudo é interrompida por Belka: — Não temos a noite toda, pirralha. Desembucha.

— Eu não sei porquê, mas ela 'tava com uma arma na minha cara, então eu peguei porque achei do caral— quero dizer, achei do caramba! Era toda cromada e bonita, quero ter uma desse tipo para estourar a cara dos otários! — tomou um gole da limonada servida na mesa, estava eufórica — Então alguém berrou e a palhaça ficou com medo, uma verdadeira covarde e acabou nos levando para longe de lá.

— Não acredito que perdi a merda dessa competição... — Flint resmungava, enchendo sua quarta taça de vinho.

— E AGORA VEM A MELHOR PARTE DE TODAS! Nós acabamos achando o cadafalso do Gordon Roger, aquele dos contos piráticos!

Bertruska a interrompe com uma risada estridente: — É Gold Roger, burrinha. E ele nem era tão legal assim, na marinha todos o odiavam. 

— É claro que odiavam — Belka revirou os olhos.

— Deixe-a continuar! — implorou Merin. 

— É, ME DEIXA CONTINUAR! — Poyo gritou, enchendo as bochechas — A minha melhor amiga palhaça se escondeu atrás de mim por um tempão, mas eu a perdi de vista porque tinha muita gente na praça. Eu não conseguia enxergar nadinha! Só que eu não sou de desistir, né? Foi quando eu notei o motivo daquela confusão toda: tinha uma mulher no meio daquela multidão e um montão de guardas. Aí eu vi outro palhaço gritando, umas explosões e… — parou, se lembrando do rapaz sobre o cadafalso. Seus olhos brilharam numa euforia que não cabia em seu corpinho: 

 — … Aquele garoto! Ele subiu no cadafalso e foi pego pelo palhaço e adivinhem? ELES IAM MATAR ELE NO MESMO LUGAR QUE O GORDON — A menina balançava os braços, dando ênfase a sua mirabolante aventura.

— Foi quando você desmaiou, patinha? — a gata caçou; para ela, que tanto tinha de ouvir suas histórias, era fácil reconhecer quando estava chegando ao ápice e especialmente gratificante interrompê-la antes que o fizesse. 

— NÃO! Eu nunca vi nada igual, ele chamou várias pessoas, e parecia satisfeito de alguma forma; realizado!  Tinha certeza de que iria morrer e assumiu para todo mundo e...— a garotinha deu um suspiro de pura animação — E ELE SORRIU! EU NEM ACREDITEI NO QUE VI! NO MEIO DAQUELA BAGUNÇA, DIANTE DA MORTE, AQUELE MENINO SIMPLESMENTE SORRIU! Uma verdadeira afronta a morte e a marinha, e do nada, BUM!, cai um raio na cabeça e salva ele, derrubando o negócio que ele tava em cima! Daí o garoto do chapéu de palha saiu como? Andando, ignorando completamente o que tinha acabado de acontecer!

Poyo mal conseguia respirar ao relatar: seu coração palpitava sem parar e sentia novamente o gosto de bile em sua boca. Era como se estivesse vivenciando tudo de novo e a emoção ainda pulsava em suas veias. Por um segundo seus olhos se tornaram nublados e por pouco não foi de encontro ao chão: ainda que não compreendesse o que acontecia consigo mesma, sabia que era importante. De alguma forma, era fundamental. Entorno de si, seus companheiros pareciam um borrão irrelevante, completamente desnecessários comparados ao sentimento latente que lhe doía o peito — uma ansiedade sem fim, acompanhada por um mal estar que de muito parecia com o pior dia de sua vida (quando vomitou em cima de Flint) mas que de alguma forma parecia… certo; como se algo que faltava tivesse finalmente se encaixado em si.

— Dê uma água com açúcar para ela, antes que caia dura no chão. — Flint diz, antes de acender um novo cigarro e fechar ainda mais sua expressão, não conseguia mais esconder o quão desgostoso estava: um tremendo mal agouro lhe atingiu. 

— Ela não comeu nada, é por isso — tranquilizou Belka, mais tentando acalmar a si mesma do que ao cozinheiro. Todavia, não havia jeito; ela também sentiu um terrível arrepio na nuca, um presságio de que estavam escolhendo um caminho tortuoso e sem volta. Precisavam mudar de rota imediatamente. — Flint, dá um jeito nessa menina: temos que fazer uma reunião. Agora. — ditou séria. 

O cozinheiro soltou um “OK” abafado pelo cigarro, no mesmo instante pegando Poyo pela cintura e a jogando sobre seus ombros para que não pudesse relutar demais. Os esperneios e birras da menininha não lhe diziam respeito naquele momento; como aprendeu nas demais tripulações que fez parte, “em caso de incapacidade do capitão, é o imediato quem dita as ordens”. Tomou seu rumo aos aposentos com ela gritando em fúria, batendo onde podia com as mãos e pernas para se soltar e vez ou outra mordendo seu ombro, mas ainda assim sem conseguir fazer nada contra sua força. Para ele, era leve como pesca e, para ela, não passava de um saco de lixo. Morgan foi atrás dos dois ligeiro, tentando medir os sinais vitais como podia naquela situação (a última coisa que precisavam é um ataque de raiva da capitãzinha) e Merin, a pedido do médico, carregava afobada um prato de comida, já que a garotinha não sairia de lá tão cedo e ainda não havia se alimentado. 

Ficaram na mesa somente as duas mulheres. Belka tentava encontrar uma saída — e ao mesmo tempo observava a colega de rabo de olho. Talvez, apenas talvez, estivesse exagerando quanto a seriedade da situação, contudo não poderia ignorar aquela infeliz sensação.

— Pretende contar a Poyo sobre a capitã palhaça? — Bertruska interrompeu seus pensamentos. 

— Não só a ela. Isso diz respeito à todos nós. — a gata suspirou. — Acho que... não estamos prontos para ir à Grand Line sozinhos.

Não esperou uma resposta. Era hora de tomar decisões e mais do que nunca precisaria seguir seus instintos.

≈≈≈

Um a um, os tripulantes foram retornando a mesa externa (agora sem comida ou descontração; somente papéis e mapas), sentando-se na mesma disposição que vieram: Flint ao lado direito de Belka, seguido por Morgan na ponta e as outras mulheres diretamente a sua frente. A cadeira da capitã estava vazia. Em frente a tripulação, a imediata tomou a palavra: 

— Façamos o levantamento de Loguetown. — ditou, colocando os cotovelos sobre a mesa e apoiando a face sobre as patas. Indicou com a face para que Merin iniciasse.

Merin pigarreou e roboticamente citou seus feitos: — Entrei nos barcos e utilizando minha habilidade roubei alguns mapas, não consigo ter certeza das localizações, mas peguei aqueles com as imagens mais diferentes. — a garota pareceu pensar por um momento. — E com “Grand Line” escrito, como o morceguinho me ensinou.

Morgan suspirou, tomando a vez.

— Merin retornou e seguimos para cidade, estava cedo então conseguimos bons suprimentos; todos foram deixados na despensa e organizados pelo cozinheiro. Creio que seja o suficiente por uma ou duas semanas. — diz, esperando por um segundo para que Belka tomasse nota. — Após isso, coletei meu… material de estudo junto de Merin e os trouxe encaixotados para cá, assim como foi mandado.

A gata ergueu os olhos para o rapaz, encarando-o com uma sobrancelha arqueada: — Ninguém viu você? — perguntou a ele receosa. 

— Nem uma alma. — Merin respondeu prontamente. Morgan não disse nada. 

— Pois bem. Bertruska e eu fomos a cidade para comprar algumas “trivialidades”, porque diferente de alguns aqui, nós, mulheres, precisamos dormir e trocar de roupa. — Belka olhou diretamente para Flint, desafiadora — Além disso, arranjamos a mobília essencial, como as beliches para os quartos, mais guarda-roupas e essa mesa externa.

“Essencial”... — O cozinheiro debochou baixinho, dando um risote nasalado. Por fim, finalizou apagando o cigarro no cinzeiro: — Pesquei e organizei essa tranqueira. 

— E em que momento você deixou a Poyo fugir? — Bertruska perguntou, ácida. 

— Saber disso é de suma importância para nossa reunião? — Flint rebateu. 

A gata resmungou um “Chega” baixinho; por mais que tivesse interesse em vê-lo admitir que deixou a pirralha fugir, aquele assunto não tinha a menor relevância para a pauta atual e de nada adiantava continuar com aquelas brigas internas — bastava estarem sem a capitã por ora. Mesmo desgostosa, resolveu  findar ali mesmo, ignorando sua curiosidade em prol da estabilidade naquele navio (isso e também porque eventualmente Flint daria com a língua nos dentes, não tinha dúvidas quanto a isso). 

Morgan, que estava olhando os papéis da mesa até então, resolveu aproveitar o silêncio momentâneo para se manifestar: — Sobre os mapas… — começa baixo, mas é imediatamente interrompido por Belka: 

— Não perca seu tempo perguntando. — ditou — Entre a troglodita, o semi-analfabeto e um gato, você é a melhor opção para ensinar Merin sobre cartografia. Sem objeções

O rapaz deu de ombros, olhando de rabo de olho primeiro para a estranha e depois para Flint, que já havia colocado sua caixa de cigarros e isqueiro na mesa — nesse ponto não precisava mais ser perguntado, oferecer-lhe cigarros havia se tornado um hábito.

— Vamos ao que interessa: para onde iremos? Eu não poderia me importar menos com nosso destino, mas também não podemos morrer no caminho — Flint arrumou sua postura desleixada, tomando a frente. — E nem decepcionar a capitã. 

— Iremos a Grand Line. — a imediata afirma, um pouco relutante. O cozinheiro engoliu seco no mesmo segundo. 

Bertruska dá um risinho jocoso, ao mesmo tempo que sua perna não parava de bater pela ansiedade: — Me pergunto o porquê de não sentir firmeza em vocês…

A resposta era simples: estavam todos nervosos. Para um bando de fracotes como o deles, aquilo era um inevitável atestado de óbito. Flint, em especial, estava postergando seu fim já havia alguns anos, largando as tripulações na hora que ouvia dos capitães que queriam ir até o fim do quinto mar. Não era um pirata de tesouros; estava satisfeito com o East Blue e suas outras conquistas medíocres. Afinal de contas, sempre soube que o “One Piece” não era para seu papo e desejá-lo seria apenas uma frustração. “Que deixem esses feitos absurdos para os grandes!”; sonhar baixo o deixou vivo por todo esse tempo, e sinceramente não tinha vontade de abandonar sua zona de conforto agora. Mas… 

Bem, se não fosse por elas, sequer estaria vivo para começo de conversa. Devia sua vida a pirralha e jurou por tudo que a serviria até o fim. Ser covarde não lhe cabia. Não mais. Agora eram elas quem precisavam de sua resposta. 

— Tem certeza? Nesse barco? — Morgan pergunta de repente.

Você vira essa boca para falar da nossa caravela! — ralhou a gata, tão alto que o fez perder a compostura e derrubar o tabaco no deque. — Para um morceguinho almofadinha como você, até pode ser pouco, mas é de longe a melhor carniça que já tivemos! E é melhor se acostumar, porque não vamos sair daqui tão cedo. 

O cozinheiro soltou uma lufada de fumaça e abriu os seus olhos, olhando para seus companheiros. Hesitou em falar por um momento, mas inicia: — Farei os ajustes necessários na carcaça, não se preocupe — parou por um segundo, abrindo um sorriso maldoso para o médico: —  e de quebra faço um covil para você, rato da escuridão. Não sei se vai ser mais confortável que sua antiga tumba, mas garanto que vai ser o suficiente para cobrir o sol — e riu junto da gata (uma piada que, se dependesse deles, não teria fim). 

Estava decidido: eram todos parte daquele bando e, se fosse para morrer, estavam contentes de compartilhar seus últimos momentos juntos. Depois de algumas tossidas e risadas paralelas ao momento de puro constrangimento de Morgan, enfim, Flint retoma sua postura séria e assevera:

 — Compreendam, o que aconteceu naquela noite não será mais um caso isolado. 

— Por que você pretende beber até ficar inconsciente outra vez? — Bertruska alfinetou. 

— Isso também, mas não vou me limitar ao meu estado etílico. Beberei e arrancarei quantas cabeças forem necessárias. 

A ex-marinheira se calou de prontidão, compreendendo do que se tratava. Isto é, a noite no barco não fora a primeira vez que matou; na verdade, sequer fora uma mulher pacifista em sua vida como agente da lei. Entretanto, ainda não conseguia se compreender como uma pirata — ao menos não uma que matava sem discriminação, sejam civis ou de sua casta. Era contraditório se ver naquela situação, tendo em vista que sempre detestou todos que viviam sem leis, mas ainda assim não se arrependia, estava com companheiros agradáveis e se aproximando de seu objetivo cada vez mais. No final das contas, matar piratas sempre esteve em seu destino; a única mudança era que agora teria de tirar outras vidas no caminho. Estranhamente, não sentia o mesmo desprezo que outrora sentira.

— Claro! Estou pronta para o que vier. — respondeu a provocação animada, mostrando um de seus bíceps flexionado. Não importavam as incertezas, estava ali e seria fiel àquela gente, estando corretos ou não (eles precisavam de sua força). 

Flint sorriu amarelo e puxou um pigarro, a fim de chamar a atenção da gata e homem, que, consternados, só tinham olhos para, bem, seja lá o que era aquilo que Bertruska estava fazendo. Com todos olhando para si, se direcionou a única que ainda não havia voltado do espaço: a mulher de três olhos, já há algum tempo tão entretida com o rosto do médico que nem parecia se importar com a reunião.  

— Eu não queria ser o interlocutor dessa pergunta, mas, Merin, você sabe para onde vamos? — indagou desconfiado.

Merin balançou a cabeça ao ouvir seu nome, e ao julgar pelo olhar inquisitório de todos sobre si, assumiu que estava sendo perguntada sobre alguma coisa. Vasculhou em sua mente alguma resposta adequada: — À... Grand Line, eu imagino? — respondeu timidamente.

— E eu imagino que você saiba o que é a Grand Line, estou certa? — Foi a vez de Bertruska perguntar, franzindo o cenho em preocupação. 

— Saber mesmo, eu… — os olhos tremeram e a esclera brilhou; não gostava dessa atenção toda. — Eu sei… —  completou sem muita confiança. 

Imediatamente Belka interrompe: — Vai ficar encarregado de explicar isso também, Morgan. — fica de pé na cadeira. — É tarde para voltarmos agora, mas podemos te dar um bote amanhã mesmo. Quero dizer, se você quiser desistir depois de ouvir tudo — enfatizou, olhando severa para o rapaz — sobre o lugar para onde vamos. — e apontou para a moça. — A escolha tem que partir de você.  

Merin assentiu um pouco atônita, ainda não havia se acostumado com as falas incisivas da imediata e escolher por conta própria nunca foi seu forte. Por sua vez, o médico deu um suspiro cansado, depois lançando a Flint um fuzilamento com o olhar (por ter iniciado aquele assunto para começo de conversa). Entretanto, somente recebeu em troca um risote cínico entre seu negar de cabeça e, mais uma vez, a oferta d’um cigarro. "Babaca", quis xingar, mas engoliu — perder a compostura era o mesmo que se assumir perdedor daquela provocação, e ele era melhor que isso. Além do mais, de nada isso adiantaria e de qualquer forma teria uma longa noite de conversas com a maluca.

Enfim Belka se prepara para sair: — Finalizamos aqui. — ela diz. —Vão montar as outras beliches, eu vou checar a pirralha — ia descer da cadeira, mas antes disso Bertruska segurou a barra de sua saia:

— Belka. Você não está se esquecendo de algo? — perguntou. 

— Ah, quanto a isso... — a imediata olhou para os céus, pensando em como explicar sobre a "aliança" (tendo em vista que nem mesmo ela a compreendia por completo) — Vejamos, como eu posso começar...

≈≈≈

Mal clareava o dia quando Poyo, pela segunda vez, despertou revigorada depois de uma ótima noite de sono. Graças ao seu cérebro de passarinho — e a beliche nova também —, todas as desavenças da noite anterior pareciam besteiras do passado, e nem mesmo a barulheira de camas se montando puderam a tirar de seu mundo dos sonhos. Naquele dia, acordara de pé direito e se deu o trabalho de dizer “xô” aos maus pensamentos, só para, puft, se livrar de tudo que era ruim e estar mais do que pronta para velejar!

Ansiosa para sua grandiosa viagem pela Grand Line, jogou suas perninhas para fora do colchão no mesmo movimento que levantava o corpo, se jogando ao chão para começar a comandar. Teria sido o habitual para ela, se não estivesse no segundo andar da beliche. Como resultado, caiu como uma fruta madura do pé. 

E foi assim mesmo, no vapt-vupt: no mesmo instante que Poyo berrou de dor, Merin se levantou da cama e bateu com a cabeça na madeira, tamanho fora o susto com o estrondo de jaca despencando. Apoiou-se sobre os cotovelos na cama, olhando séria para a meliante e, com um semblante incomodassímo, implora (categoricamente) para que deixasse de ser tão insuportável.

Ia voltar a dormir naquele mesmo instante, sem ao menos dar uma chance da menininha se desculpar, mas quando pôde perceber, de repente o pé de Bertruska já estava diante de sua face, e a ex-marinheira apenas pulou sobre si para ir ao chão da cabine, juntando a menininha pela camiseta e a colocando de pé novamente. Enquanto isso, Belka também levantava troncha, mesmo que quisesse dormir mais.

Não tinha jeito... Querendo ou não, mais um dia havia começado. 


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Notas finais do capítulo

E aí? Está do agrado de vocês, nobres fantasmas?
Creio que não há nada mais que posso fazer para agrada-los e após gastar todas minhas dicas milenares com as tolas escritoras venho por meio dessa com uma bandeira branca. A guerra chegou ao fim.

Finalizo aqui a batalha dos comentários. Façam o que bem desejam e se isso significa morrer de fome: morrerei!



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