Olhe outra vez escrita por psyluna


Capítulo 3
Paciência


Notas iniciais do capítulo

ALERTA DE CONTEÚDO: o capítulo contém uma carta de suicídio encontrada pelo Rinnosuke na Barreira. Não leia caso seja sensível a esse tipo de coisa.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786225/chapter/3

Quando é que ele vai voltar? Quero sair logo. Uma senhora agradece e deixa a loja com um conjunto inteiro de utensílios de cozinha. Dormiu bem, mas a situação como um todo é um tédio e calcula o custo-benefício de cochilar. Estamos abertos há três horas e só agora o primeiro cliente. Até o livro sobre magias de fogo, que parecia tão interessante pela capa, é arrastado e complexo; pensa em devolver discretamente, mas o risco para consegui-lo foi grande e ser descoberta na biblioteca de Patchouli faria seus piores medos se concretizarem. Vai ficar bem na prateleira lá de casa. Deita a cabeça no balcão. O sino da porta toca.

—Seja bem vin- Ah, é você, pai. Como foram as compras?

—Geladas. Mas vão dar um bom jantar. - Ele ergue as sacolas cheias, quase arrebentando. - Quer convidar alguém?

—Boa ideia. Até mais tarde.

—Pensa rápido. - Marisa vê uma blusa em sua direção e ela a acerta no rosto. - Não vá perder as orelhas lá fora.

Sai da loja sorridente, com o coração em paz. Quem diria que voltaríamos a conversar. A gola do casaco cobre parte do rosto para barrar o vento contrário. É a primeira vez que consegue voar de vassoura desde a semana anterior. Gensokyo é incrível do alto, não importa quantas vezes observe. As casas da vila rareiam na trilha que leva até o templo Hakurei, trocadas por árvores e montes brancos, um cenário que revela uma paisagem diferente a cada três meses; bom, se nada estranho acontecer, pelo menos.

Sobe as tão familiares escadarias de pedra, atravessa o portal e chama por Reimu. Ela não responde. Tenta de novo, nada. Será que ela não ouviu? Abre a porta e sai procurando pelos cômodos bagunçados. O fogão não tem lenha e a chaleira está vazia. Há neve demais em volta do prédio. Talvez seja só um desencontro, mas eu não a vejo há dias…E deve ter algum tempo que ela não volta para casa. Dá meia-volta e retorna à vila. Ninguém sabe, ninguém viu, ou foi antes da última vez que a encontrou. Apesar de forte o bastante para se defender sozinha, Reimu não se envolveria em confusão sem convidá-la para ir junto.

No caminho para casa, antes da floresta, algo chama sua atenção. Aquilo é a loja? Pousa perto de uma pilha branca enorme, a neve do telhado quase emendada à do chão. Só o andar de cima escapa. Não custa tentar, e se Kourin estiver fora, também não faz mal. Mas como vou entrar? Cavar com as mãos é uma péssima ideia. Não tem ferramentas, nem está em dia com qualquer tipo de telecinese. Vai ter que ser ao meu estilo.

Encontra uma posição que não danificaria a casa, ou os produtos maravilhosos lá dentro. Alonga os braços, endireita as costas, respira fundo e dispara seu trunfo. O raio de luz multicolorido dispersa a neve e a transforma em uma bruma, que logo se espalha por outras partes do chão. O início da floresta sofre alguns danos colaterais. Nada que alguém vá reclamar, ela espera. A porta da Kourindou se abre e um par de olhos curiosos procura de onde veio o barulho.

—Marisa? Foi você quem fez aquilo?

Foi só eu parar de procurar. Corre até ela e pula para um abraço.

—Onde é que você esteve? - Antes que Reimu possa responder, interrompe. - Ei, que roupas são essas? Não são nem do seu tamanho.

—Eu tive um resfriado. Entre, está quente aqui, eu fiz chá… Acho que vou precisar da sua ajuda.

Reimu a puxa pela mão. Há mercadoria nova nas prateleiras e adoraria conferir todas. Uma caneta tinteiro cor de jade repousa sobre o balcão. Nossa, é muito mais bonita que as minhas. É rápida para colocá-la no bolso do casaco e reza para que Rinnosuke não dê falta. Por que não o vê em lugar algum?

—Ele dormiu há muitas horas, não sei o que fazer.

Apesar de ser dia, entra pouca luz do sol no quarto. Ajoelham-se ao lado do futon; Reimu vira a cabeça dele com cautela e mostra a mancha de sangue nas ataduras enquanto explica como aconteceu. Sente uma ponta de aflição: é preciso um ferimento sério para deixá-lo daquele jeito. Se fosse ela, não sairia da cama por um mês.

—Pelo menos, já estancou. Você pode continuar segurando minha mão, para começar. Eu não acharia ruim. - Sorri de lado.

 

~

 

Vou morrer. Todos vamos, mas sinto que é agora. Acorda com um resmungo e tentando conter uma lágrima de dor. Ouve um tanto de sons: vozes, passos, portas que abrem e fecham. Não consegue interpretar a conversa. Uma das pessoas é Reimu, disso está certo. Ela volta com algo em mãos; Reimu o manda ficar quieto, apara seu rosto com a mão e coloca um objeto embrulhado num pano sobre a ferida. Neve… Eu acho. Espero.

A outra pessoa na casa… Marisa? Como ela entrou? Se bem que duvidar da habilidade dela em invadir lugares não é sábio. O quarto fica com a porta entreaberta, com uma fresta de luz chata, e logo enxerga a sombra de sua mesa de centro trocando de lugar. Fecha os olhos e os abre um tempo depois, numa tentativa débil de acordar menos atordoado. Algum tempo se vai; não se preocupa em medir quanto. Pergunta o que elas fazem no quarto.

—Viemos te fazer companhia. Você está melhor?

Só se você considerar a vida um milagre. Marisa o cumprimenta num tom de voz baixo demais para o costume dela, mas com a mesma animação de sempre.

—Minha cabeça vai explodir qualquer hora dessas. Agradeço pela preocupação. - Além de sofrendo, está rouco e morto de sede. Tenta sem sucesso alcançar a lanterna de mão sem se mover muito. - Tem uma luz suportável aqui, se não quiserem ficar no escuro por minha causa. Como eu cheguei a esse ponto, se posso saber?

—Como assim? - Reimu pergunta. - Não é óbvio?

Marisa liga a lanterna, maravilhada com os sigilos que deve conhecer bem, e comenta: —É bem comum ter umas perdas de memória depois de uma pancada na cabeça. Xeque. É assim que se diz?

—Exato. - Ele ouve um barulho de arrastar. Xadrez? Já até sei os resultados, sem nem ver. — Também tem esse. Xeque-mate. Ganhei.

Marisa dá uma pancada revoltada na mesa, exige uma revanche e Reimu ri enquanto reorganiza as peças. Quanto mais alto o som, pior o ferimento pulsa. Nunca mais faço pouco-caso de um humano com dor de cabeça. Logo, elas trocam o xadrez por damas, revistas de colorir, bolas de gude e o cubo mágico nada mágico. Não puxam muito assunto com ele, que fica grato por isso, fora quando trazem água. Tenta dormir para não sentir dor e é difícil, mas consegue.

Acorda no meio da noite, em uma hora imprecisa e não olha o relógio. O quarto está em silêncio; ou as duas foram embora, ou dormiram. Levantar sozinho para ir ao banheiro é uma luta para não balançar demais a cabeça. Quase na porta, não cai no chão por um triz. Ouve um resmungo e o farfalhar dos lençóis. Encontra a lanterna de mão sobre a mesa e a acende do lado de fora, só com uma fresta aberta. Estreita os olhos para ver Marisa e Reimu dormindo perto… Demais. Será que resolvi o mistério da carta? Não sabe dizer se tem respostas ou mais dúvidas.

Muita calma agora…Deitar-se é mais complicado do que parecia. Ai. Maldição. Estica o braço até Reimu para um breve afago no cabelo. Ela tem um coração, no fim das contas. Quem poderia imaginar?

 

~

 

—Ei, o arroz vai queimar. - Reimu chama a atenção. - Deixe isso aí, vá lá dar um jeito.

Marisa larga o livro e sai correndo para o fogão, reclamando que ninguém a ajuda, do frio, de ter que trabalhar para o pai. Ninguém dá ouvidos. Olhos menos treinados achariam que elas se odeiam. Rinnosuke ri sozinho; a cabeça dói e tenta se forçar a ficar mais quieto. Ainda bem que não nevou o mesmo de ontem. Em dupla, elas desbloquearam as janelas e outras portas da Kourindou. Espera, por que as árvores chamuscadas ali? Dá de ombros. Coisas inusitadas e aleatórias eram a regra, convivendo com as duas.

—Já está pronto? Preciso ir para casa.

—Está, sim, senhora Scarlet. Bom apetite. - Marisa chega de mau humor equilibrando três tigelas e três copos, imitando os trejeitos de Sakuya. - Espero que esteja do seu agrado, vou me retirar, blá, blá, blá.

—Ela te acoberta e é assim que você retribui? Bom saber…

—Não que ela esteja ouvindo. Aliás, espero que não.

Eu não duvidaria. Já ouviu boatos assustadores sobre a criada da família Scarlet e tomava cuidado extra para atendê-la bem em suas ocasionais aparições. Ela nem parece humana, para dizer a verdade. E eu, que não sou, levaria uma surra dela. Um estalo de dedos interrompe sua linha de raciocínio. Marisa acena a mão em frente a seu rosto.

—Kourin? Estou falando com você.

—Oh, perdão. O que disse?

—Perguntei se vai abrir a loja hoje.

—Ah, isso. - Ajeita a bandagem na testa. - Pretendo. As vendas melhoram no fim do ano por causa do festival.

—É mesmo, né? Meu pai fala a mesma coisa. Ele disse que vai montar uma barraca. Você devia também.

Não, muito obrigado. Passar muito tempo em contato com os habitantes da vila deixava ambos os lados incomodados. Não que chegasse a ter asas ou gosto por carne humana, mas não envelhecia há uns bons cinquenta anos. Muda de assunto:

—Preciso fazer compras. Essas eram minhas últimas verduras. - Olha para a própria tigela de cenouras, tofu e broto de feijão. - Agora, só tenho-

—Eu esqueci o jantar do meu pai! - Marisa o interrompe com um berro. - Ontem era dia de cozido. Ele vai me matar…

Desiste de acalmar o drama; não quer se mover. Reimu volta da cozinha sem entender e dá pouca importância, mais preocupada em vestir roupas para enfrentar o frio. Dentro da loja, dá para acreditar que nem é inverno.

—Relaxa. Eu passo lá e explico o que aconteceu. Aproveite e fique aqui de olho nele por hoje. Nunca se sabe quando algo vai empurrá-lo da escada.

Nem brinque com isso. Já caio o suficiente sozinho.

—Não adianta, ele vai querer que eu trabalhe o dobro. O que eu faço? - Marisa olha de um para o outro, chorosa. Reimu está desinteressada como sempre, calçando os sapatos ao lado da saída.

—Não sei. Vocês se resolvem depois. Posso ir?

As súplicas escandalosas de Marisa rendem um abraço de despedida pouco comovido da amiga. Reimu sorri, achando que ninguém a vê. Olha só… Mais uma pista. Para ele, só um aceno a metros de distância. Fica de pé e começa a colocar as coisas em ordem na velocidade que a dor de cabeça permite. Pede uma ajuda aqui, outra ali com as prateleiras mais altas ou objetos pesados. Este aqui é novo. Puxa a esfera metálica de um dos lados do enfeite de mesa para vê-la rebater a da outra extremidade, como um balanço. O movimento o hipnotiza. Folheia as últimas páginas do catálogo e não vê registro do objeto. Onde está minha caneta.. Ah. Uma olhada ligeira para o topo da escada, perto da estante de enciclopédias, dá sua resposta; Marisa escolhe um volume para ler. Ela vai se fazer de desentendida. Usa a caneta da bolsa que leva junto ao corpo. “Pêndulo de Newton: uma unidade.”

A Kourindou bate um recorde de vendas: incríveis vinte produtos para nove clientes em uma tarde. É mais provável que tenham vindo nos outros dias e encontrado a loja fechada por motivos de força maior. Gente demais fez ofertas pelo peso de papel com a cerejeira, mas não está a venda. Marisa percebeu a existência dele, para seu desespero. Preciso encontrar um lugar seguro para esse negócio. Ainda bem que não cabe nos bolsos dela. Diferente de Reimu, ela prefere passar tempo lendo e conversando fiado a jogar alguma coisa. É bem depois do pôr do sol quando decide ir embora.

—Pode levar isto aqui. - Rinnosuke empresta um bom casaco, apesar de surrado, sem esperar que ele volte para seu armário. - Duvido que sirva, mas anda frio demais para se descuidar.

—Oh, é macio. Onde conseguiu?

—Não é uma história feliz. Encontrei na barreira anos atrás, tinha um bilhete de despedida no bolso interno. Está aqui em algum lugar.

Aqui estou eu com outra carta misteriosa. Revira uma das gavetas e encontra um envelope velho, amarelado. Começa a ler o conteúdo em voz alta.

“Escolhi este lugar na esperança de que ninguém me encontrasse. Torço para que nem mesmo procurem. De qualquer forma, deixo essas últimas palavras, caso meu plano não saia como o esperado. Continuem com suas vidas. Saiam da cama todos os dias preocupados com a meta do trabalho e as notas das provas. Percam tempo pensando no quanto aquela pessoa é ridícula ou se ele ou ela gosta mesmo de você. Corram atrás de um sonho ou só vivam um ano depois do outro. Mas por favor, independente de qualquer escolha, esqueçam a minha existência.

Deixei todas as minhas contas pagas. Entreguei minhas economias e alimentos para quem precisaria mais do que eu. Livrem-se das minhas coisas; alguém deve querê-las. Prefiro me tornar uma dúvida a continuar sendo um peso. Meu único pedido egoísta é poder ver todos vocês de onde quer que eu vá parar. Especialmente você, Chihiro. Saiba que sempre te amei, e esse é um dos maiores motivos para a minha partida.

Vejo vocês em uma reencarnação na qual eu não seja um fracasso,

Takumi.”

—Eu preferia não ter perguntado. Só a vista da Saigyou Ayakashi já me dá arrepios…

—Nunca vamos saber o que aconteceu. É por isso que guardo esse bilhete. Imagine as possibilidades. - Começa a enumerar. - Quais os motivos do suicídio? Alguém suspeitou do que ele faria? Ele realmente se matou, ou foi só uma tentativa de acobertar um assassinato? Ele não pode ter só abandonado o casaco e sumido? Quem é Chihiro? É um homem ou uma mulher? De que tipo de amor o autor estava falando? Ele veio parar em Gensokyo? Será que não foi tudo uma brincadeira de mau gosto?

—Não sabia que você gostava de mistérios, Kourin. - Marisa pega a carta das mãos dele para passar os olhos, dobra e guarda de novo no envelope. - Não tem data. De quando é?

—Que tipo de carta de suicídio teria uma data?

—Uma importante, ué. De alguém muito rico. Ou poderoso. Ou… Divino. Eu não sairia de cena sem deixar um marco na história.

Acho que você precisa se olhar mais no espelho, Marisa.

—Faz sentido. Vá antes que fique mais frio.

—Ei, não vá me expulsando assim! Eu tomei conta de você. - Ela se ajeita na vassoura, veste o capuz do casaco misterioso e flutua para fora. - Volto qualquer dia desses.

—Cuidado com o vento. Até mais.

A dor enfraquece do grau insuportável para o inconveniente. Contar notas e moedas não é a tarefa mais fácil, mas é necessária. Por uma coincidência, nenhum dos clientes ofereceu trocas. O dicionário ganha mais um verbete: “Paciência: híbrido entre sentimento e atitude de tolerar, compreender e esperar.” O implacável barulho de madeira volta. Eu tinha conseguido acertar o calço dessa porcaria de janela. Não é possível que comecei a fazer tudo errado depois de bater a cabeça. Quase tem um infarto ao ver uma silhueta do outro lado.

—Reimu? Eu tenho uma porta para esse tipo de coisa. - Deixa-a entrar sem prolongar a bronca; está gelado lá fora. - E isso nem é muito do seu feitio. Sua amiga especialista em entradas alternativas foi embora agora há pouco.

Ela não ri, nem responde. Será que elas discutiram nessa meia hora de intervalo?

—Achei que fosse ficar em casa e descansar por causa do resfriado. Por que a visita a essa hora?

—Eu… - Ela suspira. - Eu vim cumprir o que combinamos.

Quê? Nem lhe passou pela cabeça um motivo tão estranho, ou abstrato, ou… Inexistente. Como ela parece triste, não questiona e a convida para se sentar.

—Ainda não voltei a mesa para a sala. Espere lá enquanto eu ajeito uma bebida quente.

Dá para afirmar com folga que sei mais sobre aquela carta de suicídio do que desse assunto de agora. Reimu passa dois copos de chá em silêncio e olhando para baixo. Qualquer pergunta ou coisa que diga parece ofensiva, mas precisa tentar algo ou vão continuar calados.

—Então, sobre o que você quer conversar? - Ergue a sobrancelha e nunca se arrependeu tanto.

Ela bate de leve o dedo na lateral do copo até tomar coragem.

—Hoje à tarde, eu fui à loja Kirisame. A do pai de Marisa. Fui avisar que ela ia passar o dia aqui cuidando de você. - Algo deu errado. Bem errado.— O festival de fim de ano está perto, e eu tive a ideia de escolher um presente daqui em que ela estivesse de olho. E uma carta contando… Sendo clara sobre algumas coisas. Mas alguém chegou antes de mim.

Então eu estava certo sobre a carta e meio certo sobre a discussão. Torce para não fazer nenhuma expressão facial que o dedure.

—Tinha uma carta de outra pessoa na mesa dela. De um mês atrás. Era da Alice… - Ela desce o punho sobre a mesa com força demais. - Elas não me contaram.

Ele tem a má surpresa de vê-la chorar pela primeira vez; parece tão magoada quanto furiosa e tentou evitar o quanto pôde. Se isso for constrangedor, vai ser bem fácil decidir onde me bater. Alcança a mão dela e a toca com cuidado, só sobrepondo, sem segurar. Nada muda. Decide num estalo dar a volta na mesa e confortá-la como faria com uma criança: com tapinhas leves na cabeça. Não sabe se é mais desconcertante vê-la tão mal, não ter noção do que fazer ou o abraço que ela dá, tão de repente. Que situação. Faz tanto tempo desde a última vez que demorou a retribuir.

—Não queria ter feito esse papel. Perdão. - Reimu enxuga os olhos com a blusa. Mal tem voz. - Acho que é sua vez de me contar algo.

—O que gostaria de saber? - E por que essa curiosidade?

—Algo que ninguém mais tenha ouvido.

Se ser interessante for obrigatório, nada feito. Todos sabem que é meio-youkai. Todos sabem que passou parte da vida no mundo exterior, um borrão em sua memória. Todos sabem que mais é furtado do que vende alguma coisa. Seus talentos de combate são ruins e isso é de conhecimento público, também. Droga, minha vida é um livro aberto. Há o acontecimento com os Kirisame, mas não é um segredo meu e nem quero falar disso.

—Hm, eu… Nunca tive uma namorada. Isso serve?

Ela ri e o clima fica mais leve. Não estraguei as coisas. Ótimo.

—É sério?

—Sim, é sério. Por que a surpresa?

—Eu não imaginava. Acho que nunca tinha pensado nisso, na verdade. - Reimu estende a mão com o dedinho levantado para selar uma promessa imprevista. - Juro que não vou espalhar.

Para ser honesto, não faria muita diferença. Corresponde ao gesto sem ter compreendido metade do motivo daquele diálogo. Só sente muita dor de cabeça.

—Caso eu possa fazer alguma coisa, me avise. Nem que seja só… Ouvir. Se isso for útil.

Ela assente; não faz contato visual.

—Estou com sono. Posso dormir aqui hoje?

—Sair de casa agora seria insensatez. Escute, ou melhor, olhe pela janela. - A tempestade voltou. O som costuma fazê-lo dormir em paz. Eu não te expulsaria, também.

Recolhe as cobertas do chão para improvisar de novo um colchão e está quase de saída quando Reimu o chama.

—Na verdade… Pode ficar no quarto. Não tem problema. Está frio na sala.

Também estava nos outros dias, não que você tenha se importado. Dá meia-volta, dobra alguns cobertores, abre outros, fecha a porta e apaga a luz. Está ansioso, mas não sabe precisar a razão; algo entre contato físico demais de uma vez só e circunstâncias imprevisíveis. Deitar-se é ótimo para a coluna, horrível para a cabeça. Agora, em busca da posição perfeita. Vira de forma que o machucado fique para cima. Nada dá errado.

Como se fosse acidente, a mão de Reimu toca a dele. Deve achar que já dormiu. Ela tem medo de mim? Não sou muito assustador, acho. Nada que se compare ao pessoal com quem ela anda. O santuário Hakurei tem vários visitantes youkai e quase nada de humanos; um dos grupos provoca de forma direta a distância do outro. Isso porque ela caça e extermina um monte deles nas horas vagas. Se Reimu fosse amigável de início em vez de bater primeiro e perguntar depois, não duvida que virasse um templo como o de Byakuren Hijiri, em menor escala e de uma forma estranha. Fora isso, até entendo as pessoas terem medo de lá. Não é o deus mais calmo ou bondoso.

O sono demora a vir, então reflete sobre uma série de coisas. Marisa mentia como se respirasse, mas era péssima em sustentar as sandices. Como tinha conseguido manter segredo por tanto tempo? Alice Margatroid, ainda por cima. Acho que nunca ouvi a voz dela. Saber que ela se interessa por alguém é bem imprevisível. Se bem que, pensando de forma lógica, eu deveria esperar qualquer coisa. Diminui o ritmo das ideias mirabolantes para não se afundar em pensamentos e virar a noite nisso. Até hoje cedo, parecia tudo normal. Eu só não tinha certeza do envolvimento, nem da carta. Vai ser um fim de ano e tanto. Segura a mão de Reimu sem muito motivo, tenta dormir e consegue.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Olhe outra vez" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.