Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 23
Elinor


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal! Aqui está o novo capítulo e no próximo já teremos o momento mais esperado até agora: o encontro entre os berkianos e Dunbroch.

Por enquanto, espero que gostem da leitura! NÃO SE ESQUEÇAM DE LER AS NOTAS FINAIS!!!



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A fortaleza fervilhou como um formigueiro quando a mensagem foi recebida. De um certo modo, todos sabiam do que acontecia, e só havia uma causa possível para o alvoroço repentino da rainha que saiu disparada dos seus aposentos para o salão de reunião dos nobres.

Por mais que tremesse de ansiedade, Elinor esperou que o marido, os outros lordes e Áed chegassem para ler a carta ao mesmo tempo. Quando enfim todos estavam a postos, a rainha abriu o pergaminho, tentando ao máximo não o deixar cair de seus dedos, e leu em voz alta.

“Mãe e pai, estou bem, como antes. Recebi sua mensagem e conversei com Hikken e Astrid, sua esposa. Eles concordam em fazermos um encontro diplomático e se dispõem a ir até Dunbroch pessoalmente e, claro, eu os acompanharei. Eles estão informando seus aliados mais confiáveis e fazendo os últimos preparativos para a viagem. Estaremos aí dentro de uma semana no máximo. O chefe e seus aliados estão totalmente dispostos a acordos de paz e de coração aberto.

O único pedido que eu, Merida, faço é que respeitem os códigos de conduta e hospitalidade com os berkianos. Eles me abrigaram, me protegeram dos ataques de outras tribos assim como a outras meninas do nosso reino, e não demonstraram nada além da mais pura boa vontade. Devo isso a eles e creio que me compreendem. Se qualquer ofensa ou ataque cair sobre qualquer um deles enquanto estiverem em Dunbroch, eu mesma me sentirei atacada e traída. Confio em vocês para manterem sua palavra e a minha honra, mãe e pai.”

Elinor repousou o pergaminho sobre a mesa com um suspiro de orgulho. E então, levantou o olhar para os outros ao seu redor, de repente se sentindo muito mais calma do que antes.

O padre Áed deu de ombros.

— Creio que nada mais justo — respondeu com naturalidade. — Boas atitudes devem sempre ser reconhecidas e retribuídas. E, como a princesa disse, seria uma desonra para ela e para os meus senhores — disse, fitando de Elinor para Fergus — que aqueles recebidos sobre o seu teto fossem atacados pelas costas, ainda mais tendo salvado a vida de outras pessoas, inclusive da princesa.

Elinor assentiu solenemente, apesar de um sorriso brincar nos cantos de seus lábios. Um por um, os outros lordes do conselho deram de ombros, mexeram as cabeças e ergueram as sobrancelhas. Fergus, contudo, ainda estava calado e de cenho franzido.

— Querido?

Sua voz o fez piscar rápido, como se o trouxesse de volta à realidade. Por fim, ele respirou fundo e bufou pesadamente.

— Sim, sim — respondeu, mexendo uma das mãos. A outra esfregava a barba em movimentos perdidos e pensativos. — Está concedido. Eu não gosto dos nórdicos, todos sabem. Mas... se essas são mesmo as palavras da minha filha e for verdade... sim, não vou deixar nada acontecer com eles. Pelo menos não durante esse encontro. Não prometo nada para depois.

— Primeiro precisamos recebê-los e ouvir o que têm a dizer. Depois pensamos em como vamos tratá-los, dependendo de como as coisas andarem, tudo bem? — Elinor completou, uma mão repousada carinhosamente sobre a de Fergus. Ele assentiu em silêncio, respirando fundo de novo. Dessa vez, ao menos parecia um pouco menos tenso do que antes.

Seu marido apenas assentiu e gesticulou mais uma vez com a mão livre.

— Mandem cartas para os outros líderes dos clãs. Preciso do parecer deles sobre o assunto e de mais relatos de como as coisas estão seguindo nas suas terras. Depois... — Fergus soltou o ar com peso. — Sim, depois vamos mandar uma resposta de que concordamos... em conversar!

Os lordes assentiram em silêncio e começaram a remexer nos papéis sobre a mesa. Elinor os observou com movimentos perdidos e expressões distantes. Ninguém ali gostava de ter que fazer diplomacia com vikings. Mas, pela primeira vez em vinte anos sendo rainha, ela se permitiu não se importar. Por fim, quando todas as mensagens foram discutidas e lacradas, todos se levantaram e saíram, um a um.

Elinor manteve a compostura régia durante a maior parte do trajeto no corredor. Pelo menos até que nenhum guarda ou servo estivesse por perto, quando enfim disparou para o quarto dos meninos e mandou chamar por Eithne. Hoje, tinha muito o que brincar com eles e o que contar à sobrinha.

 

Poucas horas depois, Elinor escutou o pátio dos servos se agitar em conversas, não muito antes de ver seu sobrinho, Cathal, retornando ao salão de Dunbroch através da janela. A hora da diversão tinha terminado – ainda assim, ela não se sentia tão cansada quanto antes, aliás, pelo contrário, a reunião e ter passado o final da manhã brincando com os meninos encheu-a de novas energias.

Quando alcançou o salão, Fergus já estava em seu trono e Cathal parado a sua frente. O rei se levantou e fez uma mesura simples, assim como o sobrinho, ao verem-na e Elinor deslizou até seu assento ao lado do marido.

— Seja bem-vindo, Cathal — ela disse. — Espero que o caminho tenha sido tranquilo.

Cathal assentiu.

— Sim, calmo o suficiente. Obrigado.

— Fiquei sabendo que Pirn foi atacada e seu exército estava lá. Está tudo bem?

O rapaz assentiu de novo, mas dessa vez, seus braços pareceram tremer um pouco à distância, como se visse fantasmas em suas memórias.

— Sim, eu estou bem, fisicamente. Mas devo admitir que não é nada bom perder uma batalha contra saqueadores nas suas próprias terras — ele respondeu, com um tom de voz mais cabisbaixo.

— É, sobre isso, também queria te perguntar, Cathal: por que atacou mesmo depois de termos enviado ordens contrárias? — Fergus questionou.

Cathal suspirou, exasperado.

— Tio, eu... Senhor. Eu apenas me defendi! Os vikings estavam atacando próximos à minha fortaleza em um dos nossos maiores centros de comércio. Seria uma perda trágica. Ou melhor, foi. Mas eu não pude deixar de defender tanto nosso povo quanto nossa fonte de lucro.

— Eu escutei relatos de comerciantes que vieram até aqui de que havia soldados escondidos por Pirn, disfarçados como pessoas comuns.

— Sim, eu ordenei que reforçassem a segurança assim que os drakkares atracaram. Sempre soube que Pirn seria um alvo cobiçado, então, mais uma vez, apenas tomei medidas de defensa, nada mais. Não foi minha intenção desobedecer às ordens da coroa e nem foi o que fiz!

Elinor e Fergus se entreolharam por uns instantes. Sim, a explicação lhe soava válida, pelo menos.

— Você disse que foi uma tragédia — Fergus continuou. — Conte mais do que aconteceu.

Os ombros de Cathal caíram. O ânimo com o qual se defendeu se esvaiu quase de imediato.

— Nós perdemos. Como eu disse. — Respondeu. Sua voz era pesada, profunda. — Consegui reunir meus soldados quando percebi a aproximação dos vikings na área e cheguei lá quando o saque já tinha começado. Mas assim que chegamos... Havia...

Elinor conseguiu ver a cor sumir do rosto do sobrinho. Os olhos se arregalaram e seus músculos ficaram tensos, paralisados. Pôde ver interesse em seu rosto, sim, mas também horror.

— Diga logo, rapaz! — Fergus trovejou. Cathal deu um pulo para trás e Elinor revirou os olhos. Sempre detestou quando o marido fazia isso.

A boca de Cathal pendeu aberta, como se fosse falar, mas as palavras fossem inaudíveis. O rapaz engoliu em seco, fechou as pálpebras e respirou fundo.

— Animais...

— Que animais? — Fergus perguntou, firme.

Cathal engoliu em seco. Seu olhar ainda estava perdido no vazio sombrio.

— Lagartos. — Disse, enfim, e trincou o maxilar.

Elinor respirou fundo pesadamente. Algo lhe dizia que havia mais naquilo, mas não sabia definir o quê. Seriam realmente lagartos ou outro tipo de animal? Se sim, que tipo de lagarto seria capaz de deixar seu sobrinho tão... fora do corpo, em claro choque até aquele momento? Seria algum tipo de réptil que nunca tinham visto antes? Ou então... Um tipo de animal mais próximo das suas experiências em ter se tornado uma ursa com magia?

A rainha se arrepiou da nuca à lombar. De um modo ou de outro, foi assim que Cathal preferiu responder à pergunta. Fergus também parecia intrigado com a resposta.

— Você conseguiu descobrir quem liderou o ataque? — O rei perguntou.

Cathal tombou a cabeça para um lado.

— Mais ou menos. Consegui perceber que eram três líderes diferentes trabalhando juntos. Todos pareciam em pé de igualdade entre si, mas superiores aos outros. Uma mulher loira, por volta da sua idade, tia, me pareceu uma escudeira; um homem ruivo com uma cicatriz e tatuagens azuis no rosto; e um rapaz, meio ruivo ou moreno, era o mais jovem, poucos anos mais novo do que eu, com uma armadura preta de escamas e uma perna de metal. Não consegui entender bem quais seriam seus nomes.

Fergus ruminou por poucos segundos antes de dar outro tapa no braço do trono.

— Estão atacando perto demais do palácio. Perderam qualquer tipo de medo.

Elinor engoliu em seco. Sim, o marido estava correto, e era isso que a assustava. Estavam tão perto agora de conseguir o reencontro com Merida e com o tal chefe que a abrigou que temia que esses acontecimentos dificultassem a diplomacia que seria precisa.

— Você não está errado em se defender, filho — ele disse, enfim. — Entendo seus motivos. Se precisar de ajuda para recuperar a cidade, materiais, suprimentos, podemos enviar o que estiver faltando.

Cathal se dobrou diante dos dois.

— Muito obrigado, tio! — Suspirou, com a sinceridade de um sobrinho, não de um lorde clamando pela ajuda do rei.

— Pode se hospedar aqui também para descansar da viagem e rever sua irmã — Elinor anunciou. — Sei que logo deve retornar ao Forte dos Irmãos, afinal, suas terras precisam do seu lorde, mas seria ótimo se ficasse ao menos por essa noite.

O rapaz sorriu.

— Eu agradeço de novo pela hospitalidade. Com certeza, vou ficar por aqui por um tempo.

Elinor fez um gesto com a mão e um dos seus servos se aproximou do sobrinho e o direcionou pelos corredores. Eles saberiam os aposentos adequados para ele, então era menos algo a se pensar. Ela respirou fundo e fitou o marido, que refletia as mesmas ações que ela.

— Bom, parece que é isso por hoje — disse.

Fergus suspirou. Sua quietude nunca era boa, ela aprendera nos dezoito anos de casamento. A natureza dele era a de um homem explosivo, expansivo, acalorado como o fogo de seus cabelos. Quando se calava, era porque sentimentos ruins o cercavam. Bem, era de se esperar, considerando tudo o que aconteceu e o que estava prestes a acontecer. Receber nórdicos – vikings!— na sua fortaleza era inédito.

Mesmo assim, ele forçou um sorriso cansado para a esposa.

— É, é isso por hoje.

 

O jantar parecia ter um pouco mais de vida do que nas últimas semanas, mesmo que nem todos ali estivessem tão animados assim. Elinor não se preocupou muito. Sua filhinha estaria de volta logo e isso era o que importava.

— Mal posso esperar para rever Merida — Eithne declarou, com o olhar perdido em um ponto distante. — Nem sei mais quando foi a última vez que nos encontramos. Seria ótimo se fosse em um momento de retorno para a casa como esse.

Ao seu lado, Cathal travou o maxilar. Elinor encarou o rapaz, discreta, porém intrigada.

— Algum problema, Cathal?

Dessa vez, foi Eithne quem retesou os músculos com a pergunta. O brilho esperançoso em seus olhos sumiu tão rápido quanto a luz do sol encoberta por uma nuvem. As mãos se abaixaram, soltando lentas os talheres sobre a mesa, e seus ombros se curvaram para frente. Ela parecia já saber a resposta.

Cathal pigarreou.

— Sim, tia... Ou não exatamente. É que eu não me sinto à vontade de deixar minha irmã aqui com três exércitos de vikings chegando para se hospedar, estando eles com Merida ou não. Eu confio nela, pode ser que esse tal chefe seja amigo dela, mas... com todo respeito, digamos que ele seja mesmo minimamente moral, ainda assim não acho que ele seja capaz de vigiar e controlar todos os seus homens. Nem eu sou, nem a senhora e nem o senhor meu tio. É um fato. E... é isso, não me sinto à vontade. Seria mais seguro se a levasse de volta para casa, no Forte dos Irmãos.

— É, Cathal, eu te entendo — Fergus disse, entre um gole e outro da cerveja.

Elinor, porém, não conseguia tirar a atenção da sobrinha e da sua postura recolhida. Os dedos dela se mexiam mortos, perdidos, alisando o talher de cima a baixo. Mesmo com o rosto abaixado, Elinor percebeu que ela começava a lacrimejar.

— Eu quero ver minha prima — declarou num fio de voz. Um fio, mas ainda assim firme.

A rainha não via bem, mas pensou ter enxergado lágrimas nos olhos de Cathal também.

— Sinto muito. — Ele disse, claramente entristecido, porém também firme.

O jantar se amargou de vez depois disso. Nenhuma outra palavra foi dita e os únicos sons eram dos talheres e os das ocasionais fungadas de Eithne, ainda tentando fingir que não chorava. Ao terminarem, cada um se levantou em silêncio e seguiu para seus aposentos.

Elinor e Fergus subiram juntos ao seu quarto, ainda calados até fecharem a porta atrás de si, trocarem as roupas mais pesadas pelos tecidos finos de dormir e deitarem-se na cama.

— Admito que fiquei com um pouco de pena da coitadinha — Fergus declarou enquanto se ajeitava. — Eu sei o que o Cathal quis dizer, mas também imagino como ela fica com isso.

— Sim... — a rainha divagou, com as mãos mais geladas do que estavam antes.

Elinor suspirou com pesar. Não esperava que as memórias ressurgissem com tamanha força, mas lá estavam, gritando em seu rosto.

— Eu me lembro como é ser uma menina nobre levada de um esconderijo ao outro com tantas guerras. Antes de... Antes de nos casarmos e de unificarmos os clãs, era basicamente isso que meu pai fazia comigo. Eu não o culpo, para ser sincera. Mas pode ser uma vida exaustiva para uma jovem menina que só quer... poder ter uma casa, com a família e os amigos.

Fergus não disse nada – nunca foi bom com as palavras. Ao invés disso, seu marido passou o braço largo ao redor dela, a puxou para perto e deu um beijo em sua testa.

Às vezes era estranho pensar que anos antes, eles seriam inimigos. Ou melhor, eram. A época em que seu pai era um pequeno rei local cercado de vizinhos hostis parecia ser de uma vida diferente, muito mais anterior, que logo foi substituída por outra quando enfim o rei – seu falecido pai – decidiu unificar sua linhagem da única filha com a daquele que liderou a união dos exércitos. Uma nova linhagem, um novo clã a partir de dois anteriores, um novo rei legitimado pela sua rainha.

Pelo menos isso ela sabia com certeza: alianças, amizades e amores poderiam surgir onde menos se espera, mesmo entre antigos oponentes. Pensar dessa forma foi o que a embalou em seu sono, afinal, era algo bom o suficiente para acalmar seus nervos reanimados depois das declarações de Cathal sobre Pirn.

O reencontro com Merida e o tal Hikken daria certo. Tinha que dar.


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Notas finais do capítulo

E aí, pessoal, o que acharam do capítulo de hoje? Foi mais um "aquecimento" antes do momento crucial, mas foi necessário colocar as explicações de Cathal sobre o ataque e mais um deslocamento da Eithne.

* Um ponto que descobri enquanto pesquisava sobre mitos e cultura gaélica antiga e medieval é que, em muitas histórias, podemos ver reis que só se tornaram reis a partir de um casamento com uma princesa e/ou rainha local, seja ela humana ou uma sìth. São pontos tão frequentes que muitos especulam que esse pode ter sido um padrão de uma cultura antiga: o de legitimar o poder de um rei através de sua esposa, tendo ela passado essa posição ao marido, e não o inverso, como é mais comum pensarmos.
Em outro momento, enquanto assistia Valente pela milionésima vez, me peguei refletindo sobre como os ensinamentos de Elinor para Merida são bem específicos. São ensinamentos de uma *princesa*, não só de uma lady. Isso me fez lembrar dos mitos das rainhas locais e rainhas sìth, e pensei se não poderia ser esse o caso da família de Merida: se Elinor já não tivesse sido uma *princesa* desde o princípio que acabou se casando com Fergus depois de ele unificar os clãs na guerra contra os nórdicos. Seria realmente um ótimo jeito de tanto legitimar a posição dele como rei, como de unificar de vez os clãs locais.
Também acabei encontrando uma fanart excelente no Pinterest, com uma Elinor jovem sendo cortejada pelos quatro outros lordes, também mais jovens (Fergus, MacIntosh, MacGuffin e Dingwall).
Enfim, tudo isso culminou nessa cena final, em que realmente decidi colocar esse meu headcanon como parte da fanfic. Espero que tenham achado tão interessante quanto eu achei kkk



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