Universo em conflito escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 8
E alguns planos irão falhar


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo tem uma pequena referência à história dos 15 anos da Marina. Quem leu essa saga vai lembrar fácil.



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— Aumentar o preço de novo? Os alunos vão protestar com certeza! – o diretor falou exasperado.

— O preço dos alimentos está subindo cada vez mais. – o responsável pela cantina justificou. – O preço do tomate anda pela hora da morte e carne está virando artigo de luxo. Acho que se continuar assim, não vai ter nem feijão com farinha para vender aos alunos.

Exageros a parte, o diretor sabia que o homem estava certo. Com tantas tragédias ambientais e colheitas comprometidas, era de se esperar que o preço dos alimentos subisse absurdamente. Mas o que ele podia fazer? A única pessoa que podia corrigir aquilo preferia continuar insistindo no erro ao invés de dar o braço a torcer e admitir que tomou a decisão errada.

— Tem um aluno querendo falar com o senhor. É aquele caso da briga de ontem. – a secretária falou entrando na sala e o diretor dispensou o responsável pela cantina. Que aumentassem os preços, não dava para fazer nada mesmo.

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Cebola estava na escola para entregar o documento relatando a suspensão que fora assinado por Rosália, mas na verdade ele falsificou a assinatura dela. Felizmente ela não foi chamada para a escola, senão ele ia ter sérios problemas. Se a família toda ficava contra ele por causa de mentiras, com certeza iam mandá-lo para um colégio militar na Sibéria se soubessem que foi suspenso por causa de briga.

— Pode entrar, o diretor vai recebê-lo. – a secretária convidou.

O diretor era um homem aparentando ter quase quarenta anos, olhos castanhos, cabelos pretos e uma expressão eternamente entediada como se estivesse assistindo a uma corrida de lesmas. Engraçado... havia qualquer coisa de familiar naquele sujeito.

— Bom dia, sr. diretor. Eu trouxe o papel assinado pela minha tutora, como o senhor mandou.

— Sente-se, quero conversar com você, rapazinho. Para começar...

A porta do escritório se abriu novamente e ele viu a secretária com o rosto branco e o olhar assustado.

— Senhor, a Srta. Duister está aqui.

— Pode fazê-la entrar. – o homem disse com visível desconforto.

A mulher entrou e na mesma hora ele reparou que o diretor tinha ficado muito pálido e parecia até tremer um pouco. Uma coceira desagradável atingiu seu braço e ele coçou distraidamente.

— Bom dia. – uma voz suave como seda, mas fria como gelo falou.

— Bom dia. Hã, Cebola, você está dispensado.

O rapaz levantou, despediu-se dos dois e saiu dali feliz por ter sido poupado de mais um sermão e não percebeu que ela o olhou por trás antes da porta se fechar

Na sala de espera, a secretária enxugava as lágrimas.

— A senhora tá bem?

— Sim. – a mulher sussurrou. – Eu não sei por que fico assim toda vez que a Srta. Duister aparece. Me sinto tão mal!

“Eu heim... ela ficou bolada desse jeito só por causa daquela tia caretona? Que esquisito...” pensou esquecendo do assunto e correu para o ponto de ônibus porque tinha algo importante para fazer. Felizmente Rosália não soube da suspensão, o que lhe deu três dias de manhã livre. Dentro do ônibus, ele coçou o braço novamente e sentiu uma ardência no local. Ele tirou o terno do uniforme, puxou a manga comprida da camisa que tinha por baixo e viu sua marca de IOR avermelhada nas bordas por causa da coceira.

“A marca do mal inevitável...” pensou alisando seus traços com um dedo e se sentiu reconfortado. A marca de Ior foi a única coisa que ele trouxe do mundo original. E ele adorava idéia de ser imortal embora não tivesse nenhuma intenção de sair morrendo por aí.

— Aff, eu tinha esquecido de como ela mora longe! – bufou quando finalmente chegou ao seu destino torcendo para que aquela viagem compensasse ter gastado os últimos trocados do dinheiro que seu duplo tinha deixado para ele.

A fachada era simples e nem parecia que uma bruxa maluca e poderosa morava ali. Estranho... sua memória estava lhe pregando peças ou devia ter uma gárgula em cima do muro? Tudo bem, não era hora de pensar em decoração e sim em como falar com ela sem ser transformado numa cebola estragada.

Cebola encheu-se de coragem, apertou a campainha e esperou que um alçapão abrisse sob seus pés como tinha acontecido com Mônica, Cascão e Magali. Mas ao invés disso, uma senhora aparentando sessenta anos o atendeu.

— Hã... bom dia. Desculpe incomodar, mas aqui é a casa da Viviane?

— Viviane? Aqui não tem ninguém com esse nome. Você deve ter errado de endereço, menino.

Ele coçou a cabeça.

— Mas me deram esse endereço. Será que ela morava aqui e se mudou?

A senhora balançou a cabeça.

— Acho difícil. Eu moro nessa casa há mais de vinte anos.

Ótimo. Outro plano que deu errado. Cebola voltou para o ponto de ônibus se preparando para outra longa viagem. Bem, ele devia esperar por isso uma vez que não encontrou informações da Viviane em lugar nenhum. No mundo original ela tinha blog, várias redes sociais e era fácil encontrá-la. Ali, no entanto, ele não achou nada nem dela, nem da Ramona. Era muito estranho mesmo.

Ele encostou no poste para esperar o ônibus e ficou olhando ao redor para distrair, já que não tinha nem celular. O céu estava limpo, poucas nuvens e com um azul triste. Seria só seu estado de espírito ou as cores naquele mundo eram meio apagadas? Uma árvore no outro lado da rua lhe chamou a atenção por causa das folhas secas. Os jardins das casas ao redor davam a impressão de não serem regados há semanas. As plantas estavam murchas e quase não davam flores. Será que naquele mundo as pessoas não cuidavam nem mesmo dos seus quintais? Se bem que o jardim da sua casa também estava assim e ele sabia que Rosália cuidava dele.

O ar estava um tanto quente e abafado apesar de ser meados de junho. Era para ser época de frio e ele devia estar tremendo até os ossos por causa da ventania. Que mundo mais esquisito aquele! Será que as estações do ano eram invertidas?

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— Tem certeza? – Cascão perguntou incrédulo.

— Absoluta, minhas fontes nunca falham. – Denise falou muito segura de si e Cascão ficou se perguntando quais fontes seriam aquelas que sempre deixavam a fofoqueira por dentro de tudo. - No próximo semestre a Magali tá de volta e agora tô com medo! Será que ela vai perseguir a gente?

Os dois conversavam em um lugar reservado onde ninguém podia vê-la falando com o imundo do Cascão. De vez em quando os dois trocavam algumas palavras, já que foram da mesma gangue um dia e um não tinha nada contra o outro.

— Acho que não. Ano passado a gente salvou a vida dela.

— Tomara que ela lembre disso.

— Você já falou pro Cebola?

— Ele tá suspenso e eu não tenho coragem de ir até a casa dele. A tia dele me assusta e o primo dele é muito abusado.

— São só três dias de suspensão, quando ele voltar você fala.

O sinal tocou e Cascão foi para a sala um tanto apreensivo. Há quase um ano ele não tinha notícias da Magali. Por que ela resolveu voltar? E como ela estava? Será que tinha mudado alguma coisa? E se ela resolvesse persegui-lo? Bom, ele não era nenhum fracote e podia se defender facilmente. Era só levantar os braços ou jogar uma meia suja na cara dela e pronto. Não, ele não tinha com o que se preocupar. Não ia mudar sua vida em nada mesmo.

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De noite, pouco antes da hora de dormir, Mônica estava em seu quarto conversando com alguém pelo Whatsapp.

— Você vai mesmo voltar? Que bom!  

— Bom nada! Se fosse outro colégio ainda vá lá, mas eu vou pro Limoeiro!

— Não fica assim. Vai ser difícil, mas a gente dá um jeito.

— Até hoje o pessoal me odeia.

Mônica tentou tranqüilizá-la.

— Sabe aqueles inspetores de que eu falei outro dia? Tem um monte deles no colégio e eles estão sempre de olho em tudo. Os alunos agora estão andando na linha e ninguém pode nem pensar em brigar que eles já marcam em cima. Acho que vai ser tranqüilo.

— Será? Eu não sei... você falou que o colégio tá muito chato ultimamente...

— E tá mesmo, viu? Daqui a pouco vão colocar a gente pra marchar! Mas pelo menos tem esse lado bom.

As duas continuaram conversando e fazendo alguns planos. Apesar da distância, elas nunca tinham perdido o contato e conversavam regularmente pelo Whatsapp. Por isso ela estava feliz ao saber que a amiga estava voltando, pois gostava muito dela.

No fundo Mônica sabia que havia um pouco de interesse nas amizades do colégio. Não era o principal, lógico, mas as meninas sempre a bajulavam mais que o normal quando queriam que ela desse uma festa do pijama e quando souberam da nova casa de praia que seus pais tinham comprado, passaram a tratá-la ainda melhor.

Isso não acontecia com Magali, que apesar de todos os seus defeitos não era interesseira. Ela não lhe bajulava, não ligava a mínima se ela era rica ou se tinha uma casa de praia. Também não lhe cobrava perfeição, não se intrometia em sua vida e nem lhe repreendeu quando começou a namorar o DC, apesar de ter lhe avisado várias vezes que ele era um babaca. Ela sim era amiga de verdade.

— Bom, só sei que não vou deixar os outros alunos abusarem de você, tá?

— Ei, também não é assim! Eu posso me defender! – Magali protestou.

— Sua boba, o que tem de mais nisso? Amiga defende a outra, esqueceu?

Após mais um pouco de conversa, elas se despediram porque estava na hora de dormir. Mônica foi para a cama sentindo-se um pouco melhor. Sem Magali, ela sentia como se uma peça de sua vida estivesse faltando.

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Depois que encerrou a conversa, Magali deitou na cama pensando no rumo que sua vida tinha tomado. Quem podia imaginar que ela ia ficar tão amiga daquela patricinha que mal chegou no bairro e já veio lhe desafiar? Se alguém lhe falasse, ela nunca teria acreditado (e provavelmente teria dado um soco no nariz da pessoa). Mas tudo ficou diferente.

Longe da sua gangue, morando com uma tia doce e carinhosa e visitando um psicólogo regularmente, ela foi mudando aos poucos. Era estranho e assustador. Muitas vezes ela se sentia perdida, não sabia quem era e o que queria. Ter Mônica como amiga ajudava porque era uma das poucas pessoas em quem confiava e que sempre acreditou nela. Afinal, aquela garota tinha se colocado em perigo para salvar a sua vida.

“É... não tem jeito, vou ter que encarar isso e pronto.” Ela pensou antes de dormir. Fugir não ia adiantar mesmo.

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No dia seguinte, Denise conversava um pouco com Cebola antes de ir para a escola.

— Então a Magali vai voltar?

— Vai, depois das férias de julho. Não tá com medo?

— Sei lá, eu ajudei a salvar a vida dela. Será que ela vai querer quebrar minha cara depois disso?

— Daquela ali eu espero qualquer coisa, tomara que ela não venha pra cima de mim.

Denise foi para a escola e Cebola continuou seguindo seu caminho remoendo as preocupações. Ele não conseguia descobrir um jeito de resolver aqueie desequilíbrio e nem como colocar aqueles dois parasitas para fora de casa. No meio das coisas do seu duplo tinha um documento falando que a autoridade de Rosália ia acabar quando ele completasse a maioridade civil. Ainda faltavam dois anos e não dava para esperar tanto tempo. Só que ele não fazia idéia de como resolver aquilo porque ninguém queria ajudá-lo.

“É... faltam uns quinze dias pras férias de julho. Acho que aí deve dar um pouco mais tempo. Ah, mas aquela bruxa velha vai me botar pra trabalhar mais ainda, ninguém merece!”

Como estava sem idéias, ele resolveu dar uma volta no shopping do Limoeiro para ver se conseguia sinal wi-fi. O smartphone que seu duplo deixou era ultrapassado e não tinha nenhum crédito, mas pelo menos acessava a internet e por enquanto era suficiente.

“Ah, que bom!” ele suspirou de alívio quando sentiu o ar condicionado do shopping, pois estava fazendo muito calor apesar de ser junho. E ele também se sentia um pouco mais a vontade porque o lugar era praticamente igual ao do mundo original. Só que uma loja lhe chamou a atenção por causa um dos seus clientes. O que aquele sujeito estava fazendo ali?

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— Hahaha, olha só essa beleza! – Rômulo falou olhando o belo capacete exclusivo da Harley Davidson que custava nada menos que mil quatrocentos e noventa reais, pois era lançamento e edição limitada. Sem pensar duas vezes, ele comprou o capacete, luvas, um par de botas e uma jaqueta. A quantia gasta foi exorbitante, mas ele não importou. Sua fonte de renda era muito boa.

— Ah, peraí, também vou comprar um presente legal pra minha cremosa. Ela não vai resistir! – Ele também comprou uma bela jaqueta feminina e saiu dali muito satisfeito. Claro que ia dar um pouco de trabalho para explicar aquelas coisas para sua mãe, mas ele podia dar um jeito nisso.

— É isso aí, minha vida tá muito boa e não vou sair dessa tão cedo!

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Mesmo não tendo visto o preço de cada coisa, ele deduziu que aqueles itens deviam custar muito caro já que era uma loja fina. Aquilo o deixou muito intrigado.

“Hum... Rosália vive reclamando que falta dinheiro, mas esse cara tá gastando como se tivesse a grana da Carmem! Aposto que tem coisa aí!”

Ao ver que Rômulo estava saindo, ele tratou de se esconder ou ia levar uma surra com certeza. Ele não sabia como, mas ia tirar aquela história a limpo de qualquer jeito.

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A mobília estava impecavelmente limpa, lustrosa e todos os objetos reluziam como se fossem novos. Não se via um único grão de sujeira no chão, as cortinas foram lavadas recentemente e as janelas pareciam não ter vidro nenhum de tão limpas que estavam. Tudo estava perfeito.

Pelo menos era o que Rosália achava, mas seus patrões podiam pensar diferente. Céus, ela nunca tinha visto pessoas tão exigentes em toda sua vida! Nem ela era tão chata assim com limpeza. Mas o salário valia a pena. Dois mil e quinhentos reais na sua mão todo mês, o que ajudava muito a pagar a dívida. Era por isso que apesar de tudo, ela se sentia feliz.

Rômulo se dispôs a dar o salário inteiro, mas ela recusou porque não achava justo que o filho se sacrificasse ainda mais por uma dívida que não tinha sido culpa dele. Por isso ela propôs que ele pagasse quatro mil e ficasse com os quinhentos restantes para suas despesas pessoais.

“Ah, que orgulho do meu filhinho! Ele me ajuda tanto!” ela pensou muito feliz por ter um filho tão bom e não entendia por que as pessoas não gostavam dele. Seu filho era a melhor pessoa que ela conhecia.

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Naquela mesma casa, no escritório, um dos moradores falava ao telefone.

— Sim, está tudo combinado. A festa será no dia trinta de julho. Já mandei os convites e tudo estará pronto quando chegar o dia.

— Que ótimo. – a voz meio cavernosa falou do outro lado da linha. – Seus pais são excelentes pessoas e te educaram muito bem, por isso eu sei que você poderá substituí-los com perfeição.

— E o senhor não terá menos que isso.

Quando desligou o telefone, uma garota estava em frente a sua mesa olhando com expectativa.

— E então, Srta.Duister? – ela falou com a voz meio rouca e tímida.

— Ele acabou de confirmar que serei promovida.

Ela comemorou em silêncio, pois sabia que não podia fazer barulho naquela casa.

— Ligo pra ela falando da sua promoção? Ela vai adorar saber!

— Sim, faça isso e peça para que volte rapidamente, pois precisarei dela.

Após hesitar um pouco, a moça falou com medo de como Srta. Duister ia reagir.

— Os pais dela reclamam das faltas na escola. – falou olhando para os próprios sapatos.

— Não se preocupe, lidarei com eles depois. – a voz monótona falou, mas com um tom de desagrado que somente quem conviveu com ela durante anos era capaz de identificar. – Até lá, vamos continuar esperando até chegar a hora.

— Sim, Srta. Duister.


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