Olhe outra vez escrita por psyluna


Capítulo 2
Dor




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Só mais cinco minutos. Vira de bruços. Os lençóis sempre são mais macios pela manhã. Sente algo pressionando o meio das costas; ignora, mas não funciona. Até tem a impressão de ouvir alguém chamar… Agora, balançam-no pelo ombro. Por favor, me deixe em paz.

—Ei, qual é. Você disse que eu podia te acordar.

Ouve um espirro. Reimu? Gira o corpo e abre um pouco os olhos. Mesmo que não esteja muito claro, ainda não se acostumou.

—Credo, que cara de sono. Estou com fome.

—Bom dia. Dormiu bem? - Carrega o tom irônico. É mais provável que ela ignore ou confunda com rouquidão matinal.

—Já reparou que essa pergunta não tem lógica? Ninguém sente nada quando dorme. Acho que “acordou bem?” faz mais sentido.

Mesmo que passe a maior parte do tempo fungando e coçando o nariz, ela voltou a não se importar com a opinião dele. É, ela está melhor. Espreguiça e se despede dos cobertores com dor no coração.

—Eu tentei preparar aquele chá escuro mais cedo, mas é horrível. Como você toma? - Não seja o que eu estou pensando, por todos os deuses. Pergunta qual chá. - O da lata roxa.

—Não é chá, é café. Não se faz da mesma forma.

—Ah… Espero que o gosto seja melhor feito do jeito certo. - Ela faz cara de nojo e parece ter um calafrio.

Cabisbaixo, Rinnosuke confere quanto pó sobrou. Cinco, seis copos bem aguados, talvez. Sabe-se lá quando vai conseguir mais. Que boa maneira de começar a manhã. Os cogumelos com vegetais carregam tristeza, por mais bonito que o refogado tenha ficado. Incentiva Reimu a comer mais do que só arroz e maçãs: ela parece ter perdido peso. Uma espiada pela janela confirma que ainda estão presos na loja. A sensação é claustrofóbica, mas não faz muita diferença para ele, na prática. Reimu é que o preocupa. Ela deve ter coisas para cuidar e até conseguiria desbloquear alguma saída… Se estivesse saudável. Já que a própria não sugeriu isso, deve querer descansar, então ele não ousa dar ideias. Dissuadi-la de algo é uma tarefa que beira o impossível.

Enquanto guarda a louça limpa, o sonho que teve à noite brota de uma vez em sua memória. Um de seus livros, antes um drama enfadonho, se transformara numa biografia completa dele mesmo; no entanto, as páginas do futuro só tinham traços flutuantes, formando palavras aqui e ali. Não deve significar nada. Eles nunca significam, os meus, pelo menos. Mesmo assim, folheou o tal livro para constatar que continuava tão chato quanto registrar o estoque. Faltava quase uma caixa inteira. Reimu observava-o trabalhar como se fosse interessante. Será que não encontrou nada para se entreter?

—Quero jogar alguma coisa.

—Estou ocupado. Já protelei demais isto. Pode ser mais tarde? - Ela concorda de má vontade. Rinnosuke tem uma ideia. - Se você me ajudar, acabo mais rápido.

—Depende do que eu ganhar em troca…

Eu sabia. O peso de papel a convenceria na hora, mas gostou dele também. Encontra um adorno para cabelo: um pente de várias cores com um enfeite que lembra glicínias. Ela reflete um pouco antes de aceitar e perguntar o que vai fazer.

—Vai ser mais fácil que você anote as coisas e eu descubra o que elas são. - Entrega o caderno e a caneta. - É só seguir o modelo que eu tenho usado. Esta é uma…

—Lixa de unha. Eu tenho uma parecida.

Eu sei, era minha. Dei falta dela mês passado. O trabalho fica bem mais rápido quando não precisa parar e escrever o tempo todo. Ter pensado nisso antes não adiantaria, já que Reimu não passava trinta segundos sem espirrar no dia anterior. Ela olha com fascínio para várias outras peças que trocam de caixa. Barganha um colar com um pingente de chave; Rinnosuke cede, não por generosidade, mas porque não o usaria. Se eu for cobrar tudo o que ela me deve, acho que fico até com o templo Hakurei… Dispenso. Aliás, nenhuma palavra sobre o bloco de desenho perdido, ou achado, depende do ponto de vista. O assunto é complicado de abordar e lembrar isso reacendeu a curiosidade sobre a carta. Resolve arriscar.

—Você viu um bloco com a capa azul em algum lugar? Eu precisava dele.

Ela espirra, coça o nariz, levanta o rosto com os olhos estreitos e responde, debochada:

—Como você acha os produtos se não sabe onde guarda suas próprias coisas?

Saiu bem da pergunta. Má ideia falar disso, de qualquer modo.

—Se continuar insultando sua fonte de presentes, vai ficar sem eles. - Reimu reclama e ele se retrata pela brincadeira. - Saleiros de porcelana, duas unidades.

Ela não deve querer tocar no assunto. Pelo menos não agora, ou não comigo.

A caixa não catalogada acaba e ele saboreia essa conquista mais cedo do que esperava. Vai se presentear com uma boa dose de sake quente em segredo, da melhor leva. Só falta levar o peso para o sótão. Reimu sobe logo atrás e não faz cerimônia em procurar por mais objetos interessantes. Ela joga uma bola de pelúcia para cima até rebatê-la no ar e se assustar com a nuvem de poeira. Rinnosuke perde a conta dos espirros e recolhe o brinquedo do chão.

—Venha, vou buscar uma toalha.

—Você precisa limpar o sótão mais vezes.

—Não preciso, não. - Vira o rosto para trás e continua descendo a escada. - Só eu costumo vir aqui, que tipo de doença-

Um passo em falso e todo seu equilíbrio se vai.

Não sabe onde bateu a cabeça, mas aconteceu. O recuo da pancada foi um susto e a dor é gradativa. Reclama entre os dentes enquanto tenta mover o corpo, ficar sentado, levantar, qualquer coisa. Erguer-se traz uma tontura como má surpresa. Ouve Reimu gritando em pânico e seus passos afoitos pelos degraus. Ela toca o lado ferido com cautela.

—Por que a pressa? Foi só um tropeço, não aconteceu-

Droga. Ela mostra a mão manchada com bastante sangue; pergunta:

—Onde posso lavar isso?

—Há um banheiro em algum lugar da casa, sabe.

Reimu o carrega com dificuldade pelo corredor e apoia sua cabeça na lateral da banheira. Água fria demais para seu gosto corre pela lesão, pelo rosto, pela roupa; necessário, mas incômodo.

—Já está bom, pode deixar que eu cuido do resto.

—Quieto aí. - Ela o contém estendendo a mão e o enxuga com uma toalha não mais branca. Pressiona devagar uma ponta seca contra o corte. A expectativa da dor foi pior que a realidade. Para quem distribui socos por aí, ela não tem a mão tão pesada. Desiste de impedi-la, já que até respirar dói, mas não de negociações.

—Seria bom se eu pudesse deitar.

—Como? Ficar no chão vai piorar o sangramento.

—Você pode, sei lá, elevar minha cabeça. - A própria voz ecoa alta demais, e não sente falar nada útil. Eu devia só ficar calado.

Com muito mais cuidado do que ele esperava, Reimu o move para uma pilha de toalhas manchadas que colocou no próprio colo. Vira o rosto de lado para evitar a luz acesa e os escassos raios de sol. A janela do banheiro é a única do térreo alta o bastante para ficar fora da neve, mas estreita demais para uma pessoa sair. A dor o irrita por não passar e fazer a cabeça latejar, além do sangue que escorre pelo couro cabeludo; nem saber que o corte vai fechar dali poucos dias o consola. Mais um para minha fantástica lista de acidentes. Um grimório disso funcionaria.

—Está bom assim? - Ela pergunta, em tom genuíno de preocupação.

—“Bom” não é o termo, mas sim. Só quero esclarecer o porquê de todo esse cuidado.

—Eu passei dois dias imprestável e você fez o mesmo.

Até é verdade, mas não achei que pagar dívidas fosse muito a sua cara. Obrigado de qualquer forma. Soaria engraçado se não fosse por sua mistura de mau humor e agonia. Reimu também não está no melhor clima para brincadeiras.

—Meu último machucado sério já fazia tempo. Um tropeção aqui, uma bebida derramada ali, mas nada que se comparasse a esse… Inconveniente.

—Quando foi?

—Talvez vinte anos atrás. Eu mesmo cuidei. Não me deixou atordoado como agora.

Puxa a manga do braço direito até o cotovelo. O antebraço tem uma série de linhas mais claras, cicatrizes que não eram tão finas antes. Recordar os cacos de vidro traz um arrepio de aflição.

—Você conhece algum deus do tropeço? Ele gosta bastante de mim. Caí numa prateleira de vidrarias. - Reimu ri e sua cabeça balança. - Pegue leve, isso dói.

Ela pede desculpas e segura sua cabeça com as duas mãos nas laterais; no entanto, não consegue evitar um espirro. Rinnosuke sente frio porque ficou ensopado e ela também deve sentir, já que seus dedos tremem. E a febre voltou. Ela devia estar de cama. Duvida que ela vá mesmo se deitar, ainda mais com ele naquele estado, então puxa assunto sobre uma série de livros que a viu folhear no dia anterior. Ele mesmo gostou muito da trama histórica complexa, mas ela diz ter preguiça de tantos clãs para recordar.

—É para isso que servem os glossários. Há um nas páginas finais.

—Ah, é? Não vi. É chato de qualquer jeito ir até o fim do livro toda vez que eu tiver uma dúvida.

Perguntar do que ela não tem preguiça é meio inútil para quem a conhece há tanto tempo. Beber e brigar, claro. Nem parece uma sacerdotisa. Sugere outros livros mais simples, que ela deixa para procurar mais tarde. Quando se sente melhor, Reimu o ajuda a ficar ajoelhado, depois de pé. Ergue a cabeça com prudência cirúrgica. Seus óculos caem, com a articulação de uma haste rachada. O barulho da armação no piso a fez olhar para o chão, depois para ele. Não rir foi impossível e se arrependeu de qualquer movimento não calculado. A caminhada da derrota. Com o braço ao redor dos ombros dela, segue até a sala.

—Onde ficam seus curativos? - Reimu indaga, enfeitiçada pelo peso de papel com a cerejeira.

—Última gaveta do armário, atrás das outras coisas, tenho uma faixa. Os curativos adesivos estão no sótão. Não recomendo. - A ideia de ficar com cabelo emaranhado à cola é horrorosa. - E nem funcionariam para um corte desse tamanho.

Ela tira a toalha encharcada, enrola a cabeça dele com várias voltas de bandagem e dá um nó nas pontas. Ainda dói, mas não escorre mais sangue. Por enquanto, eu acho. Eu não podia machucar qualquer outra coisa? Sugere que ela aumente a temperatura do aquecedor para secá-lo mais rápido. Precisaria de ajuda para colocar roupas secas e pedir isso soa bem mal-intencionado. Fecha os olhos na tentativa de meditar e sentir menos dor. Quando os abre, Reimu se enrolou nas cobertas onde ele dormiu e rabisca uma revista de passatempos.

—Vá descansar. Você ainda está doente, lembra? - Ela tenta negar e um espirro a impede. - Nem comece.

—Dá um tempo. Pode me ajudar a resolver isso aqui?

Rinnosuke estreita os olhos para enxergar a página que ela mostra.

—Esses são os sudokus de nível difícil. Deveria começar pelos mais simples.

—Estão todos feitos. Aqui é um três ou um nove?

—Vai ser mais fácil se você mantiver a revista numa posição que eu consiga ler. Meus óculos também estão com sequelas.

Reimu dá a volta na mesa para se sentarem lado a lado. Ele se arrasta um centímetro de cada vez. Sente uma gota morna de sangue descer pela orelha e a remove com a toalha, que deixa tudo vermelho de tão saturada. Que saco. Ainda vou ter que tirar essas manchas… Malditos problemas de coordenação motora. Adoraria desmaiar e acordar curado, mas apoiar o machucado contra o travesseiro, mesmo que no décimo quinto estágio do sono, é um gigantesco argumento contrário. As páginas da revista passam uma após a outra; com ajuda, os desafios de lógica são divertidos e não frustrantes. Vão tarde e noite adentro com as palavras-cruzadas, essas de fato difíceis. Outro fechar de olhos transformou uma meditação em cochilo.

 

~

 

A sala está escura; só se vê a luz do aquecedor. Eu ficaria bem contente se o mundo não girasse tão rápido, só por um momento, para eu ficar de pé. Uma mão na parede o estabiliza, não o suficiente. Perdi tanto sangue assim? Caminha para o quarto a passos curtos. A porta está entreaberta e as dobradiças acordam Reimu. Ela pergunta as horas, mas ele também não sabe.

—Pode dormir aqui. - Forra o travesseiro com toalhas limpas, com certeza não as mesmas do banheiro. - Aliás, hoje cedo… Seu bloco de desenho está aqui. Amanhã eu guardo.

Se você quer uma pista, essa é sua chance.

—Podia ter me dito antes. O que estava desenhando?

Ela coça o olho e boceja. Ou está bolando uma mentira, ou pensando em como dizer a verdade.

—Não acho que você vá guardar segredo.

Por tudo o que é mais sagrado, como é difícil raciocinar com a cabeça desse jeito. Que hora para ficar curioso.

—Podemos fazer um trato, então. Um segredo meu pelo seu. Serve?

—Parece mais justo. Amanhã eu conto.

Reimu o ajuda a se deitar, o que é esperado. Ajeita o cobertor, nenhuma surpresa. Eis que ela se ajoelha ao lado do futon e faz um carinho desajeitado em seu cabelo, seguido de um “boa noite”. Talvez só quer que eu melhore logo. Alcança sua lanterna de mão mágica. Minha criação favorita… Costuma usá-la quando está fora de casa à noite ou como abajur sobre uma caixa de madeira. Vê-la acender traz a mesma alegria de quando acertou o sigilo que a fez funcionar e a mesma melancolia de sempre. Tira a bolsa da cintura e o dicionário dela. “Dor: sensação desconfortável, com vários graus de intensidade e formas. Alerta o indivíduo de que algo está errado.” Como fazê-la passar, contudo, ainda precisa de alguns testes.


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