Olhe outra vez escrita por psyluna


Capítulo 4
Problema + Segredo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786225/chapter/4

O despertador toca e o desliga sem delicadeza. Eu devia me livrar desse negócio. Que invenção desumana. Se tivesse que avaliar a dor de cabeça, seria como uma visita chata ocasional. Mal serve o primeiro copo de chá quando alguém bate à porta seguidas vezes.

—Bom dia, Kourin! Vim trazer seu casaco.

—Ah, bom dia. - Pega a peça de volta sem questionar e agradece. Pode ser amaldiçoada e eu nem sei.— Como foi com seu pai?

—Ele não ficou muito feliz, mas até entendeu. Depois vá lá dar um oi. Faz quanto tempo que vocês não se veem?

Não fico contando, dá peso na consciência. E por que eu acho que você está furando serviço com ele? Por um triz, não a convida para entrar; despede-se às pressas e fecha a porta na cara dela, com a desculpa de comida no fogo. Quase atrapalho tudo. Marisa pode esbravejar e reclamar o quanto quiser. Corre para o quarto a fim de alertar Reimu: que ela se esconda ou saia pela janela, não importa. Ela não está mais lá. Em silêncio, chega à escrivaninha; lá está o bloco de desenho. Uma fita vermelha marca uma página. É da roupa dela. “Obrigada por tudo e desculpe pelo incômodo.” Quem é você e o que fez com a Reimu de sempre?

Volta e deixa a visitante, ou cliente, ou problema entrar. Marisa o olha feio, mas não pergunta nada e corre para a cozinha. Ela dispara a se queixar de todo e qualquer assunto; Rinnosuke ouve fingindo prestar atenção. Lá se vai seu chá também. Por sorte, ela trouxe um tanto bom de biscoitos de arroz para dividir, assim como cogumelos comestíveis.

—Não crescem muito longe de casa… Da minha casa. Você entendeu. Vou tentar trazer algumas coisas e fazer um cozido aqui. Posso convidar alguém?

—Como preferir, desde que lave a louça.

Mais protestos ignorados. Deixa-a fazer o que quiser enquanto esconde o fantástico peso de papel longe de mãos atrevidas. Se as pétalas caíssem, seria ainda mais incrível. Marisa pratica contar as anedotas de um livro de comédia e discorre de forma interminável sobre o que andava estudando. Está vibrante com os frutos de seu esforço: elabora sigilos próprios em vez de só copiá-los, assim como lê os símbolos de propriedade em objetos.

—Existe muita controvérsia entre os autores, sabe? Entre se especializar nos talentos naturais ou equilibrar aquilo que fazemos mal.

—Qual é o seu ponto de vista? - Se eu praticasse mais, também não pararia de falar do assunto. A conversa o deixa nostálgico, tanto quanto incomodado.

—Acho que ficamos preguiçosos com o que já somos bons. Não precisa de esforço, então, para que estudar? Mas nem sempre é suficiente. Dá aquela sensação de “ah, eu posso virar um gênio quando eu quiser, então fica para depois”, e nunca viramos, mesmo.

Nada sobre Reimu até agora. Marisa não sabe que ela descobriu o relacionamento, então, em teoria, está tudo normal. A porta abre e aparece a única freguesa do dia, quase na hora de fechar. A blusa branca de gola felpuda cobre seu rosto até o nariz, mas os adereços no cabelo verde revelam quem é. Gensokyo carece de sacerdotisas disciplinadas há um tempo. Ela olha ao redor, ignorando algumas coisas e admirando outras.

—Nossa, parece a loja da minha avó. Com licença, você tem alguma bebida? Que fique boa gelada, de preferência.

Como ela consegue? Está abaixo de zero há uma semana.

—Marisa, pode se levantar? Há produtos atrás de você.

Elas começam a pôr os assuntos em dia assim que notam a presença uma da outra. Sanae escolhe uma lata de café com leite e a deixa no beiral da janela. Antes que possa impedir, elas ocupam sua sala de estar sem mesa a convite de Marisa. Rinnosuke faz o pêndulo de Newton rebater com o cérebro desligado até começar a prestar atenção na conversa.

—É raro ver você sozinha. Reimu está bem?

—Ela teve um resfriado. Nada sério, já passou. O que vocês estão aprontando para o fim do ano?

—É surpresa. - Sanae usa a manga do casaco como luva para segurar o café. - E pensar que eu costumava comprar isso atravessando a rua. Quer provar?

Marisa o chama para se juntar a elas. Até parece que a casa é sua. A sacerdotisa faz muitas perguntas. Alguém que escuta o que eu digo por vontade própria é uma novidade.

—Ouvi muita coisa sobre a loja antes de vir, sendo sincera. - Sanae imita várias vozes e expressões. - “Não vá, a estrada é cheia de youkais.” “É o vendedor mais desagradável que já me atendeu.” “Ele é perigoso, o tio da conhecida do meu primo de segundo grau me disse.” Mas não tem uma alma viva por aqui com esse frio, você não é detestável e não tentou me matar. Até o momento. Eu acho.

—Kourin? - Marisa ri. - Só consegue matar de tédio.

—Não é você quem vem procurar coisas interessantes com bastante frequência na minha loja?

—Se bem que você já me deu um susto e quase levou uma bola de fogo no meio da cara.

Parabéns por falar a verdade uma vez na vida. Da próxima, diga uma mais elogiosa e não mude de assunto.

—Em minha defesa, você trocou minhas soluções químicas de lugar na semana antes daquilo. Eu só revidei.

—Mas eu tinha seis anos, e você tem…

—Não vamos entrar em detalhes. - A cabeça dói. - Vocês comentaram do festival de fim de ano agora há pouco. Estou certo?

Sanae deixa a lata no chão e explica:

—Isso. O fim de ano é uma época de transição, onde as pessoas ficam com a espiritualidade mais aguçada. Se alguém pretende fazer qualquer coisa do tipo, boa ou ruim, a hora está próxima.

Marisa está inquieta; vasculha todos os cantos em volta da sacerdotisa. Rinnosuke pergunta o que houve.

—Ela leu isso em algum lugar, tenho certeza. - Sanae dá um cascudo leve na cabeça dela e manda não atrapalhar.

—Bom, continuando. É mais fácil afetar as pessoas se elas estiverem no seu raio de ação. Não vou entrar no mérito, o raio em si depende de várias coisas. O que eu quero dizer é: tire todo mundo de casa, chame atenção para você e faça o que tiver que fazer.

Eu sabia que era benéfico, só não como, nem por quê. Se o templo Moriya tem planos, Reimu também deve ter. Espia o lado de fora por uma fresta da cortina.

—Parou de nevar. Se quiserem ir antes de escurecer, agora é a hora.

Sanae deixa alguns trocados e completa o preço do café com um canivete do mundo exterior, sobre o qual não mede elogios. Ela não está exagerando, é mesmo uma boa peça. Encostar de leve o dedo já ameaça cortar, a lâmina é retrátil e todas as partes de metal são iridescentes.

—Sabe como é, as ameaças daqui são meio que maiores e mais barulhentas. Não preciso mais disso.

O maior perigo aos humanos lá fora é a própria espécie. Que ironia.

A Kourindou fica em silêncio pela primeira vez em dias. Não a pausa curta numa conversa ou o virar entretido de páginas. Algo mais pesado; mais sufocante. Busca o disputado peso de papel no esconderijo. Vejo as árvores lá fora e acho que o inverno vai durar para sempre. Nem parece que imagens como essa são reais. Faz o teste de acender a lanterna de mão atrás da esfera e é de encher os olhos. As cores da cerejeira são ainda mais vivas; é como se existisse fora do vidro. Arte é uma forma de magia? Acho que consigo me tornar um artista. Mas não gostaria de ter que morrer no processo, sabe-se lá no que isso acaba. A história da Saigyou Ayakashi lhe ensinara essa lição. Será que era tão bonita quanto esta aqui? Faz o jantar, come e dorme pensando em cerejeiras.

Acorda congelando no meio da noite só para ver que acabou o combustível do aquecedor. Que hora desgraçada para isso acontecer. Yukari só pretende acordar em março. Passa a mão no rosto e resmunga coisas indecifráveis. “Problema: obstáculo ou empecilho que dificulta um objetivo.” Anota no dicionário com uma letra que talvez nem entende mais tarde. Aproveita a lembrança repentina para desligar o despertador; não está com a menor vontade de levantar cedo. Joga três cobertores sobre o corpo e bate os dentes por um bom tempo.

Perde o sono às sete da manhã, mas se recusa a sair da cama. Não quer dar margem para a maré de azar. Quem sabe se eu ficar quieto o suficiente, a maldição ache que eu morri e vá embora. A barriga dói de fome e fica de pé a contragosto. Nem o fogão aceso consegue aquecer a cozinha. Como? Está tudo fechado.

—Olá, tem alguém aí? Bom dia.

Cai para trás; a cabeça balança e não consegue conter um xingamento. Ouve um riso segurado. A outra pessoa se aproxima, pedindo desculpas. Uma onda de frio a acompanha.

—Você está machucado, mas parece que não fui eu. Onde acendo a luz? - Rinnosuke indica o interruptor. - Precisa de ajuda?

—Por favor. Seja bem-vinda… Mesmo que seja cedo para abrir a loja.

Yuyuko olha as panelas de arroz e miso.

—Esperava mais variedade. Você não come outras coisas?

—Só quando posso sair para comprá-las. - Aponta a bandagem.

—Entendo. Depois de certas reviravoltas da vida, perdi esse tipo de preocupação.

Duas sacerdotisas, uma maga e agora um fantasma de mil anos que pode me fazer cair morto em um segundo. Minha loja é um ímã de intrusos peculiares.

—Perdão se pareço rude, mas não esperava a visita antes do horário de funcionamento.

—Na verdade, não há muito uma desculpa para eu estar aqui. Saí para dar uma volta, não vi o aviso de que estava fechado… “Das duas, uma: ou ele tem hábitos noturnos, ou nem vai notar que eu entrei.”

—O aviso não está lá? - Ela faz que não. - Estou certo de tê-lo colocado.

—Você devia ver o vento que está lá fora.

Prende a respiração por um segundo. As decorações do fundo da loja agitam-se em fúria. Foi numa noite assim que Reimu apareceu aqui. Eu não sairia de casa nem saudável e ela mal respirava pelas narinas. O arrepio de frio o lembra do aquecedor sem combustível e que a solução está entretida balançando uma colher de bambu. Serve porções generosas; quem sabe consiga conquistá-la pelo estômago.

—Você parece preocupado. Não me diga que está com a cabeça nas nuvens…

Eu, não, mas sei quem está. Torce para a comida aquecê-lo, nem que seja só um pouco.

—De fato, tenho um problema para resolver. Talvez tenha percebido a temperatura da loja. Meu aquecedor parou de funcionar.

—Não, não notei. Está quebrado?

—Preciso abastecê-lo. Não queima lenha ou carvão, como os daqui. É do mundo exterior e funciona à base de querosene.

—Querosene? Já vi Yukari com alguns frascos estranhos que tinham um cheiro horrível. É disso que está falando? Ela até comentou sobre levá-los a algum lugar.

—Provavelmente. Mas eu duvido que ela apareceria aqui nessa época do ano.

—Não é tão difícil assim conseguir algo dela, é só oferecer uma troca interessante.

Você fala como se ela não fosse assustadora. Lembranças assustadoras o afligem. O pote de Yuyuko está vazio e ela pede para se servir outra vez.

—Creio que esteja certa. Parece estranho pedir isso, mas eu gostaria do seu auxílio. Como pode ver, me machuquei num acidente doméstico. Não seria bom caminhar uma distância tão longa e perigosa. Se for alguma forma de transtorno, posso encontrar outra maneira-

—Transtorno? Não, de forma alguma. Faço isso por você. - Rinnosuke respira aliviado e agradece a qualquer coisa que tenha olhado por ele. - Eu só gostaria de uma retribuição. Coisa simples.

Não existe almoço grátis. Ou aquecimento. A pele em volta da ferida coça; sente que precisa lavar o cabelo o quanto antes, mas qualquer ideia que inclua sabão no machucado o faz reconsiderar.

—E do que estamos falando?

—Você cozinha muito bem, de verdade. Passo aqui à tarde para um lanche. Combinado?

Olha para a montanha de arroz na tigela de Yuyuko, que ela tritura a uma velocidade insana. Pelo menos, recebi um elogio, e não um qualquer.

—Feito. Ainda não tenho nada nos planos, então me diga agora se não gostar de algum ingrediente.

—Minha preferência é comida bem-feita. De resto, não me importo.

Dói fazer a escolha das coisas para Yukari: a cafeteira e o pó de café. Ela não recusaria uma mercadoria tão fantástica. Ele, por outro lado, espera uma quantidade abundante de querosene, que duraria por anos, quem sabe. Yuyuko se despede e segue a caminho de onde quer que sua amiga se esconda. Uma pena que eu estivesse morrendo de frio. É uma boa companhia. Por mais que o machucado em recuperação o deixe receoso, passa um bom tempo na banheira.

Por volta de meio-dia, o vento não é mais tão intenso. Fecha a loja, veste dois agasalhos e um gorro para sair. Naquele clima, nem os vendedores de mantimentos ficavam ao ar livre. Não basta pensar em um prato ou dois; escolhe ingredientes para um cozido com os cogumelos de Marisa, ramen, sopa e pão com recheio de carne. Alguém o chama pelas costas.

—Você não deveria sair de casa sem ter cicatrizado. - Reimu carrega uma cesta trançada no ombro com duas batatas-doces, jogando uma fruta para o alto.

—Também é bom te ver. Eu gostaria dessa tangerina, se estiver só brincando com ela.

—Não, vou levar. - Ela guarda o cítrico na cesta. - Quanta comida.

—Vamos dizer que é um jantar de favor. Uma aparição faminta… Apareceu em casa. Por mais idiota que isso soe.

Ela escolhe um punhado de ameixas secas de um monte. O pente que eu dei. As flores de cor viva contrastam com o cabelo escuro.

—Ué, ainda não consertou seus óculos? Que estranho ver você sem eles.

—Eu nem lembrava, e agora não adianta. Meu dinheiro não vai dar.

O sol fora da loja é pálido e sem calor, mas ofusca por causa da neve. Reimu tira as sacolas de compras das mãos dele; peso demais para alguém machucado, ela diz. Seu semblante está cansado e com olheiras fundas. Nota as várias olhadelas para a garrafa nova de sake. Duvido que eu consiga regular o quanto ela bebe. Até a Kourindou, tem tempo de explicar o trato com Yuyuko.

—Se o jantar vai ser assim tão grande, eu fico até lá.

Não convidei, mas convidaria, então tanto faz. Ela não se comporta de forma diferente… Não do que era antes da visita pela janela. Volta a ignorar o que Rinnosuke diz, fazer o que quer, fuçar nos produtos. Nada de desabafos, nem mesmo indiretos. Ele a trata com uma polidez segura. Reimu carrega a mesa de volta para a sala e faz boa parte do trabalho pesado na cozinha; com alguma orientação, os pratos ficam tão tentadores como se ele mesmo os tivesse preparado. Cada barulho mais alto o sobressalta, achando ser a porta. Se Marisa aparecer aqui, ela não pode me culpar. O risco existe. E não tem noção do que aconteceria. “Segredo: uma informação compartilhada por poucas pessoas, e que deve permanecer assim para continuar a ser um segredo”, ele registra no dicionário. A capa escura ganhou uma mancha de sangue quase invisível. Não acredito que dormi em cima disso.

—Ei, vocês, os galões não atravessam paredes. Reimu? Não sabia que você vinha. - Yuyuko está metade para dentro da cozinha. Rinnosuke destranca a porta dos fundos. - Onde deixo isso?

—No depósito. Por aqui, por favor.

A mesa de centro é pequena demais para tantas travessas, mas o resultado é de dar orgulho. Com o aquecedor de volta à ativa, a presença de um fantasma não é mais um empecilho; o álcool também os conforta e convida a conversar. Yuyuko levanta a pergunta:

—Nós não brindamos. É uma pena que não estejamos comemorando nada. Alguma ideia?

Ao acidente mais inoportuno? Segura o riso. Reimu não está num momento muito festivo. No entanto, a própria o surpreende.

—Ao ano que está por vir. - Devo admitir que essa foi boa. Erguem os copos em homenagem à sugestão.

—Falando nisso, Reimu, tem notícias do festival? Não que eu precise de uma bênção de vida-longa ou coisa assim, mas não perco as barracas de comida.

—Nada. Sempre é à noite por causa dos fogos e anda nevando tanto… Não dá para contar com esse tempo.

—Ah, não é para tanto. É só parar as tempestades por uma noite. - “Só”? Nem todo mundo tem mil anos de idade e poder a bel-prazer. Toma mais um gole e não a interrompe. - Claro que você precisa falar com a pessoa certa.

Há um tanto bom de criaturas poderosas e curiosas por aí. Rinnosuke Morichika, o vendedor imutável de produtos usados e senhor da má coordenação motora. Será que isso impõe respeito? Fala pela primeira vez em bastante tempo de conversa.

—Quem você tem em mente?

—Aquela problemática. Como é o nome dela? A que fez uma bagunça com as estações e cobriu minha mansão de neve.

—Tenshi? - Reimu palpita.

—Sim, ela. Se consegue fazer nevar, talvez faça parar também. Mas não vou atrás dela. Meio que só a comida do festival é da minha conta.

—Minha vez de entrar em cena, então. Se ela derrubar minha casa de novo, o que eu faço?

—O mesmo de sempre: dê uma lição do jeito difícil. - Yuyuko sorri de lado e um arrepio sobe a espinha. Quase dá para esquecer o contexto ameaçador.

Nenhuma das duas fica para passar a noite. Outra vez solitário, Rinnosuke decide ler mais a sério um guia de primeiros socorros que só folheara e se perdera no limbo das estantes. A parte de ferimentos é bem útil para as próximas vezes. O livro é simples, intuitivo, ilustrado e com uma fonte grande; perfeito para situações de emergência. As páginas passam uma após a outra, numa leitura entretida, apesar de meio mórbida. Uma delas, no entanto, o faz voltar várias vezes ao começo. Sintomas de subnutrição… Unhas manchadas e quebradiças, imunidade baixa, recuperação ruim de feridas e doenças, olheiras, dificuldade em manter o calor corporal. A lista segue acerca dos casos mais severos. Juntar as peças e chegar à conclusão deixa um peso no peito. Ela que me perdoe pela intromissão, preciso fazer alguma coisa.

 

~

 

É muito cedo e faz muito frio para ver pessoas nas ruas. O caminho mais longo tem menos neve. A pele nova ao redor do ferimento na cabeça dói à menor exposição ao vento; cobriu-a com o gorro outra vez. Pensou em ser rápido e discreto, nem dizer que apareceu e voltar para abrir a loja. Não posso fazer isso. Não posso ser mais um dos ausentes. Em sua bolsa, as moedas do envelope se chocam umas com as outras.

Na noite anterior, foi dormir se questionando: por que fazer isso? Se fosse fazer as contas, Reimu deveria vender até a última lasca de madeira do templo para pagar as tantas coisas surrupiadas da Kourindou. Comia sua comida, bebia seu chá, desperdiçara seu café, não dava a menor importância para a organização das coisas e, diferente da família Kirisame, não tinha com ele nenhuma relação de aprendizado, quem dirá algo suficiente para cobrar gratidão e favores da parte dele. Até os utensílios e roupas de sacerdócio dela eram frutos de horas de trabalho, pesquisa, tentativa e erro. Rinnosuke nada devia a ela; era o contrário.

Ou devia? Não se lembrava de ter cuidado do corte na cabeça e como foi parar deitado no futon era um mistério, assim como o próprio acidente. Não era só. Apesar da indiferença, relativa grosseria, ganância e de se meter em problemas de todo tipo por intromissão, lá no fundo, Reimu queria defender aquela terra. Morava sozinha num templo quase deserto, às portas de uma divindade sinistra que nem ela conhecia direito e carregava nos ombros uma responsabilidade desde que nascera. O frio afastava tanto youkais amigos quanto os raros fiéis, ambos fontes de doações e companhia. Eu vi as compras dela. Não é à toa que pegou aquele resfriado. Assim que começou a trilha até os limites de Gensokyo, rebateu a própria pergunta: por que não fazer isso?

Reimu desce do telhado e o cumprimenta com ferramentas em mãos. Além de tudo, ela anda chorando. Como esconder olhos tão vermelhos e inchados?

—Tem uma goteira bem no altar, tive que limpar a neve. Espere só um minuto, vou ao galpão.

A paisagem aqui é tão pálida nessa época. Um vento gelado tira seu capuz de cima do gorro. Que coisa sem sentido vestir os dois. O casaco cinza desbotado pode ter sido de um suicida do mundo exterior, mas é quente e confortável.

—Que coisa rara ver você fora de casa. - Ela ajeita o cabelo e a roupa. - Algum problema?

Não comigo. Desiste de justificar o longo tempo pensando, ou as palavras mal encaixadas. Caridade nunca foi um hábito.

—Não, nada de errado. Aceite isto.

Ela reage como se tivesse visto Yukari surgir das mãos dele. Demora a pegar o envelope longo, mas o coloca no bolso em vez de na caixa de doações e agradece de maneira distante, apesar de esconder muito mal a emoção.

—Eu vou entrar, se quiser vir. Vou fazer chá.

Mesmo que não tenha aquecimento, ficar a portas fechadas barra a ventania. Sentir as mãos descongelarem é uma das melhores coisas do inverno. Puxa conversa sobre assuntos neutros: comida, livros, ciência, história. Reimu não está tão normal quanto na noite anterior. Há algo na forma de tratá-lo que não consegue compreender. Prestatividade? Gentileza? Puro interesse por mais uma doação? Prefere acreditar que é bondade genuína. É como se ela tivesse uma face para todo mundo e outra que poucos têm a chance de conhecer. Se o faz de forma consciente é a dúvida. Ao longo da conversa, ela parece querer dizer algo e volta atrás, até reunir coragem o bastante:

—Essa situação anda me incomodando. Digo, a do festival. - Claro que não é só isso.— Se o Ano-Novo passar e ele não acontecer, as coisas podem sair de controle.

—Sair do controle de que forma?

—Desabamentos, incêndios, desentendimentos, youkais e fantasmas… Acidentes. Seria bom você ir.

Rinnosuke a encara com reprovação; ela ri. Uma pena que seja verdade. Senta-se com as costas na parede e a coluna volta ao lugar. Permite-se curtir a sensação em silêncio por um momento.

—E como pensa em resolver o problema?

—Encontrar Tenshi é uma boa ideia. Só não sei como. Não estou acostumada a… Fazer tudo sozinha. Não é tão fácil.

Ela sente falta de Marisa em vários aspectos. Não devem se ver desde aquele dia na loja.

—Você precisa de mim, creio. - Os dois se entreolham até ele notar o clima constrangedor. - Não, não é isso. Não foi o que eu quis dizer. Talvez você tenha interpretado de outra forma. Sei que datas são importantes para a bênção, então pensei que minha ajuda pudesse agilizar as coisas, então se de alguma-

Reimu toca sua testa com um gesto desconhecido.

—Calma. Inspire… Expire. De novo. - Ambos não movem um músculo. - Pode continuar.

Limpa a garganta e repensa as palavras. Ela ainda não afastou a mão.

—Pois bem. Pensei que fosse uma tarefa complicada. Então, eu quis… Colaborar. Mesmo que não seja minha obrigação. Conversar com alguém ou conseguir pistas. Se for possível, e necessário.

Não fui tão ambíguo agora, eu acho.

—Sei. E por que toda essa comoção?

—O que quer dizer?

—Você disparou a falar até não acabar mais. Relaxe.

—Ah, quanto a isso… - Só não consegui desfazer o papel de idiota.— Perdão, de verdade.

Ela finalmente volta para o lugar com uma expressão tão decepcionada quanto divertida.

—Eu pareço ofendida?

—Para dizer a verdade, sim. - Reimu muda o rosto para neutro. - Agora, não mais.

Pessoas funcionam de uma forma misteriosa. Observa-a mudar a almofada de lugar e se deitar com a cabeça nela. Nem sei se ela quer minha ajuda ou não. Não ter me expulsado é um bom sinal.

—Fazer o bem e proteger Gensokyo… - Ela está falando sozinha?— Não houve um dia em que eu não tivesse esse dever.

Sem se importar com a presença dele, abre o envelope. Em vez de contar o dinheiro, puxa a fita vermelha que deixara com o bilhete quando teve um surto de confiança em Rinnosuke. Passa um bom tempo segurando-a em volta dos dedos e olhando para ela como se fosse encantadora.

—Achei que quisesse de volta.

Mais silêncio. Reimu deixa o braço cair. A fração de segundo entre pensar em pedir desculpas e dizê-lo é suficiente para não conseguir.

—Obrigada.

É o mesmo tom de voz daquele dia. Fazê-la chorar é a última coisa que deseja.

—Quer que eu vá embora?

Ela se levanta e caminha até a janela. Parece mais interessante ver a neve cair do que acabar com a incerteza.

—Vou fazer compras. - Gira o corpo. Esse é o sorriso mais triste que eu já vi.— Você vem?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Olhe outra vez" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.