Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 5
Merida


Notas iniciais do capítulo

Recomendo ouvirem a música "Sowelu" da banda Wardruna na metade final do capítulo. Caso precisem do link: https://www.youtube.com/watch?v=HOmzFUYez3I



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Levou algum tempo, mas finalmente Merida tinha se acostumado com a rotina e não se sentia mais tão fraca quanto antes. Isso lhe deu tempo o suficiente para planejar como poderia escapar em busca das luzes sem ser presa nas garras do padre Áed ou de seus pais.

Depois do sonho, pôde vê-las também pelas janelas, saindo do território do castelo e seguindo pela ponte de pedra para dentro das árvores. Alguma coisa relacionada ao seu destino estava ali e ela sabia, podia sentir em suas entranhas, que tudo se ligava às pedras ancestrais.

Mas uma coisa realmente tinha aprendido com sua mãe nesses dias, que era ter paciência e agir de acordo enquanto a tensão estivesse no ar. E agora, com o corpo adaptado ao pouco alimento e as orações, sentia-se capaz de pensar com a cabeça limpa. Porém, sempre que sua mente voltava ao assunto, um espinho de culpa entrava em seu peito por esconder tudo da mãe. Depois do que passaram, sua relação de fato tornou-se muito mais forte e profunda; só elas sabiam o que tinham passado e como era a sensação, o que isso significava. O segredo guardado adquiria o gosto de traição.

Talvez, se eu tentar, ela pode entender, pensava. Era um risco, mas um risco que sentia precisar correr.

Hoje só veria a rainha durante suas aulas sobre a história do reino e do clã. Ou melhor, seria o único momento em que estariam totalmente sozinhas – diferente dos desjejuns com todo o restante da família ou das caminhadas pelo castelo para mostrar como seriam feitos os deveres de uma senhora. Suas acompanhantes não desgrudavam delas de jeito nenhum nessas horas.

Como dizer isso sem fazê-la se voltar contra mim de novo? A indagação não saía de sua cabeça e, a cada minuto passado, ela martelava sua mente mais e mais forte. Aquilo fazia o tempo não passar nunca e também passar rápido demais.

A manhã foi mais lenta, mas o começo da tarde veio rápido como um relâmpago. Enquanto mordiscava seu pão do almoço e bebericava o leite o mais devagar que podia (uma das formas que encontrara de acalmar o estômago), repassou centenas de vezes a situação e o que poderia dizer. Seu pai e alguns outros nobres debatiam sobre a ameaça atual e possíveis medidas, mas a princesa não se prendeu a palavra alguma – a ameaça com a qual ela lidava era tão urgente quanto os homens do norte e só ela poderia lidar com aquilo.

A mão de Elinor em seu ombro a trouxe de volta à realidade.

— Já está na hora das nossas aulas, querida.

— Claro! — Merida engoliu o restante da refeição, se despediu dos outros presentes e seguiu a mãe pelos corredores adentro. Era a hora. Seja valente, como já foi quando foi preciso, repetia a si mesma. Valente como sempre fui.

Sua mãe fechou a porta da sala de estudos atrás de si. O cômodo que era um tormento em sua vida tinha se tornado um dos poucos portos seguros nas últimas semanas. Merida sempre fora agitada demais para se sentar, ler, estudar mapas e canções por horas, mas vinha reconhecendo o valor de tudo aquilo, desde o tempo passado com a mãe tecendo as tapeçarias até o aprendizado sobre seu reino e seu povo – que, agora, tornara-se crucial para seus planos.

— Onde paramos mesmo? — Elinor perguntou enquanto folheava os papéis sobre a mesa de carvalho. — Lembra-se, querida?

— Mãe... — seu coração pulava no peito.

A rainha parou, imóvel por alguns segundos, quase como uma estátua não fosse pelo movimento do peito ao respirar fundo. Quando seus olhos se levantaram e encontraram os de Merida, sabia que ela já entendia o tom de sua voz.

— Sim?

— Eu... tenho tido sonhos. Pesadelos. — Decidiu contar toda a verdade. Isso era algo que aprendera com os últimos acontecimentos; poderia sim conversar com sua mãe e evitar outra confusão como aquela. — Há sempre... uma sombra. Asas na escuridão, gritos, fogo... e sangue. As luzes estão aparecendo de novo. Não só nos meus sonhos, mas aqui, na vida real, acordada. Tem algo acontecendo, mãe. Acho que fizemos alguma coisa quando matamos Mor’du que não deveríamos ter feito. Não sei...

— Como o que? — Elinor questionou com a voz automática, aquele som imediato e vazio de quando estava pensativa e assustava. Seus olhos ainda encaravam os da filha, às vezes fixos, às vezes perdidos no nada.

Merida remexeu as mãos, apertando os dedos enquanto pensava.

— Lembra-se de quando me contou as lendas antigas sobre as pedras sagradas? — O rosto da rainha tremeu em compreensão. — Nós derrubamos uma, mãe.

Elinor sentou-se, balançando a cabeça. Merida podia ver suas mãos tremendo.

— Eram lendas... — sussurrou em um fio de voz. A princesa suspirou.

— As luzes também eram. — Pela primeira vez falou com calma. Sua firmeza típica retornava aos poucos, agora mais forte do que nos últimos dias. — As bruxas, as druidas, maldições, pessoas transformadas em animais, Mor’du era uma lenda, espíritos... E nós vimos tudo isso.

Agora os olhos de Elinor estavam cheios de lágrimas. Sem pensar duas vezes, Merida correu até a mãe e sentou-se no seu colo enquanto a abraçava. A princesa acariciou seus cabelos para confortá-la. Entre os soluços, a rainha desabafou:

— Eu só queria paz! Uma vez nessa vida!

— Eu sei, mãe. Eu sei — Merida engoliu em seco, segurando as próprias lágrimas que surgiam. — Mas temos que terminar de resolver isso de uma vez por todas. Só assim vamos ter paz de verdade. O pai está lutando contra os invasores de novo, eu sei, porém a minha luta é essa e vamos sofrer ataques de qualquer um dos lados se não lidarmos com todos os problemas.

Ela suspirava agora, com o choro mais calmo. Seus braços apertaram a cintura da princesa para ainda mais perto de si.

— Pode ser perigoso...

Merida sorriu e segurou o rosto de sua mãe entre as mãos. Ela parecia tão frágil agora, ferida, cansada, do mesmo modo que a jovem se sentia tão adulta.

— Eu conheço as luzes desde criança. Elas sempre me mostraram o caminho. E quem melhor para fazer coisas perigosas do que eu? A senhora sabe disso mais do que muito bem — brincou. Elinor deu um riso baixo. — Mas eu preciso de você, mãe. Do meu lado. Preciso da sua ajuda para saber o máximo que puder e para cuidar das coisas por aqui... do meu pai e do Áed.

— Oh, querida — falou, secando as bochechas com as mãos. — Sabe que eu sempre estarei com você. Se é isso que acha que deve fazer, tem a minha ajuda e a minha bênção — e finalizou com um beijo suave na testa da filha. — É só me dizer do que precisa.

Merida sorriu e pensou. Ainda precisava ter certeza de alguns detalhes, contudo, o plano já estava quase pronto.

— Preciso aprender tudo o que tiver sobre as lendas antigas, as terras daqui e de uma distração para que eu possa fugir.

Precisaram de mais uma semana até tudo estar pronto. Como não ia mais à capela durante as tardes, o tempo foi preenchido por completo com os estudos. A princípio, alguns acharam estranho a repentina dedicação da princesa, mas as duas conseguiram contornar qualquer suspeita com a atuação da jovem donzela que aprendera com os pecados passados – que, na verdade, nem precisava de uma atuação tão dedicada assim. E finalmente, o dia tinha chegado.

A rainha convocou uma reunião com o marido, os lordes do conselho e o padre e, antes de entrar, encarregou as suas criadas e as da filha com as tarefas administrativas menores, dispersando cada uma para um lado. Merida conseguiu, afinal, tempo sozinha o suficiente para sua escapada.

A princesa prendeu os cabelos, cobriu-se com uma capa escura e se esgueirou pelos corredores, silenciosa como as sombras, em direção aos estábulos. Com a cabeça baixa e o corpo levemente curvado, foi capaz de chegar até o local sem ser abordada por ninguém. Percebeu que, de fato, a sorte estava ao seu lado quando se encontrou sozinha ali dentro.

Não posso levar Aengus, pensou. Seria arriscado demais. Todos sabiam que aquele era seu cavalo e a ausência dele significaria a dela. Continuou andando pelo estábulo, a cada segundo podendo ouvir ainda mais o sangue pulsando pelos seus ouvidos e vibrando todo o seu corpo. Escolha rápido antes que alguém entre... Esse! Avançou para um animal aleatório que estava ao seu lado. O cavalo relinchou ansioso e a garota hesitou, então seguiu mais uma vez, agora com movimentos mais leves, o que pareceu baixar a guarda dele.

— Calma, garoto — ela sussurrava enquanto ajustava a sela e abria o portão. Ela conferiu uma última vez se havia alguém por perto antes de montá-lo. Ainda nada, apesar de poder ouvir as vozes dos homens alguns metros à direita. Daria certo, teria que dar. Algumas semanas de confinamento não seriam suficientes para acabar com a sua habilidade de fugir dos guardas. — Vamos!

Os primeiros galopes foram calmos, silenciosos, quase tentando se mesclar a paisagem natural. Merida virou à esquerda, sempre com a cabeça baixa, tomando cuidado para ainda conseguir ver o caminho e também manter os cabelos contidos sob o capuz. O tempo transcorria mais lento do que nunca enquanto atravessava os primeiros dez metros, doze, quinze, vinte, trinta, cinquenta... Cada servo ou cavaleiro caminhando ao seu lado fazia seu coração saltar, o que quase a fez se entregar em três ocasiões seguidas.

Com um rápido movimento de pulso, fez o cavalo acelerar um pouco e agora os próximos cem metros pareciam mais ligeiros de se percorrer. Outra puxada de rédea, mais terreno coberto ainda mais rápido. Depois de finalmente se aproximar da ponte de pedra, os segundos se arrastaram de novo. Dezenas de pessoas atravessavam o local, cheias de sacolas, cestos, carriolas, olhando para todos os lados e conversando em um escarcéu.

Vamos logo, vamos logo, vamos logo. Por ironia do destino, sua prece silenciosa parecia trazer ainda mais gente. Sua paciência se esgotou. Merida atiçou o cavalo mais uma vez, forçando quem quer que estivesse no caminho a mudar de direção – claro que sem colocar ninguém em risco. Felizmente, todos entenderam o recado, e agora, em um piscar de olhos viu as árvores envolverem todo o seu redor, criando uma penumbra acolhedora e misteriosa.

A princesa continuou seu galope sem rumo, atiçando cada vez mais o animal enquanto mantinha seu foco em tudo e ao mesmo tempo em nada dentre as folhagens. Não demorou até que uma bola em chamas azuis se interpusesse no caminho. O cavalo relinchou e levantou o corpo, logo voltando ao chão. Merida o controlou sem tirar os olhos da luz.

Atrás daquela, mais outra surgiu, e outra, outra, em uma linha que formou uma trajetória da mesma forma como da última vez. O animal resistia, mas ela o forçou a prosseguir naquela direção, acelerando o passo gradualmente, porém se contendo. Não tinha a mínima ideia do que as luzes queriam mostrar agora, então era preciso cavalgar com cuidado, vigiando todos os lados, mesmo que o sangue pulsante que ainda a ensurdecia a dissesse para correr.

Merida balançou a cabeça, como se assim afastasse os pensamentos. Não podia resolver outro problema que causara seguindo seu impulso desse jeito. Foi ele que causou tudo isso, para começo de conversa. E se tinha aprendido alguma coisa nas últimas semanas, era que por mais que isso a torturasse, tinha que se conter e ser paciente.

E dessa maneira eles percorreram uma distância que até ela parou de contar, virou para a esquerda, desceu uma colina, então para a direita e metros e metros incontáveis e sinuosos entre as árvores. A cada luz alcançada, outra surgia adiante, seguida por centenas de mais chamas azuladas. Olhou para cima, entre as copas das árvores, e confirmou o que pensava: o céu se tornava mais e mais escuro a cada momento que o conferia. Uma mão invisível esmagava seu peito.

— Não — disse, em voz alta. — Não posso voltar antes de resolver tudo. Eles vão entender quando eu explicar, eu sei que vão, é só contar tudo o que aconteceu e pronto. Mesmo que eu faça outro jejum, vai ser pelo motivo certo.

Em um ponto, deixou todo o foco de lado e apenas seguiu a trilha em movimentos automáticos. Desse modo o tempo correu mais rápido do que antes e Merida só voltou a si quando percebeu que tudo ao seu redor fora engolido pela escuridão.

E que alguém a seguia.

Ela podia ouvir um eco baixo dos passos do cavalo que antes não faziam esse som. Puxou as rédeas de forma abrupta e, mesmo depois de estar completamente imóvel, quem quer que estivesse atrás deles demorou um segundo a mais para parar também. Um choque percorreu todo o seu corpo. Merida mirou adiante, apertando os olhos para tentar enxergar qualquer caminho aberto. As luzes se foram, também notou. Outros passos e galopes se aproximaram, agora vindos dos lados.

Sem pensar duas vezes, atiçou o cavalo e saiu em disparada, seguida de imediato por dezenas de homens que não tentavam mais se esconder.

Felizmente, o cavalo sabia se guiar, mas os outros também. Seus gritos guturais fizeram todos os seus pelos se arrepiarem. Eles também berravam frases incompreensíveis, naquela língua forte e vozes altas, tão agressivos quanto seus machados que brandiam no ar. Podia vê-los agora. Mais homens se aproximavam pelos lados, esses carregando tochas. Nórdicos! Ali, eram mais selvagens do que o próprio Mor’du.

Um grito desesperado forçou-se pela sua garganta. Tinha que conseguir, tinha que fugir! Sabia muito bem o que acontecia com mulheres capturadas por eles. Sempre soube. E eles chegavam cada vez mais perto, uivavam cada vez mais alto, penetrando sua carne com aquele ruído.

— Vamos! Vamos! Vamos!

Um homem loiro já estava tão próximo que era capaz de ver todo o seu rosto com aqueles olhos ferais que se deleitavam com o acontecimento. Ele tentou esticar o braço até suas rédeas, mas Merida, sem nem ver como, conseguiu fazer com que o cavalo fosse para a esquerda.

O rapaz grunhiu e então gargalhou. A caçada lhe dava êxtase.

Mas no segundo seguinte, Merida estava voando no ar. Sentia como se estivesse assim por um período indeterminado ao mesmo em tempo que não demorou mais do que um piscar de olhos para sentir o ombro e a bacia batendo nas pedras. Seu cavalo relinchava com dor após ter tropeçado em alguma coisa, mas pelo menos ainda estava de pé. Diferente dela.

E aqueles breves instantes foram o suficiente para que a cercassem de uma vez por todas. Eles foram chegando aos poucos, tantos que era como se brotassem do chão. O quão longe ela tinha ido realmente? Os últimos que chegaram no local vinham mais devagar, seguidos por outras jovens amarradas pelas mãos, sujas, feridas e em prantos.

O rapaz de antes parou ao seu lado e a encarou, analisando-a da cabeça aos pés e abrindo um sorriso de orelha a orelha. Ele tirou uma corda de dentro de um saco que carregava e, enfim, desceu ao seu encontro.


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