A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 17
Um final inusitado




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O ataque parecia ter vindo de lugar algum, em um momento a floresta se enchia apenas da discussão entre os dois semideuses a meia distância e dos protestos da garota presa pelo pescoço. Um segundo depois, a mata estremece sob um estardalhaço de árvores e moitas quebrando, seguidas de um urro animalesco que terminou em Shura se lançando sobre o homem de costas para ele que mantinha Mariah em cativeiro sob seus braços, em uma fúria infernal e uma aura avermelhada ao seu redor, que parecia ser capaz de queimar tudo que tocasse.

Logo depois, longos centésimos de segundos de puro terror tomaram tanto o homem com a máscara de lobo urrando quanto Eyria. Enquanto caía, Shura projeta seu braço inteiro para frente, com o disco girando impiedosamente sob a palma de sua mão. Usando o peso de seu corpo e a velocidade do pulo que tinha dado a um instante, alto o bastante para quase alcançar a copa das árvores, o semideus desce como um míssil, potente e imparável, pronto para atingir o inimigo com uma força impressionante, contudo, o que acontecera em seguia, não estava em seus planos.

O disco desce na diagonal na direção de seu alvo, mas nesse instante, o homenzarrão se desfaz, deixando em seu lugar Mariah, de braços abertos e expressão fria, pronta para receber o ataque de Shura. Sem tempo para recuar, o homem apenas pôde ver impotente sua arma cortar fora a cabeça de sua protegida em um único golpe certeiro, separando a base do pescoço do tronco, que cai de joelhos assim que o homem pousa estarrecido no chão. O corpo inerte tomba para o lado em uma posição estranha e se vira para Shura, como que por um gracejo do destino enquanto a cabeça se perde entre a vegetação espessa.

— Mariah... – ele diz, quase que em um sussurro, girando o tronco para ver o cadáver caído de lado logo atrás dele – não... Não!

O grito de agonia desperta Eyria, que observava tudo aterrorizada, a guinada que a situação dera era demais para que ela pudesse processar. Mas algo chama a atenção da mulher, olhando para o lado, ela percebe algo que a alivia à medida que a deixa mais alerta.

— Shura! – ela grita, a plenos pulmões, fazendo menção de andar para frente – se mova, agora!

Shura, mesmo sem entender o que acontecia, pula para o lado bem a tempo de a cabeça de Mariah passar rente a seu corpo como um projétil, sendo aparado pelo braço em riste do corpo que até então jazia imóvel no chão.

— Mas... o que... – ele balbucia, atônito.

Faz-se um silêncio sepulcral e impressionado.

— Mentirosa – fala uma voz grave logo atrás de Eyria, fazendo um arrepio lhe percorrer o corpo.

Girando para trás com o cotovelo apontado, ela golpeia o ar bem no instante em que Toth desaparece como se nunca tivesse estado ali, pairando novamente no meio do caminho entre ela e Shura, segurando Mariah de boca tapada esperneando, com o braço que segurava a adaga firmemente agarrado pelo semideus.

— Mariah! - Grita Shura, aliviado.

— Hm-hmm – ela responde.

Atrás de Shura, o corpo da segunda Mariah se levantava, com a cabeça aparada pelas mãos. A imagem dela mesma decapitada, porém viva, faz a garota querer amolecer de espanto sob o aperto do homem. O clone, por outro lado, calmamente coloca a cabeça no lugar e como se nunca tivesse existido, se torna, por um segundo, um clone do próprio Toth com o corte no peito e logo depois volta a ser o cajado que ele carregava consigo, flutuando para a junto do seu mestre, que agora se virava para Eyria.

— Mentirosa! – Ele exclama em desaprovação – esse homem é claramente o dono dessa coisa.

— O que? – Ela pergunta, como que saindo de um torpor momentâneo.

— A maneira como ele reagiu à morte dela é muito mais grave que a sua, – ele continua em tom explicativo e aborrecido - logo, ele é obviamente o verdadeiro dono do espécime, não você.

— Me devolva Mariah, desgraçado! – Vocifera Shura de onde está, se pondo de pé.

— Acalme-se, eu não tenho interesse em...

O golpe vem certeiro, antes que o homem possa terminar de virar o rosto em direção ao semideus que avançava. Com o punho muito bem fechado, Shura traça um arco quase perfeito com a mão serrada, se apoiando no pé esquerdo, impulsionando o corpo para frente com o direito flexionado e levantando o braço a toda por debaixo do queixo do homem. O punho atinge Toth em um estrondo, fazendo as robustas talas de madeira no braço de Shura trincarem todas de uma só vez com a onda de impacto, os ossos do homem reclamaram a ponto de ele não saber quem seria o verdadeiro golpeado ali e por fim, o aperto que segurava Mariah se afrouxa, o suficiente para que ela se soltasse e caísse de joelhos arfando.

Toth decola alguns centímetros do chão, se sentindo um tanto tonto, mas recupera seus sentidos assim que pousa sentado a alguns passos do lugar que partira. Colocando-se entre o homem e Mariah, Shura observa o semideus com um olhar ameaçador sob a máscara que escancarava seus dentes em direção a ele. Discretamente, ele fecha o punho com dificuldade, tentando ignorar a dor que agora subia pelo seu ombro.

— Se afaste dessa humana, não haverá outro aviso. – Sibila Shura, em um ódio profundo que cortava o ar entre os dois.

Mais uma vez, o silêncio se depositou entre eles.

Toth os olha desconfiado, as palavras do homem calando fundo em seu crânio. Ele as mastiga com cuidado, ruminando-as de novo e de novo em sua mente até que fizessem algum sentindo e então, seu rosto se ilumina sob a máscara, seus olhos antes hesitantes agora os observavam com admiração, em especial para a garota que se punha de pé segurando o pescoço com uma mão e uma faca com a outra.

— Isso... – ele começa, mas engasga, depois continua – Isso é... – Ele suga o ar como que com dificuldade para processar tudo – Isso é inacreditável! Agora tudo faz sentido! Eu estava certo! Eu sabia que estava certo! Eureka! – ele vibra socando o ar com os braços flexionados.

Eyria e Shura observavam tudo aquilo paralisados, Shura guardando Mariah atrás de si e a mulher sem entender o que era tão importante para o homem agir daquela maneira. Ele então desaparece novamente, levando com ele Mariah. Sem entender nada, os dois semideuses olhavam em volta assim que perceberam o que tinha acontecido e quão rápido fora, eles se entreolham e um percebe o medo do outro, eles sabiam que era o mesmo: Toth tinha recebido um golpe com força total de Shura a queima roupa com toda a raiva canalizada e mal sentira os efeitos, logo em seguida, mais uma vez, tinha roubado a garota diante dos seus olhos, no lugar em que ela estava, apenas se via uma faca fincada no chão.

— Esplêndido! - Berra uma voz grave atrás dos dois, eles se viram e veem o Toth levantando a garota pelas axilas como se levantasse um troféu ou um filhote de algum animal enquanto parecia dançar em um ritmo próprio. – Nunca pensei que teria a oportunidade de estudar um de vocês!

Mariah torcia o rosto, tentando ao mesmo tempo se livrar o homem e evitar que a bandagem caísse por completo de seu ferimento, que agora voltava a sangrar.

— Oh – exclama Toth parando de girar e dar pulinhos assim que percebe a linha do que um dia fora um pano branco cair por debaixo da blusa da garota que se manchava de um vermelho vivo– me desculpe, eu não queria te ferir assim!

Com cuidado, ele a coloca sentada no chão, enquanto escuta dois pares de passos vindo a toda em sua direção. Com um maneio de mão, Toth faz um clone seu aparecer novamente jogando o cajado na direção de onde vinham os dois, impedindo seus movimentos. O cajado por um segundo se ilumina e logo depois, vindo de uma massa desforme, surge um segundo Toth, de olhar frio e expressão zangada.

— Por Seth, esperem um pouco, seus seres de cérebro pequeno, - ele protesta por trás de sua cópia – eu não quero matá-los, muito menos fazer mal à humana, eu quero curá-la para depois estuda-la.

— Quer nos enganar, maldito! Deixe-a ir e lute comigo! – O homem de cócoras ao lado de Mariah suspira pesarosamente, nesse instante, os antebraços do clone se alongam e mudam de cor, até formarem duas lâminas douradas afiadíssimas, apontadas perigosamente próximas ao rosto de cada um dos semideuses, que não se atrevem a se mover.

— Tolos! - Vocifera o homem - se os quisesse mortos, eu já os teria matado.

— Não aponte coisas para mim, Toth – brada Eyria dando um tapa no desbaste da lâmina do clone, a afastando de seu rosto, enquanto Shura os observa com ira nos olhos.

Dando de ombros e sacudindo a cabeça, o homem se vira para novamente para Mariah, que agora tentava parar o sangramento com ambas as mãos, sentindo-se fraca demais para revidar. Ele a observa por um instante, constatando sua palidez e o sangue que vazava por debaixo de sua blusa.

— Deixe-me ver, – ele pede, em uma voz acolhedora – não tenha medo... Mariah, não é? Não quero lhe fazer mal algum, apenas te ajudar, se me permitir.

Sem opções, Mariah levanta as mãos manchadas de forma hesitante, revelando seu ferimento. Shura faz menção de atacar novamente, mas o clone o para encostando a lâmina na testa de sua máscara, o fazendo recuar enquanto grunhe de frustração. Toth observa o ferimento com a luz fraca da manhã que começava a amanhecer, do furo se precipitava um pequeno filete de sangue escuro, ao redor do orifício do diâmetro de um indicador, a carne parecia escurecer em um roxo quase preto.

Com uma interjeição de preocupação, o semideus fica imóvel por um instante, pensativo, depois, estica a mão sobre o ferimento e pousa-a tapando-o. Mariah observa a palma da mão de Toth se iluminar e pequenas formas saírem de seu bracelete e correrem para o onde pousava a destra, elas se pareciam com pequenos escaravelhos reluzentes tatuados em suas pele, mas que eram capazes de se mover. A garota sente sua pele queimar assim que eles cessam seu movimento, ela se contorce de dor enquanto geme com os dentes apertados uns contra os outros, depois, amolece, virando os olhos para dentro das órbitas.

— Mariah! – Brada o Shura, avançando por debaixo do braço do clone e indo diretamente sobre Toth. Este, por sua vez, coloca apenas o indicador diante do longo bico de sua máscara e o olha de soslaio, em sinal de silêncio.

— O sono de recuperação é importante depois do encantamento, não a acorde por enquanto. – Ele diz, se levantando sem cerimônia. Onde pousara a mão, pequenos hieróglifos circundavam uma cicatriz em forma de estrela onde antes estava o sangramento e a cor da garota, há muito pálida, agora voltava.

Enquanto se afastava, com um aceno de mão, Toth fez o gigante se desfazer em um pequeno livro de páginas amareladas que flutuou a seu encontro, sendo aparado em um barulho de couro contra couro pela mão do homem, que rapidamente passou a escrever de próprio punho nele, concentrado.

— Espere! – Chama Shura – Você não pode sair assim!

— Eu não me interesso por lutas – responde o homem desdenhoso, sem se virar ou parar o que fazia – cuidem dela, eu posso voltar para mais estudos.

— Não pode ir embora assim, como não pode se interessar por lutas? Sabe que vai desaparecer no fim do torneio se não vencer?

Ele dá de ombros, fechando o livro e agarrando o cajado que se formara no mesmo momento.

— O sentido da vida é aprender sobre tudo que puder, eu só preciso esperar isso acabar para descansar.

Shura faz menção de avançar no homem pelas costas, mas Eyria o segura pelo braço quebrado, fazendo com que ele sinta uma dor incrível. Ele a fuzila com os olhos, sem saber ao certo se pela dor ou por ela o parar daquela maneira.

Enquanto isso, Toth desaparece em uma lufada de vento fresco, carregando algumas folhas secas consigo.

— Não sabe ser agradecido? – Resmunga Eyria o soltando, assim que percebe as talas – Shura, seu braço...

— Sim, está quebrado, e daí? – Ele responde se aproximando dela, com sangue nos olhos – Agradecido? Por ele ter quase matado ela? Aliás, o que você fez além de conversar com ele enquanto ele mantinha uma refém?

— Escuta aqui seu boçal, - Eyria continua, sem deixar se intimidar – caso você não tenha percebido, ele não nos atacou em nenhum momento, além do mais, ele não fez mal algum a ela, pelo contrário, veja o ferimento dela curado.

— Eu sei Eyria, mas e se não fosse um cara estranho como aquele? E se fosse um semideus qualquer querendo eliminar o elo mais fraco do trio? Como você ia pará-lo?

— Eu o derrotaria mais rápido do que você, seu maneta metido a besta.

Shura ri em escárnio, para a ira da semideusa.

— Se isso é verdade, por que não usou seu trunfo para ataca-lo antes que ele te percebesse?

Ela congela por um momento, desarmada pelo ataque repentino do homem e pela lembrança do que Toth dissera: “deusa da ilusão”. Ela sabia que seria arriscado lutar com alguém que tinha uma refém e parecia a conhecer, mesmo que ela não se recordasse dele, mas antes que ela conseguisse responder, Shura continua a cuspir palavras contra ela.

— Você vem me criticando por não cuidar de Mariah, mas olha para você, se escondendo nas sombras, com medo de lutar, se preservando, não pense que eu não percebi que na caverna você estava mais preocupada em calar Mariah para que ninguém aparecesse lá do que para ajudar a garota que claramente sofria. Para você, essa garota realmente significa alguma coisa?

— Eu já te disse duas vezes e vou repetir: se vocês me atrasassem, eu ia os deixar para trás. Adivinha qual a resposta? -  Ela responde espalmando as mãos enquanto inclina o busto para frente - Além do mais, - ela continua - não fui eu que travei como um imbecil bem na frente dela, você é que está com essa maldição presa a ela, não eu!

— Eu tive a droga de um flashback de quando eu era vivo, todos ao meu redor morriam por minha causa, está feliz agora em saber?

Uma dor conhecida toma o peito de Eyria, ela serra os punhos e os cruza sobre o peito, adotando uma posição debochada.

— Não fique se achando especial por isso, todos aqui tiveram uma vida difícil enquanto vivos, é uma das condições para se tornar um semideus, esqueceu?

Shura respira pesadamente enquanto a fuzila com os olhos mais uma vez, depois, se vira, girando nos próprios calcanhares para pegar a garota desacordada. Enquanto ele se coloca de costas e se afasta, Eyria alivia um pouco a pose e por um momento, seus olhos fraquejam, deixando mostrar um lampejo de tristeza, enquanto seu peito parece sufocado de repente por algo que lhe atinge a memória.

— Você realmente nem se esforça para entender o que acontece com os outros, não é? Quem é verdadeiro amaldiçoado aqui? – Ele pergunta, como que para si mesmo, carregando a garota de forma desajeitada nas costas.

Eyria respira fundo.

— Entendo mais do que imagina, imbecil. – Ela sussurra.


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