A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 4
Laços




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O homem alto de roupas avermelhadas e máscara de lobo se mostrava impaciente com a pequena moça que apareceu para ele inesperadamente. O segundo homem mais corpulento e baixo cruzara os braços há pouco e desde então olhava a dupla com uma expressão de curiosidade como a de quem quer loucamente saber o desfecho de uma história que acabaram de lhe contar, pousando seus olhos em um e migrando para o outro de quando em quando, como uma criança, estampando no rosto um meio sorriso. Mariah e Shura tinham andado por horas bosque adentro até dar em uma cidade em meio ao crepúsculo, desde então eles rumaram para uma loja de pedra robusta e ali ficaram.

A loja era um pouco mais baixa por dentro do que aparentava por fora e por onde olhava, armaduras e armas brilhantes os saldavam, além disso, o calor da forja acesa em brasas também preenchia o lugar e o deixava menos suportável ainda para a mulher, já Shura se mantinha impassível, como se estivesse acostumado com aquilo. O homem que os atenderam depois de uma longa espera, pegando Mariah manuseando uma adaga e a repreendendo, era baixo, mais que Mariah e tinha braços tão grandes e fortes quanto peludos, vestia um avental de ferreiro sobre um robe maltrapilho que um dia fora branco e em seu rosto não havia uma máscara, mas uma suntuosa barba trançada que se encontrava com seus cabelos longos caídos desajeitadamente até o ombro, ambos grisalhos. Se alguém o olhasse de relance, era possível que confundissem seus pelos faciais com uma máscara como a de Shura.

— Você está me dizendo que a partir do momento em que eu toquei nela eu me tornei responsável por essa humana? – Diz ele ao homem protuberante que se mantinha atrás de uma bancada cheia de armas brancas de um metal dourado. Shura parecia confiar bastante no seu interlocutor.

— Exatamente Shura – responde Hefestus, o homem corpulento, com um sorriso malicioso – são as regras desde a primeira vez, pensei que sabia.

— Claro que eu não sabia, quer dizer, sabia, mas não sabia que ela era humana ou então não teria tocado nela. Eu nem sabia que era possível que um deles entrasse aqui.

— Mas você me atacou! - Diz a garota impaciente por estar sendo ignorada.

— Porque você apareceu no meio de uma luta! – Responde Shura com um tom de obviedade irritante para Mariah.

A garota revira os olhos e troca o peso de uma perna para outra com os braços cruzados.

— Então agora ela vai ter que me seguir, é isso?

— Exatamente – responde Hefestus quase rindo.

— Ótimo, como se a minha vida já não estivesse ruim o bastante.

— Espera que pode melhorar – diz o homem por detrás de sua bancada com um sorriso mais sarcástico ainda.

— E como isso seria possível? – Pergunta o rapaz passando as mãos pela máscara como se as passasse sobre o rosto. Seu rosto estava coberto, mas sua expressão de impaciência parecia atravessar a máscara que usava.

— Agora não só a sua vida está em risco, mas a dela também. Como semideuses que não são de elite precisam deles para existirem, o toque físico entre os dois cria um laço inquebrável no mesmo momento.

— Você está dizendo que... 

— Sim – Hefestus solta uma gargalhada de satisfação com a desgraça alheia – boa sorte, vai precisar.

O semideus sai pela porta bufando e assustando a garota com sua reação. Ele parecia esquentado para ela, mas nunca imaginou que ele agiria dessa maneira em algum momento. Ela demora algum tempo para assimilar tudo, mas assim que ele desaparece pela porta ela o segue tentando acompanhar seu passo, o que era difícil dado seu tamanho comparado ao dele.

— Espera, o que está acontecendo Shura? – Gritava ela atrás dele – Ei, me espera aí.

 O homem para e olha para ela por um segundo girando o corpo, depois fala:

— Venha comigo, tenho que te explicar umas coisas.

Enquanto andavam em silêncio novamente, Mariah finalmente pôde contemplar onde eles estavam, já que quando chegou, ela ainda estava impressionada com a possibilidade de deuses existirem e se parecessem como o rapaz. Eles andavam por uma rua de pedras entalhadas que fariam a estrada de tijolos amarelos sentir inveja, elas pareciam realmente ser feitas de alguma liga vinda do ouro e do mármore de tão brilhantes e brancas. As construções também pareciam ter um brilho próprio vindo de sua alvenaria, muros altos de ambos os lados das ruas pareciam abrigar não apenas moradias, mas lugares que poderiam ser chamados de comércio como o de Hefestus, a iluminação não parecia vir de um lugar específico, mas a cidade tinha  um brilho próprio perfeito e acima de si, ao topo de um morro, uma escultura gigante de Zeus, Seth, Odin, Brahma e Amaterasu, lado a lado saudava os moradores de forma romana, com seus braços levantados pouco a cima da cabeça e suas mãos espalmadas para baixo, como se tentassem cobrir o lugar com elas. Mariah via tudo deslumbrada, com o mesmo ar de um turista que desceu na cidade errada por engano, mas por acaso a cidade era Paris. Ela tentava se lembrar de tudo que estava ali, de tudo que pareciam com mitologias, mas a essa altura, Mariah não tinha certeza de mais nada.

— Mariah – chama alguém, fazendo a garota sair de sua contemplação.

— Sim? – Ela responde sem se virar.

— Mariah!

Ela se assusta com o segundo chamado, fazendo com que ela dê um sobressalto. Quem a chamava era Shura, que agora estava muito a sua frente, a esperando cair na real.

— Já vou – ela grita para ele, falando em seguida para si mesma – seria tão legal desenhar essa escultura...

Os dois caminham em silêncio pelo caminho de pedras iluminado com o semideus indo à frente enquanto Mariah o seguia com alguma dificuldade. Volta e meia ele diminuía um pouco o passo para que ela o acompanhasse, mas logo voltava a andar mais rápido para a infelicidade da garota.

— Onde estamos? -  Ela pergunta enquanto corre um pouco para o alcançar.

— Essa é uma zona segura pelo menos por hoje, é chamado de Shangri-la.

— Não brinca... – ela parecia incrédula, mas o semideus não parecia ligar.

— Muito do que vocês cultuam existe por aqui, de fato acontece uma troca simultânea e mútua entre vocês e nós, por vezes nomeamos coisas por causa de vocês, em outros momentos influenciamos para que vocês nomeiem coisas como decidimos.

— Então – ela tropeça, mas retoma o equilíbrio em seguida – então vocês nos manipulam?

— Só nisso, – ele explica com pouca ênfase – na maior parte do tempo apenas observamos vocês, não somos permitidos influir muito no livre arbítrio de vocês e além do mais, deuses menores como eu não são os que decidem as coisas, os cinco grandes geralmente são quem decidem e nós obedecemos ou observamos caso isso não seja diretamente ligado a nossa mitologia mãe.

— Então quer dizer que vocês não podiam influir em nada durante grandes eventos tipo a peste negra ou a segunda guerra mundial?

Shura muda um pouco a sua postura quando escuta o nome do evento que mudara o século vinte por completo, mas depois de um curto silêncio ele completa.

— Não, as guerras de vocês, por mais que chamem de guerra santa em algumas culturas, são sempre vocês que causam por crenças em que vocês acreditam, não influenciamos em nada, podemos apenas observar com tristeza o que vocês fazem com vocês mesmos.

— Uau – exclama Mariah pensativa enquanto observa as pedras para não tropeçar novamente e manter, assim, o ritmo do semideus – se mais gente soubesse disso...

— Nem me fale.

— Você me disse que os cinco grandes são quem tomam as decisões, não é?

Ele assente a olhando rapidamente pelo ombro, prevendo a próxima pergunta.

— Não sei se você pode me responder, mas quem decidiu isso? Sabe, eles são como reis e no fim, vocês que executam o que eles decidem, né?

— Vou responder isso com uma outra pergunta, por que os seus presidentes que decidem as coisas ao invés de vocês mesmos decidirem tudo em seu país?

— Porque são milhões de pessoas em um país, com opiniões diferentes, seria um caos.

— Tem aí parte da sua resposta – ele ri de leve – a outra parte é que esses que estão aí não são só líderes, são frações do ser primordial, possuem conhecimento o bastante para saberem por onde devem nos guiar.

— Ser primordial? Tipo Deus?

— Esse é um dos vários nomes que vocês deram para ele, agora vamos, vou te explicar um pouco melhor assim que chegarmos.

— E pra onde está me levando?

— Você vai ver, agora menos conversa e mais velocidade.

Eles então partem pelas ruas, ele andando rapidamente e ela sofrendo para acompanha-lo. Depois de algum tempo de caminhada pelas ruas iluminadas de Shangri-la, eles saem da cidade e começam um caminho por uma pequena estrada de terra que levava a uma cabana no alto de um morro. A vegetação era deslumbrante mesmo durante a noite, a fauna local parecia brilhar ao passar pela luz da lua, os pirilampos iluminavam a floresta por debaixo das arvores e por dentro dos arbustos, saindo de suas folhas assim que Mariah passava a mão sobre eles. Lobos uivavam ao longe, mas seu uivo não transmitia medo, apenas conforto e a grande lua que enfeitava ao céu noturno irradiava seus raios de uma forma que a garota nunca tinha visto antes. Aquele lugar parecia perfeito, como ela tinha lido nos livros sobre as culturas e seus paraísos.

Essa era uma boa palavra para descrever esse lugar: um paraíso.

Assim que chegaram à cabana de madeira de só um andar, mas bem larga, o homem segura a maçaneta, faz menção de abrir a porta, mas não o faz, ele fica parado por alguns instantes e depois empurra a porta que se abre em um ranger leve. Por dentro a cabana parecia bem maior ainda. Estava tomada pela penumbra, mas os ornamentos em ouro ainda cintilavam com a pouca luz do lugar. Shura entra primeiro, tirando a jaqueta pesada que usava e a pendurando em um móvel semelhante a um poste com galhos e atravessa a sala, como em um passe de mágica, a lareira se acende juntamente com alguns candelabros que ficavam por toda a casa, tornando-a mais iluminada em instantes. Mariah observava ao pequeno show com certa curiosidade do lado de fora, Shura que tinha sumido pelo corredor aparece novamente, apenas com a cabeça inclinada para fora da esquina com um olhar confuso.

— Não vai entrar? – Ele pergunta a observando.

— Ah claro, é só que eu fiquei impressionada com o truque – ela responde enquanto entra, envergonhada.

— Você passa o dia com deuses vivos e se impressiona com um pequeno truque de mágica como esse? Você realmente é uma garota interessante.

O homem desaparece novamente deixando a garota no meio da sala, observando tudo. O interior do lugar tinha um tapete de pelos que tomava conta do chão da sala quase como um carpete de tão grande, no fim dele uma cadeira de madeira fazia o lugar parecer com uma cabana de veraneio ou algo assim, mais ao fundo perto da lareira uma mesa de quatro lugares feita de madeira nobre semicoberta por um forro fino quase se encostava na parede, nela um chifre transbordante de comida faz a barriga da jovem roncar tão alto que ela temia que  o homem a tivesse escutado no outro cômodo. Como em um passe de mágica ele volta com duas canecas de madeira adornadas de marfim.

— Você bebe? – Ele pergunta, apoiando uma das canecas perto de uma cadeira vazia da mesa e se sentando pesadamente na outra na extremidade oposta.

— Ah, não, eu ainda tenho 17 anos – ela responde.

— Entendo, bom, sente-se por favor, acho que deve estar faminta depois de um dia cheio desses.

Mariah queria recusar por educação, mas ela não comia nada desde que chegara ali e não fazia ideia de quanto tempo fazia. Então ela se sentou à mesa do lado oposto ao rapaz e passou a olha-lo, esperando que ele falasse algo. O homem, com um ar calmo contemplativo a observa de volta e apenas estende a mão que não segurava a caneca em direção ao chifre cheio de comida, é quando seu semblante se torna mais sério.

— Já que você vai ficar por aqui, tenho que te contar algumas coisas – diz ele olhando fixamente para ela, suas írises verdes quase penetrando a alma da garota.

— Pode dizer. – Responde ela agarrando um pão de mel e mordendo, o conteúdo transbordou um pouco fazendo o rapaz sorrir, mas ela não percebeu.

— Bom, Hefestus me lembrou de uma antiga regra desse evento e ela envolve humanos como você.

— Evento? Fala da regra de estarmos conectados de alguma maneira? – ela pergunta de boca cheia.

— É um evento por ser algo importante, mas depois eu explico, antes disso a regra.

— E qual seria ela? – Pergunta a garota chupando o dedo ensopado de mel.

— Se um semideus em batalha tocar em um humano eles estabelecem uma conexão muito forte e quase inquebrável, pois a alma do semideus é humana também.

— Você é humano também? – Pergunta ela arregalando os olhos – uau, nem parece.

Shura se esforça para não se sentir ofendido e continua.

— Veja bem, só a alma que está em mim é de um humano, pense nela como um combustível, mas um combustível que me dá memórias e consciência e esse corpo como um recipiente cuja máscara é a tampa, mas um recipiente capaz de me dar habilidades de um semideus, a máscara é como uma tampa de vidro para nunca esquecermos o quanto somos frágeis, por isso se a minha máscara se quebrar ou for removida, a alma em mim desaparece e esse corpo ganha um novo hospedeiro com uma máscara diferente.

— Por isso você não me deixou ver o seu rosto...

— Isso mesmo. Mas... – ele hesita.

— Mas...? – Ela pergunta com uma expressão de curiosidade no rosto.

O rapaz respira fundo e continua a falar:

— Mas como você ouviu lá atrás, a penalidade para essa conexão é que se um dos dois parceiros morrer, o outro é também enviado ao submundo para desaparecer, por essa conexão fazer com que as almas se tornem uma, tecnicamente falando.

A garota para no meio de um bolinho de arroz que comia.

— Então se você for derrotado...

— Você também morre, por assim dizer. Por isso eu trouxe você para minha casa para podermos conversar calmamente e eu poder te explicar tudo o que precisa saber, para que o contrário também não aconteça. Eu preciso da sua cooperação Mariah, um erro e estamos mortos.

Mariah parecia ainda tentar processar tudo que acabara de ouvir enquanto ele a olhava com atenção e em silêncio, nesse momento ele podia perceber que na cabeça dela todo o dia estava passando em uma velocidade incrível, desde quando acordou na praia e entrou em uma briga de seres que até então ela achava que eram inexistentes ou de certa forma invisíveis e intangíveis, até terminar sentada a mesa com um, com a boca toda suja de cobertura de pão de mel. Isso a faz ficar com um aperto gigantesco no peito, que a fazia querer chorar, seus olhos já começavam a marejar com a notícia de que ela poderia não sair dali viva.

— Nossa, que repentino, eu... eu não... eu não quero... não agora, não assim... – A garota solta a comida e baixa a cabeça de leve. Seus olhos estavam arregalados e ela parecia confusa, à beira do choro.

— Não fique assim agora, temos que seguir em frente, o evento leva apenas uma semana e se conseguirmos vencer... – o rapaz faz uma pausa, no fundo, ele sabia que as chances jogavam contra eles – se conseguirmos vencer, há uma chance de você conseguir voltar para casa a salvo.

— Não tem... outro jeito? – ela pergunta o olhando com olhos marejados prestes a transbordar.

— Eu temo que não... Mariah – ele responde sem animação, mas com toda a sinceridade que conseguia sem a assustar mais.

— Meu deus, onde eu me meti – Mariah ainda estava incrédula e confusa, ela não sabia o que fazer e o pessimismo tomava conta do seu ser nesse momento.

— Eu sei que isso pode ser terrível e assustador, mas temos alguma chance de conseguir sobrevivermos se trabalharmos juntos por aqui.

— E nossas chances são boas? Por favor, não minta para mim, Shura. – Sua voz treme, assim como suas mãos, ela abaixa mais ainda a cabeça e o rapaz têm a impressão de ver uma lagrima cair, porém ele resolve não a interrogar sobre isso.

— Não.

— E não existe nenhuma maneira de sairmos daqui sem isso, não é?

— Não, nem mesmo conversando com os cinco grandes, são as regras, sem exceções, nunca. Temos que fazer isso Mariah, pelo seu bem e pelo meu.

A garota pondera em silêncio por um tempo, passa as costas da mão pelos seus olhos e depois se volta de novo para o rapaz. Seus olhos estavam ainda marejados, seu rosto estava vermelho e suas mãos ainda tremiam mesmo com seus dedos entrelaçados sobre a mesa, mas seu olhar agora parecia decidido.

— Tem razão, me conte tudo o que eu preciso entender – a voz da garota parecia confusa, mas resoluta, e agora ela mantinha contato visual com o homem.

Enquanto ela o encara da melhor forma possível para não chorar, o rapaz fica em silencio por um instante a observando, em sua cabeça os motivos pelos quais ela não entrava em desespero completo eram incertos, mas ela parecia realmente decidida, ele nunca vira uma determinação como essa, não por uma causa tão perdida. Ele ainda tentava decidir se ela era corajosa ou insana, talvez uma amalgama de ambos.

— Muito bem então – ele começa – vamos desde o início, pode ser?

— Sim – responde ela limpando o rosto e fixando os olhos marejados no locutor. O semideus sentiu uma pontada no peito nesse momento.

— Bom, tudo começou na criação Do Deus.

— Tão no início assim? – Ela arregala os olhos.

— Eu sei que parece longo e estranho, mas vai ser uma versão resumida, não se preocupe.

— Aqui é tudo estranho, isso não seria a primeira coisa a me espantar.

Ele ri do bom humor de uma garota que parecia prestes a desabar, além do mais, era verdade.

— Enfim, contam os generais que quando tudo era nada, uma força de pura energia flutuava no espaço sem fim, até que por motivos que ninguém sabe ela explodiu, dando vida a dois seres onipotentes, gêmeos em sua oposição, era como se a explosão tivesse criado um ser composto de trevas e um de pura luz. Essas criaturas apesar de coexistir não cumpriam papeis semelhantes, o ser de trevas imperava enquanto o de luz procurava um propósito vagando infinitamente. Certo dia esse ser de luz descobriu um poder dentro de si e foi capaz de criar uma explosão a qual ele era capaz de moldar o resultado, gerando tudo o que vocês conhecem agora no espaço.

— O big bang...

— O big bang, – o homem assente e continua - mas isso não acaba por aí. Após incontáveis séculos, alguns dos fragmentos da explosão, solidificados no vácuo, começaram a criar seres capazes de portar um alma, eles foram brotando de seres mais simples por todo o universo e o ser primordial se sentiu feliz, enquanto o ser de trevas se sentiu enciumado, pois seu espaço acabara de ser tomado por essa criação odiosa de seu irmão. Ele desapareceu por um tempo, mas depois voltou, a fim de reaver o seu lugar que acreditava ser de direito e por pouco não conseguiu. Na luta entre as duas forças muitos desses planetas capazes de abrigar almas foram destruídos e muitas almas foram perdidas no vácuo, mas no fim de tudo, com um descuido de seu irmão, o ser de luz o enfraquece usando seu poder e o engole, prendendo assim o mal primordial dentro de si. Sabendo que ele gastaria muita energia contendo seu irmão dentro de si, ele dividiu uma parte de sua energia para todos os planetas dotados de vida e dessa força vieram os generais divinos, que são os que governam nosso plano aqui na Terra.

Contando isso o rapaz se lembra de quando chegou ali, ele sabia como ela se sentia escutando todo aquele conto, mas era o melhor que ele podia fazer por ela, então continua:

— Os Generais Divinos são a coisa mais próxima de um Deus no plano da Terra, por serem imortais e se alimentarem de uma fração do poder divino, eles não precisam de fontes humanas nem de outras fontes de energia para se manterem e ao mesmo tempo são as coisas mais poderosas que existem.

— Então eles não participam disso que está acontecendo, né? – Diz a garota o interrompendo.

— Isso mesmo – responde Shura e continua – neste planeta em especifico são cinco generais divinos: Zeus, Amaterasu, Brahma, Seth e Odin. Eles são os responsáveis por toda a defesa e organização desse mundo em específico.

— Calma, eu vi uma estátua gigantesca deles na cidade, mas você está me dizendo que os maiores deuses das maiores mitologias que conhecemos são os generais divinos?

— Espere um pouco garota – diz ele impaciente pela nova interrupção – prosseguindo: esses foram os escolhidos para proteger os seres dessa Terra, mas as “terras” das outras galáxias e nebulosas também precisavam de proteção tanto quanto vocês. Como você deve imaginar, foram tantos generais criados que Deus se viu sem sua força de forma plena, acabando por se cansar e adormecer por completo, deixando a sua criação na mão de suas criações, o que é meio irônico.

— E então chegamos ao evento por...? – Se impacienta Mariah.

O rapaz respira muito fundo com os olhos fechados e continua tentando ignorar a interrupção.

— Com a criação dos humanos também veio a curiosidade humana, que não se limitou em existir, mas começou a questionar os motivos das coisas e, não as entendendo, acabaram por incumbir seu funcionamento a seres munidos de características parecidas com as deles, criando assim divindades que passaram a cultuar, que continham suas especialidades e seus defeitos, recebendo características ímpares para cada um. Sabendo disso os Generais Divinos viram nisso uma oportunidade de criar vínculos fortes com a humanidade, criando assim os semideuses.

— E onde entram as almas nisso, Shura?

— Posso continuar? – Pergunta ele em um tom tão sério que a faz temer.

— Pode, me desculpe pela intromissão.

— Bom, então vamos lá, onde eu estava... – Shura coloca a mão no queixo e olha para cima pensando depois se volta novamente para a convidada –ah sim, - exclama – como os semideuses não possuíam a força completa de um deus eles conseguiram apenas criar uma coisa que se assemelhava a uma carapaça, sem vida ou autonomia. Como os semideuses também eram em parte munidos de características muito humanas como defeitos, falhas e emoções, eles tiveram a ideia de aprisionar uma alma em cada carapaça, correspondendo suas características para que não houvesse algum tipo de rejeição, mas mesmo assim ela perdia sua força com o tempo, sendo necessária uma nova para que o corpo não perecesse. Com isso, nasceu esse evento. Que acontece a cada duzentos anos e garante que uma alma nova seja reposta a cada semideus. Aos ganhadores os Generais Divinos concedem um desejo que esteja ao alcance deles e o direito a continuar com o corpo atual, aos perdedores apenas o esquecimento os espera. As almas são levadas a um lugar onde desaparecem sem dor, sem sentimentos, sem noção de que um dia existiram. Os gregos o chamavam de Tártaro, as outras crenças possuem outros nomes para designá-lo.

— Nossa, que complexo – diz a garota se recostando na cadeira.

— É um pouco, também não sei de tudo para explicar totalmente, mas isso é o que eu sei pelo menos, deve te ajudar a não entrar em encrencas por aqui.

Ela fecha o punho, mas se mantém em silêncio.

— Não me xingue tanto, é para seu próprio bem, – diz o semideus em um tom de graça.

Ela se vira assustada.

— Como você...

— Privilégio de semideus. Como você acha que atendemos às suas orações? – Ele ri forçadamente, tentando não deixar o clima tão sério.

— Droga – ela sorri – é que odeio quando me tratam como criança, já tenho 17 anos.

— Nossa, quase a mesma idade que eu... – ele para. Tinha falado demais.

— Você tinha pouco mais de 17 quando veio para cá? – Ela pergunta com a curiosidade queimando em seus olhos – como foi?

Ele fica sério novamente, suas mãos se fecham ao redor da caneca e Shura se torna contemplativo por um momento, seu olhar antes penetrante e severo agora era melancólico e vazio, como se ele não estivesse mais ali. Em um movimento brusco, ele se levanta e a olha novamente.

— Não quero falar sobre isso, me desculpe. Há uma cama ali, use-a, temos direito a só essa noite de sono seguro durante essa semana, aproveite-a bem. Boa noite.

— Espere Shura, mais uma coisa – a garota pede, ele que já se virava para ir em direção ao corredor para e volta sua cabeça para a garota. – você disse que seu nome é Shura por causa do deus do hinduísmo, mas por acaso uma das matérias que eu mais gosto é história e eu sei que não existe um ser com esse nome, na verdade ele é um título dado aos deuses que não são deva, ou seja, os equivalentes a anjos caídos para o catolicismo, por que mentiu para mim lá atrás?

O homem volta todo o corpo para ela e se torna rijo, a fitando com um olhar severo.

— Você é mais esperta do que aparenta, Mariah – ela dá de ombros – você está certa, esse não é um nome verdadeiro, mas eu não me considero mais do que um demônio em busca de redenção, então é assim que eu quero ser chamado, para me lembrar dos meus pecados em vida e meus motivos de sair vivo daqui. Agora, se a seção de interrogatório acabou, eu preciso descansar e te sugiro fazer o mesmo.

Shura gira nos calcanhares e ruma para o quarto pisando grosso, deixando a garota apenas a o observar entrar no quarto e desaparecer após a porta, ela tinha ficado confusa com tudo isso, agora ainda mais com seu novo parceiro. Mariah se levanta empurrando a careira com as panturrilhas e se apoiando na mesa. Nesse momento ela percebe que o copo a sua frente ainda estava cheio de cerveja e intocado desde que o homem o deixara ali para que ela tomasse, ela o observa, com sua espuma cremosa e tom amarelado espiando por entre ela.

— Foda-se – ela exclama para si mesma.

Segurando pela alça da caneca de madeira, Mariah toma de uma vez toda a cerveja que estava no copo, o gosto amargo e seboso amarga sua boca por completo e ela precisa resistir â vontade involuntária de sua traqueia de se fechar, com muito custo ela termina e solta o copo em um barulho oco em cima da mesa enquanto faz uma careta e limpa energicamente os lábios com a blusa, numa tentativa inútil de tirar o gosto ruim que ficara, mas ela sabia que aquele gosto amargo era o menos amargo que sentira o dia todo com todas aquelas notícias.

Ela então ruma para seu quarto, que ficava passando pela frende do de Shura, no final do corredor que agora estava na penumbra. Enquanto passava por lá, ela para por um instante e observa a porta, tentando imaginar o que o semideus fazia enquanto deitava, se seus pecados o assombravam como ele dizia e se ele conseguiria sequer dormir. Continuando sua marcha ela chega no quarto e o adentra, como de costume em cabanas como aquela a porta range quando aberta e quando fechada, Mariah pouco observa o quarto e assim que encontra a cama, se joga nela de imediato.

Depois de tirar os sapatos ela se aninha por debaixo das cobertas e tenta dormir o mais rápido possível, seu corpo apesar de muito cansado não parecia permitir que ela adormecesse, o que deu espaço par a sua mente trabalhar, a fazendo ver seus pais, imaginá-los desesperados a procurando, e isso a fez lembrar da possibilidade de nunca voltar a vê-los, o que a deixa mais triste ainda, entristecida pela saudade, fragilizada pelo seu dia cheio e irritada por seus ferimentos agora resolverem latejar simultaneamente pelo corpo todo, Mariah desaba sob suas mãos e chora, chora a ponto de soluçar, chora a ponto de molhar os lençóis, chora a ponto de Shura a escutar no quarto ao lado e depois adormece antes que perceba, essa noite não terá sonhos.


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