Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 4
Soluço




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A expedição guiada por Hilde partiu pouco depois da primeira luz da manhã. Soluço reuniu os companheiros de sempre com a adição de Dagur e Gustav, que insistiram em participar dos treinos. A ideia, contudo, o deixava mais apreensivo do que de costume. Mesmo após anos de paz ou treinamentos, Dagur ainda era um guerreiro ansioso por violência e Gustav um jovem impulsivo querendo se provar homem. Exatamente por isso lhe doía admitir que, por não fazerem ideia de quais raças ou quantidade de dragões encontrariam, precisava de toda a ajuda possível. Além disso, poderiam se deparar com nativos e não deveria se manter em desvantagem de propósito.

Soluço também percebeu os olhares luxuriosos dos dois e de Hilde sobre as armaduras de escamas, e ele precisou segurar uma risada ardida de orgulho. Manter apenas a si e os cinco amigos mais próximos com as vestimentas mais resistentes era uma vantagem da qual não abriria mão. Assim só eles se aventurariam para perto dos dragões sem maiores riscos.

— Estamos perto — Hilde anunciou com a voz baixa. Alguns segundos depois, ergueu uma das mãos e todos pararam. Ela retornou alguns passos, para perto de Soluço e Astrid, e apontou para o barranco à frente. — Foi ali que os vimos, escondidos lá embaixo. Estão usando o terreno para guardar os ninhos, por isso também quase não saem da área.

E com certeza estão na defensiva. Soluço deu um suspiro nervoso.

— Quantos, mais ou menos? — Astrid questionou.

— Nove. Alguns maiores que outros. Acho que só alguns são adultos e os outros mais jovens.

— Certo. Vamos então. Sem barulhos altos ou movimentos bruscos! — Soluço olhou rapidamente para Dagur, que resmungou alguma coisa impossível de entender. — De certo eles já sabem que estamos aqui.

Com passos cautelosos e lentos, foram se aproximando, cada som de folha e graveto se quebrando aumentando a eletricidade que sentia correr por seu corpo. Todos então se deitaram e rastejaram até a beirada do barranco. Soluço perdeu o fôlego por um momento. Eram furacões! Não havia dúvida com aqueles corpos e pescoços longos, os espinhos por toda a dorsal, as pernas traseiras fortes e os dois chifres, um na ponta do focinho e outro no queixo. As escamas azuladas com detalhes amarelos os camuflavam muito bem na vegetação ao redor.

E um deles o encarava nos olhos. Era visivelmente o maior e mais forte do grupo. Um líder identificara o outro. O dragão ergueu os ombros e avançou, o pescoço movimentando-se de forma sinuosa tal qual uma cobra, com um ronco grave saindo da garganta. Ele não os queria ali. Os outros dragões voltaram sua atenção ao alfa e então às pessoas. Todos estavam em alerta.

— Chefe. — Hilde estava tensa ao seu lado.

— Calma — ele respondeu sem tirar os olhos da criatura. — Continue calma.

Soluço começou a avançar, simulando os movimentos que o dragão fazia enquanto mantinha o corpo baixo. O animal hesitou, como se reconsiderasse algo, antes de, por fim, prosseguir. O rapaz escorregou com cuidado alguns metros para baixo, até chegar em um ponto no qual pudesse se apoiar. Ainda faltava muito até o fundo e mesmo assim o furacão conseguia ficar cara a cara com ele.

Tentando ao máximo não cair, pegou sua espada, acendeu as chamas e circulou o corpo com elas, moveu o braço para lá e para cá, o suficiente para fazer com que as posições de ataque relaxassem. Soluço chegou a estender a mão em sua direção, mas isso só serviu para fazer o ronco grave recomeçar. Recuou e o silêncio voltou. Sim, era isso por enquanto.

Com um suspiro, ele se sentou com as pernas cruzadas.

— Podem levantar o corpo... devagar — disse, a voz controlada e calma. — Só sentem, nada mais. Hilde, se tiver alguma arma, não a deixe a mostre. Por hoje é até aqui que chegamos.

O alfa não parou de encará-lo, mas agora Soluço já não estava tão ansioso. Poder ver um dragão depois de quase um ano fazia o contentamento explodir dentro de si. Era ali que pertencia, com eles. Lá embaixo, dois filhotes o olhavam com curiosidade, ainda tão delicados que lhe roubaram um sorriso.

E ali ficaram, trocando algumas palavras apenas de vez em quando. Ao começar a ouvir resmungos dos gêmeos sobre a fome, Soluço olhou para cima e viu o sol queimando quase no topo exato do céu. Nem tinha percebido o tempo passando tão rápido.

— Vamos. Amanhã voltamos aqui um pouco.

No assentamento, as coisas não estavam tão calmas quanto na floresta. O grupo só teve tempo de comer uma refeição rápida antes de ter de ajudar seu povo a juntar os materiais e as ferramentas que seriam levados ao local de construção. O trabalho não era tão estranho a Soluço. Lembrava-lhe de todos os dias em que Bocão o fez andar Berk inteira com uma carriola cheia de armas a serem entregues. Em comparação, seus amigos podiam ter a força física, mas faltava a resistência e uma certa destreza com o serviço. O jovem deu uma risada baixa. Mesmo depois de anos que ninguém mais o rebaixava, ainda gostava de ver cenas como aquela.

O estranho eram as pessoas novas andando pelo local. Algumas carregavam materiais, outras começaram a trabalhar nas construções, mas todas possuíam uma expressão confusa, cheia de temor e apreensão. Seus próprios traços tinham algo de diferente.

Escravos.

A verdade o acertou como um tapa.

Os outros grupos começaram seus saques e aquelas pessoas faziam parte dos seus espólios. Nativos daquela terra... Precisamos da comida, disse a si mesmo. Comida, ouro e de algum jeito que não os fizesse matar os dragões também. Era seu dever de chefe suprir seu próprio povo.

Uma garota nativa olhava de um lado para o outro tremendo tanto que parecia prestes a morrer de frio. Ela entregou martelos a um homem nórdico que retribuiu com uma apalpada pelo seu corpo.

— Ei — Soluço avançou na direção de ambos. Por um segundo, sentiu-se vacilar. — Preciso de mais mãos no que estou fazendo. Sei que está ocupado, posso pegar sua garota por um momento?

— Sem problemas — o homem respondeu tão monótono quanto uma pedra. — Só não deixa ela fugir na mata.

Soluço assentiu e olhou para ela. A menina encarava o chão, ainda trêmula. Um suspiro de horror escapou quando ela percebeu que ele se dirigia a ela. O homem deu-lhe um leve empurrão impaciente, que a fez começar a seguir o jovem. Soluço a guiou até o lado oposto do terreno, onde Astrid e Röffa estavam.

Röffa não perdeu tempo.

— Quem é essa?

A pergunta fez Astrid voltar sua atenção aos dois. Em segundos, sua expressão mudou de curiosidade para preocupação e então para ódio. Ela já entendia o que acontecera.

— Ela... precisa ficar aqui um tempo — ele explicou. —  É mais seguro com vocês...  do que com os outros homens.

Astrid assentiu em silêncio. Sua esposa tentou manter um olhar compreensivo enquanto sinalizava para a moça se sentar ao seu lado. A garota hesitou, fitando-os um a um, e, por fim, se encaixou entre as duas.

Soluço olhou em volta. Ninguém estava perto o suficiente para ouvi-los.

— Se for possível, talvez... dar um jeito de fazer ela sair por aí...

Astrid e Röffa sorriram com a ideia, assim como Soluço. Sabia que poderia acabar arrumando confusão com isso, mas era só inventar uma desculpa e seguir o dia. O homem não faria mais do que esbravejar, quem sabe arrumar uma briga com alguém antes de ser enviado para longe dali. Sim, era seu dever de chefe proteger e suprir o seu povo, e toda ajuda seria necessária, mas nunca veria algo do tipo acontecer na sua frente e ficaria calado. Nunca.

Os dias e as noites passaram sem mais incidentes, exceto pelo o que ele próprio previu quando o homem não recebeu sua escrava de volta. Soluço precisou pagar de forma a recompensá-lo pela perda de seu espólio, o que ainda lhe dava um gosto amargo à garganta. Ainda assim, era muito melhor do que sentiria se não tivesse agido.

Todas as manhãs, partiam para o ninho dos dragões por algumas horas, depois voltavam para o assentamento onde trabalhavam na construção pelo restante do tempo. O inverno se aproximava mais e mais, encurtando os dias – da mesma forma, avançavam como se estivessem no meio do verão.

Em três semanas, o suficiente já tinha sido erguido para que começassem, aos poucos, a se mudar para o local e para que cada um tivesse se ligado ao seu próprio dragão e pudessem convencê-los a sair do ninho.

Os dragões pareciam mais uma vez refletir partes de si mesmos, algo que mesmo depois de anos ainda o intrigava. Astrid chamou sua nova companheira de Vento Veloz, uma fêmea reservada, lânguida e calada ao ponto de ser realmente sorrateira, além de muito observadora. Os mais agitados e jovens ficaram com os gêmeos e Gustav, chamados de Garra de Pedra, Valquíria e Come-Tormentas. O calmo Fura-Nuvem se identificou logo com Perna de Peixe. Era difícil identificar qual era mais violento, o de Dagur, chamado Nidhogg, ou o de Melequento, Jörmungand. Mas um fato era que Jörmungand estava logo abaixo do alfa naquele bando, e este era o de Soluço. Ainda estava em dúvida quanto a nomes, talvez fosse melhor apenas esperar para que um bom surgisse em sua mente. Tanto ele quanto Jörmungand, porém, ainda rejeitavam ser montados, como se isso ferisse sua autoridade. Soluço admirava isso.

Os outros nórdicos que os ajudavam na construção não conseguiram esconder o espanto ao ver os animais caminhando pelo local, mas qualquer um que fosse de Berk espalhava um ar de satisfação e saudade. Perceber o sentimento geral trazia uma calma dolorida para Soluço, mais visceral do que ele gostaria que fosse. Ele não é o Banguela...

A lareira no centro de seu novo salão queimava forte o suficiente para aquecer o local por completo. Naquele dia, o céu permanecera branco o tempo todo e agora ameaçava escurecer – assim como a comida começava a cheirar forte. Astrid apareceu da área dos fundos com uma bandeja de madeira em mãos, carregando copos e uma jarra de barro.

— Hidromel?

— Oh, sim! Por favor! — Depois dos dias de trabalho, sentia que alguns goles da bebida eram merecidos para relaxar. No fundo do salão, Vento Veloz pareceu concordar com um bocejo longo enquanto se aconchegava com a cabeça entre as pernas.

Astrid se sentou ao seu lado e o acompanhou com a bebida enquanto olhava em volta. Por alguns segundos, sua atenção se prendeu na dragonesa e então seguiu para a estrutura do salão.

— Nem acredito que fizemos isso tão rápido — disse, parecendo ainda divagar.

— É... nem eu.

— Pelo menos vamos poder ficar mais sozinhos agora — ela completou, com seu tom de voz tornando-se mais aveludado e um sorriso sedutor no rosto. — Sem dividir a casa dos outros, o seu avô em outro cômodo.

Soluço encarou-a de lado, sem conseguir conter o mesmo sorriso que se refletia nele. Acho que também mereço isso, pensou, inclinando o corpo mais para perto do dela. Mesmo depois de um dia inteiro de trabalho, Astrid ainda tinha o leve aroma de flores selvagens saindo de seus cabelos, que também pareciam cintilar com o reflexo da luz do final da tarde. Quando percebeu, já a estava beijando, a cada segundo mais tomado pela suavidade do toque e do rebuliço que se expandia de dentro para fora.

O som dos passos na direção da porta os forçou a parar. À sua frente vinha Hilde, carregando consigo um arco, uma aljava, facas na cintura e uma sacola de peles sobre os ombros. Sua expressão era um misto de uma excitação cômica com um toque de acanhamento.

— Chefe. Astrid — cumprimentou.

Os dois a saudaram rapidamente com alguns gestos enquanto se recompunham.

— Hilde, bem-vinda! Sente, por favor. Um pouco de hidromel?

— Seria perfeito — ela respondeu enquanto se aproximava. Soluço percorreu o salão em busca de outro copo, enquanto observava como ela admirava o local a sua volta até parar os olhos sobre Vento Veloz. — Vejo que está tudo correndo bem.

— Bastante — Astrid respondeu empolgada, porém resoluta. Conhecia aquele tom de voz, ressurgido sempre que precisava demonstrar quem realmente mantinha o controle ali. Ainda assim, um sorriso meigo e um olhar acolhedor saíam de si. — Claro que não conseguiríamos sem a ajuda do seu povo e dos outros.

Hilde deu um sorriso descontraído, o primeiro que demonstrava.

— Não fizemos nada que não estivesse a nosso alcance. Mas enfim, como estiveram distantes nos últimos tempos, por um bom motivo, vim convidá-los para voltar ao nosso acampamento amanhã à noite. Faremos um banquete com todos os grupos que chegaram aqui. Conseguimos reunir bastante comida e bebida, isso, somado com os seus avanços, são motivos para celebrar.

— É claro! — Soluço concordou. Olhou para Astrid, que respondeu com um sorriso e um aceno. — Estaremos lá. Vai ser bom descansar um pouco.

— Ótimo! Vamos esperar por vocês. Bom, não vim por muito tempo, ainda preciso resolver algumas coisas no meu acampamento e levar a caça de volta para ser preparada. Até amanhã!

Após se despedirem, a mulher levantou-se novamente e partiu. Mas atrás dela, entre as árvores, Soluço percebeu um movimento confuso entre as folhas e um reluzir azulado emanando à distância.

— O que é aquilo?

Astrid vasculhou toda a área exterior com os olhos e o cenho franzido. Por fim, deu de ombros.

— O quê?

Soluço continuou encarando o mesmo ponto, mas não havia mais nada ali. Toda a vegetação seguia novamente o fluir natural do vento e nenhuma luz estava presente além do sol e algumas fogueiras surgindo aos poucos. Suspirou.

— Achei que vi algo ali... Uma luz azul nas folhas. — Por mais que fitasse as árvores, realmente, tudo ficou do mesmo jeito. Talvez fosse só o cansaço ou reflexo de alguma pedra. — Esquece! Vamos voltar ao trabalho.


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