Olhe outra vez escrita por psyluna


Capítulo 1
Café + Aspirina




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Preciso dar um jeito nessa janela. O vento forte faz a moldura balançar e produz um som irritante. Rinnosuke ajeita melhor na fresta entre o portal e a janela o calço de papel dobrado que improvisou. Respira fundo e endireita a coluna. Não vai terminar a lista a tempo caso se distraia com qualquer outra coisa. Quase não há espaço no depósito, mas as várias novidades de Yukari foram aceitas sem pensar duas vezes. Claro, ela nunca aparece sem intenção de levar alguma coisa, ou sem aquele ar de superioridade e um olhar de gelar a espinha. “Máscaras de dormir: cinco unidades”, escreve no catálogo depois de contar os pacotes e passá-los para a caixa do lado oposto. Conheço esse aroma. Apertou uma das máscaras e o perfume alcançou as narinas; lembra uma das latas de chá-verde com jasmim. A bebida dá sono, então faz sentido incluir a mesma erva num acessório para usar durante a noite. Espia a caixa ainda não catalogada e solta um resmungo. Ainda falta muito. Entre as coisas que Yukari trouxe, encontra incensos do mundo exterior. Não costumam ser bons como os daqui. Linha após linha, completa uma página. Se mantiver o ritmo, termina aquela caixa em meia hora.

Ouve batidas contra a madeira de novo. Olha irritado para o calço de papel, como se ele fosse incompetente, mas a janela está imóvel e em silêncio. Foi a porta? Os clientes youkai sabem de seu horário de funcionamento diurno e dão seu jeito de aparecer enquanto a loja está aberta… A não ser que procurem confusão. Aguarda mais um instante por um segundo toque, e só então se levanta para atender, já esperando por problemas. Mas quem seria, com a neve caindo tão forte? Cola o ouvido na porta; vai ser difícil escutar com o som do vento tão alto.

—Quem está aí? - Pergunta, com a mão sobre a chave.

—Rinnosuke, sou eu.

Muito esclarecedor. Repete a questão e ouve o que pensa ser um espirro.

—Abra logo, está congelando aqui fora.

Destranca a porta, com a pulga atrás da orelha, e de fato vê uma grande fonte de problemas que apareceu em uma hora fora de costume. Reimu passa para o lado de dentro e espirra de novo. Custa a tirar a mão do bolso para coçar o nariz com a manga da blusa; está tremendo de frio. Ela agradece enquanto tira os sapatos e começa a soprar vapor quente, com os dedos perto da boca. Pensa em convidá-la para entrar como faria com qualquer outra visita, mas ela não acha que precise de convites ou permissões e adentra a sala como se fosse dela.

—O que te tirou de casa numa noite como essa?

E com um resfriado desses. Reimu espirra mais do que consegue conversar. Parece aliviada de estar em um lugar fechado. Acomodou-se numa das almofadas ao redor da mesa de centro, do lado oposto ao dele. As caixas de produtos continuam ocupando as laterais. Quando ela para de fungar e limpar o rosto por um instante, nota os lábios roxos.

—Tinha um fantasma batendo portas e derrubando coisas numa casa perto daqui. - A voz dela é nasal e rouca. - Aquela família que planta maçãs?

—Sim, os Nakano. Eu compro frutas deles. Mas por que chamaram você em uma hora tão inconveniente?

—Eram dois espíritos. Um deles era um senhor idoso querendo atenção, algum tataravô, coisa assim. Aí, começou a aparecer neve dentro da casa com as janelas fechadas e eles ficaram preocupados. Eu tive uma conversinha com Letty na saída. - Espirra e limpa o olho que lacrimejou. - Ela até tentou se esconder, mas não deu muito certo. E eu tentei ir voando para casa. Também não funcionou, sabe.

“Não devia sair nessas condições”, ele pensa em dizer e desiste. Era uma família atormentada por algo que nunca teriam poder para resolver; era para horas como essa que Reimu estava lá, por mais doente que estivesse. Se ela não cuidasse de Gensokyo, quem cuidaria? Ele mesmo não era um candidato forte à vaga.

Pede que espere na sala e volta do quarto com dois cobertores grossos. Ela se torna um monte felpudo até os olhos, tremendo bem menos.

—Vou fazer alguma bebida. Serve? Você não deve estar com muito apetite.

—Tanto faz. Já faz tempo que não sinto gosto de nada.

Chá, então. Não vai desperdiçar o precioso pó de café se ela não consegue apreciar. Sabe-se lá quando outro daqueles seria parte do estoque. Uma beleza para mantê-lo acordado e dar ânimo para terminar de catalogar as coisas. Conseguir fazer a cafeteira funcionar foi complicado, mas deu certo depois de inúmeras experiências. Gosta de imaginar que é um objeto prestativo e enérgico.

De volta à sala, vê que Reimu pegou uma pilha de revistas enquanto esperava. Sugerir, pedir ou até implorar que ela não mexesse nos produtos nunca funcionou, não nas mil tentativas. Entrega o copo de chá e volta a ocupar seu lugar à mesa. Tira da bolsa que carrega junto ao corpo um segundo caderno, bem menor e mais novo que o catálogo de produtos. “Café: uma bebida escura e amarga de grãos torrados, frequentemente adoçada e com propriedades energéticas”, toma nota em uma nova página.

—Que livro é esse?

—Isto? - Ele gesticula com a mão que segura o próprio caderno pequeno. - Eu anoto algumas descrições incomuns aqui. Chamo de dicionário de utilidade

Não conta o motivo de fazê-lo, no entanto. É uma história velha e complicada. Seu fascínio por magia não era segredo. Conhecimento teórico e criação de objetos úteis são seus pontos fortes, já que descartara o combate por falta de aptidão. De certa forma, era um orgulho; de outro ângulo, não tinha aprendido aquilo sozinho e essa era a questão. “Magia não é trivial, nem diversão: é uma doutrina de vida. Preços são pagos por escolher um caminho em vez de outro, e nem sempre uma oferta é uma dádiva. Não se esqueça disso.” E não esqueci. Como eu poderia? Mas era conhecimento e tão tentador quanto só a informação sabe ser.

“Segurança não existe, Rinnosuke. Só coisas mais e menos perigosas. Cada tentativa é uma aposta. Às vezes, perdemos. Como eu perdi.” Quem sabe o dicionário se torne um grimório com insistência o bastante, mesmo que sobre coisas triviais. Quanto mais próximo de seu eu verdadeiro, menor a chance de algo dar terrivelmente errado, mas incertezas são incertezas e prefere evitar interferência externa, ou instigar mais pessoas a lidar com isso sem precaução.

—Bem a sua cara. - Ela nem tira os olhos do que está lendo.

Só se ouvem páginas virando por um bom tempo. As semanas que costuma passar sem ver uma alma viva o ensinaram a falar sozinho ou ficar em silêncio. Estou ocupado e ela não parece querer conversar, acho. Espia com discrição e Reimu raptou um lápis para resolver a seção de passatempos de uma revista. Ele mesmo queria solucionar aquela edição, mas nem tenta reclamar. Ela faz o que quer, quando quer e uma opinião negativa seria o bastante para espantar qualquer cliente. Estica a mão para dentro da caixa e sente o fundo vazio. Faltam duas agora, coragem. Comemorar traz uma sensação mista. Só duas ou mais duas ainda? Copo meio cheio ou meio vazio? Fica de pé e vai buscar outro pacote. Reimu não dá muita atenção quando ele a avisa disso e espirra mais uma vez.

Deixar os produtos novos no sótão foi tanto uma boa quanto uma má ideia. Não ocupam espaço na parte cotidiana da casa nem atrapalham a beleza caótica da loja, mas descer as escadas carregando peso é sempre um risco para alguém desastrado como ele. Reimu não está mais na sala. Se ela foi embora, não vou conter um sermão amanhã. Checa a cozinha, o banheiro e os arredores do balcão; nada feito. Os sapatos dela ainda estão ao lado da entrada. Aliás… Confere a escrivaninha com atenção. Onde está meu bloco de desenho? Deixei aqui. Nota a luz acesa saindo por baixo da porta do quarto. Menos mal. Não chama nem tenta abrir. Ela deve querer descansar.

Recolhe do chão os cobertores que Reimu largou e se enrola neles. Mais uma caneca de café, mais motivação. “Curativos para pequenos ferimentos: duas caixas. Marcadores de livro: vinte e quatro unidades. Compasso de desenho: uma unidade. Cubo mágico: uma unidade.” Apesar do nome, não parece mágico. Perde algum tempo girando as faces sem muito motivo. Um objeto após o outro, depois outro, e outro. A caixa parece não ter fim. Encosta para descansar. Daqui a pouco continuo.

 

Rinnosuke abre e fecha os olhos várias vezes. Tudo está embaçado. Leva a mão ao rosto e descobre que está usando óculos. Pragueja e fica de pé de uma vez só; está exausto. Por quanto tempo eu dormi? O despertador de corda nas prateleiras da Kourindou indica quase nove horas. Tira a armação do rosto para vê-la tristemente amassada. O estômago dói de fome e segue para a cozinha, esperando algum estalo de criatividade para a refeição.

Sake quente nessa época do ano é uma ótima pedida, mas sabe dos maus hábitos de Reimu quanto a isso; não quer dar ideias quando ela está tão doente. Procura um medidor de arroz no armário atrás de algumas vasilhas e um frasco de vidro cintila num canto. Aspirina. Um remédio analgésico, anticoagulante e anti-inflamatório. Deve ajudar. Deixa-o no balcão e anota as palavras da forma exata como pensou no dicionário. Não tem tanta necessidade de comer quanto um humano, mas não recusa uma refeição apetitosa, nem ficar perto das chamas num tempo tão gelado. Os espirros ficam mais audíveis aos poucos, e sabe que Reimu acordou antes que ela o cumprimente.

—Não vou perguntar se você melhorou. - Ele está atento ao fogão e olha por cima do ombro, com um sorriso sarcástico. A cara que ela faz fica entre convalescença e desgosto. - Aqui. Depois que comer, sugiro que tome isso.

Reimu funga e olha com desconfiança para o comprimido ao lado da tigela de sopa de arroz.

—Funciona?

—Nunca precisei. O frasco estava fechado, até.

E nem vou precisar, creio. Para si mesmo, Rinnosuke fez um café da manhã mais farto: vegetais de inverno cozidos, miso e uma sobra da sopa de arroz que não coube no pote dela. Mesmo assim, levam o mesmo tempo para terminar de comer. Ela se levanta para deixar a louça com as outras. Ele avisa da sala:

—Traga água, você esqueceu o comprimido.

Reimu para no meio do caminho e diz se sentir melhor. Espirra duas vezes. Contra fatos, não há argumentos. Na volta, ela segura o remédio como se calculasse o quanto se sente mal e, por fim, conclui que precisa dele. Rinnosuke volta a atenção para o catálogo até que ela dê a volta para chegar à janela e o chama para ver alguma coisa. Ele gira o corpo e fica assustado quando vê só uma fresta de luz do sol vinda do topo da janela.

—Achei que estava escuro por causa da cortina. Faz tempo desde a última vez que nevou assim. - Fecha o caderno e fica de pé, ainda atônito. - Não vai dar para abrir a loja hoje.

—Ninguém sai de casa com um tempo desses.

Será que ela não percebe a ironia? Ri, e Reimu o fita com uma cara que ele não sabe decifrar. Disfarça mudando de assunto:

—Eu me pergunto se essa tempestade foi obra de alguém. Coisas assim acontecem por aqui com bastante frequência.

—Letty não foi. Ontem deve ter servido de lição. - Ela leva a mão à cortina. - Cirno?

—Você não conseguiria nem assustá-la nesse estado.

Reimu dá de ombros e funga. Pergunta o que ele tem de interessante para fazer.

—Depende do que você acha interessante. Tenho produtos para registrar, mas queria dar uma pausa de qualquer modo. Chegou um jogo de cartas no meio das coisas novas, quer ver?

Ele busca a caixa de madeira escura sob um conjunto de porcelanas. O verso do baralho é decorado por uma arte complexa amarela e preta, com dragões sem asas olhando para lados opostos. Reimu gasta um bom tempo passando carta por carta, mesmo que uma face delas seja igual em todas; parece bem melhor.

—Que bonitas. Como se joga?

—Veio um folheto com sugestões. Cada jogo tem regras próprias. Alguns nem usam todas as cartas.

Enquanto ela lê, cataloga mais algumas coisas. Uma escova de cabelo macia e brilhante, dois pacotes de bolinhas de vidro, uma almofada para o pescoço, vários blocos de papel de carta. A caixa finalmente parece mais vazia. Reimu diz ter escolhido um jogo e o aponta na folha: chama-se “Trapaça”. Ele pergunta como funciona.

—É bem simples. Cada um tira sete cartas. - Ela embaralha e distribui, fazendo passo a passo o que explica em voz alta. - Viro uma do monte, dessa vez um três. Eu jogo uma virada para baixo. Pode ser um dois, três ou quatro, e digo o número. Dois. Se achar que é mentira, diga “trapaça”. Se for mentira, você ganha. Se não for, eu ganho. - Vira a face numerada para cima para revelar o dois de espadas. - Quem se livrar das sete cartas primeiro, também ganha.

—Abaixo, igual ou acima, certo? - Rinnosuke coloca o caderno de lado e Reimu confirma com a cabeça, limpando o nariz. - Que tal uma melhor de cinco?

—Por mim, tudo bem. Essa aqui é um quatro.

 

 

~

 

Uma melhor de cinco levou a mais várias até o meio da tarde. Dois a dois, indo para o desempate, quando Reimu reclama de frio e dor de cabeça.

—Não vai querer jogar a última? - Ela resmunga que ele pode considerar a partida ganha e deita sobre a mesa usando os braços de travesseiro. Nossa, ela deve estar mal de verdade.— Vou testar sua febre. Com licença.

Mesmo só afastando a franja com as pontas dos dedos, Rinnosuke nota o calor e aproxima as costas da mão para confirmar.

—É, o remédio não era tão bom assim. Como o pessoal do mundo exterior se vira com isso? Será que funciona direito com eles?

Joga uma das cobertas sobre ela, sobe a temperatura do aquecedor e avisa que vai ajeitar a banheira. Ela não responde, mas nem esperava que o fizesse. Aguardar a boa vontade da lenha chegar a ser brasa é um tédio que fica confortável com o tempo. De dois em dois, carrega as panelas de água pelo corredor calculando cada passo. Se eu derrubar isso… A ideia o faz ter um arrepio de aflição. Sempre odiou queimaduras, por nenhum motivo além de doerem demais.

De volta à sala, Reimu cochilou. Acordá-la chamando não funciona. Fazer barulho seria desagradável. Opta por balançá-la devagar algumas vezes; ela ignora e enterra mais o rosto nos braços. Tenta de novo. Ela levanta a mão para afastá-lo e alguma dor muscular fisga seu braço. Rinnosuke se controla ao máximo para não rir. A ideia da banheira quente não pareceu animá-la, mas foi de qualquer forma. Ele volta ao trabalho. Talheres de prata, quadros emoldurados, álbuns de fotografia, acessórios para cabelo, pincéis e tantas outras coisas ganharam espaço na lista.

Que cabeça a minha. Reimu precisa de roupas. Nenhuma das peças femininas que tem à venda vai esquentá-la o suficiente. Escolhe um vestido branco com a saia escura, um agasalho do tamanho dele e um cachecol cinza de um tecido suave que já viu Yukari usar, mas trocou com ele por algo de que não se recorda. Bate à porta do banheiro. Por favor, que isso não seja muito constrangedor.

—Eu trouxe uma troca de roupas. Vou deixar aqui, tudo bem?

Se ela se importou ou ficou com vergonha, não demonstrou; nem mesmo agradeceu. Rinnosuke releva, se perguntando por que dá tanta liberdade assim. Um par de luvas é uma boa ideia. Volta ao quarto para procurar. Na gaveta onde costuma guardá-los, vê o lápis que ela usava na noite anterior e uma capa familiar. Meu bloco de desenho. Abre na última folha que ele mesmo rascunhava e vê que a seguinte foi arrancada. Na próxima, não há nada. Estranho. O que ela escreveu? Demora para lhe ocorrer uma forma simples de descobrir, vista em algum livro de investigação. Risca toda a página vazia com grafite, na esperança de que Reimu tenha a caligrafia pesada. As letras estão na vertical. É para uma pessoa próxima.

“O ano está chegando ao fim; mais um deles ao seu lado e sou profundamente grata por isso. Foi um presente do destino. Nós sabemos por quantos momentos incríveis e difíceis passamos, e talvez não seja tão claro o que eu sinto, porque nunca fui muito boa com isso. Peço perdão. Acho que meus talentos não são assim tão grandes quanto você pensa. Talvez, eu não seja nem uma pessoa tão boa quanto qualquer um ache. Sim, é duro, mas é verdade. E há outra coisa, também, que é impossível negar, e minha única vergonha é não ser capaz de dizer isso olhando nos seus olhos.”

Mais nada. O encerramento abrupto pode ser por falta de espaço… Ou falta de coragem. Com a mão no queixo, ele passa um bom tempo indagando o destinatário. A borracha na outra ponta do lápis não apagaria todo o grafite; o porta-lápis da escrivaninha guarda a solução. O nervosismo é inevitável. É uma corrida contra o tempo até Reimu sair do banheiro. Se perceber qualquer movimento estranho, o que vai pensar? A folha fica um tanto amassada e marcada por restos de riscos que não saíram, mas não há muito o que fazer. Retira-a, mais confiante de que conseguiu disfarçar, e volta o bloco para onde o encontrou.

O resto do catálogo passa despercebido, automático. Preenche mais uma página até que ela apareça, com um casaco grande demais para seu tamanho e respirando bem melhor.

—Não está mais com frio?

Ela nega com a cabeça e espreguiça antes de se sentar de novo.

—Quer jogar mais ou está ocupado? - A voz sai abafada, não mais por causa da coriza, e sim do rosto apoiado na mão. Ele não tem tempo de responder. - Uau, o que é isso?

—Um peso de papel. Cuidado.

Quando o segura e observa de perto, os olhos de Reimu brilham. É mesmo uma peça magnífica, até dentro da caixa: a pesada esfera tem uma miniatura de cerejeira em flor tão vívida quanto uma verdadeira.

—Tem certeza que quer ficar com isso?

—Sim, tenho. E respondendo à pergunta de antes… - Espia a caixa e vê poucos objetos. - Você me dá cinco minutos? Não falta muito.

—Claro, claro.

Reimu passa o resto do tempo mais entretida com o peso de papel do que em conversar. Oito rodadas de Trapaça depois, se cansam do jogo em comum acordo. Ela pontua:

—Os outros jogos de baralho são complicados, ou precisam de mais pessoas, ou são chatos. Alguma sugestão?

Rinnosuke repassa mentalmente os objetos novos até se sentir idiota por poder apenas checar o catálogo. Parece até perda de tempo anotar tudo. Não comenta o acontecido; não está a fim de ser motivo de piada, ainda por cima uma que merece.

—Chegou um tabuleiro de xadrez. Sabe jogar?

—Não. Preciso pensar muito?

—É bom, ou é provável que perca. - Ele busca o jogo na caixa da direita. - Tem um livro com instruções, pode me perguntar se não entender algo.

Algum tanto de explicações e uma partida provam o talento de Reimu, ou sorte desmedida, para qualquer jogo. Apesar dos movimentos de principiante, explora várias falhas de Rinnosuke e até forçou algumas delas. Parabenizá-la deixa seu ego inflado, mas ela já é folgada de qualquer forma, então o faz. No meio do segundo jogo, o estômago dela ronca alto. Pudera: desde cedo, não comeu nada.

—Tenho maçãs, se isso não te der más lembranças.

—Por causa de ontem? - Ela espirra. - Não faz mal. Não precisa descascar.

Na terceira partida de xadrez, Reimu vence uma disputa acirrada e o sol se põe antes das seis. Rinnosuke busca mais cobertores e um travesseiro para não acordar tão esgotado por dormir na sala. Como é normal no inverno, ela sente sono bem cedo; após um teste de temperatura, ele joga uma coberta extra e se despede.

Outra caixa trazida do sótão, mais coisas para registrar, mas algo quebra o padrão. O que fez quanto à carta foi invasão de privacidade ou não tinha tanta culpa assim? Como saberia que se tratavam de palavras para uma pessoa tão íntima sem lê-la? Poderia ser qualquer coisa; um rascunho de desenho, contas matemáticas, poesia. Não esperava nada específico, na verdade. Estava curioso e tropeçou num tema problemático, só isso.

Estava certo de uma coisa, no entanto: não era para ele. Apesar de conhecer Reimu desde que ela nasceu, não tinham passado por nada juntos que valesse sentimentos como aqueles. De resto, ela conhecia gente demais, mas não parecia ser muito próxima de ninguém… Com exceção de Marisa. As duas eram inseparáveis, quase uma pessoa só. Será? O tom passional da carta o deixava em dúvida. Será que a sacerdotisa Hakurei tinha um romance secreto? As mil possibilidades eram intrigantes.

Por que estou perdendo tempo com isso? É coisa dela, não é da minha conta. Depois de dois ou três objetos catalogados, voltou atrás consigo mesmo. Um pouco de imaginação não faz mal. É só não deixar que ela perceba. Antes da metade da caixa, desistiu de continuar; era de objetos pequenos, cheia de detalhes para incluir um a um. Improvisou um lugar confortável com três cobertores e usou o restante para o que ele foi feito. Até que não é ruim. Levou pouco tempo para cair no sono, sentindo-se um detetive medíocre.


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