Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 84
Capítulo 83 – De volta a Alvinópolis.




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“Levei mais de duas semanas para tomar coragem de ir a Alvinópolis. Faltavam três apresentações para acabar a turnê quando recebi a notícia de que Flavius tinha tentado se suicidar. Eu fiquei devastado. Primeiro senti um imenso alívio por, apesar de tudo, ele estar bem. Afinal Michel disse que foi por pouco. A simples ideia de me imaginar chegando em casa, depois de todas as coisas maravilhosas que passei aqui, e encontra-lo morto me arrepia completamente o estomago. Como a vida pode ser frágil, meu Deus. Em um momento está tudo certo e no segundo seguinte não há mais nada.... nada. Minha vida sem o Flavius se resumiria a nada. A simples sugestão dessa ideia me quebra as pernas. Como eu poderia sobreviver a isso? A perde-lo para a morte? Por Deus, eu não conseguiria sobreviver a uma coisa dessas.

  O apartamento estava um caos quando cheguei. Estava limpo, claro, Michel tinha cuidado disso. Mas estava tudo fora de lugar. Flavius certamente tinha tido algum dos seus ataques. Aqueles onde ele quebrava coisas. Estavam ficando frequentes de uns tempos para cá. Ele dizia que a rua de casa fazia muito barulho, que ele estava ansioso. Talvez os sinais já estivessem alí. Os sinais de que ele precisava de ajuda. Quão cego eu fui que não percebi. Como pode dividirimos o mesmo teto o mesmo universo com uma pessoa e não nos darmos conta de que ela está quebrada por dentro o suficiente para tentar deixar de existir?

. Na parede do nosso quarto uma mancha de sangue que, Michel disse, teimou em não sair. Sentei-me na cama e fiquei olhando para ela. Eu estava derrotado. Lembro de quando nos conhecemos, Flavius e eu. Ele tinha acabado de fazer a mesma coisa. Ele tinha atentado contra a própria vida... e, pelo que disseram não era a primeira vez. Um turbilhão de sentimentos me invadia enquanto eu tentava refazer as malas que eu nem tinha desfeito. Eu tinha sido displicente...  

Dirigi até Alvinópolis ainda meio atordoado. Eu estava seco, inerte, sentia um oco dentro de mim. Não sabia o que diria ou como agiria quando o visse. Eu sequer tinha certeza do que estava sentindo. Um misto de desespero, raiva, tristeza, amargura. Eu realmente não sei. Eu não queria admitir a fundo, mas eu também sentia raiva. Será que ele não tinha, nem por um segundo, pensado em mim? Em nós? Nos outros? Como ele podia fazer uma coisa dessas? Na NOSSA casa, na casa que comprei pra nós? Tem um que de egoísmo nisso... ou será mesmo que o desespero dele diante da vida é tamanho que tudo isso (amor, casa, família) deixa realmente de importar? Se sim, que lugar eu realmente ocupo na sua vida?

Ele estava na porta me esperando, braços cruzados, enconstado ao batente da porta, camiseta listrada de preto com cinza, calça jeans rasgada, uma blusinha de lã lisa aberta por cima de tudo. Um meio sorriso no rosto:

—Então, voltamos ao inicio de tudo. – ele disse.

Estava tão sereno que nem parecia que nada desse pesadelo tinha acontecido.

—Parece que sim. Como você está?

—Melhor que da outra vez.

—Eu acho que vocês precisam de um tempo sozinhos para conversar. – disse sua tia passando por nós com a chave do carro nas mãos – Eu sei como você deve estar se sentindo, mas pega leve com ele. – ela sussurrou quando passou por mim. Eu fiz que sim com a cabeça.

Ela entrou no carro e disse que ia ao mercado comprar coisas pra janta, perguntou se eu ficaria para o jantar. Tudo num tom tão banal, tão informal... era isso? Flavius havia tentado tirar a própria vida e todos agiam assim? Como se nada de extraordinário tivesse acontecido? Eu respondi que sim, que pretendia passar a noite se não fosse incomodo. Flavius sorriu e disse que seria ótimo. Por fim ficamos a sós:

—E então? – eu disse – Nós vamos falar sobre isso ou vamos jogar esse jogo de fingir que não aconteceu?

—O que você prefere, meu bem?

—Eu quero falar sobre isso.

—Então vamos entrar. Você quer um chá? Acabamos de fazer.

—Flavius, pelo amor de Deus! Como você pode estar tão calmo? Você quase morreu! – eu disse segurando o choro – Você quase morreu! Você entende isso? Você entende o nível de desespero que eu ia ficar se perdesse você desse jeito?

—Desculpe, eu... eu... sei lá... eu perdi o controle.

—Mas o que aconteceu? O que aconteceu pra você fazer isso? O que tem dado de tão errado na nossa vida pra você querer morrer?

—É tão complicado de explicar. Não sei nem se eu entendo o que aconteceu. Só aconteceu...

—É isso que você tem a me dizer? “É complicado”, “só aconteceu”? Flavius! Eu mereço uma explicaão melhor que essa!

—Talvez você mereça mesmo. Mas eu não se consigo explicar. – ele disse servindo os chás.  

—Tenta. O que aconteceu? O que foi dessa vez? Estava se sentindo sozinho, abandonado? Estava malzinho porque eu viajei? Foi isso?? Como que eu posso cuidar da minha carreira se você for fazer uma cena dessas toda vez que eu sair de perto?

—Ah, você acha que foi isso? Que eu fiz isso pra fazer uma ceninha pra você?

—Não foi o que eu quis dizer, desculpa. Eu estou um pouco nervoso, olha, eu to tremendo. É que... Eu tive medo de te perder.

—Não foi o que você quis dizer, mas foi exatamente o que você disse. – ele disse olhando para o chá. – Sabe... é bem mais complicado que isso.

—Eu sei... eu sei... desculpa, eu sei. O que eu disse é que eu estava nos dias finais da porra da minha turnê e eu mal consegui dançar nos últimos dias porque fiquei puta preocupado com você! E agora tem o caralho de uma puta mancha de sangue na parede do nosso quarto que não sai por nada e você nem teve a consideraçãoo de me ligar em nenhum desses dias, nem respondeu meu email, nada! Você me deu esse puta susto e me deixou completamente no vácuo, esses dias todos! Você faz ideia de como eu me senti? Recebendo uma noticias dessas tão longe de você? Eu tive medo, Flavius, medo que alguma coisa mais grave acontecesse. E eu me perdi completamente, eu... eu esquecia as coreografias, entende? Eu esquecia os movimentos. Tipo eu esquecia como fazer uma pirueta... quer dizer, eu fiquei desesperado. E tipo, como vai ser daqui pra frente? Como vai ser quando eu precisar viajar de novo? Como vai ser?

—Eu acho que consigo entender. Desculpa. Eu não queria causar isso tudo.

—Não queria causar isso tudo? Como você acha que ia tentar se matar e não causar isso tudo? Não te passou pela sua cabeça que a gente ia ficar desesperado? Meu Deus, Flavius, se você tivesse conseguido... se você tivesse conseguido... meu deus... – comecei a chorar.

—Eu não sei como explicar. Na hora foi só um turbilhão de coisas. Os pensamentos estavam muito confusos, sobrepostos, eu não sei dizer se estava em condições de ponderar tudo isso no momento. Eu só queria que... sei lá... aquilo acabasse...

—Eu não quero que isso acabe, Flavius. Eu não quero que a gente acabe. Eu não quero que você acabe. Por favor, Flavius, o que a gente precisa fazer pra não acontecer de novo... o que a gente precisa fazer...

—Fip, meu querido, eu não sei...

—Não, Flavius... não... eu preciso de uma resposta melhor que essa. Eu não posso viver com isso me assombrando, com o medo de você fazer de novo. Olha, eu vou entrar numa turnê nacional com o espetáculo dentro de alguns meses, vou ficar fora de novo. Como que vai ser isso? Como eu vou conseguir viajar com tranquilidade imaginando que posso te perder?

—Meu bem. – ele disse com aquele sorriso irônico – Vai ficar tudo bem.

—PARA COM ISSO, FLAVIUS! VAMOS TER UMA CONVERSA DIREITO! ME EXPLICA O QUE TA ACONTECENDO COM VOCÊ!

—Eu não sei o que está acontecendo comigo, Fip. Eu não sei o que sempre esteve acontecendo comigo. Eu só não consigo evitar ser assim... eu não sei.

—Por que você está fazendo isso?

—Eu não sei, Fip. Eu não sei sequer o que eu estou fazendo. Eu estive realmente muito perto da morte dessa vez e muita coisa tem se passado pela minha cabeça. Você chegou ao Brasil, sei lá, há três semanas atrás? A única coisa que você disse no “e-mail que eu não respondi” foi que estava “tomando coragem pra encarar minha fuça”. A última vez que você ligou, que eu atendi, eu ainda estava no hospital. Você me xingou de tantos nomes que eu nem me lembro. Disse que sua apresentação tinha sido uma bosta por minha culpa. Eu estava no hospital, sabe? Enfim, eu decidi não atender mais. Quando você ligou pra minha tia dizendo que viria eu não tive muito o que fazer, né? Só esperar você vir... Não que eu não quisesse você aqui, sei lá, eu queria te ver. Mas nesse momento a última coisa que eu preciso é de você fazendo tudo isso, tipo, agindo como você age. Sei lá.

—Mas eu não estou agindo assim agora, estou?

—Não. – ele sorriu – Você está se saindo bem.

—Eu estou me esforçando, Flavius. Olha, desculpa. Eu realmente tive um momento de sentir muita raiva, mas foi por que...

—Não precisa se explicar. – ele disse me interrompendo.

—Não... deixa eu falar.

—Eu te conheço o suficiente pra você não precisar falar. Fica tranquilo. O importante é que estamos indo bem agora.

—DROGA, FLAVIUS, DEIXA EU FALAR!  Eu fiquei MUITO mal quando eu soube o que tinha acontecido. MUITO MAL. Eu preciso que você realmente entenda isso, pelo amor de Deus! Você tentou morrer, Flavius! Como você quer que isso não ME afete? Como você não quer que eu fale sobre isso?

—Eu não sei... não sei... Não é que eu não queira que...

—Tá bom, tá bom. Eu entendi. Você quer continuar nessa ceninha, nessa pose de superior. Tudo bem, pega suas coisas, se acalma, a gente termina de conversar em casa, o que acha?

—Eu não vou pra sua casa, Fip. Eu vou ficar aqui. Pelo menos por enquanto.

—Como ficar aqui? Como “minha casa”. Aquela casa é nossa.

—Eu não quero voltar pra capital. Pelo menos não agora. Minha tia disse que tudo bem eu ficar aqui.

—COMO TUDO BEM VOCÊ FICAR AQUI?

—Eu não quero ir.

Eu fui invadido por um acesso desmedido de raiva e dei um tapa no rosto dele:

—EU COMPREI AQUELE APARTAMENTO PRA NÓS DOIS! VOCÊ VAAI VILTAR PRA LÁ!

Ele me olhou fixamente, não tinha expressão nenhuma no seu olhar:

—Você... nunca... nunca mais ouse. Você nunca mais ouse levantar a mão pra mim.

—Desculpa. Amor, me desculpa. Sério, desculpa. Eu... eu... eu tava muito...

—Foda-se o que quer que você tenha pra dizer. Você nunca mais. Escuta... NUNCA mais... vai enconstar a mão em mim.

—Claro que não. Amor, eu não quis machucar você... eu... Eu me descontrolei e...

—Você claramente se descontrolou. Eu acho melhor você ir embora.

—Eu não vou embora sem você.

—Vai sim. Porque não há merda nenhuma nesse mundo que me faça ir com você agora.

Eu sentei no chão e comecei a chorar:

—Você está terminando comigo? É isso?

—Eu não sei, Fip. Eu não sei.

—EU MEREÇO UMA RESPOSTA MELHOR QUE ESSA FLAVIUS! VOCÊ NÃO PODE SIMPLESMENTE DIZER “EU NÃO SEI” PRO NOSSO RELACIONAMENTO RUINDO!!!

—Eu acho que você tem razão. Mas nesse momento eu realmente não consigo te dar nenhuma resposta melhor que essa. Eu preciso de um tempo, Fip. Um tempo pra me reconstruir.

—A gente pode te reconstruir juntos, Flavius. A gente pode. Olha, isso que aconteceu, isso que eu fiz, eu nunca mais vou fazer de novo. Eu juro! Eu... eu também tenho estado uma pilha de nervos, com tudo isso que aconteceu, pelo amor de Deus, você precisa entender.

—Eu não sei se podemos fazer isso juntos, meu bem. Eu preciso de um tempo pra entender tudo que está acontecendo comigo. E o seu jeito de me tratar não vai me ajudar em nada nesse momento.

—Que jeito de te tratar? O que mais você quer?! Eu comprei a porra de um apartamento pra você! Eu nunca deixei te faltar porra nenhuma. Eu até fiquei de boa com você ficando com aquele merdinha da sua escola. O que mais eu posso fazer por você, seu imbecil? Eu faço tudo por você! Tudo!

—Fip, isso tudo tá errado em tantos níveis, eu nem sei o que fazer a respeito. É esse jeito de me tratar que eu estou falando! Você é agressivo, você é cínico, você é violento. Você me trata como se eu fosse um idiota por sentir as coisas que eu sinto, por fazer as coisas que eu faço, você me faz me sentir um lixo! Você comprou um apartamento pra nós e por isso eu devia enfiar o rabo entre as pernas e dizer “ah sim muito obrigado” pra tudo que você faz? Enfia o apartamento no cu, Fip! Enfia no cu! Você não pode me tratar de qualquer jeito por causa das coisas que você compra pra mim!

Nesse momento eu me dei conta, mais uma vez, de que eu, mesmo o odiando, estava agindo exatamente igual ao meu pai. Eu não consegi sentir nada além de vergonha, raiva de mim mesmo, desprezo. Não pelo Flavius, mas pela pessoa que eu me tornei. Ele estava fragilizado, tinha acabado de tentar suicídio e eu... a única coisa que eu fiz... foi piorar tudo pra ele. Eu fui péssimo. Eu sou péssimo. Flavius merece alguém melhor que eu:

—Eu acho melhor eu ir então. – eu disse – Me desculpe se eu piorei as coisas pra você. Talvez seja melhor você passar um tempo aqui, mas, quando quiser voltar pra casa, a casa é nossa. Se você decidir que não quer voltar eu vou sofrer mas vou entender. Me desculpe. Eu te amo.

E saí. “

 

...

—Vem pra cá – ele disse – Eu pago as passagens.

Tinha algo dentro de mim que rejeitava inteiramente a ideia. Mas eu me via meio sem saída. As coisas com o Fip estavam ficando insustentáveis e era bom pensar que alguém pudesse gostar de mim a ponto de me comprar as passagens para ir até outro país vê-lo. No começo, digo, nas primeiras conversas, eu simplesmente não levava a ideia em consideração, mas alimentava nele a esperança de que eu um dia cairia nessa armadilha. Dizia que eu queria muito mas... O que vinha depois do “mas” sempre mudava um pouquinho, mas geralmente era alguma desculpa plausível que me surgia a mente.

Eu sei que foi meio cafajeste da minha parte fazer isso, alimentar esses sentimentos que eu sabia que jamais corresponderia. Mas era comodo ter alguém a quem recorrer quando as coisas não ficavam bem com Fip. E ele era tão fofo, tão atencioso que era meio irresistível. Ele armava bem a teia de interesses para que eu caísse nela. Com seus flertes, suas conversas, ele sabia dizer o que eu precisava ouvir. Era sempre tão solicito, tão paciente, tão presente e disponível. Era quase assustador o quanto ele estava sempre tão disponível. Não importava a hora que eu lhe mandasse mensagem e ele respondia quase imediatamente. Bem, isso tudo vai deixando a gente meio disponível também.

O grande lance é que eu nunca quis nada com ele. Eu sabia disso. Mas acabei cedendo e fingindo que queria, para mantê-lo ali, me ajudando a lidar com os meus problemas. No começo me pareceu muito inocente e fácil, estávamos em países diferentes, ele nunca poderia voltar, eu namorava o Fip. Tipo, era impossível que um dia ficássemos juntos. Então que mal faria eu alimentar nele a ideia de que eu tinha essa vontade? Era uma coisa impossível, nunca ia acontecer, não tinha problema alimentar um pequeno amorzinho proibido.

O problema é que ele não acreditava que era impossível e começou com essa ideia de me fazer ir até ele. No começo eu só ria, dizia que tinha medo de avião, que era uma viagem muito longa, que Fip nunca deixaria. Mas ele encontrava solução para todos os empecilhos que eu arranjava. No começo ele oferecia a ideia periodicamente, passava meses sem falar no assunto e depois voltava a ele. Nesse intervalo entre propostas eu tinha dele o que eu queria, a atenção, o afeto, alguém onde descarregar meus sentimentos. Mas quando ele propunha isso, essa ideia louca e absurda de que eu fosse até lá, surgia entre nós um abismo. Nesses momentos me parecia mais nítido o que eu estava fazendo: eu estava o fazendo se apaixonar por mim sem a menor intenção de retribuir. Eu me sentia vazio e completo de culpa ao mesmo tempo e chegava sempre a conclusão de que deveríamos por um ponto final nisso. Mas logo ele parava de tocar nesse assunto e tudo voltava a ser como antes.

Como eu disse eu fui desenvolvendo e ficando preso nessa teia ao mesmo tempo. Porque ele era, querendo ou não, a pessoa que eu tinha para conversar, para reclamar do Fip, para pedir conselhos, etc. Ele era um ponto de apoio para mim. E daí que eu soubesse que eu era mais do que isso para ele? Ele continuava sendo importante para mim de alguma forma. E nunca poderíamos nos ver. Ele sabia, tanto quanto eu, que a ideia de eu voar até outro país para encontra-lo era insana. Então por que ele alimentava essa esperança, certo? Em partes ele também tinha uma certa culpa nisso, não?

Enfim, as coisas foram se desencadeando desta forma. Eu alimentava nele a esperança de um amor que ele sempre dizia sonhar em viver e ele alimentava em mim a ideia de lealdade e segurança que eu sentia falta no Fip. Ambos estávamos usando um ao outro, não é? O fato é que mantivemos essa relação por anos e ele sempre insistiu na ideia de que eu fosse até ele. Que dissesse ao Fip que estava em Alvinópolis com minha tia e fosse para lá passar uns dias. Eu dizia que nunca daria certo, que não podia me arriscar tanto. Convenientemente nunca deixei que ele soubesse que Fip e eu tínhamos aberto o relacionamento. Sempre falava sobre o quanto o Fip era ciumento e controlador. Isso ajudava a manter a ideia de que eu ir até lá impossível.

Mas quando demos esse tempo, Fip e eu, a ideia surgiu novamente, mas não periodicamente como antes, ela surgiu como uma única saída, como uma única solução. Ele passou a falar nisso todos os dias, todas as horas, em todas as oportunidades que encontrava. Dizia que eu não tinha que me prendesse aqui. Eu dizia que tinha minha tia. Ele respondia que ela de verdade nunca tinha ligado pra mim. Que ele, só ele, única e exclusivamente ele podia cuidar de mim. Eu, honestamente me sentia enojado com a ideia. Eu não gostava do “eu” inseguro e dependente que ele havia construído. Desse “eu” que precisava dele pra tudo e desse “ele” que ia resolver todos meus problemas. A ideia me enojava. Mas, pensando bem, eu havia construído aquela relação assim. Eu o havia treinado para me ver assim. Mas o fato é que se antes eu convenientemente gostava de como isso funcionava, agora essa ideia me irritava em absoluto.

O fato é que a ideia de eu ir até ele foi deixando de ser uma ideia louca e descabida que ele eventualmente lançava e se tornou uma monoideia. A única ideia. A única coisa que podíamos fazer. Um tudo ou nada. E eu me vi encurralado. Eu não tinha mais desculpas para não ir. Aos poucos a ideia de conhecer a Argentina começou a parecer sedutora, sobretudo a ideia de ele pagar as passagens, as comidas, ter um lugar chique para ficar. Sei lá, pareceu promissor. Ademais, eu havia acabado de terminar como Fip e receber esse nível de atenção poderia fazer bem. Fip, evidentemente, jamais poderia sonhar com isso. Ele me odiaria para sempre se soubesse. Isso tornava a ideia como um todo mais e mais atraente. Levaram exatos cinco meses para que ele conseguisse me convencer. Foram cinco meses até que eu entrasse naquele avião.

É certo que, desde o momento em que eu aceitei o convite até o momento em que eu desci daquele avião que eu estava inteiramente decidido de que nada rolaria entre nós. Que eu tentaria fazer com que tudo parecesse um grande mal entendido e que éramos apenas amigos nos vendo. Mas quem eu estava tentando enganar? É evidente que, se acaso ele estava arcando com tantos gastos em meu nome ele certamente iria pedir algo em troca. Como eu faria para dar isso eu ainda não sabia. Planejava improvisar na hora. Mesmo não sendo bom nisso.

Eu cheguei exatamente as 18 horas, ele estava me esperando no hall do aeroporto, com flores na mão. Vê-lo assim, pateticamente romântico, esperando por mim com essa pose cavalheristica como se eu fosse uma dama medieval a quem ele estava a cortejar, fez-me sentir automaticamente uma repulsa que nem sequer tinha nome. Embrulhou-me o estomago. Mas eu sorri, me aproximei e disse um “hola” meio desajeitado. Ele me deu um selinho na boca e me entregou as flores. Eu as peguei meio sem jeito e me vi pensando no que eu deveria fazer com elas. Em verdade senti uma vontade imensa de simplesmente jogá-las fora. Mas, outra vez, menti, disse que eram lindas – e de fato eram- e que tinha adorado. Mentira. Eu havia odiado e me sentia constrangido em ter que carrega-las comigo.

Tocando as minhas costas ele me levou até o carro. Disse que havia acabado de comprar. Era um modelo novo e blá blá blá, tinha um cambio de não sei o que, uma marcha que lero lero lero, enfim, estava se exibindo. Achava que se eu me interessasse pela potencia de seu carro eu me interessaria por ele também. Infelizmente ele estava errado. Ele, a sua pose de almofadinha, o cheiro do seu perfume (certamente caro)  e do estofado novo do carro, tudo isso só fazia com que eu me interessasse cada vez menos. Tudo isso só fazia com que o sacrifício de “me entregar” a ele parecesse ainda mais penoso.

Seguimos o caminho com ele falando. Como estava falante. Falando das historias das ruas, dos monumentos, das praças. Isso me agradou. Buenos Aires é uma cidade fantástica e entende-la conhecer  tudo aquilo era como uma brisa fresca me invadindo as entranhas. Comecei a olhar para ele com maior carinho. Se era inevitável que eu fosse transar com ele, pelo menos que fosse bom. Fiquei olhando para ele buscando algo que me atraísse. Ele era, em verdade, muito bonito. Tinha o nariz exatamente igual ao do Fip, mas seus olhos eram mais angulosos, delicados. Em verdade, fisicamente, ele era bastante agradável. Sorri para ele que logo me sorriu de volta e me deu um beijo. Eu senti nojo da sua saliva entrando na minha, mas tentei disfarçar. A saliva dele era fria, gosmenta, não sei dizer. Eu me senti mal. Tentei não colocar a língua dentro da boca dele, fingindo que era desse jeito mesmo que eu beijava, mas ele teimava em explorar minha boca com sua língua, fazendo sua saliva entrar dentro de mim. A sensação era desconfortável, ridícula até. Por fim afastei meu rosto e disse que o sinal tinha aberto. Ele seguiu dirigindo. Disse que me levaria a um restaurante maravilhoso.

Quando chegamos ele quis se sentar ao meu lado. Passou os braços sobre meus ombros e beijou minha orelha. Eu disse que não me sentia a vontade que trocassemos caricias em publico. Ele riu, tirou os braços do meu enlaço e deu um beijo rápido na minha bochecha. Disse que isso era fofo e ficou me encarando longamente. Eu, por mim, teria dado um soco nele ali mesmo, mas me contive em abrir o cardápio e escolher algo bastante caro. Se isso tudo estava a me custar tanto que custasse algo para ele também.

Fomos para sua casa, uma linda casa de dois andares localizada em San Telmo. Entramos, tomamos um vinho e ficamos conversando. Trivialidades sobre a viagem, a cidade, o tempo. “agora você não tem desculpa” – ele disse enlaçando minha cintura – “estamos só nos dois aqui”. Beijou-me. Ele estava certo, eu não tinha desculpas. Estavamos, finalmente, sozinhos. O momento que eu começaria a “improvisar” chegou. Pensei se eu não teria alguma desculpa para adiar aquilo, dizer que a comida não me havia caído bem ou que eu estava cansado da viagem. Mas era melhor terminar com isso logo. Acabar com essa tortura para depois poder aproveitar a cidade, a casa, o dia, até que ele quisesse transar de novo.

Fiquei impávido como uma estátua de sal, olhando fixamente para o relógio na parede enquanto ele me cobria de beijos por todo o corpo. Tirou minha camiseta e beijou meus ombros, meu pescoço, meus mamilos. Os beijos dele eram secos e tímidos, rápidos e insensiveis. Pareciam feitos por protocolo. “Vamos para o quarto” eu disse a fim de ganhar algum tempo. Fomos. Lá chegando ele me empurrou de bruços sobre a cama e começou a beijar minhas costas. Melhor assim, nessa posição eu não precisava fazer nada além de esperar ele terminar de fazer o que precisava ser feito. “Você é tão barato assim?” – pensei –“Se dar dessa maneira em troca de uma passagem e um almoço?” – fechei os olhos enquanto ele esfregava sua pica dura em mim. Nessa posição ele não precisava se dar conta de que a minha pica não estava dura. Ele se esfregava com a violência do tempo em que sua vontade ficou reprimida. Falava que eu era muito gostoso e que ia meter em mim. Ele falava isso tentando forçar uma masculinidade que não lhe caia bem, soava meio patético, como tudo que estava acontecendo ali. Eu permanecia imóvel, soltando um gemido ou outro para que a cena como um todo não ficasse ainda mais constrangedora. Soltei um grito quando ele colocou o pau dentro de mim e ele sorriu “machucou é?” ele disse e eu só concordei com a cabeça me perguntando se, a essa altura do campeonato ele estaria realmente curtindo tudo aquilo ou se estava propositalmente tentando fazer durar o máximo possível para me torturar.
   O sexo durou uma eternidade embora, no relógio marcado tivesse levado cerca de quarenta minutos. Quando ele finalmente gozou, saiu de cima de mim e disse um “foi ótimo” no meio de uma respiração ofegante. Me abraçou com seu corpo totalmente suado e me deu outro beijo cheio de saliva. Eu me virei para o outro lado e disse que estava morrendo de sono. Que a viagem tinha sido muito cansativa e fingi dormir. Ele ficou ali, abraçado a mim, acariciando meus cabelos enquanto eu torcia para conseguir dormir de verdade e poder fingir pra mim mesmo que não estava ali... eu me casei com ele e nunca voltei da Argentina.


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