A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 2
Acampamento




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786912/chapter/2

A brisa fresca da manhã se condensava no vidro do carro enquanto ele se movia pela sinuosa estrada que cortava a lateral de uma das faces da montanha. Ao fim da queda, uma gigantesca floresta subia a região montanhosa, formando um imenso tapete verde ao pé da cordilheira, recortado apenas pelo lago e o curso do rio que o mantinha cheio. As cordilheiras se elevavam imponentes ao fim da floresta, com seu cume enevoado e branco, seu corpo rochoso acinzentado e seu formato de parede cônica.

De dentro do carro, Mariah observava a paisagem através do vidro embaçado, limpando-o com a manga do casaco marrom sempre que a imagem se tornasse turva demais, no vidro ela também observava seu fraco reflexo contemplativo. Ao seu lado, seu irmão Jonah dormia profundamente, tombado para o lado enquanto roncava de leve e uma fina linha de saliva pendia de sua boca entreaberta. O barulho do irmão incomodava a garota desde que a família saiu de sua casa às cinco da manhã, o garoto de treze anos tinha caído no sono automaticamente assim que pisou no automóvel depois de dar um pequeno show para tentar não vestir a blusa de frio verde de sempre.

Junto a eles estavam o pai da garota, Jorge e sua madrasta, mãe de Jonah, Emily. Os dois tinham se conhecido há alguns anos e logo se casaram, essa era uma das muitas viagens que eles faziam em família para a reserva, ter um pouco de contato com a natureza. Desde o início Mariah gostou muito de Emily, como se visse uma segunda mãe na mulher, mas as vezes, o excesso de proteção dela a incomodava, pois mesmo tendo 17 anos a mulher a tratava como uma criança, o que por vezes era irritante. Juntando isso ao fato de ela sempre xeretar em sua vida sem sua permissão, fazia com que a garota, as vezes, visse Emily mais como uma intrometida que alguém preocupada com ela.

Mariah viajava em seus pensamentos enquanto admirava a paisagem quando escuta a voz de seu pai a chamando:

— Acordem crianças, – ele dizia tocando a perna de Mariah com a mão direita, mantendo a esquerda no volante – estamos chegando.

— O que? Quem? Hã? – Exclama o garoto acordando em um salto, olhando o redor com uma expressão perdida e esfregando os olhos.

— Nós chegamos querido – diz Emily de forma doce sem olhar para eles, mas a julgar por suas maçãs do rosto protuberantes estava sorrindo como sempre.

A garota observa o carro manobrar e entrar de ré em um leve tremor por uma pequena estrada de terra cercada por cercas de madeira, que acabava poucos metros antes de um lago meio escondido por algumas árvores altas. O lugar era lindo. Para onde quer que olhasse os altos pinheiros balançavam com a brisa como se os saudassem timidamente, aos pés destes um lago natural de água verde-cristalina permitia que o vento fizesse pequenas ondas em sua superfície. Mais acima, um rio alimentava o lago em uma pequena cachoeira que morria em pedras que transformava a água em uma espuma branca, mais a baixo o mesmo rio seguia seu fluxo após uma pequena queda d’água, levando as águas do lago para algum ponto por entre a floresta. E por fim, uma montanha enorme se erguia como um colosso ao fundo na paisagem. Suas dimensões eram tão grandes que a flora do lugar mudava com a altura, passando de arbórea para rochosa e gelada. Em seu cume um manto de neve fazia a garota se lembrar de um grande banana-split de chocolate com exceção da cereja no topo. Por um instante ela se divertiu imaginando uma grande frutinha vermelha lustrosa do cume da montanha.

Mariah é uma das primeiras a descer, ela se livra rapidamente do cinto com um movimento rápido de uma mão enquanto a outra abre a porta pela alavanca, assim que ela coloca os pés na terra batida do local de camping, ela anda um pouco à frente do carro e observa o lugar, abaixo de si folhas secas e galhos se partiam, fazendo um som agradável de floresta. O vento lambia seu rosto e bagunçava de leve seu cabelo, que por estar solto vai um pouco em seu rosto, fazendo com que ela tenha que segurá-lo atrás de sua orelha instintivamente. Seus olhos brilhavam, ela mal podia esperar para desenhar um pouco aquele lugar.

Além de perder uma boa parte do seu dia na escola, a garota de cabelos castanhos também se dedicava a seus hobbies, o principal deles era desenhar paisagens em seu caderno de desenho. Nesse instante, o mesmo estava caprichosamente deitado sobre o banco do meio na parte de trás do carro e ela mal podia se conter para pegá-lo.

— É lindo, não é? – Diz o pai segurando a garota pelos ombros assim que todos descem do carro – foi aqui meu primeiro encontro com Emily.

— Pai, por favor – protesta a garota sorrindo – você já me contou umas mil vezes sobre o acampamento hippie.

— Ele não era hippie Mariah – ele protesta olhando para o lugar com uma expressão de nostalgia e um leve sorriso nos lábios pelo comentário da garota.

— Claro que era: tinha gente cabeluda, música ao vivo, bebida, drogas, um lugar ao céu aberto para aplaudir a lua... era um encontro hippie.

A explicação da garota faz todos rirem, Emily que dava a volta no carro para abrir o porta-malas, resolveu se juntar aos dois e também repreender o pai:

— Era um acampamento hippie sim Jorge, admita. – diz a mulher se aproximando dos dois e abraçando a cintura do homem, apoiando sua cabeça em seu ombro, eles eram quase do mesmo tamanho, então ela conseguia fazê-lo sem grande esforço. O homem responde o gesto deixando sua cabeça se apoiar sobre a dela. Mariah se livra do abraço dos dois a tempo de não parecer estarem posando para uma foto em família para cartão postal e vai pegar suas coisas no carro.

— Até tu, Emily? – Diz o homem em tom dramático abrindo os braços da mulher que envolviam, girando o corpo e a puxando para si para que ficassem cara a cara, Emily, por sua vez, passa seus braços por detrás da cabeça do homem, os apoiando pelos cotovelos sobre seus ombros.

— Mas tudo bem, – diz a mulher o puxando para si pela nuca e o beijando – agora você parece mais um pai normal.

— Hey! – Protesta ele em meio o beijo.

— Ah não pessoal, aqui não - diz Jonah carregando uma mochila que parecia pesada demais para ele, o fazendo inclinar para o lado oposto para balancear seu centro de gravidade.

— De onde acha que os bebês vêm docinho? – Diz a mulher o olhando com uma expressão maliciosa enquanto encosta a cabeça no peito do homem.

— Mãe! – Grita o garoto corando.

A reação espontânea do jovem faz com que todos riam alto, enchendo a clareira perto do lago de alegria em meio ao dia cinzento.

***

Após um rápido lanche, todos terminam de tirar a bagagem do porta-malas do carro. De lá de dentro saem três barracas, três colchões de ar, uma bomba de pressão, utensílios de cozinha, espetos de aço e algumas varas de pescar, além de duas caixas de isopor com as comidas e bebidas. Parecia tudo ali. As mulheres se encarregaram das barracas enquanto os homens limpavam o lugar e montavam as demais coisas. Mariah montava a sua com igual destreza de Emily, ambas quase apostavam quem terminaria primeiro, mas para infelicidade da mulher ela pegou a barraca do casal, que era maior que as demais, deixando a jovem em vantagem.

Em poucas horas estava tudo pronto.

— Muito bom pessoal – diz Jorge limpando o suor que brotava de sua testa com a manga da camisa que antes estava sob o casaco, este já aposentado no galho de uma árvore próxima – agora preciso de um ajudante para pegar as pedras e a madeira para a lareira, alguém se habilita?

Todos se entreolhavam em olhares nervosos, mas ninguém respondia, o que constrangia o homem.

— Vamos lá pessoal, alguém? - Ainda nada, ele continua - Jonah...

— Pai – corta a garota – que tal se fizermos o seguinte: as garotas pegam a lenha e vocês pegam as pedras, que tal?

— Ótima ideia Mariah! – exclama ele aliviado de se livrar de um clima constrangedor - Então, nos encontramos daqui meia hora aqui mesmo, não vão muito longe.

Todos assentiram. Maria e Emily seguiram para o sul onde o bosque se adensava em busca de madeira seca, enquanto Jorge e Jonah rumaram para o norte em busca das pedras perto da pequena cachoeira.

Durante a procura, as duas garotas iam conversando alegremente, entrecortando a fala ao encontrarem alguma madeira que podiam usar:

— ... e ai eu descobri que no final ele era o pai do protagonista o tempo todo – continua Mariah sobre o livro que ela tinha acabado de ler na viagem, leitura era um dos outros hobbies da garota.

— Tá brincando! – Exclama a mulher com uma expressão estupefata no rosto enquanto olha para o chão em estase.

— Viu só, eu disse... achei mais uma! Eu disse para você terminar ele antes de me perguntar o final.

— Eu sei, – a mulher diz enquanto se abaixa para pegar uma madeira que parecia boa, mas que desmancha em sua mão, fazendo ela franzir a o cenho – mas é que eu achei o desenrolar da história muito lenta por causa da maneira do autor escrever de forma muito criteriosa e detalhista, então achei que não valia terminar.

— Leigo engano Emy, leigo engano – lamenta a jovem sacudindo a cabeça.

— Eu sei, mas você sabe que quem tá perdendo algo aqui é você, mocinha;

— Eu juro que quando chegarmos eu vou assistir Star Wars com você Emy, você já me cobra por meses isso, só acho que não vai ser tão boa quanto a trilogia principal.

— É perturbadora sua falta de fé – diz a mulher fazendo uma concha com a mão esquerda sobre a boca para imitar o som da voz de Darth Vader.

Ambas riem bastante da imitação.

— E a escola Mariah, como vai? – Puxa assunto Emily depois de um breve silêncio.

— Tá bem Emy, acho que vou entrar para a faculdade sem problemas se continuar como vai – responde a garota pegando uma tora seca do chão com alguma dificuldade.

— Fico feliz por você Mariah, seu pai vai ficar muito orgulhoso, assim como eu.

Esse era um dos dons da mulher: ser muito atenciosa e carinhosa, talvez esse fosse um dos motivos que fez Jorge se apaixonar por ela. Além disso, sua beleza física era evidente: tinha quase dois metros de altura, cabelos longos e castanhos, olhos verdes que pareciam pérolas e um rosto fino e harmonioso. Sua pele de um branco quase moreno mostrava sua origem mestiça e seu corpo esguio sob roupas simples, porém bem escolhidas, a faziam ser elegante mesmo não sendo consumista.

Jorge, ao contrário, é forte, com ombros largos e queixo quadrado. No rosto uma expressão despreocupada e olhos castanhos. Seu cabelo era negro e se conservava curto, porém vivia bagunçado para um lado, muito diferente de cinco anos atrás, quando tinha um cabelo longo e ondulado, era magro e usava óculos fundo-de-garrafa, hoje ele prefere as lentes de contato. A única coisa que sobrara da época foi a tatuagem no braço de um trevo de três folhas, fruto de uma viagem em que ele imaginava ser um símbolo que o traria sorte.

Depois de algum tempo andando e conversando animadamente, elas entram em um assunto delicado para Mariah:

— Mas então, sobre a escola ainda, os bullyings... – a mulher engasga, ela sabia que esse era um assunto delicado, mas ela estava preocupada com a garota e decidida em conversar sobre – eles pararam?

A garota mede as palavras por um momento em um suspiro e, por fim, a responde:

— Eu não ligo para elas, não tem como agradar a todos. - fala a garota dando de ombros.

Por ser popular e ter uma personalidade marcante, Mariah era alvo não apenas de olhares maliciosos, mas também de inveja. Por vezes ela fora emboscada na saída da escola por um grupo de garotas que se sentiam intimidadas, mas ao contrário do que se pensa ela nunca se importou, ela até mesmo ignorou as ameaças achando que nada demais aconteceria. Até que um dia ela foi agredida por três colegas de classe. O motivo? Ciúmes, nada de novo. Depois disso os ataques tomaram uma frequência irritante uma vez que a garota não as dedurou. Os métodos, por sua vez, se tornaram reflexo de uma criatividade maligna e sutil, variando desde tinta em seu armário, fotos tiradas de forma anônima no vestiário vazadas para as classes, até cortes de mechas de cabelo, o cabelo de Mariah costumava ser mais longo, mas depois de um último atentado que sofrera, tivera que cortar uma parte considerável dele, foi aí que seus pais ficaram sabendo do ocorrido e tomaram medidas.

Porém, ao contrário do que gostariam, isso só serviu para adicionar uma sutileza aos maus tratos, pois eles não pararam por aí.

— Elas não pararam de te importunar, não é? – Diz a mulher se aproximando da garota enquanto disfarçava seu movimento pegando uma casca de arvore seca.

— Eu já disse Emily, eu não ligo – responde a garota sem muito entusiasmo.

— Eu sei que você é mais madura que elas, mas você precisa se defender, ou pelo menos pedir para que alguém te auxilie.

— Eu sei me cuidar – responde a garota agora com um pouco de ira no tom de voz, odiava a ideia de depender de alguém, ainda mais quando o assunto era sua segurança – já tenho 17 anos, posso dar conta de meus problemas sozinha.

— Mas Mariah, você está sofrendo ameaças e até sendo agredida constantemente, não acha melhor que...

— Emily, chega! – Exclama a garota de forma incisiva, a mulher interrompe a frase com o susto.

— Mariah...

— Vou procurar madeira perto do escoamento do lago – diz em tom decidido a garota.

— Eu vou com você – fala a mulher indo em sua direção.

— Não, eu vou sozinha e não me siga.

— Mas e se você se perder, garota?

— Eu sigo o rio.

Mariah acelera o passo e deixa Emily para trás, a observando se afastar imóvel.

Em sua cabeça a raiva impedia seu pensamento lógico, ela ia na direção do rio procurar madeira seca, o que não faz muito sentido pela umidade do lugar, mas para ela não importava, já que seu objetivo principal era ter um pouco de tempo para si.

— Quem ela pensa que é? – Resmungava da boca para fora enquanto andava sem rumo, apenas seguindo o som do rio.

Assim que chega ao rio, Mariah solta a madeira que carregava em um canto e se senta na areia. O fluxo de água constante formou um sulco profundo na rocha do lugar, que com o tempo se tornou algo próximo de uma ribanceira às margens do curso d’água. Mariah observava o rio de cima dessa ribanceira enquanto pensava por um bom tempo no que tinha feito. O fluir sereno da água acalmava a garota e o clima ameno perto do rio resfriava seu corpo quente pelo esforço, a fazendo relaxar um pouco depois de um tempo e a obrigando a pensar melhor.

Olhando o horizonte, para depois do rio, ela solta um suspiro longo enquanto pensa.

— Que idiota eu fui – diz ela em voz alta para si mesma.

A culpa começava a se formar, mas o orgulho a mantinha no lugar como duas forças brigando entre si dentro dela. A garota admirava a paisagem e sentia o frescor da brisa do rio enquanto tentava se esquecer do ocorrido, mas ele ainda martelava sua cabeça de uma forma irritante, até ela se cansar e decidir se desculpar. Não tinha se passado muito tempo, então ela ainda encontraria a mulher em sua tarefa.

Ao se levantar, Mariah percebe um barulho na mata logo atrás dela. Sua espinha é percorrida por um frio que a fazia tremer e ela perde as forças para se virar, ficando parada com as costas arqueadas no meio do movimento de se pôr ereta. O som de algo se aproximando ficava cada vez maior e vinha em sua direção, os instintos dela estavam falando por si só em sua cabeça e todos diziam “corra”, antes que se desse conta, seus músculos agiram por ela e ela se pôs a correr de forma desesperada, descendo o rio em sua margem, para o lado oposto ao acampamento.

Mariah corria tão rápido que seus pés doíam dentro da bota de camping que ela usava, mas essa dor não a impedia de continuar. O que realmente impediu seu avanço foi um inesperado buraco na mata escondido por folhas. Sem que ela o notasse, Mariah pisou com todo seu peso na armadilha natural e afundou de imediato, batendo com a sua cabeça em uma ponta de rocha.

O buraco tinha sido formado de forma semelhante ao sulco na rocha, séculos de uma fina água corrente da nascente lavaram e desgastaram-na o bastante para formar uma miniatura do Grand Cânion grande o bastante para uma adolescente despencar nele e com bordas irregulares o bastante para que essa adolescente se chocasse e perdesse a consciência e foi o que aconteceu.

Assim que ela chegou ao fundo da fenda, ela sentiu seu corpo desfalecido pelo impacto na cabeça afundar, mas seus sentidos ainda funcionavam minimamente. Com o fluxo d’água corrente ela foi empurrada para cima enquanto boiava em direção ao rio, podendo ver de relance a sombra do que a perseguia. Era uma figura humana, que carregava consigo algo parecido com um cajado e trajava algo parecido com um vestido branco de seda, seu rosto, porém, estava invisível pela sombra das árvores.

Após ver isso ela sentiu apenas a água carregando seu corpo imóvel, ele flutuava calmamente e era levado pelo rio para algum destino ignorado. Um choque percorre seu corpo em algum momento e ela vê uma claridade suficiente para clarear seus olhos sob as pálpebras cerradas, Mariah tentava se manter consciente de olhos fechados, mas sentia fortes náuseas e muita dor na têmpora. Por fim, ela decide de lutar contra seu próprio corpo e deixa o rio a levar até a praia mais próxima. Antes de sentir seu corpo ser empurrado areia a dentro, ela apenas escutava o som da água no seu ouvido e a claridade passando por suas pálpebras, ela não sabia o quanto ficaria assim, mas não importava mais, a garota finalmente desmaia e afunda nas águas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Contenda Divina" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.