A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 3
O Palhaço Histérico




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786912/chapter/3

Um som de algo se quebrando desperta Mariah. Vagarosamente ela se levanta tossindo e se contorcendo um pouco, água quente é expelida pela sua boca, projetando uma sensação de sufoco na garota. As águas do rio ainda corriam por suas pernas e seu corpo da cintura para cima estava deitado de bruços na areia fina de uma pequena praia, parecia a quilômetros de onde caíra, pois nem as altas montanhas ela conseguia ver através das coníferas. O sol parecia perto de se pôr e o seu calor era fraco e avermelhado, ela se perguntava quanto tempo passou desacordada.

— Aí, droga... – ela passa a mão pelo rosto para afastar a areia e fios de cabelo que lhe grudavam quando toca em sua têmpora e uma pontada de dor lhe percorre toda a lateral da cabeça, ela tinha um corte ali, mas que por algum milagre já tinha parado de sangrar.

Com alguma dificuldade ela gira o tronco, se apoiando pelos braços, arrasta os joelhos para fora da água e se senta sobre as pernas na areia, ainda confusa por tudo o que acabara de acontecer. Ao olhar para os lados ela percebe que está em uma pequena faixa de areia que sai de um bosque e acaba no rio que agora não passava de um riacho. O bosque tinha altas árvores, mas não parecia muito denso então caminhar por ele não seria tão difícil assim, mas ela precisava de ajuda, estava perdida e encharcada, certamente poderia ficar doente se continuasse assim, porém mesmo com tudo isso outra coisa a preocupava: de dentro do bosque sons de altos de madeira se quebrando a fazem ficar em alerta.

Sem outras opções, a curiosidade da garota a move bosque a dentro em direção aos sons que antes pareciam amedrontadores e agora eram uma chance de salvação. Com um pouco de sorte ela tinha parado em alguma madeireira logo a baixo da reserva ou algo do tipo. Uma risada fina e curta a faz estremecer, em seguida um estrondo treme o solo, para ela isso parecia com um caminhão de buzina engraçada batendo em uma árvore, mas algo a dizia que isso não era verdade. Outra risada histérica e outro choque no solo, mas dessa vez um barulho de tronco rachando e um grunhido a fizeram questionar mais ainda sua tese, seu coração a diz que alguém precisava de mais ajuda que ela nesse momento.

Juntando todas as suas forças ela caminha abaixada até onde ela pensa ter escutado toda a algazarra, à medida que se movia ela sentia os sons mais altos e as vibrações aos seus pés ficavam mais fortes.

— Droga! – Exclama alguém próximo à garota com uma voz abafada como se tivesse usando algo sobre o rosto, ela para instintivamente.

Outra vibração na terra e algo atinge pesadamente a árvore que estava ao lado de Mariah, ela se joga em uma moita e espia pelas frestas deixadas pelas folhas. Através delas ela vê algo branco recortado com vermelho, demorando algum tempo até perceber que era uma máscara ornamentada que se assemelhava a um cachorro ou um canídeo semelhante. Atrás da máscara cabelos acinzentados e uma pele branca respingada por um líquido vermelho escuro, era uma pessoa e parecia ferida.

Mariah se levanta por detrás da moita vagarosamente olhando na direção onde estava a pessoa mascarada, ela estava deitada em uma posição estranha apoiada ao pé de uma arvore e não se mexia, parecia morta ou pelo menos desmaiada. Agora ela conseguia perceber que era um homem não muito mais velho que ela, mas um bem maior que ela. Vestia uma jaqueta avermelhada de couro e uma camisa branca por baixo um pouco suja de poeira, uma calça larga que se assemelhava em cor com a jaqueta o fazia parecer um tipo estranho de militar ou rapper e no rosto uma máscara branca que agora parecia ter mais feições de lobo terminava de vestir de forma incomum o desconhecido.

Um movimento próximo faz a garota se abaixar de novo, ela volta a espiar pela moita de amoras silvestres. Em alguns segundos por entre duas árvores aparece uma figura horrenda segurando algo que parecia uma marreta de brinquedo colorida de amarelo e laranja, mas manchada de sangue. A figura se assemelhava a um palhaço vestido de branco com detalhes em azul e bolinhas multicoloridas com suspensórios vermelho vivo, a protuberância da sua barriga o fazia parecer pouco perigoso, mas seu rosto desfigurado e mal maquiado o fazia parecer um assassino. Sua boca parecia congelada em um sorriso macabro de dentes tortos e pontiagudos, seus olhos arregalados emanavam uma frieza assustadora, suas sobrancelhas pintadas de vermelho estavam para cima e arqueadas como se estivesse espantado e sua cabeça estava repleta de cicatrizes e sem nenhum fio de cabelo, não dava para perceber que aquilo era uma máscara, parecia pele humana petrificada. Por debaixo disso uma música circense tomava um tom depravado e assustador ao ser cantarolada em um som abafado. Mariah não conseguia se mover, seu corpo parecia pesado com a visão e com a música. Enquanto isso a figura para por um instante e se apoia em uma das árvores ao seu lado com a mão direita, ele inclina a cabeça levemente e percorre com os olhos os arredores do homem imóvel, de algum modo, ele parecia um pouco decepcionado com algo.

Subitamente como parou, a figura jogou o martelo sobre o ombro e voltou a andar, em pouco tempo o palhaço infernal estava quase em cima de Mariah olhando fixamente para o rapaz inconsciente, sua respiração era pesada e lenta, abafada pela máscara. Ele então para de assoviar e tudo que se ouve é apenas a sua respiração.

— Ahhhh – diz o palhaço com um tom de chateação com uma voz fina que não condiz com a respiração anterior e muito menos com seu tamanho. Mariah ainda percebeu um certo tom infantil em seu protesto, como uma criança no meio de um acesso de birra – meu brinquedo quebrou, agora não posso brincar.

A voz ridiculamente fina perfurava os tímpanos da garota como pregos. Ela colocava ambas as mãos na boca para suprimir qualquer barulho, mas sua respiração era rápida e desesperada, principalmente agora com a proximidade dos dois seres estranhos.

— Vamos brinquedinho, levanta – dizia ele cutucado o rapaz com a ponta do pé como uma criança – iuuuuhuuu, brinquediiiiinhooooo, a brincadeira não acabou, levantaaaaa!

O rapaz não esboçava reação, o que decepcionava o palhaço, o deixando cada vez mais contrariado.

— Levanta, levanta, levanta, levanta, levanta! – ele repetia balançando para cima e para baixo a mão que não segurava a marreta.

A repetição beirava o irritante e Mariah se esforçava para continuar parada, ela sabia que se se movesse ela morreria com certeza.

— Levanta! – A voz do palhaço subitamente toma um tom monstruosamente grave, parecia um urso rugindo em dois tons, mas com uma voz fina por baixo.

O garoto finalmente reage como se tivesse sido acordado por um chamado e salta na direção da moita, atingindo o peito da garota com o ombro carregado com toda sua força, os fazendo rolar de maneira ridícula pelo chão.

— Mas o quê? – Antes de ele terminar a frase, a marreta o atinge de lado em cima do ombro e o faz voar a dois metros de distância, terminando rolando sobre o solo.

— Brinquedinho! – A voz parecia agora demoníaca e alegre.

Aterrorizada, Mariah vira o rosto e fita o palhaço que acabara de fazer um homem decolar por quase dois metros parado em uma posição que lembrava a de um jogador de golfe após uma tacada, com as pernas cruzadas uma sobre a outra e os braços sustentando o pesado martelo pendulando atrás de duas costas. O palhaço então gira os globos oculares sem nenhuma pressa e para os olhos sinistros sobre a garota, ele parecia diferente agora, como se tivesse mudado no segundo em que ela fora atingida pelo homem de vermelho. Seus braços agora musculosos rasgaram as mangas de tecido na altura dos ombros e apenas os babados nos punhos sobraram, sua barriga parecia ter subido para o peitoral e se solidificado lá e seus olhos agora eram de um negro-noite muito escuro já sua máscara, parte mais aterrorizante da figura, tinha a boca totalmente aberta em uma risada histérica, com todos os músculos da face gravados como se estivessem tensionados. Ele também parecia ter crescido em altura, mas sua voz continuava estridente.

— D-dois brinquedinhos – gaguejava ele em um transe de excitação e surpresa, abandonando sua postura e dando um passo para trás – Daikoku não brinca, Daikoku não brinca! Daikoku não quer dois brinquedos ainda!

Estranhamente ele não parecia muito aterrorizado, mas se recusava a continuar contra os dois como se temesse por ter duas pessoas contra ele, apesar de ele ser muito maior que Mariah e o estranho juntos. O palhaço continuava a fitando por debaixo da máscara, enquanto ela ainda o olhava com uma expressão de terror estampada e paralisada pelo medo.

                - Menina do rosto bonito... – ele dizia em frenesi total – rosto... Daikoku, rosto... Não brica!

Seus olhos negros então voltam ao tom anterior e ele avança subitamente sobre a garota, ela tinha certeza que seria morta, mas inexplicavelmente ele passa por cima dela com um pulo desengonçado a ignorando totalmente e desaparece na mata arrastando a marreta atrás de si, ele era inacreditavelmente ágil mesmo com todo o seu tamanho. O som de mata se partindo ainda continua por alguns instantes até desaparecer.

Mariah se via agora deitada no chão do bosque silencioso enquanto se apoiava em seu cotovelo, com a cabeça pendida pro lado e os olhos arregalados fixos na direção em que o palhaço fugira, seu coração batia tão acelerado que poderia saltar de sua caixa torácica a qualquer momento e sua respiração ofegante se assemelhava a um corredor de maratona nos metros finais. Tentando se acalmar ela vasculha o lugar a procura do estranho que tinha caído sobre ela, mas sem sucesso, então ela se levanta e caminha para onde ela pensava que ele tinha ido.

Sem aviso prévio uma mão a levanta do chão pelo pescoço e ela escuta o som de algo girando muito rápido, como um motorzinho de dentista, só que maior. Ao abrir os olhos, fechados automaticamente pelo susto, ela vê o mesmo jovem apontando um disco afiadíssimo para seu rosto, o disco girava em uma velocidade absurda sob a palma de sua mão como mágica. Seus olhos verdes estavam focados nela como se fossem faróis, mas ele parecia aturdido.

— Quem é você? – Pergunta ele em um tom autoritário e desconfiado – como você pode estar sem máscara?

— Máscara? –Mariah pergunta desnorteada e quase sem fôlego com a mão apertando seu pescoço.

— Não se faça de idiota, perguntei quem é você, me responda ou eu corto sua cabeça fora – ele parecia mais nervoso.

— Eu sou Mariah, Mariah Dixon de Minnesota, me solta, não consigo respirar!

— Mi-minne-sota? – Ele parecia mais confuso ainda enquanto a media de cima a baixo, seus olhos expressando claramente sua confusão, até que ele parece ser atacado por uma resposta interior a sua pergunta passada – você é... humana?

O rapaz a solta e ela atinge o solo de joelhos arfando. Mariah coloca a mão no pescoço dolorido e se curva para o chão recuperando o fôlego. Enquanto isso o homem dá dois passos largos para trás como se fosse despencar enquanto suas mãos viajam por sua máscara, passando por seus cabelos e entrelaçando seus dedos na nuca, onde ficam lá por alguns segundos antes de despencarem enquanto ele inicia uma marcha em círculos.

— Deve ser mentira, não tem como...

— Eu ser humana? - Pergunta ela ainda com a voz forçada, ela estava muito confusa e com dores na garganta.

— Eu... me desculpa, mas como... como você veio parar aqui?

A garota se sentia acuada, não sabia se poderia confiar nele, até porque depois do que ele fez, perdera pontos importantes com ela.

— Meu lorde, eu quase matei uma humana... – ele estava sangrando na cabeça, mas apenas se preocupava por ter quase matado uma “humana”. A garota se perguntava se ele era um daqueles naturalistas que vão para a floresta sobreviver com um graveto, mas aquelas vestes e aquele disco mostravam o contrário.

— Quem é você? – A garota pergunta mesmo temendo a reposta.

— Meu nome é Shura.

— Shura como o do anime?

— Não – responde ele se virando e colocando as duas mãos na cabeça aturdido, sem perceber que uma delas ficara manchada com seu sangue – Shura como o deus. Sabe, Ashura, do hinduísmo.

— Ah, você tem o nome de um deus?

— Não, eu sou o deus. Na verdade, semideus... é uma história longa.

Mariah trava com a informação e depois cai na gargalhada, se dobrando um pouco para frente e levando a mão novamente ao pescoço que doía com o riso, para ela, era apenas um louco qualquer.

— Eu sou Vishnu então, muito prazer – diz ela em meio a gargalhadas.

— Boa tentativa, mas ela morreu ontem por causa de Apolo.

— Apolo é da mitologia grega... – ela para de rir e fica confusa.

Ele não responde, parece confuso e perdido, tanto quanto ela.

Shura para por um instante e Mariah vê o sangue pingar de dentro da máscara dele e achou por bem ajudar, pois ele poderia ser alguém perdido como ela que acabara por enlouquecer.

— Deixa eu ver esse machucado, pode precisar de pontos, eu fui enfermeira voluntaria na escola.

Ao tocar na amarração da máscara do rapaz ela brilhou e ele se virou com um tapa na mão da garota, a assustando.

— Não toque nisso!

— Eu só quis ajudar seu maluco! – ela protesta.

— Me ajuda muito se me deixar pensar.

— Pare de agir como um deus, temos que sair daqui.

— Tem razão, tenho um lugar em que eu posso te levar.

— Eu não vou a lugar nenhum com um deus fajuto como você.

— Eu sou um semideus.

— Que seja.

— Não acredita em mim? – Ele pergunta tentando se acalmar.

— Me prove então. Me diga uma coisa sobre mim que só um deus saberia.

Ele então suspira e agarra o braço dela, forçando-a a se mover a contragosto. Os dois vão na direção contrária à do palhaço.

— Eu entendo o quanto isso soa estranho para você, vai ter suas respostas no seu tempo, mas se esse é o único jeito de te convencer, lá vai: No fim do ensino primário você orou para que sua colega de classe se machucasse na aula de educação física para você finalmente ficar no time do menino que você gostava na época, qual era o nome mesmo? Josh? Sim, era isso, mas quando aconteceu por coincidência você chorou uma semana escondida toda a noite se achando uma pessoa horrível e fazendo orações para que Deus a castigasse. Como era mesmo? “Me desculpe por existir, meu coração é podre”.

A garota arregala os olhos e deixa seu corpo parar por um tempo, fazendo com que o homem tenha que a puxar novamente. Tudo o que ele disse era verdade, até os detalhes que ela mal lembrava, mas nem seu pai ou sua mãe sabiam disso.

— Como você...

— Vamos, quero te levar a um lugar seguro, não temos tempo – ele corta.

Ambos entram no bosque fechado em silêncio, a cabeça de Mariah girava mais ainda agora.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Contenda Divina" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.