Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 7
Merida


Notas iniciais do capítulo

Me desculpe pela demora. Essas últimas semanas têm sido bem complicadas pra mim com a faculdade começando e outros problemas pessoais. Mesmo assim, espero que o capítulo compense kkk

E aproveito para avisar que talvez poste o próximo capítulo apenas a partir do domingo de 1º de março, e aí vou tentar voltar a postagem semanal padrão. Até a próxima!



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Merida mal conseguia raciocinar depois de tudo o que aconteceu. Depois de ser amarrada, arrastada, e o que viu os homens fazerem com algumas das outras meninas... o que ouviu. Os gritos estavam cravados em sua mente, repetindo-se sem pausa, ecoando em seus ouvidos. E o salão... o que exatamente tinha acontecido naquele salão? Tudo o que tinha em sua mente eram um monte de pessoas reunidas, o barulho da música terminando e uma discussão naquela língua estranha que não entendia. E a espada de fogo. Não conseguia mais definir se aquilo era real ou uma alucinação.

Ela encarou com suspeita o rapaz sentado na sua frente, com a moça loira descansando a cabeça em seu ombro. Não confiava neles. E não tinha a mínima ideia de por quê teriam pegado ela e as outras para si. E confiava muito menos naquela aparente tranquilidade dos dois. Mas... havia algo que lhe intrigava naquilo, ainda que sua mente não estivesse no estado para formar pensamentos coerentes.

Por que as luzes me mandaram até ali? Essa era outra pergunta que ecoava eternamente em seus pensamentos. Sua missão foi atrapalhada, isso sim. Precisava então dar um jeito de voltar àquele lugar para continuar de onde parou. O problema era: como? Estava cercada de pessoas e podia sentir seus olhares caindo sobre ela. Mesmo a escuridão não a encobrira se tentasse fugir. E havia as outras garotas. Seria injusto de sua parte fugir e largá-las ali.

A única coisa que podia fazer agora era esperar e isso era o que mais lhe assustava.

O caminho foi feito na maior parte em silêncio, o que o fez parecer ainda mais longo. De vez em quando, podia ouvir outros cavalos ou carroças de quem mais os acompanhava, e teve aquele som... o bater de asas enormes sobre suas cabeças, do mesmo jeito que ouvira nos seus sonhos. Contudo, quando levantou os olhos para o céu não pôde ver nada além da noite.

Ao abaixar a cabeça, viu o casal ainda a fitando, analisando. Merida encarou de volta, com o pouco das forças que lhe restaram depois daquele dia horroroso e toda a raiva que foi alimentada por tudo o que passou. Ainda assim, eles não respondiam ao seu ódio como os homens anteriores responderam. Estavam calmos – ou quase isso –, pensativos. Podia quase dizer que via pena nos seus rostos.

Baixe a guarda e os predadores vão cair em cima de você e te estraçalhar, lembrou a si mesma. Foi isso que aprendeu enquanto seu pai lhe ensinava a usar o arco e a quando a levava consigo em suas caçadas. Foi o que aprendeu quando passou a escapar sozinha do castelo para se embrenhar nas florestas. Tudo ao seu redor estava vivo e a observava, e ter ciência disso era essencial para não deixar nem lobos nem ursos a pegarem de surpresa.

Demorou para perceber que uma garota ao seu lado segurava sua mão. Sua pele estava fria, os dedos trêmulos. Merida engoliu em seco e retribuiu o gesto.

Não conseguiu definir quanto tempo se passou quando enfim chegaram em uma clareira. Alguma coisa lhe dizia que cochilara em algum ponto no trajeto, e a princesa xingou a si mesma por isso. Mas, aparentemente, tudo estava bem.

Mais uma vez, estavam rodeados de cabanas, a maioria construída ao redor de um ponto central. Dentre elas, uma era muito maior; mais alta, mais larga, porém era visível que ainda passava pelos processos finais de construção. O local fervilhava com os novos moradores que chegavam, prontos para se acomodar – apesar disso, todos se mantinham relativamente calados.

Seus captores fizeram com ela e as outras jovens descessem e as guiaram até a cabana maior, enquanto discutiam alguma coisa na sua língua. Merida notou que agora um homem velho os acompanhava, de braços dados com um dos rapazes e a mão livre segurando um cajado que usava para se apoiar. Ele parecia um pouco sério, cansado, quase distraído. O que alguém como ele fazia ali? Não tinha nenhuma capacidade física para saquear e muito menos para se defender de um ataque ou quaisquer das outras barbaridades que os nórdicos faziam.

Ao abrirem as portas, elas se depararam com um salão talvez tão grande quanto o último em que estiveram. No centro, havia um espaço para uma grande lareira, agora acesa e irradiando o local com o calor. O velho se sentou em um dos bancos ao redor do fogo com a ajuda dos homens, que saíram dali logo em seguida.

A jovem loira que estava na carroça com ela sinalizou para que a seguissem, pouco antes da outra, mais alta e magra, também tentar conduzi-las para os fundos. Merida resistiu e não foi a única a fazer isso, sem parar de encarar a garota mais baixa. Enfim, ela parou de tentar e a encarou de volta, enquanto, com movimentos suaves, se aproximou e desatou os nós que prendiam o pulso da princesa.

Um momento de silêncio tomou conta das duas. A jovem levantou as mãos, como se tentasse sinalizar que não havia ameaça. Então, com os mesmos movimentos leves, ela e a companheira foram soltando as cordas uma por uma.

Agora, mesmo podendo fugir, estava paralisada.

Mais uma vez, as duas gesticularam para que as seguissem; mais uma vez, sem sucesso. O velho falou-lhes alguma coisa e uma delas caminhou sozinha para o fundo do local, virando para onde deveria ser um outro cômodo. Não mais que um minuto depois, ela retornou com as mãos cheias de vestidos dobrados. Vestidos limpos, secos, não rasgados, simples porém muito melhores do que o qualquer uma delas estivesse usando.

Ela se aproximou novamente e ergueu os braços na direção das meninas antes de sinalizar com a cabeça para que fossem ao tal cômodo. Demorou um tempo, mas por fim todas tinham roupas novas e se arrastaram com passos pesados para onde o velho não as veria se trocar. O tecido não caiu tão bem sobre o formato do corpo de Merida, mas seria o suficiente por enquanto. Do mesmo modo, observou como algumas das jovens tentavam arrumar o tecido que caía pelos ombros ou então ficavam com metade do antebraço ou os calcanhares expostos.

Após todo esse processo, a mais alta abriu as portas do salão e chamou pelos rapazes. Um som estranho entrou com eles – um grunhido baixo, tremulante, quase um misto entre o ronronar de um gato e o sibilar de um réptil, porém muito mais audível. Fosse o que fosse, o som foi bloqueado ao fecharem as portas atrás de si.

O que se seguiu foi tão confuso quanto o que houve no salão anterior. Eles debatiam entre si, às vezes mais agitados, porém controlados de um modo geral, dialogando como amigos montando um plano. Ocasionalmente, apontavam para elas, indo de uma para a outra, talvez contando ou dividindo-as. As garotas iam aos poucos se aglomerando em um canto do salão, temerosas pelo o que viria a seguir. Merida as seguiu com cautela e se posicionou na frente de todas. Estaria pronta para brigar se fosse preciso.

Contudo, nada mais acontecia. Ou ao menos, não por um bom tempo, até que finalmente, as moças se aproximaram de novo e sinalizaram para os fundos do salão. Desta vez, relutaram menos a segui-las. Virando naquele mesmo corredor e caminhando mais um pouco para os lados e para os fundos, foram guiadas até um cômodo com duas grandes camas de feno recostadas nas paredes.

As duas moças indicaram que entrassem com pequenos sorrisos, quase acolhedores. Uma delas se retirou e logo voltou acompanhada pelo rapaz da espada de chamas, carregando cobertores de pele, um cesto com pães e uma bandeja com copos cheios de leite recém-fervido que distribuíram entre todas. Dessa vez, não esperaram por reações e simplesmente saíram. Finalmente, estavam sozinhas.

Merida percebeu que estava com fome enquanto segurava o pão em seus dedos e ao sentir o calor que emanava do copo. Aquele cheiro encorpado e meio adocicado do leite preencheu suas narinas e seus sentidos. Ainda assim, não tinha vontade de comer. Seu estômago se embrulhava só de vislumbrar as duas moças que foram atacadas nas matas, antes de chegarem ao primeiro salão. Mesmo pela visão periférica, conseguia notar o quanto tremiam.

E então, uma onda repentina de certeza, força e tranquilidade a invadiu. Ela olhou nos rostos de cada uma antes de dizer:

— Ei... Comam agora, está bem? — Sua atenção parou nas duas jovens em questão. — Vamos precisar disso. Precisamos ficar bem, comer, dormir, só assim vamos encontrar um jeito de sair daqui e ficarmos em segurança.

Uma delas expirou, como uma risada engolida que se tornou apenas uma saída de ar. Merida sabia que não foi por mal, apesar de só não saber de onde veio toda essa firmeza tão de repente.

— A gente não vai mais sair daqui — uma delas disse. Ela balançava a cabeça, com os olhos presos em um ponto vazio no chão. — E nem tem pra onde ir. Eles ‘tão em toda parte.

Vamos dar um jeito. Não vai ser hoje, nem amanhã, mas vamos conseguir. Eu juro que vou achar uma maneira de sair.

— E quem é você pra jurar?

Ela ficou em silêncio por um instante. Devo agir como a princesa delas agora, o pensamento a invadiu, enfim de forma clara. Elas precisam de mim agora. Suspirou.

— Eu sou a princesa. — Ouviu exclamações ao seu lado. — É verdade. Eu sou Merida, filha de Fergus, do clã Dunbroch. Não tenho mais nada para provar o que digo além da minha palavra. Eu... Eu fugi do castelo. Sabia que tinha alguma coisa que eu deveria fazer para acabar com... todos esses problemas. E outros que podem vir. Mas eles me acharam no meio da floresta.

Mais uma vez, ficaram caladas. Talvez não acreditassem em nada, talvez estivessem apenas cansadas demais para pensar em qualquer coisa. Talvez...

— Eu vi... — a moça dizia em um fio de voz — Vi quando te afastaram do cavalo pra te amarrar. Era um cavalo bonito... Uma sela boa. E... você revidou, luta bem. Acredito em você.

Merida a observava enquanto falava e não conteve o sorriso cansado porém gentil que surgiu em seu rosto. As outras pareceram relaxar mais um pouco, como se a história descesse em suas gargantas com mais facilidade.

— Qual o seu nome?

— Muire — ela respondeu, ainda em sussurro.

Merida assentiu e voltou-se para a outra, que a questionou primeiro. Um simples aceno com a cabeça indicou a pergunta. A jovem engoliu em seco e abraçou as pernas, aos poucos relaxando os músculos enquanto respirava fundo.

— Afraig.

Por fim, olhou para as duas garotas ainda trêmulas em um canto. Elas engoliram e soluçaram antes de responder.

— Bodicca.

— Verica.

Após isso, todas foram respondendo. Havia Huctia, Verctissa, Éua, Brigit e Deirdre. A princesa encarou cada uma delas com toda a sua atenção e carinho. Quando terminaram, ela respirou fundo e repetiu:

— Eu prometo que vou proteger todas vocês e vou encontrar um jeito de ficarmos seguras. Por isso, por favor, comam e tentem dormir um pouco... por mais difícil que seja. Só assim vamos ter força o suficiente. Não precisa ser tudo! Só o que aguentarem. Tudo bem?

Elas assentiram e, de fato, tentaram comer. Agora, Merida também precisaria se forçar a fazer o mesmo. E assim que colocou a primeira migalha de pão na boca, precisou se segurar para não enfiar mais um pedaço enorme de uma vez. O instinto da fome após um dia tão exaustivo berrava de suas entranhas. Da mesma forma, cada gole no leite trouxe um calor interno que pareceu ter se extinguido até então.

Uma por uma, foram parando de comer e se ajeitando nas camas, amontoadas lado a lado sob o cobertor grosso. Merida foi uma das últimas a se deitar, mas não demorou tanto para cair no sono mais uma vez. Contudo, para sua infelicidade, nem mesmo o sono lhe trouxe a paz, carregado de visões grotescas de espíritos, pedras antigas, asas noturnas, luzes e um cavaleiro mesclado à carne de seu cavalo, sem pele alguma sobre seus corpos.


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