Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 83
Capítulo 82 – O oco.




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—Oi, Flavius, desculpe o atraso, o metrô ficou horas parado numa estação, aparentemente alguém se jogou nos trilhos.

—Meu deus, que horror. – ele respondeu meio afetado – Imagina morrer assim... Não sei... E a gente comenta sobre isso assim, né? Tipo “ah, oi, me atrasei porque alguém morreu no meio do meu caminho...” a cidade tira a nossa sensibilidade né?

Michel não queria que a conversa enveredasse por esse caminho, mas se sentou à mesa fazendo uma cara de convalescencia:

—Pois é. Muito triste. Mas me conta, como você está? Tem semanas que não nos falamos direito.

—Ah, eu to meio triste. Não sei se eu devia comentar isso com alguém, mas o Raíque meio rompeu comigo. Ele começou a namorar um outro menino, um tal de Lucas – ele disse revirando os olhos - . Disse que quer batalhar pra que essa relação dê certo e que não podemos mais ficar.

—Parece justo. Sei lá, você tem o Fip, né? É justo ele ter alguém também. Tipo, pra amar.

—Ah, sim, mas eu fiquei triste. Eu gostava de ficar com ele.

—Outros Raíques virão. Você é bonito, é uma questão de tempo até alguém se interessar por você.

Flavius corou e olhou desconcertado para Michel. Por alguns segundos sentiu seu estomago revirar, “será possível que ainda não tivesse superado essa história?”:

—É... eu tenho conversado com um garoto pela internet. Mas ele é de Buenos Aires então... Fica meio difícil né?

—É, isso dificulta as coisas, hahahahaha. Mas já é alguma coisa, né?

—É... eu meio tenho me sentido sozinho, sabe? Tem tempo que o Fip tá fora. Eu fico pensando nele lá, na Holanda, fazendo shows, conhecendo todo tipo de gente interessante, torrando o dinheiro da herança, vivendo a vida. E eu aqui, vivendo todos os dias iguais, sabe? Sei lá, terminei a escola, to num trabalho mais ou menos, indo e voltando todo dia. Eu queria ter algum proposito maior. Tipo, você ta lá no conservatório de teatro, a Natasha tá no restaurante, o Fip dançando... e eu... eu não sei o que quero da vida. Eu me sinto meio perdido.

Michel manteve os olhos fixos no cardápio. Não queria que a conversa enveredasse por esse caminho também. Mas ultimamente parece que as conversas com Flavius sempre enveredavam pra baixo, pra algum lamento desagradável ou algum tipo de auto flagelação. Ele estava meio cansado disso, tentou evitar esse encontro o máximo que pôde, mas chegou um momento que não podia mais, por isso veio, mas veio pouco disposto a esse tipo de conversação. “Fip precisava voltar logo pra fazer companhia pro Flavius, eu não tenho aguentado mais”:

—É... – disse – Mas você vai achar alguma coisa. Sei lá, você não gosta tanto de ler?

—Ah, eu não gosto tanto. Eu leio mais por falta do que fazer mesmo.

—Entendi. Mas por que você não faz um curso? Sei lá, aprende alguma coisa.

—Curso de que? Não tem nada que me dá vontade.

—Você sempre comenta que queria aprender a costurar.

—Ah, mas eu não acho que levo jeito.

—Você não vai saber se não tentar. – disse num tom mais ríspido do que gostaria.

—Mas todo curso que eu vi era a noite, eu tenho medo de andar sozinho a noite.

“Eu desisto” – pensou Michel abandonando o cardápio:

—Eu vou pedir uma esfirra e você?

—Eu quero um quibe.

—Tá bom.... olha, Flavius, eu posso te falar uma coisa bem sincera? – o garoto arregalou os olhos e fez que sim com a cabeça – Eu acho que você precisa mudar esse astral, sério. Você coloca muita dificuldade em tudo e a maioria dessas dificuldades estão na sua cabeça, sabe? Fazer as coisas é muito simples, é só chegar e fazer. Tipo eu não tinha nada quando cheguei aqui e aos poucos fui encontrando minha turma, meu lugar, minhas atividades. Você fica muito preso ao Fip, ao Raíque. Quando foi a ultima vez que você fez algo sozinho? Tipo, sei lá, algo por você? Vai fazer um curso de qualquer coisa, se não gostar larga e começa outro, mas você precisa sair um pouco dessa zona de conforto, sabe?

—É....

Em verdade Flavius se sentia paralisado diante de qualquer uma dessas possibilidades. Ele não entendia por qual razão, mas pegar um telefone e ligar para um lugar qualquer, para se inscrever num curso, fosse qual fosse, não lhe parecia, nem de longe, tão fácil quanto seus amigos faziam parecer. Sair de casa, ver gente nova, conhecer lugares, tudo isso lhe despertava uma ansiedade paralisante. De modo que ele se via assim, congelado diante das possibilidades. Não é que não tivesse uma verdadeira vontade de aprender as coisas, de ver coisas novas, de estar presente no mundo. Mas havia algo que simplesmente o desconectava. Para ele, estar presente no mundo de forma tão ativa lhe custava uma energia que ele definitivamente não tinha. E ouvir conselhos como o de Michel realmente não ajudava. O amigo fazia que parecesse que a solução de tudo dependia única e exclusivamente de sua vontade, mas tinha alguma coisa, uma indefinição, uma força desconhecida entre ele e sua vontade que impedia o fluxo de tudo. Havia algo que o paralisava, desde sempre, um oco dentro da sua cabeça que tornava todo esforço impossível. Era algo que ele não sabia nominar mas as vezes chamava de vazio. Sentia um vazio na sua cabeça que desconectava os pensamentos e o tornava inoperante socialmente. E sua única vontade era passar os dias deitado ouvindo seus pensamentos, olhando para um ponto fixo do teto sem pensar em mais nada.

Em verdade tinha passado boa parte da sua vida assim, deitado no seu quarto mirando o infinito dentro de si. Quando morava com sua tia isso não parecia incomodar. Ela o deixava em seu quarto e não fazia cobranças, a vida era mais simples daquele modo. Mas desde que veio à cidade tudo mudou. Sempre havia algo para fazer, alguém com quem se comparar... e o vazio ficou maior. Porque agora o vazio significava tudo que ele não tinha... uma vida “normal”... Ele olhava para Michel e pensava em como fazê-lo entender... mas não encontrava um meio. Por fim respondeu apenas:

—É verdade, eu vou tentar.

Mas mentiu. Ele não ia tentar. Já havia tentado demais. O que ia mudar fazer um curso fosse qual fosse? Aquele oco continuaria a habitar sua cabeça, aquele abismo que o separava do mundo, aquela sensação de estar em tudo pela metade. Fip não entendia isso, dizia que ele estava se fazendo de vitima. Natasha dava os mesmos conselhos que Michel. Ele não tinha com quem conversar a respeito disso. Aliás, ele não sabia se havia algum modo de conversar sobre isso. Como explicar para alguém algo que ele sequer compreendia? Esse “oco” dentro dos seus pensamentos era tão abstrato quanto paralisante. Era como que um labirinto de onde ele não conseguia sair. Um vasto labirinto tão distante dos demais que ele sequer conseguia gritar por ajuda. Em verdade chamar aquele oco de labirinto parecia uma metáfora melhor. Pois não se tratava exatamente de um vazio, mas de uma imprecisão. Um lugar fora do lugar, de onde não havia saída. Se fosse um oco, um vazio, ainda seria confortável. O vazio é confortável, esse lugar onde ele estava não. Era uma sucessão de compartimentos sem saída que teimavam em voltar sempre para o mesmo lugar: uma forçada inercia. Uma não solução. Um esquecimento. Essa sensação constante de não estar entendendo nada e de assistir a própria vida como se ela fosse um filme, uma narrativa contada por outro alguém. Um eterno deixar-se levar para um lugar que ele nem sabia se existia. Michel não entenderia isso... Natasha não entenderia isso... ele não entendia isso. Então sentia que o mais fácil era abdicar. Dizer a eles que eles tinham razão. Fazer o que eles diziam que devia ser feito e esperar por algum resultado:

—Vou me inscrever no curso de costura. – disse fingindo uma empolgação – pode ser bom.

—Vai ser bom! – disse Michel quase lhe impondo uma solução.

Flavius sorriu meio sem jeito, desejando que fosse o seu corpo a atrapalhar o caminho do metrô naquela manhã.

...

Flavius querido, estou mandando esse e-mail para te contar as ultimas noticias. Tinhamos prometido trocar e-mails todos os dias mas acabei me atrasando, né? Perdão por isso. A apresentação em Amsterdã foi um fracasso. Ao contrário de Berlim, pouquíssima gente foi nos ver. Sério, foi de dar dó. Se tinha vinte pessoas na platéia foi muito. Um dinheirão jogado fora. Pelo menos a crítica que saiu no jornal foi boazinha. Disseram que a coreografia não trazia nada de muito novo ou inesperado, mas que o corpo de baile (no caso eu) tinha excelência. Claro que a Bruna (a coreógrafa, lembra?) ficou arrasada, mas nós do corpo de baile ficamos animadinhos. No mais passamos um dia gostoso na cidade e viemos para Londres, a nossa última parada. Vamos vazer 3 semanas de apresentação por aqui e finalmente voltamos pra casa. Sério, nossa eu não vejo a hora de voltar pra casa. Ficar assim, pulando de hotem em hotel, montando e desmontando cenário, nesse friiiiioo. Eu não aguento mais. Olha não quero voltar pra Europa a trabalho tão cedo, só a passeio. Inclusive deveríamos vir juntos, você ia amar cada pedacinho disso aqui. Quer dizer, eu acho que você ia amar. Seus gostos são meio imprevisíveis. Ao mesmo tempo que te imagino de braços cruzados olhando pra tudo com curiosidade e um meio sorriso inerte na cara (que eu já entendi que é seu jeito de dizer que gostou) eu também te imagino tipo, sei lá, achando tudo um monte de velharia pretensiosa. E você aí? Há quantas anda? Você pareceu triste no último e-mail. Está tudo bem? Espero que sim. Deu tudo certo com o curso de costura? Está gostando? Mande Notícias. Beijos.

Seu Fip.

...

—Michel, desculpe a hora, sei que deve estar tarde aí no Brasil.

—Está tudo bem, eu não estava dormindo. O que houve?

—Flavius não tem respondido meus e-mails, nem atendido minhas ligações. Você teve contato com ele nos últimos dias? Sabe se está tudo bem?

—Olha eu não falo com ele desde sexta.

—Você pode passar lá no apartamento e conferir se está tudo certo? Eu estou preocupado.

—Posso sim, amanhã antes do ensaio eu passo por lá. É meio caminho.

—Obrigado. Beijoos.

...

Oi Fip, sou eu Michel. Vou deixar mensagem porque você não tá me atendendo. Escuta, eu fui até o apartamento, olha, o Flavius tentou suicídio. Uma vizinha do apartamento da frente viu pela janela, eu não entendi direito. Ele meio que cortou os pulsos... de novo. O porteiro salvou ele, mas o médico disse que foi por pouco. Eu entrei no apartamento, tinha sangue pra todo lado. A vizinha disse que viu ele caído na sacada. Bem, ele está internado. A tia veio de Alvinópolis, está no hospital com ele. Faz uns três dias isso. Ela (a tia dele) disse que vai levar ele pra Alvinópolis... bem... quando ele tiver alta.... Pra ele não ficar sozinho. Pelo menos até você voltar. Eu to indo pro hospital agora. Me liga. Beijos.


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