Universo em conflito escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 30
Algumas verdades são duras




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Bife recheado a parmegiana, arroz branco bem soltinho, feijão cozido com alguns pedaços de bacon e lingüiça defumada, salada Cesar e aspargos salteados na manteiga. De sobremesa, torta recheada com sorvete e lascas de chocolate.

Se seus dotes culinários foram bons o suficiente para terem feito seu finado marido engordar uns quinze quilos depois do casamento, com certeza iam pescar aquele advogado bonitão e charmoso. Ela preparava tudo com capricho e até preparou a mesa com uma toalha bordada, pratos e talheres que só eram usados em ocasiões especiais e taças de cristal. Se não fosse a presença do Cebola, ela teria colocado luz de velas também. Sr. Afonso finalmente tinha uma posição sobre a dívida e ligou marcando um encontro, então Rosália se aproveitou para convidá-lo para o jantar.

— Cebola, você já trocou as toalhas do banheiro?

— Já, tia. Acho que tá quase na hora do Sr. Afonso chegar. Não quer ir se arrumar não? Eu vou cuidando do resto aqui.

Ela aceitou de bom grado e foi trocar de roupa, pois queria estar bem bonita para o jantar daquela noite.

Cebola tinha percebido o interesse dela pelo advogado e até achou graça. Talvez fosse bom mesmo ela arrumar um namorado para lhe distrair e torcia para que Afonso também gostasse dela ou aquilo ia ser muito triste.

A campainha tocou e ele teve uma agradável surpresa ao dar de cara com o advogado usando terno limpo, cabelos penteados de lado tentando disfarçar a careca e segurando um buquê de flores. Até perfume o homem tinha passado!

— Boa noite, Sr. Afonso. Entra, a tia já vem. – ele falou em tom mais baixo. – Ela tá se arrumando!

O advogado deu um largo sorriso e sentou-se no sofá ainda segurando as flores.

— Eu tenho ótimas notícias sobre a dívida, mas vou esperar sua tia para podermos conversar. Aqui, por acaso você sabe me dizer se... bem... – ele olhou para os lados, um tanto encabulado e finalizou em voz baixa. – ela está saindo com alguém?

— Tá não, fica tranqüilo.

Foi engraçado ver a satisfação no rosto do homem. Ah, se ele soubesse como Rosália podia ser terrível! Bem, não era ele quem ia lhe dar aquela notícia.

— Boa noite, Sr. Afonso! – ela cumprimentou entrando na sala usando um vestido bege claro, maquiagem leve, cabelos bem arrumados e um broche em forma de flor no peito.

— Pode me chamar apenas de Afonso. E devo dizer que a senhora está encantadora essa noite! Hã... espero não estar sendo muito atrevido... – ele falou lhe dando as flores que ela aceitou se derretendo toda.

— Imagina, também não precisa me chamar de senhora. Cebola, pode colocar essas flores num vaso? Use aquele ali, é o mais bonito! – ela apontou para um vaso horroroso em forma de bota com salto plataforma e pintado com desenhos do Romero Britto. Sério, ele ficaria muito ofendido se levasse flores a uma garota e ela colocasse naquela coisa, mas Afonso pareceu não se importar com tanta cafonice.

Antes do jantar ser servido, eles sentaram no sofá da sala para conversar. Cebola ficou no de dois lugares enquanto Afonso e Rosália ficaram no de três, lado a lado.

— Saiba que eu trago excelentes notícias! – ele começou feliz ao ver os olhos dela brilhando de alegria. – Eu entrei em contato com os antigos sócios do seu finado marido e descobri que na verdade... imaginem! Não há dívida nenhuma!

O choque foi total.

— Como assim não há dívida? O Rômulo até me trouxe documentos!

— Documentos falsos, obviamente. Ele deve ter falsificado as assinaturas dos sócios para te enganar.

Se Rômulo estivesse ali, Rosália o teria triturado sem nenhuma piedade. Como aquele safado pôde fazer isso com ela?

— Então durante todo esse tempo eu estava dando dinheiro para ele a toa?

— Receio que sim. E tem mais uma coisa: seu marido havia deixado como herança não somente a casa como também a parte dele na sociedade que na época valia cem mil reais.

Outro espanto.

— Então foi daí que saiu todo aquele dinheiro da conta dele! – a mulher falou exasperada. Além de fazê-la lhe dar todo o seu dinheiro, ele também roubou a parte dela da herança.

— Sim. Mas não se preocupe, eu tenho contatos que podem ajudar a reaver esse dinheiro.

Claro que ela ficou feliz em saber que além de não precisar pagar nenhuma dívida, ainda ia receber de volta o que pagou e muito mais. Mesmo assim ela se sentia muito triste e magoada pelo que Rômulo tinha lhe feito. Era preferível continuar pagando aquela dívida a ser traída pelo próprio filho.

— Não se preocupe, o pior já passou. A polícia ainda não o encontrou, eu sei, mas é só questão de tempo. Agora tudo ficará bem já que não há nenhuma dívida para pagar.

Cebola era todo sorrisos, já que sem a dívida sua tia estava livre para voltar para casa dela. Os três foram jantar e comemoraram muito a notícia. Aos poucos Rosália foi se sentindo melhor. Sem dívida, com um bom dinheiro e um advogado charmoso se derretendo todo por ela, não dava para querer mais da vida.

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— Não dá para ver muito bem, mas é sim uma tatuagem. E bem grande! – o legista falou mostrando um enorme desenho nas costas daquele cadáver ressecado. Com a pele seca e murcha, aquilo mais parecia um grande borrão colorido.

Na sua mão, ele tinha uma foto de um homem de costas exibindo uma bela tatuagem em forma de dragão. Era Rômulo, ainda procurado pela polícia. Para confirmar, eles precisavam entrar em contato com os familiares dele e assim poder fazer a identificação pela arcada dentária.

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— Algum problema, Antônio? – Sr. Malacai perguntou quando o rapaz parou de repente e ficou olhando o logo da Vinha na entrada do colégio.

— Não é nada, senhor. É que eu não sabia que a organização tinha anexado esse colégio. Deve ser muito recente.

— Faz pouco mais de dois anos. Agora vamos.

Ele não falou nada e seguiu o velho sentindo uma coisa ruim dentro de si.

— Eu preciso que você nos ajude com um rapaz muito difícil de ser disciplinado. Ele não entende que só queremos ajudar e continua rebelde, inclusive tentou me agredir!

— Isso é um absurdo!

— Exato. Nós fizemos de tudo para convencê-lo, mas ele não ouve. Então imaginei que ele poderia te ouvir uma vez que você esteve na mesma situação.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, senhor.

— Sei que fará.

Antônio procurou se animar, pois tinha recebido uma tarefa importante. E daí que Denise tinha falado a verdade sobre o colégio pertencer à organização? Sr Malacai não tinha como saber de tudo o que acontecia por todos os lados.

À medida que eles andavam, Antônio foi tendo flashbacks desagradáveis. Os dormitórios, aquele corredor escuro, o clima sombrio... e aquilo só piorava. Até então ele não tinha notado que em ambos os lados do corredor tinha portas com pequenas janelas iguais a que sua solitária tinha. Eram várias e várias portas e de vez em quando ele ouvia choro, gritos e pancadas.

Os mais velhos pararam em frente a uma porta e um segurança abriu a janelinha para que Sr. Malacai pudesse olhar. O velho se afastou bruscamente e uma pancada se fez ouvir do outro lado.

— Ele me parece nervoso hoje.

— Eu sei, senhor. O tratamento com choque não fez muito efeito dessa vez.

Ele ouviu mesmo aquilo?

— Hum... ele é mesmo resistente.

Sua boca abriu levemente. Além de ter ouvido, ele não conseguia acreditar que Sr. Malacai tinha respondido como se fosse um assunto banal.

— Foi por isso que eu trouxe o Antônio. Espero que ele consiga convencer esse teimoso.

Por mais que tentasse, ele não conseguia encontrar nenhuma desculpa ou justificativa. Denise estava certa, Sr. Malacai sabia daquelas coisas por mais que doesse admitir.

— O rapaz não corre perigo?

Provavelmente aquele velho também sabia do que tinham feito com ele.

— Um segurança entrará também.

Em seu interior, lá no fundo, foi como se algo tivesse se quebrado.

— Está pronto para entrar, Antônio?

Seu olhar endureceu, ele apertou os lábios e olhou fixamente para a janelinha da porta.

— Se permitir, senhor, eu prefiro entrar sozinho.

— Esse rapaz pode ser perigoso.

— Eu também posso. – ele falou com a voz baixa e num tom que Sr. Malacai nunca tinha ouvido antes.

— Por que quer entrar sozinho?

Sua cabeça estava estranhamente leve e seus pensamentos mais lúcidos que o normal.

— Porque ele só vai me escutar se confiar em mim. Se os senhores estiverem por perto, ele nunca falará comigo.

O velho deu um sorrisinho.

— Você é mais inteligente do que eu pensei. Está certo, daremos espaço para que você converse com o rapaz. Entenda que será preciso fechar a porta. Você terá dez minutos.

— Obrigado, senhor. – ele estava calmo demais para quem corria o risco de ser atacado e ter os olhos arrancados.

O segurança abriu a porta, Sr. Malacai e o Diretor se afastaram e Antônio entrou rapidamente. Ele olhou pela janelinha e viu que os três estavam longe, como ele queria.

— Você também veio me torturar? Perdeu tempo, eu não tenho medo nenhum! – uma voz falou do canto escuro da pequena cela. Levou um tempo até seus olhos se acostumarem com a escuridão e Antônio falou.

— Não temos muito tempo, cara. Então me escuta. Eu sei o que eles te fizeram porque comigo foi igual.

— E eles te quebraram, não foi? O bebezinho não agüentou? – a resposta veio em tom de deboche.

Fez-se silêncio por alguns instantes e Antônio continuou.

— Sr. Malacai já veio aqui antes?

— Várias vezes.

— Então ele sabe o que estão te fazendo.

— Claro que sabe!

— Ele só me visitou uma vez quando me tirou da solitária.

— Foi porque você não agüentou muito tempo.

Aquilo só confirmou o que ele tinha percebido momentos atrás: Sr. Malacai não só sabia como também aprovava aquelas atrocidades.

— Qual é o seu nome?

— Manoel.

— Tá certo, Manoel. É o seguinte...

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— Então é isso. A queima dos livros terá que ser adiada por tempo indeterminado. Não se preocupe com Sr. Malacai, eu sei como lidar com ele. Certo.

Agnes desligou o telefone aliviada por ter conseguido pelo menos adiar aquele problema.

— Não vão queimar os livros.

— Não. Aquele velho foi muito burro ao forçar as meninas a cortar e tingir os cabelos. Isso chamou a atenção da imprensa e alguém deixou vazar que a Organização queria queimar os livros.

Mon dieu, eles estão cada vez piorres! E ainda falta tanto tempo...

— Nem me fale. – Agnes tirou os óculos e esfregou os olhos cansada daquele serviço chato. Boris tinha toda razão em não querer aquele cargo por nada no mundo. – E quanto a você? Teve algum problema em seu colégio?

— Por enquanto não. Meus cabelos são pretos e eu uso bem presos parra não chamar a atenção.

— Mas são compridos. Tome cuidado. E olha, acho que já está na hora de fazer o Cebola revistar minha casa. Ainda falta muita coisa para embrulhar e de qualquer forma vou precisar de ajuda.

— Isso é bom! Não podemos perder tempo.

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Eles comemoraram muito quando Cebola finalmente lhes contou a novidade. Foi preciso esperar até depois da aula, quando todos foram para a Super Lanchão almoçar. Ele estava muito feliz por freqüentar a lanchonete como cliente e não como empregado.

— Aê, careca! Agora você tá livre da dona bruxa!

— Que bom, Cebola, nem acredito! – Mônica também vibrava, junto com Magali.

— Rapaz, aquele seu primo não prestava mesmo, viu?

— Pois é, mas agora ele vai pra cadeia e não vai encher o saco por um bom tempo. Aleluia!

Os quatro brindaram com refrigerante e comeram alegremente. Cebola estava muito feliz porque as coisas estavam finalmente dando certo para ele. Eles riam, comemoravam e contavam piadas. Era muito bom ter sua turma de volta, embora não fossem os originais.

Enquanto mordia seu hambúrguer, o celular tocou. Era Sr. Afonso.

— Cebola? Desculpe interromper. – o advogado tinha ouvido risos de jovens. – Mas é uma emergência.

À medida que ele foi ouvindo, seu semblante se anuviou. As notícias eram terríveis.

— Tem certeza de que é ele? Caramba... e a tia Rosália, já sabe? Já chamou ela? Então eu também vou, deixa só eu passar em casa pra deixar o material da escola. – ele desligou o celular e falou com os amigos que observavam tudo calados. – Gente, vocês não vão acreditar!

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O segurança abriu a porta e Sr. Malacai chamou.

— Antônio? Seu tempo esgotou.

O rapaz emergiu da escuridão com uma expressão que Sr. Malacai não conseguiu ler. Atrás dele estava um rapaz da mesma altura, cabelos raspados e cabeça baixa.

— Então? – O velho esperava com expectativa, assim como o diretor.

— Ele se dobrará, senhor.

— Perfeito!

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No IML, Rosália chorava no ombro de Afonso quando Cebola chegou.

— Poxa, tia...

— Eu não acredito nisso, o meu filhinho! Coitadinho dele!

Berinjela também estava lá, junto com outro tio, e não acreditava no que tinha acontecido.

— Nunca pensei que isso fosse acontecer com alguém da minha família! Que horror!

— Já identificaram o corpo? – Cebola perguntou para Berinjela.

— Estão fazendo isso pela arcada dentária. Acharam melhor que sua tia não visse por causa do estado em que ficou. Céus, como isso foi acontecer?

O legista apareceu e pela sua fisionomia, as notícias não eram boas. Rosália chorou mais ainda, sendo consolada por Afonso. Os demais abaixaram a cabeça. Era muito ruim ter uma morte na família e mesmo detestando Rômulo, Cebola jamais desejaria aquele tipo de coisa para ele.

Berinjela decidiu fazer os preparativos para o velório e enterro, já que Rosália não ia ter condições para fazer isso. Na saída do IML, ele quis saber.

— Eu ainda não entendo como isso foi acontecer com o Rômulo. E Cebola, por que seu rosto está todo marcado? – o sujeito perguntou ao ver as marcas que ainda estavam no rosto do rapaz.

— Acho que não é uma boa hora pra falar disso. Eu vou pra casa com a tia e...

— Não, rapaz. Nós queremos saber a verdade! Por acaso você brigou com o Rômulo de novo e bateu nele? Deve ver por isso que o coitado fugiu e acabou sendo morto! Sua tia está certa, você é impossível e...

— Pára com isso, deixa ele em paz! – Rosália falou energicamente. – Ele não teve culpa. O Rômulo tentou me agredir e ele me defendeu, foi isso!

— Mas... mas... – Berinjela balbuciou surpreso com a intervenção de Rosália a favor do Cebola. – O Rômulo nunca ia bater na mãe dele...

— Mas tentou bater e se o Cebola não tivesse entrado no meio, EU teria apanhado. Então pára de implicar com o menino. Quero ir pra casa agora e ele vai comigo pra me ajudar.

Ela foi embora de braços dados com Afonso e Cebola foi atrás aliviado por ter escapado do seu tio desagradável. Ao chegar em casa, Afonso lhe fez companhia por um tempo e precisou se despedir para cuidar do resgate do dinheiro que tinha na conta do Rômulo.

Cebola foi para a cozinha fazer um chá calmante e serviu com biscoitos.

— Aqui, tia. Vai te fazer bem. E valeu por ter falado a verdade pro tio Berinjela, senão ele ia me encher o saco até não poder mais.

Rosália deu alguns goles do chá e falou.

— No início eu até cheguei a te culpar mesmo. Se não tivesse entrado no meio, Rômulo não teria fugido e não teria acabado daquele jeito.

— Mas... eu...

Ela suspirou.

— Dói muito perder um filho, coração de mãe é assim mesmo. Eles aprontam, mas a gente perdoa. Eu estou de coração partido e não sei se vou me recuperar. Então acabo querendo achar um culpado pro que aconteceu.

— Eu... eu sinto muito...

— Você fez o que achou certo, me defendeu. Se não tivesse feito nada, eu teria apanhado e Rômulo teria fugido de qualquer jeito. Acho que no fim daria tudo na mesma.

Cebola sentou-se do lado dela.

— Ele ficou daquele jeito porque eu falei do dinheiro que tava escondendo no banco...

— Era para falar mesmo. É meu dinheiro que está ali, você não podia ficar calado.

— Eu podia ter falado em outra hora, sem ele ver.

— Aí ele teria fugido e levado todo o dinheiro.

— Mas estaria vivo...

Ela deu um tapa na parte de trás da sua cabeça e ralhou.

— Pára com isso, moleque! Já falei que não foi culpa sua.

O rapaz não falou mais nada. Rosália tinha um jeito meio estranho, mas ela estava certa. Ele não tinha por que se sentir culpado. Rômulo cavou sua cova com as próprias mãos.

Sua tia foi para a cama dormir um pouco e ele ficou ali pensando no que tinha acontecido com o seu primo para ter ficado daquele jeito. Se ao menos Paradoxo aparecesse! As visitas do cientista estavam ficando cada vez mais espaçadas. Talvez ele estivesse mesmo com dificuldades para se transportar.

Com o seu tablet, ele fez mais uma pesquisa sobre aquele estranho caso e viu outros corpos, tão murchos e ressecados quanto o de Rômulo. Era como se alguma coisa tivesse sugado todos os fluidos daqueles corpos até não sobrar nada.

— Sugado... hum... não, peraí! Isso não pode ser possível!

Uma suspeita foi surgindo e ganhando cada vez mais força. Por isso ele resolveu fazer uma pesquisa e finalmente achou um site onde listava todas as vítimas identificadas com o mal da múmia. A primeira delas tinha sido a pouco mais de vinte anos atrás. Era um homem com cerca de vinte e cinco anos chamado Alberto Freitas de Castro. Suas suspeitas se confirmaram ainda mais quando ele procurou saber mais sobre o sujeito. Ele ocupava um cargo de secretário geral da Vinha, tinha boa saúde e perspectiva de ocupar um cargo muito importante na organização. Mas não foi isso que o deixou desconfiado e sim o fato de na época ele ter sido noivo de ninguém menos que Agnes Duister.

As engrenagens da sua cabeça foram girando tentando entender aquele mistério e quanto mais pensava, mais via que aquilo fazia sentido. Agnes tinha o poder de sugar as pessoas. O que aconteceria se ela sugasse alguém até não sobrar nada? A resposta estava na tela do tablet. Talvez estivesse na hora de seguir aquela mulher de perto e ele decidiu ir para o lugar mais provável de achá-la: a sede da Vinha.

Foi pensando nisso que ele pegou sua bicicleta e correu para lá e ficou observando de longe. Era ali onde no mundo original ficava o hospital do bairro das Pitangueiras.

Ele estava no outro lado da rua, olhando tudo com cautela. Se Boris estava mesmo falando a verdade, ele poderia estar sendo observado. Ah, como a ajuda de Paradoxo fazia falta! O cientista poderia fazer parar o tempo e assim ele teria como investigar qualquer coisa sem problemas.

“Hum... aposto que a torre inversa deve estar bem ali embaixo, mas como eu vou investigar?”

O rapaz foi puxando na memória o momento em que foram entrando na torre inversa. Como fizeram mesmo? Com algum esforço, ele viu uma imagem embaçada de um grande buraco e degraus de pedras feitos com a magia da Magali. Foi preciso se concentrar muito para colocar a imagem em foco. Depois de alguns minutos, eles foram parar no... no...

“Peraí, foi no porão? Em uma galeria subterrânea? Caramba, não tô lembrando!”

Tudo o que ele conseguia ver em sua mente eram imagens embaçadas dele e o resto do grupo andando em um lugar que ficava no subterrâneo. Quem estava com ele? Cascão, Magali, Penha, Denise... por alguns instantes sua mente ficou em branco. Só depois de muito esforço, ele conseguiu se lembrar do Dr Stavros e mesmo assim o rosto do médico ficou um tanto borrado. O que estava acontecendo com ele? Geralmente sua memória era muito boa e ele raramente esquecia um evento assim tão importante.

— E aí? Achou alguma coisa?

— Iai! – Cebola deu um gritinho agudo e pulou meio metro acima do chão.

— O que você tá fazendo aqui?

— Nós é que perguntamos! – Mônica apareceu de braços cruzados e Magali estava com cara de que ia lhe dar uns cascudos.

— Cara, você veio pra cá e nem falou pra gente? Tá querendo entrar aí sozinho, é?

Ele ficou sem jeito por ter mentido para os amigos, mas estava com muito medo de colocá-los no meio daquela confusão e alguém se ferir.

— Bem, é que eu só queria olhar umas coisas, dava pra fazer isso sozinho. – Mônica não se convenceu.

— Mesmo assim você devia ter falado pra gente! Aposto que ninguém mais sabe que você tá aqui. E se alguma coisa tivesse te acontecido?

— Por que tá nos deixando de fora? – Cascão perguntou. – Faz dias que você não fala nada sobre essa parada sinistra.

— Tá achando que a gente não dá conta, é? Olha que eu te dou um murro! – Magali ameaçou mostrando seus temidos punhos.

O rapaz tentou acalmá-los e dava para ver que estavam muito aborrecidos. Por fim, ele resolveu abrir o jogo contando sobre a conversa que teve com Boris uns dias atrás.

— Eles estão me vigiando a bastante tempo e não sei o que podem fazer se acharem que sei de muitas coisas. Não quero que vocês se metam em nenhuma encrenca por minha causa. Lembram do que aconteceu no ano passado?

— Claro que eu lembro, também estive lá. – Mônica respondeu. – Mas nós conseguimos superar aquela crise e agora estamos aqui! Cebola, alguma coisa tá acontecendo e queremos ajudar!

— Você não pode fazer isso sozinho, manezão. Se tentar, vão limpar o chão com você que nem a gente fazia ano passado.

— A Magali tá certa. Você precisa da nossa ajuda. – Cascão completou.

Ao ver seus rostos determinados, Cebola entendeu que não ia fazê-los desistir. Não sem perder a amizade deles. Por fim, o rapaz resolveu ser sincero e falar dos riscos que eles estavam correndo. Ele explicou da melhor forma possível sem revelar que tinha vindo de outro universo e da ajuda de Paradoxo.

— E é isso, pessoal. – ele finalizou. Os quatro tinham se afastado da instituição para poderem conversar em paz.

Os três olhavam para ele com os olhos arregalados. Era óbvio que eles não iam acreditar que os problemas pelos quais o planeta estava passando era por causa da ausência do sobrenatural e que poderiam ser culpa da organização, nem que debaixo daquele orfanato havia uma torre invertida que fora construída para servir de portal entre aquele universo e o inferior. Muito menos sobre criaturas das sombras que tinham vivido na Terra há milhões de anos e foram banidas sabe-se lá por quem e agora queriam tomar o planeta de volta. E sua suspeita de que Agnes pode ter sido responsável pela morte do seu primo e de várias outras vítimas? Como fazê-los acreditar naquilo? Ainda mais porque ele não pode contar a história completa sobre a aparição dos três cavalos, já que naquele mundo um deles tinha morrido, o outro nunca chegou a fazer pacto com a serpente e o que seria da guerra acabou não se manifestando porque não tinha planos de se vingar da Mônica.

— Cara, isso é doido demais. – Cascão foi o primeiro a falar. – E aí, o que a gente vai fazer?

— Vamos invadir o orfanato e abrir o chão? – Magali também quis saber.

— Não seria melhor a gente entrar ali de noite? De dia tem muita gente olhando!

Cebola ficou abismado.

— Gente, peraí! Isso pode ser muito perigoso porque estamos lidando com forças desconhecidas e muito poderosas!

— Tá, e daí? – eles falaram ao mesmo tempo, deixando-o desesperado.

— Daí que vocês podem acabar até morrendo! Eu sou imortal por causa da marca de IOR, mas vocês não!

Mônica não se importou.

— Eu posso não ter imortal que nem você, mas sou capaz de me defender muito bem, viu? Não sou nenhuma fraca não!

— Nem eu! – Magali também falou determinada.

— Muito menos eu! Cara, a gente sabe se cuidar, valeu?

Ao ver que não ia conseguir fazê-los mudar de idéia, Cebola acabou desistindo. Afinal, ele queria mesmo a ajuda dos amigos já que não podia contar muito com o Paradoxo e resolver aquilo sozinho ia levar muito mais tempo.

— Beleza, mas por favor gente, tomem cuidado que isso é muito perigoso!

— Tá, tranqüilo. Só que você ainda não falou como a gente vai chegar na tal da torre inversa. – Magali falou.

— É porque eu nem faço idéia! Quer dizer, acho que deve ter alguma entrada lá no orfanato, mas eu não sei onde fica e procurar pode ser arriscado.

Cascão coçou o queixo por alguns segundos e perguntou.

— Aqui, você disse que essa torre fica debaixo do orfanato?

— Fica.

— Então já é! Se a gente for pelo esgoto, deve dar pra chegar até lá.

Num instante, as memórias do Cebola voltaram e ele pode ver as imagens do grupo andando por uma galeria subterrânea de esgoto. Era a solução mais óbvia.

— Só que devem ter muitos túneis debaixo da cidade, a gente vai precisar de um mapa pra não se perder e eu não sei onde arrumar isso... – Mônica se ofereceu.

— Vou pesquisar na biblioteca da cidade. Eles devem ter alguma coisa lá.

— O Cascão já andou muito nos esgotos, ele conhece alguma coisa.

— Pelo menos sei como andar e não é qualquer lugar que a gente pode ir não. O Cebola tá certo, vamos precisar de um mapa e também de um ponto de partida.

Eles ficaram conversando e traçando planos sem saber que alguém os observava de longe.

Como o rapaz parecia seguro junto com os amigos, ele bateu suas asas negras e voou para longe dali.

—_________________________________________________________

Manoel estava sentado na cama enquanto o médico fazia os curativos nos seus ferimentos. Alguns tinham infeccionado e ele teria que tomar antibióticos por algum tempo. Antônio o observava em silêncio, pois tinha recebido ordens para servir como orientador.

Quando o médico saiu e os dois ficaram sozinhos por um tempo, Antônio falou.

— Eu consegui achar o número de telefone da sua família e vou entrar em contato com eles assim que for possível.

— Eles moram no mesmo endereço?

— Sim, moram. Mas a gente tem que ter cuidado porque se você fugir, vai ser o primeiro lugar onde irão te procurar.

Ele ouviu passos se aproximando e ficou calado.

— Aí estão vocês. Como nosso novo membro está se saindo? – Sr. Malacai perguntou entrando no quarto sem bater.

— Ele está indo bem, senhor. Precisará de um tempo para se recuperar e logo poderá começar os estudos.

— Ótimo. Venha, vamos deixá-lo sozinho para descansar. Você ainda tem algumas tarefas para hoje. 

— Sim senhor.

Eles foram em silêncio para o escritório do Sr. Malacai. Uma vez lá dentro, o velho olhou bem para seu secretário.

— Eu reparei que você tem evitado me encarar. – Antônio o olhou com o rosto sem expressão.

— Eu não tinha percebido, senhor.

— Imagino que o estado daquele rapaz tenha lhe chocado.

— Entendo que foi para o bem dele.

— Entende mesmo? Entende também que tudo aquilo foi para o seu bem?

Ele teve que manter as mãos rigidamente presas atrás das costas para não acabar dando um soco na cara daquele velho.

— Sim senhor, eu entendo. Apenas não sabia que havia outros.

— Ah, quanta ingenuidade! Existem milhares de pessoas que precisam ser dobradas. Mas não se preocupe, mudaremos um a um. Sirva-me um copo com água. Estou com sede.

Ele fez conforme ordenado e colocou na frente do velho um copo de água sobre um guardanapo bem dobrado. Se pudesse, teria cuspido no copo. Sr. Malacai tomou uns goles e voltou a falar.

— Sabe por que fazemos isso?

— Para nos disciplinar? – ele arriscou uma resposta.

— Também, mas não é somente isso. Veja bem: existem três tipos de pessoas: Pastores, ovelhas e lobos. Os pastores conhecem os melhores pastos, onde é ou não seguro e protege seu rebanho. As ovelhas, por outro lado, são criaturas de inteligência fraca. Jamais sobreviveriam sozinhas.

— E os lobos?

— São aqueles que levam as ovelhas para o mau caminho, colocando idéias erradas em suas cabeças fracas. É por isso que eles devem ser disciplinados e é aí que entram os pastores. 

O rapaz ouvia tudo chocado com tanta arrogância daquele velho.

— Nossa organização é como um grande pastor para essas ovelhas estúpidas e nós vamos pastoreá-las para o seu bem.

— Eu pensei que...

— Ovelhas não devem pensar, somente obedecer. É por isso que queremos abolir a arte, a criatividade e qualquer outra atividade que leve as pessoas a pensarem porque isso é perigoso, ameaça a ordem! Os pastores comandam e as ovelhas seguem. Sempre foi assim e sempre será. É a forma como o mundo funciona.

— Faz sentido, senhor. – cada palavra que ele dizia concordando com aquele absurdo, era uma agulhada em seu coração.

— As ovelhas trabalham para os pastores em troca recebem comida e proteção. Uma troca justa, não acha?

— Sim senhor.

— Ótimo. Agora volte ao seu trabalho. Você tem alguns documentos para entregar ainda hoje.

— Sim senhor. – Ele repetiu mecanicamente, fervendo de raiva por dentro. De um jeito ou de outro, ele ia mostrar para aquele velho o lobo que tinha dentro dele.  


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