A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 16
Conhecimento tortuoso


Notas iniciais do capítulo

Passando para avisar que por motivos pessoais, a partir desses capítulos irei postar apenas dois capítulos semanais (preferencialmente) às segundas e não dois na segunda e dois na sexta como fazia, conto com a compreensão de vocês. Boa leitura!



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No ventre da mata, três seres se locomoviam entre a vegetação em silêncio, cabisbaixos, em um movimento contínuo, lento e totalmente encobertos pela escuridão que já ia alta, entrecortada por raios prateados de luz da lua que lutavam não apenas contra os pomposos pinheiros do lugar, mas também com as nuvens pesadas de chuva que vez ou outra a bloqueavam.

O vento frio que vinha da avançada madrugada balançava tanto as folhas das altas árvores de troncos verticais, quanto as roupas das três pessoas que se esgueiravam pela mata, em especial a roupa da pessoa do meio, que vestia um casaco em frangalhos maior do que ela, segurando-o com as mãos cruzadas diante do peito para que não saísse voando. Mariah perdera a conta de quantas vezes cochilou em pleno movimento, para ela, era como assistir um filme em um disco de DVD danificado: a cena prosseguia, travava em um certo ponto e no instante seguinte já tinha avançado uns bons segundos. O que a mantinha desperta nos intervalos entre seus apagões era uma dor já familiar em seu abdome, onde um punhado de ervas estranhas e bandagens manchadas de sangue tapavam um ferimento de flecha. O embate que o causara parecia distante em sua cabeça, podia ter sido há dias, horas, minutos, não fazia diferença, tendo dormido por tanto tempo e em seguida passado boa parte da noite em claro, Mariah perdera a noção do quanto o tempo correra de lá para cá, até onde podia dizer, poderia ser domingo e ela nem saberia, a não ser que seus dois amigos se desmanchassem em pó colorido

O estranho trio seguia em um silêncio sepulcral e tenso, andar em uma mata fechada com pouca visibilidade e uma fauna noturna ativa deixava os nervos de todos a flor da pele. Apesar disso, ao contrário do que se espera, eles não estavam completamente alertas, na verdade, dois deles vinham seguindo um terceiro completamente absortos em seus próprios pensamentos.

Eyria era quem liderava, depois de conquistar o lugar em uma rápida discussão com Shura, que para variar teve de juntar o que sobrara de sua autoestima ao final. Atrás dela, vinha Mariah, andando a passos vagarosos e vacilantes, enquanto segurava a lateral do abdome com a mão, tapando com zelo o doloroso ferimento conseguido no dia anterior. Por fim, vinha Shura, que cuidaria da retaguarda após Eyria, nada gentilmente, cuspir em sua cara o quanto ele apanhara para um semideus que o pegou de surpresa graças à sua falta de perícia de rastreador. Nesse momento, porém, isso era a última coisa que incomodava o semideus. Tudo que ele se limitava em fazer era observar a nuca de sua protegida que ia a sua frente vacilante, tentando entender o que ela passava, além disso, ele também se sentia sufocado pela visão incomum que tivera mais cedo.

Um movimento rápido a direita dos três faz um calafrio percorrer o corpo de Mariah, ao mesmo tempo, uma sensação desconfortável toma Shura e Eyria, os fazendo parar. Como se previsse o que estaria por vir, a garota sente uma mão a segurar pelo calcanhar e no mesmo momento o mundo vira de cabeça para baixo e seu sangue sobe para suas têmporas.

Impotentes, Eyria e Shura observam Mariah soltar um grunhido de surpresa e desaparecer diante deles em uma lufada de vento gelado. Os dois se entreolham por um momento, os olhares arregalados sob as máscaras e congelados em um terror complacente. Shura gira nos calcanhares e corre na direção em que o raptor parecia ter ido.

— Shura, espere! – Grita Eyria, mas já era tarde, ele sumira diante dela como Mariah. Ela suspira em desaprovação – Seu grande filho da... – ela também some atrás de um pinheiro.

Mariah sentia a cabeça quente com o excesso de sangue passando por ela quando finalmente abre os olhos. Um homem absurdamente alto e forte a observa com uma máscara de algo que parecia um pelicano, um grande bico pontiagudo escurecido na ponta apontava para ela, enquanto dois pequenos olhos vermelhos a observavam por detrás de pequenos furos na máscara. Ao lado dele um pesado livro com uma espécie de olho adornado gravado nele flutuava sobre sua mão espalmada para cima, entre a palma e a cabeça pendida que ora observava a menina, ora fitava o livro. O mesmo se folheava loucamente para frente e para trás, como se um fantasma estivesse buscando algo.

— Interessante – falava o semideus como que para si mesmo – muito interessante.

A luz fraca e pálida da lua que incidia diretamente sobre as páginas amareladas do livro foi obstruída por uma nuvem de chuva que passava ao largo, revelando assim que elas brilhavam em um tom roxo luminescente que o fazia parecer um aparato de boates, não que Mariah fosse em muitas. Maravilhada, Mariah esquece por um segundo que estava sendo suspensa pelo calcanhar pelo homem, mas uma dor nova em seu ombro faz com que ela volte para a realidade. Sem que ela percebesse, o homem tinha deixado o livro pairando no ar e com suas unhas em formato de garras, tinha a perfurado, fazendo com que um pequeno filete de sangue se projetasse do ferimento.

— Ai! – Exclama ela, lembrando da faca que jazia escondia em suas costas.

Ele dá um solavanco, com o corpo rijo em perplexidade, os olhos arregalados e de írises pequenas a fitavam com espanto e curiosidade, o semideus agora a segurava o mais distante possível do corpo, com o braço grosso e torneado como um tronco esculpido, totalmente esticado para frente.

— Você, é capaz de falar a minha língua? – Diz ele de forma lenta e teatral, como se estivesse falando com um turista que mal sabia dominar sua língua nativa.

— Eu... – Mariah se sentia perdida, mas não queria arriscar perder sua chance de escapar – sim, eu consigo- completa ela.

— Interessantíssimo! – Exclama o semideus mais do que animado.

Uma pena multicolorida aparece sobre o livro, e sem que o homem precisasse tocá-la, ela começa a escrever. Nesse interim, ele observa seu indicador ainda úmido pelo sangue da garota com tranquilidade, girando-o de um lado para o outro, levantando-o para que a luz prateada o iluminasse.

— Hum – grunhe ele, submerso em milhões de pensamentos – vai servir.

O semideus inclina a cabeça para trás e em um movimento de arco descendente, ele mergulha a unha ensanguentada na ponta do bico entreaberto. Mariah observava a cena atônita enquanto o homem tremia de leve, como em transe, enquanto saboreava demoradamente o sangue de sua presa. Depois de se encontrar com Daikokku, ela sabia reconhecer um lunático quando via um.

Shura corria o quanto podia, fatiando moitas e socando árvores que ousavam ficar em sua frente. Ele mal sentia suas pernas tocarem o chão enquanto corria a toda velocidade desviando habilmente de seus obstáculos ou simplesmente os destruindo. Mas mesmo com toda sua esperteza e perícia em seus movimentos, por um instante sua mente divaga novamente para a visão que tivera e como que em um momento de carma ruim, o semideus tropeça em um grande tronco oco caído coberto pelo musgo e pela escuridão, fazendo com que ele se rompa sob seus pés e projetando o semideus como uma bala perdida para frente, onde ele se choca com o braço esticado em defesa contra um caule grosso o bastante para apenas trincar com o impacto. Ainda aturdido, ele se levanta tentando se apoiar, mas uma dor fulminante o surpreende.

Shura, então, o observa seu braço e o encontra torto, parado em uma posição estranha logo a baixo de seu cotovelo.

— Merda! – geme o homem com os dentes serrados. Os semideuses têm uma resistência sobre humana a dor, mas uma dor é uma dor e um braço quebrado não era exatamente indolor e fácil de ser curado.

Respirando fundo, ele segura o antebraço torcido para trás e o observa por um breve instante. Não parecia tão ruim, apesar de ele ter ganhado um joelho em um lugar inusitado, porém, o que mais o chateava era o que viria a seguir. Depois de ter certeza do que tinha que fazer, Shura agarra com um pouco mais de pressão o punho, fazendo uma dor amarga percorrer o seu corpo e se depositar em sua língua, em um movimento mais ou menos preciso, ele gira o antebraço no sentido horário. Shura sente sua alma sair do corpo, seu braço todo adormece, depois dói como se fosse se soltar do corpo e em seguida é tomado por um milhão de formigas o percorrendo de cima a baixo, fazendo o semideus cair sobre um dos joelhos. Tomando coragem depois de uma náusea momentânea, ele observa novamente o braço, ele estava em um tom estranho de roxo e a pele sobre o ferimento parecia um pouco torcida, mas para sua surpresa o inchaço e a torção não eram a únicas protuberâncias que ele via sob a camada cutânea, ele tinha girado demais o braço e um de seus ossos não voltara para o lugar. Respirando mais fundo e socando a árvore ao seu lado, o que cria uma nova rachadura no caule, ele pragueja todos os generais divinos de uma vez com olhos marejados de ira e dor, depois, segura novamente o seu punho inchado.

O homem com a máscara pelicanídea parece ter terminado o seu ritual, escrevendo o que quer que seja em seu livro com atenção, seu olhar perdido nas páginas rabiscadas pela pena que dançava sobre elas. Mariah, sorrateiramente, sentira que o punho de sua adaga estava sob a palma de sua mão e esperava o momento certo para atacar. Com o semideus absorto em seu livro, ela junta toda a coragem que tinha dentro de si e a desembainha, girando o braço em riste o suficiente para fazer um corte na altura do antebraço do homem. Com o susto do corte, ele dá um passo para trás e solta a garota, que cai de costas em um gemido e rola para o lado, temendo um ataque em retaliação. Olhando para frente assim que para de girar, Mariah vê o homem a observando enquanto segurava com a mão oposta o corte que sangrava. Ao seu lado, não havia mais um livro de páginas estranhas, mas um cajado de uma madeira escura que ostentava em sua extremidade uma cabeça de pássaro parecida com a de seu dono, de olhos cravados com rubis e bico de ouro e prata.

— Incrível! - Exclama ele, extasiado. – Realmente você é capaz de falar e pensar, isso é... – Ele estanca, o tom de voz excitado – Isso é esplêndido!

Mariah se coloca de pé, inconscientemente ficando em posição de ataque com a adaga colada ao punho, mas o movimento de ficar ereta projeta uma dor aguda no abdome da garota, fazendo com que ela perca o equilíbrio por um momento, suficiente para o homem pairar os olhos sobre o ferimento, fazendo uma expressão oculta de preocupação.

Ele caminha em direção a garota, sem pressa, a fitando de cima a baixo. A imagem de um homem de quase três metros de estatura, de cabelos longos e dourados, com braços fortes como um levantador de peso adornados com pulseiras de ouro desenhado e o corpo forte a mostra até o quadril faz Mariah estremecer, mas a adrenalina que corria em seu corpo a faz se mover mais rápido que ele. Em um ataque desesperado ela se lança sobre o homem, subindo o braço armado com a adaga na diagonal da esquerda para a direita.

O homem, pego de surpresa pelo ataque para um centímetro antes que a adaga pudesse atingi-lo, observando-a com certa admiração: para ele, aquele ser impotente tentando inutilmente lutar para se proteger era ao mesmo tempo cômico e fascinante. Mariah, sem se deixar abater, dá um passo para trás, estudando o homem, depois, se lança para frente em um ataque pontual, com as duas mãos segurando a faca apontada para a base da barriga do gigante a sua frente. Ele, por outro lado, gira no lugar e o ataque da garota passa ao largo de seu corpo, divertindo-o.

Nesse momento, o som de algo metálico vibrando com o atrito contra o ar, passa rente à Mariah, que tomba no chão no fim de seu ataque. Olhando para trás, ela vê o homem pendido em uma posição estranha, com o corpo inclinado para trás como que para desviar de um soco invisível, mas seu peito sangrava com um corte profundo que quase o cortava em dois, formando uma linha reta e profunda que ia de um lado do corpo ao outro. Mais à frente, a cerca de bons cinco metros, um grande leque de quase dois metros de envergadura aberto jazia fincado ao solo, sobre ele, imponente, uma semideusa de roupas curtas e luxuosas e um gato brilhando em ódio observava seu alvo com os braços cruzados, com um outro leque igual ao primeiro preso em suas costas.

— Você é rápido – exclama ela.

O homem, endireita o corpo, mas logo em seguida tomba para frente em um estrondo sufocado, se estatelando no chão.

— Mas não o suficiente. – Completa, triunfante.

— Eyria! – Grita Mariah, com os olhos cheios de esperança e lágrimas.

Ela se levanta com dificuldade e avança ao largo do corpo caído.

— Olá garota – ela chama, rindo-se, mas em seguida sua postura se torna ameaçadora, pousando a mão sobre o leque que estava em suas costas. – Não se mova! - Ela grita.

Antes que Mariah pudesse fazer alguma coisa, um pesado braço de pele escura avança sobre seu pescoço e a alça para cima, fazendo seus pés se debaterem de imediato.

— Você é a dona desse espécime, semideusa da ilusão?

Eyria estanca por um momento, não apenas por ele saber quem ela era, mas por saber também sobre seu trunfo

— Você me conhece? – Pergunta ela, tentando parecer indiferente, a vidência do homem começava a irritá-la.

— Mas é claro, eu conheço a todos aqui, é o meu trabalho, mas não me respondeu à pergunta inicial, você é o proprietário desse espécime?

A mulher pondera por um instante, tentando ler a situação. A falta de Shura para um ataque combinado e a distância entre ela e a refém, a impedia de agir, ela precisava entrar no jogo do homem.

— Sim, eu sou a dona dessa coisa – ela grita de volta – e ficaria muito contente se me devolvesse.

— Contente? – Ele pergunta, parecendo confuso – Ficaria contente com esse espécime de volta?

— Ficaria, e ficando contente, eu não preciso socar a cara de um semideus que eu nem sei quem é.

O homem pondera por um instante, depois se ilumina como se tivesse descoberto algo importante.

— Entendo! – Ele vocifera, a voz grave e aveludada saindo animadamente por debaixo da máscara. – Não me apresentei propriamente, como deve ter descoberto pela minha máscara, me chamo Toth, o semideus da sabedoria, esse seu espécime faz parte de um estudo meu, se me permite. - Eyria o olha tensa, nunca tinha o visto por ali e nem sabia como se movia tão rápido a ponto de esconder sua presença.

— Prazer em conhecê-lo Toth – responde ela de qualquer maneira, querendo findar a conversa – eu entendo o que diz – ela mente –, mas temos pouco tempo, tenho que levar essa coisa comigo para o centro do domo se não se importa.

— Coisa? – Protesta a garota em meio ao sufoco. Seu protesto desaparece no silêncio.

— Desculpe-me – ele diz, ignorando a fala da mulher – mas já repararam que esse ser está ferido?

Ele aponta para o ferimento de Mariah e ela gela, parando de se debater.

— Parece bem sério – ele continua – se me deixar continuar a estuda-la, eu posso...

— Não ouse tocar nela! – Grita Eyria, tirando o leque das costas à medida que o outro some sob seus pés, a fazendo atingir o solo de forma graciosa.

— Eu só quero...

Um uivo furioso irrompe da floresta, junto dele, o som de árvores se rompendo faz com que Mariah se lembre do seu primeiro dia ali, a memória faz com que sinta um gosto amargo na boca. Nesse mesmo instante, Shura irrompe da floresta, saltando sobre o homem com uma aura de raiva incondicional, mirando o pescoço do semideus que se virava em câmera lenta tentando entender o que acontecia.

Então, o som inconfundível de músculos, osso e pele sendo cortados se fez presente.


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