Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 8
Merida


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, me desculpe MESMO pela demora para continuar postando. Eu passei por vários bocados nesse meio tempo, principalmente quanto ao meu psicológico e saúde mental. Agora estou melhor e pretendo postar os próximos capítulos o quanto antes.



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Seus olhos se abriram de forma abrupta assim que viu aquele monstro. Contudo, o dia ao seu redor parecia calmo – os pássaros cantavam do lado de fora sob a luz da manhã, acompanhados pelo ruído de uma leve garoa. Parecia calmo. No fundo do quarto, percebeu mais um som. A garota, talvez Verica, chorava, sentada abraçando suas pernas. Quando sua visão se ajustou à luz, também notou que ainda tremia.

Merida engatinhou até ela em silêncio e estendeu a mão, porém Verica gesticulou que parasse. A princesa soube que o melhor era apenas respeitar seu pedido, mas permaneceu ali, sentada à sua frente. Demorou quase uma hora para que ela se controlasse por completo, apesar de que agora parecia ter entrado em um estado de completa apatia. Ao mesmo tempo, as outras jovens foram acordando pouco a pouco e se sentando nas camas, com exceção de Bodicca, que também estava apática, deitada fitando o vazio.

Doeu a Merida não só ver aquilo, mas identificar o pensamento oculto, baixo, lhe sussurrando o quanto não gostaria de jamais saber realmente como elas estavam se sentindo. Ela se repreendeu por isso. Aquilo lhe soou uma ideia cruel demais para se manter.

— E agora? — Ela olhou para trás. Era Muire quem falava. — Vamos ficar presas aqui?

— Acho que não — respondeu.

— Mas... a gente pode sair?

Não sabia a resposta. Suas amarras foram soltas, afinal, mas ainda não sentia como se pudessem simplesmente sair por aí quando bem quisessem. A princesa se levantou e tropeçou até a porta, pulando as pernas das garotas, e respirou fundo antes de tocar na maçaneta. No mesmo segundo, três toques soaram do outro lado e ela deu um salto para trás. Rapidamente, se recompôs e abriu a porta, porém devagar e com cautela.

A moça loira estava ali, com a mesma expressão da noite anterior, com aquele misto de preocupação e um sorriso gentil. Ela gesticulou mais uma vez para que a seguissem para o lado de fora. Merida estava receosa, mas logo ela sentiu. O cheiro. O aroma da lareira acesa e de comida pronta. Seria para isso que estavam sendo chamadas?

Ela se voltou para as meninas com um suspiro baixo.

— Vamos. Podemos ir. Atrás de mim.

— Para onde?

— Acho que comer. Ei, não se esqueçam: precisamos ficar fortes e eu não vou deixar nada acontecer com vocês, tudo bem? Vamos lá.

As meninas foram se levantando no mesmo ritmo hesitante de sempre, até que todas estivessem de pé paradas logo atrás da princesa. A moça loira sorriu novamente e seguiu pelo corredor, ainda as chamando com gestos. A cada passo, o cheiro ficava mais forte e, enfim, chegaram às mesas do grande salão.

Só uma estava ocupada e tinha sido carregada de comida. Bom, não era tanto assim, com certeza não mais do que serviam a sua família, mas ainda era o suficiente para que todos comessem e sobrasse mais um pouco, e a variedade... muito mais do que lhe foi permitido comer apenas pelas aparências. Mingau, leite fervido, cerveja, pães, queijo, pedaços de peixe seco, ovos cozidos, amoras, framboesas e mirtilos. Ela nem sabia por onde começaria a comer.

Tudo roubado de nós, uma parte de sua mente dizia. Eles não estavam aqui durante a colheita dos grãos, nem criaram todas as galinhas, as vacas, as cabras, não produziram o queijo. A única coisa que de fato poderiam ter pegado eram o peixe e as frutas. O pensamento trazia um peso a toda a comida, mas se tinha alguém que tinha direito de desfrutar, com certeza eram elas.

A jovem nórdica se sentou ao lado do rapaz, que estava também à direita do homem velho. Merida se sentou de frente para eles, acompanhada de Muire e Afraig, deixando que as outras pudessem ficar mais distantes deles, especialmente Bodicca e Verica. Houve um momento longo e desconfortável de silêncio e de um encarando o outro, antes que, finalmente, o velho pegasse a travessa com pão e passasse adiante. Seus olhos caíram sobre Merida por uns instantes, com aquele mesmo olhar intrigado que o rapaz tinha.

Ela pegou um pouco de cada alimento e encheu o prato que estava a sua frente. Cada mordida era uma explosão de sabores que inebriava seus sentidos. Mesmo tendo se adaptado ao jejum da penitência, agora percebia o quanto sentia falta daqueles sabores tão simples, tão banais nas suas mesas de refeição. Realmente, deveria admitir que apesar de ter concordado em fazer aquilo para que a perdoassem com mais rapidez e de ter odiado cada minuto da penitência, agora entendia o que o padre Áed queria dizer quando passou toda a sua infância dizendo que a princesa deveria valorizar cada comida que lhe era dada.

Suas bochechas doíam enquanto mastigava ao mexer a pele onde tinha se cortado durante a tentativa de fuga na floresta, mas Merida se manteve concentrada em sua refeição até que a dor passasse para a sua barriga. Ela também se certificou de que as companheiras se alimentassem devidamente, deixando, de fato, uma parcela pequena para os outros três comerem. A princesa sorria por dentro – ou, pelo menos, até perceber que eles não pareciam se incomodar, apesar de com certeza terem prestado atenção. Sua vingança silenciosa perdeu um pouco do sabor.

Quando todos terminaram, o rapaz se levantou, sumiu no fundo do salão e retornou com um carrinho de mão carregado de diversas carnes como esquilos, aves, peixes, lebres, além de algumas partes que pareciam porco e ovelha. Tudo completamente cru e, ou quase inteiro, ou despedaçado. Merida e todas as garotas o acompanharam com os olhos, atentas.

Ao se aproximar da porta, os sons que ouviu na noite anterior e sobre o telhado voltaram, correndo para o mesmo caminho que ele seguia. Contudo, mais uma vez, ele foi rápido em abrir a porta apenas o suficiente para se esgueirar e fechou-a. Naquele breve momento, sombras distorcidas se desenrolaram e se esticaram pelo chão, acompanhadas daquele som que lhe dava arrepios.

— O que foi aquilo? — Uma delas choramingou.

Merida sentia os olhos do velho e da jovem nórdica presos sobre ela e as outras, e os encarou de volta. Estavam cautelosos. Escondiam alguma coisa.

— Eles têm demônios aqui? Trouxeram com eles? — Muire perguntou com a voz trêmula e baixa. Merida queria responder que aquilo não fazia o mínimo sentido, mas depois de ter ela própria transformado sua mãe em um urso, resolveu se manter em silêncio.

Demônios ou não, ela se manteve atenta às reações dos dois na mesa e aos barulhos abafados do lado de fora. O que quer que estivesse lá movia-se com avidez. Pôde também ouvir o que pareciam mastigadas enquanto pessoas riam e conversavam. Com certeza era algum tipo de animal. Quando o rapaz retornou com o carrinho vazio, suas suspeitas se confirmaram.

Ao longo do dia, tudo o que Merida fez foi isso: observar, prestar atenção a cada som, cada movimento, cada possível hábito. Foi assim que percebeu que a jovem era sempre chamada por Astrid e o rapaz por Hikken, ou algo parecido. Agora, o velho não conseguia identificar, pois cada um o chamava de formas diferentes e todas eram difíceis de entender. Contudo, o carinho entre ele e o tal Hikken era visível, então eles deviam ter algum laço mais profundo.

Nada mais foi pedido ou a ela ou às meninas. Pelo contrário, era como se em alguns momentos eles esquecessem que elas estavam ali. Não que fossem ignoradas – afinal, de tempos em tempos Merida trocava olhares curiosos e levemente afrontosos contra Astrid, ou então faziam sinais para comida ou bebida –, mas sua atitude era tão natural que não pareciam pessoas que mantinham prisioneiras.

Ao final da tarde, após todas as atividades do dia, reuniram-se de novo à mesa, onde serviram ensopado de peixe com pão e um pouco de cerveja. Os três continuaram conversando até mais tarde, quando terminaram com os restos da sopa.

Merida acompanhou aquela rotina durante três dias. Três dias nos quais viu pessoas entrando e saindo dos salões, principalmente aquele grupo de jovens da primeira noite, discutindo, rindo ou apenas debatendo. Outra palavra que ouvia muito era ormar, apesar de não ter ideia do que significava. Também ouvia dreki e drekar por aí; sabia que seus navios de guerra eram chamados de drakkares. Estariam falando disso? Planejavam ataques marítimos? Chamavam por reforços? Merida não chegou a uma conclusão.

Durante a tarde, eles saíam e as deixavam apenas sob os olhos do velho e de alguma outra pessoa. Ele era uma companhia até agradável com o seu jeito introvertido, apesar de Merida sentir seus olhos sobre ela à distância, como se tentasse decifrar um enigma – ou então fazê-la entender que havia algum a ser resolvido. Mas na maior parte do tempo, ele caía no sono. Aparentemente, nisso os velhos de todos os povos eram iguais.

Naquela noite, os barulhos no telhado estavam tão altos que nenhuma das meninas conseguiu dormir. Merida podia sentir a raiva queimando em seu peito. Seu plano era esperar que todos dormissem para que pudesse sondar o local sem ninguém a vigiando, mas se nem elas estavam dormindo, com certeza os nórdicos também não estavam.

— Desse jeito, vai ser impossível achar uma saída — Afraig murmurou ao seu lado. — Ou dormir o suficiente pra ter energia.

Do lado de fora, ouviu os passos de Hikken correndo para a saída do salão, com aquele som inconstante da perna metálica batendo na madeira. A raiva transformou-se em um aperto doloroso de saudade. Aquele era o mesmo som que seu pai fazia quando caminhava por aí. Mesmo ao longe, puderam escutá-lo gritando com o que quer que fossem aqueles animais até que, finalmente, eles pararam.

Os primeiros raios de luz atravessaram as frestas das paredes algumas horas mais tarde. Merida ainda estava acordada, assim como Afraig, enquanto todas as outras apagaram por exaustão. Era a hora.

A princesa se levantou e caminhou até a porta na ponta dos pés.

— Eu já volto — sussurrou para a moça. — Vou dar uma volta pela casa para ter uma noção melhor do assentamento.

— Tome cuidado — Afraig respondeu, mordendo de leve o lábio inferior.

Merida assentiu e saiu. Como imaginou, o corredor estava vazio e em completo silêncio. Antes de seguir, parou nas outras portas, onde seus captores tinham seus quartos. Estavam fechadas e, encostando o ouvido na madeira, podia ouvir um ressonar distante. Ótimo.

Ela continuou seus passos sorrateiros por todo o caminho até o salão que também se encontrava deserto. Quando alcançou a porta principal, sentiu os batimentos do seu coração vibrando por todo o corpo, pulsando até mesmo as pontas de seus dedos. Seus ouvidos atentos buscavam por qualquer sinal de outra pessoa ter acordado e a seguido. Com um gesto brusco, porém quieto, Merida a abriu e vislumbrou o mundo por além da fresta. Não parecia haver ninguém do lado de fora. Finalmente, ela se esgueirou pela passagem.

A luz matinal era quase divina depois de três dias fechada dentro do salão. O assentamento, construído naquele formato circular ao redor do ponto central – onde agora podia ver que havia um pequeno palanque, um poste de madeira e uma grande fogueira – estava tingido de tons azulados suaves, quase cinzentos, enquanto um fino raio dourado surgia no horizonte. Uma brisa gélida lambeu sua face, anunciando o outono que minguava para o inverno.

Ao mesmo tempo, uma baforada abrasadora umedeceu sua nuca. Merida sentiu toda a sua espinha se arrepiar. Outra baforada a atingiu, ainda mais quente e com um ruído mais alto de respiração. Mais lentamente do que nunca, ela se virou para cima.

O rosto gigantesco do réptil quase tocava o seu e seus olhos azuis pareciam cortar o caminho até a suas vísceras, que reviravam em insanidade dentro de seu corpo.

Merida caiu para trás, e arrastou-se com as mãos, rastejando como uma presa fugindo do predador. A cada centímetro que ia para trás, o animal avançava para frente, escorregando pela parede do salão como uma serpente gigantesca. Ela parou em um ponto, o peito subindo e descendo mais rápido do que nunca. Nem mesmo quando Mor’du a prendeu na mesma posição ela sentira tanto pavor.

O animal a seguiu até ficar com a cabeça mais uma vez sobre seu corpo, forçando-a a permanecer deitada no chão. Os braços largos e compridos, ligados ao corpo por uma pele que lembrava as asas de um morcego, apoiavam-se em ambos os lados ao seu redor. Estava cercada. Ele a cheirou em todas as partes, com aquele ar incandescente saindo de suas narinas, cada vez mais quentes e cada vez mais aterrorizantes. Parecia curioso com a criatura que tinha ao seu dispor. Merida sentiu as lágrimas escorrendo pela lateral do seu rosto. Um guincho animalesco saiu de sua própria garganta, de onde os gritos humanos não mais conseguiam escapar, misturado com soluços e murmúrios incompreensíveis.

De repente, o animal levantou a cabeça, mirando para algo ao seu lado. Pessoas caíram ao seu lado e um infinito de mãos a ajudou a se erguer, enquanto empurravam o réptil para longe. Merida demorou vários segundos para reconhecer Hikken na frente da criatura, assim como Astrid e um outro rapaz tentando levantá-la. Outros animais também estavam ali, nos topos de outras cabanas, antes tão paralisados que mal pôde vê-los.

Não conseguiu processar por quantos minutos ficou no mesmo lugar, sentada na terra, com os dois ao seu lado fitando-a com preocupação e alerta. Mas, naquele tempo, lembrou-se de histórias que ouviu desde criança, de seu povo e dos povos de outras terras que passavam por ali. Com essas lembranças, entendeu que aqueles eram dragões.


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