A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 15
Traumas do Passado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786912/chapter/15

Para Eyria e Shura, o caminho de alguns passos de distância da entrada da caverna não poderia ser maior. Os dois, que a instantes estavam prestes a iniciar uma feroz luta verbal que poderia, de alguma forma, escalar para uma luta armada, agora corriam esbaforidos na direção da caverna, a passos e respirações sincronizados. O grito que escutaram assim que se levantaram ainda ecoava, desesperado e agudo. Para Shura, a sensação iminente de que ele se desfaria em pó a qualquer segundo era sufocante, Eyria, por outro lado, se preocupava com o potencial quase certo de o grito chamar a atenção de semideuses que poderiam estar vagando próximos a eles.

Depois do que pareceu uma eternidade, os dois finalmente alcançam a entrada do esconderijo, Eyria foi a primeira a entrar, seguida por Shura bem de perto. No interior da caverna já escura, estava Mariah, sentada sob o casaco em frangalhos de Shura que agora apenas cobria suas pernas, com as duas mãos de dedos esparramados e unhas cravadas em sua cabeça ferindo a carne e tapando as orelhas com suas palmas, os olhos estavam fechados com força o suficiente para que ela fizesse uma careta avermelhada e a boca estava aberta em um grito de terror profundo, tudo isso se traduzia uma cena pitoresca e agoniante, iluminada pela fogueira que já morria, enchendo o lugar com uma débil luz avermelhada bruxuleante.

Shura é o primeiro a fazer menção de ir em direção à garota, porém, algo incomum acontece. Antes que ele pudesse se mover, seu corpo congela no lugar levemente inclinado para frente, suas mãos, antes abertas prontas para chamar os discos, agora se cerravam a ponto de os nós de seus dedos ficarem brancos, suando frio e tremendo. Sua face sob a máscara se petrificara em uma expressão de terror genuíno e seus olhos de írises verdes e vivas, se tornam opacos e distantes, como se estivesse olhando para além da garota, na verdade, para além da própria caverna, a centenas de milhas de distância dali. Um gosto ferroso toma sua boca e seus dentes pressionam um ao outro em um rangido mudo.

Repentinamente, ele não estava mais lá.

Se estendendo ao seu redor, havia uma pista de decolagem em meio a um matagal, o ar era quente e pegajoso, cheio de insetos que revoavam de encontro ao homem. Ele suava, mas não apenas pelo clima. Para onde quer que olhasse, Shura via hangares pintados em verde-oliva, dentro e ao lado deles, pequenos aviões de metal e madeira pintados de cores multicoloridas, estranhamente familiares.

Sua vestimenta o incomoda, como se usasse uma roupa antiga, olhando para baixo, ele se vê cuidadosamente enfiado em um uniforme bege muito bem passado, que morre em um sapato de couro marrom lustroso e com um casquete ainda dobrado em umas das mãos, apesar do calor atmosférico o fazendo transpirar, ele sente emanando de si um cheiro de colônia, das mais baratas possíveis. Parado no meio da pista, ele olha para os lados, desnorteado, era como um sonho dentro de um sonho, ele não lembrava como chegara ali, apenas de estar em um lugar e épocas totalmente diferentes e acordar em uma situação estranha, ao mesmo tempo que familiar, como aquela.

Antes que pudesse sair de seu torpor, ele escuta um chiado agudo e o ar explode ao seu redor. Um dos pequenos aviões que estava ao seu lado se transforma em uma gigante bola de fogo de imediato e ele sente seu corpo levitar, pousando desengonçadamente sobre o ombro quase dois metros adiante, o que irradia a dor por todo seu tronco. Ainda sem entender o que acontecia, com os ouvidos ameaçando explodir com a pressão repentina da explosão e o ombro em uma posição estranha, Shura se senta e avalia o seu entorno mais uma vez: tudo que ele vê são explosões, vindas dos aviões, de dentro dos hangares que expeliam as pesadas portas de metal e até mesmo do meio da pista, formando crateras profundas no concreto pobre, mas além disso, ele também via pessoas, elas voavam com as explosões dos projéteis que atingiam o solo perto de si, corriam de um lado para o outro, gritando, em chamas, ensanguentadas, com membros faltando ou até arrastando algum companheiro de farda ferido. Porém, mesmo com todo esse pandemônio que o abraçava, a imagem que melhor captou a atenção do homem, agora chamuscado, foi a de um rapaz pouco mais novo que ele, com os cabelos lambidos de cera todos bagunçados e eriçados, sua a túnica militar manchada de uma fuligem negra e áspera, o rosto sujo, ferido e retorcido em uma carranca de medo, seus gritos de terror se misturando com as explosões das bombas japonesas. O homenzinho jovem balançava para frente e para trás, tapando os ouvidos e cravando os joelhos no peito enquanto alternava entre olhar ao redor e esconder o rosto entre os cotovelos, o pânico do rapaz parecia irradiar para Shura, que olhava a cena desesperado.

O olhar dos dois se cruza e os olhos de Mariah o fitam, depois, eles se tornam dourados.

A paisagem muda novamente, agora ele estava na caverna, a fogueira improvisada ainda resistia bravamente, a mandíbula e as palmas das mãos de Shura doíam com a pressão e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Quem gritava não era mais o jovem soldado, mas Mariah, que se inclinava um pouco mais para frente, sugando o ar ruidosamente com toda força para preparar outro grito estridente em seguida. Uma voz indignada o chamava em um som abafado vindo de seu lado direito, até que algo segura violentamente seu braço chamando sua atenção.

— Shura, o que deu em você? – A voz reverbera, agora em um som mais audível.

Ao se virar, por um instante, o semideus vê em sua frente uma mulher bonita, um pouco mais baixa que ele, com braços fortes e porte atlético, o rosto com traços fortes em uma expressão preocupada, com os lábios vermelhos e vivos pressionados em uma linha esbranquiçada, os olhos azuis penetrantes o fitando confusos. Ao redor do rosto quadrado, madeixas ruivas onduladas pareciam moldar a face da mulher salpicado de sardas. O peito de Shura se enche de um calor terno e ele chega a abrir a boca para falar algo, mas assim como veio, a visão da mulher é arrancada de si, deixando apenas Eyria a sua frente, o sacudindo pelo braço com a destra e rosnando para ele, com os olhos o fuzilando em fúria.

— Droga – exclama ela o soltando com violência e correndo até a garota – esquece.

Eyria corre até Mariah e se ajoelha ao lado dela, pousando as mãos nos antebraços enrijecidos da garota, em uma tentativa de fazer com que ela a escutasse.

— Mariah, – ela chama, mas ela parecia começar a se debater – Mariah, sou eu, Eyria, está tudo bem, abra os olhos, agora!

Mariah gritava ainda mais forte, se debatendo em total desespero, tentando se livrar da mulher sacudindo os braços enquanto tentava a afastar ao mesmo tempo.

— Mariah! – A mulher grita novamente a queima roupa e agarra a cabeça da garota, a obrigando a olhar para si. Os braços dela ainda se agitavam ao redor de Eyria, se chocando contra os ombros arqueados da mulher enquanto ela parecia ainda longe de acabar com o ataque de fúria. – Mariah, olhe para mim, sou eu, droga, você está bem!

Com a repentina pressão em sua cabeça, a garota logo para de balançar os braços e segura o dorso das mãos da mulher com as suas próprias, envolvendo parte delas com suas palmas e por fim abre os olhos úmidos e escorrendo. Por um segundo, Mariah observa a máscara que a fitava com olhos vivos ainda sem entender o que acontecia, até reconhecer sua salvadora. Em um ataque de choro, Mariah solta as mãos da mulher de sua cabeça e a abraça com força pela cintura em um único movimento hábil, enfiando sua cabeça no peito da mulher e desatando um pranto sentido. Eyria, surpreendida pelo ataque da garota, levanta instintivamente as mãos em rendição, depois, em um grunhido de insatisfação, pousa uma delas sobre as costas da garota e a consola com leves tapinhas, enquanto a outra aperta sua calça como uma forma de liberar o que quer que estivesse sentindo.

— Ahh – exala ela, ressabiada e olhando para o teto – tudo bem, tudo bem.

Shura observava toda a cena da entrada da caverna, ainda parado naquela posição estranha. A súbita viagem interna em suas visões o fizera perder a pouca estabilidade que ainda resistia, fazia tempo desde que isso acontecera com ele pela última vez e ele com certeza não esperava por isso logo nessa situação. Girando nos calcanhares ele sai do esconderijo, deixando a mulher, que agora o observava por cima do ombro e Mariah, que soluçava em seu ventre, agarrada às roupas da semideusa.

    Com o pretexto para si mesmo de pegar mais lenha para passarem a noite, uma maneira de diminuir o peso na consciência de as deixar para trás, o semideus se afasta um pouco, tentando colocar as ideias em linha reta na sua cabeça. O flashback que tivera não tinha sido aleatório, ele lembrava muito bem da situação em que estava, não ocorrera exatamente como na visão, mas o desfecho era o mesmo: morte. Enquanto se agachava para pegar cascas mortas e secas, ele repassava tudo em sua mente, era estranho pensar que depois de tantos anos isso aconteceria, mas como ele não havia esquecido sua promessa, era de se esperar que algo assim pudesse voltar a acontecer.

Depois de alguns bons minutos ele retorna, a fogueira já estava em brasas e Mariah ainda soluçava um pouco com a cabeça deitada no colo da mulher, que fazia um estranho carinho em sua cabeça, enquanto seu gato brilhava em tons avermelhados. Ele já não sorria. Assim que levanta os olhos e vê o semideus, Mariah sorri de leve, com os lábios ainda cerrados, o que enche suas bochechas úmidas e aperta seus olhos vermelhos de choro. Shura, sem saber o que fazer, balança a cabeça e mostra as frutas que trouxe junto com as cascas em seus braços.

— Tudo bem? – Ele pergunta se inclinando próximo às duas e soltando a madeira ao largo da fogueira.

— Sim – a garota responde, suprimindo um soluço.

— Que bom – o semideus dispara, novamente mais seco do que gostaria, mas a garota parece não se importar dessa vez, se aninhando mais um pouco no colo da mulher.

Shura sente um arrepio na nuca e seus olhos varrem toda a extensão do caminho entre a fogueira e Eyria, pousando sobre írises interrogativas e furiosas, ele sabia a pergunta que se seguiria antes mesmo dela fazer.

— O que deu em você? – Ela dispara indignada, parando de passar a mão nos cabelos da garota.

— Eu não sei – ele responde, envergonhado.

— Não sabe? – Ela indaga, estupefata – você literalmente travou na frente dela, poderíamos ter sido descobertos se ela continuasse gritando daquela maneira.

— Eu já disse que não sei, você não entenderia nem se eu tentasse explicar – Shura retruca irritado, sua cabeça parecia um turbilhão, e Eyria não ajudava com suas perguntas.

— Shura, eu...

— Por favor, parem... – os corta Mariah, sua voz era vacilante e fraca, quase um sussurro, porém pesada e rouca.

— Mariah... – o homem começa, mas para, sabendo que não saberia o que falar. Depois de alguns instantes com a boca entreaberta, acaba voltando sua atenção novamente para o fogo que agora aumentava aos poucos.

Mariah se levanta em silêncio, limpando as lágrimas que se formavam novamente. Com atenção, os dois semideuses a observam, sentindo certa vergonha por terem iniciado uma briga enquanto ela parecia tão mal. Sem cerimônia alguma, a garota pega uma fruta aleatoriamente e começa a comer segurando-a com as duas mãos, olhando fixamente para a fogueira que agora parecia um pouco mais viva. Seus olhos ainda estavam marejados, mas ela não soluçava mais.

— Você nos deu um baita susto – fala Eyria tentando reatar a conversa, com um tom sereno e um pouco incomodado na voz – teve algum tipo de sonho?

A mera lembrança daquilo fazia o estômago de Mariah embrulhar e seus olhos marejarem novamente, mas depois de um pequeno silêncio contemplativo ela balança a maneia a cabeça de forma afirmativa.

— Como você se sente? – O homem pergunta, emendando uma retificação logo em seguida – com o ferimento, está melhor?

— Estou – a jovem responde sem muita animação – graças à Eyria

— Você sabe o meu nome? – Se espanta a mulher, recolhendo as pernas antes dobradas de lado, para frente.

— Sim, você me disse quando tentava me acordar – Mariah a olha por baixo, encontrando os olhos da mulher que a fitavam com preocupação – eu nunca tive a chance de te agradecer pela ajuda naquele momento, obrigada.

    Shura sente suas orelhas queimarem com o fitar triunfante da mulher como quem dizia “não foi tão difícil, foi?” com os olhos, mas junto a isso, sua expressão, mesmo oculta, era de preocupação, o que evitou que o homem entrasse em combustão ali mesmo com o calor do olhar de Eyria.

— Eu não tinha percebido isso – ela responde, envergonhada.

— O que aconteceu? – pergunta o homem, tentando ter uma participação ativa na conversa que parecia apenas das duas.

— Cara... – Eyria percebe o quanto a pergunta era importuna, mas a mão em riste da garota a impede de continuar. Shura por outro lado, só parecia confuso.

— Foi um pesadelo, para falar verdade – a garota respira, tentando afastar o choro que se formava em sua garganta uma vez mais – eu tinha saído daqui de alguma maneira, encontrei meus pais, voltamos para o acampamento e...

A visão de seu pai e de sua madrasta, mortos um sobre o outro a fazem estremecer de leve, mas o terror de ver seu irmão decapitado com brutalidade faz suas lágrimas retornarem.

— E eles morreram – ela termina, enterrando o rosto nas mãos e voltando a chorar.

De maneira desengonçada, Eyria pousa sua mão esquerda sobre as costas da garota, a acariciando. Depois de um tempo assim, ela descobre o rosto molhado e seca as lágrimas, tentando se manter inteira mesmo depois de se sentir tão quebrada. Shura, em um movimento largo e vagaroso, se levanta e senta ao lado dela, em silêncio, Eyria o observava com atenção, tentando antecipar que outra coisa atravessada e inconveniente ele faria agora. O semideus, por outro lado, demonstra um pequeno traço de sensibilidade, pousando a grande mão no ombro da garota, o pressionando de leve.

— Você vai voltar para eles – ele diz, sua voz grave tentando se mostrar o mais otimista possível.

— Obrigada Shura – Mariah responde, com um fio de voz.

— Shura, precisamos conversar. – O chamado da mulher faz o homem levantar uma sobrancelha.

Shura coloca o casaco sobre os ombros de Mariah e alcança para ela outra fruta, em seguida, ele e a semideusa se levantam e vão em direção a entrada da caverna para dialogar sobre o que quer que seja.

— Me chamou para continuar a briga novamente? – Dispara o semideus.

— Não seja imbecil, – reclama Eyria revirando os olhos – sei que não adiantaria porque sua cabeça é mais dura e mais vazia que essa caverna, eu escuto o eco da minha voz saindo dela quando eu falo. O assunto é mais sério que isso.

O homem, claramente ofendido, troca o peso de uma perna para outra, incomodado, enquanto cruza os braços em uma tentativa inconsciente de criar uma barreira entre ele e a mulher.

— O que é então?

— Bom – ela respira fundo, depois aponta com a cabeça para a garota que comia a fruta em câmera lenta, com os olhos perdidos nas chamas da fogueira. – Como vamos fazer com ela?

— Ela deve ficar boa depois de uma noite de sono, as plantas e a bandagem que você colocou sobre o ferimento surtiram efeito bem rápido.

— Isso é impossível, Shura. – Fala Eyria, com uma voz séria e seca.

— Como? – Pergunta o semideus, perdido.

— Você não percebeu que já se passaram três dias e ainda não sentimos o núcleo do domo?

Shura arregala os olhos percebendo isso, o núcleo do domo era onde acontecia a batalha final da contenda e ele emanava uma energia tão forte para nortear os semideuses que poderia ser sentida há quilômetros de distância, não sentir ele por perto significava que ele não estava nem um pouco perto e a julgar que já era quase metade da semana, eles estavam muito atrás da maioria dos semideuses.

— Eu sei, – ele responde – mas o que você quer, que nós a arrastemos noite a dentro fraca assim?

— Não temos outra opção, Shura, ou é isso, ou perdemos.

— Mas ela mal consegue andar, está louca?

— Você pode carregá-la, não finja que nunca fez isso antes.

— Eu posso, Eyria, mas e se outro inimigo aparecer, e se – ele estremece – e se ELE, aparecer?

— Estou ciente dos riscos Shura, mas é como eu te disse, se vocês se tornarem um peso, eu vou os deixar para trás e uma coisa não muda: com ou sem você e a Mariah, eu parto essa noite.

— Eu consigo andar – a voz da garota enquanto ela se aproxima era fraca e morta, mas ela parecia decidida – podemos ir agora mesmo se vocês quiserem.

Os dois se assustam e olham para a pequena figura cambaleante, quase toda oculta por um pesado casaco vermelho e calças jeans esfarrapadas.

— Mariah, você está muito fraca para andar tanto assim – diz o homem, em um tom autoritário.

— Eu sei, mas você a ouviu, não temos outra escolha, temos?

Depois de ponderar por um instante mordendo os lábios, Shura assente.

— Mas tenho uma condição – diz ele, recebendo olhares curiosos antes de continuar – vamos ficar mais uma hora para descansarmos e nos aquecermos.

Não há protestos quanto a isso. Depois de descansarem um pouco e Mariah terminar de comer, eles saem da caverna e adentram novamente o bosque, que se tornava cada vez mais fechado, olhando para trás, Mariah sente um calafrio. Nas sombras, algo parece se mover atrás deles, ela pensa em avisar os outros, mas tão rápido quanto se formou, a figura se desfez, a garota então se concentra em andar, coisa que fariam por horas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Contenda Divina" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.