O Resgate da Rainha escrita por Nora


Capítulo 3
A Desonra de Egnias




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A briga de Aurora e Heidi tinha sido uma cena e tanto às vésperas da coroação. 

A princesa havia se exilado no quarto mesmo sabendo que isso não adiantaria de muita coisa. Minutos depois de ter arrancado o traje festivo sobre a cabeça e ter se vestido como habitualmente — nada mais do que uma calça encouraçada com escamas de dragões, como as usadas pelos tratadores na baía, e uma vergonhosa camisa de linho puída —, sua mãe entrou pela porta do quarto, os olhos molhados pelas lágrimas desnecessárias, para o horror de Aurora. 

A visita de Nora foi um conjunto de palavras preocupadas ‘’por que você faria isso filha?’’, ‘’Heidi é da família!’’, ‘’Você não pode esfaquear as pessoas sempre que se sente ameaçada’’, que foram seguidas de muitos murmúrios amuados de desculpas pela parte de Aurora — não que fossem verdade, mas aquela era a forma mais rápida de se livrar da mãe. Nora não sabia o que Aurora tinha passado dentro de Rysmun. A mãe também estivera lá; Aurora ouviu quando ela foi açoitada uma única vez. O motivo tinha sido Heather que estava em dores, sete crianças em uma única gestação era coisa demais para aguentar, e Nora tinha amenizado a sua dor num dia em que os guardas estavam de péssimo humor e queriam ouvir a rainha de Argágia gritar. 

Talvez fosse por isso que sempre era tão compassiva com a sua mãe, e pelo mesmo motivo que não lhe contava toda a sua história dentro de Rysmun. 

Já a sua segunda visita foi, para dizer o mínimo, divertida. 

Ryan acreditava saber tudo o que Aurora tinha passado lá dentro. Quando a princesa voltou — e passou um longo período vivendo com os pais em Visária —, Ryan era a única pessoa que Aurora viu por longas semanas. Os primeiros dias foram um inferno de gritos, choros, socos e mordidas. Sem contar fogo. Fogo para todos os lados. Aurora estava tão descontrolada — a criatura dentro dela numa fúria abissal, completamente ressentida por ter sido aprisionada —, que consideraram até mesmo interná-la. 

Pode ter sido a ideia assustadora de ir à uma ilha hospitalar que a colocou nos eixos à força.

Mas os seus fantasmas de Rysmun estavam por todos os lados. 

— Se aquela garota achou que tinha a liberdade de espalhar algo tão pessoal sobre você, então tinha todo o direito de esfaquear ela. Aliás, você fez pouco — seu pai tinha dito. — Eu nem teria dado tempo a ela com a faca, já tinha incinerado antes que Heidi pudesse dizer um ‘’A’’. Não diga a Victor que eu falei isso. 

Aurora caiu na gargalhada, mas também houve um momento tenso. Um momento em que ambos se olharam e, sem Ryan precisar perguntar, Aurora sabia que ele queria uma confirmação de que ela estava bem; que toda aquela situação não era o trauma falando, era apenas a natureza selvagem e incoercível de Aurora. 

Quando Ryan saiu, ela sentiu os ombros mais leves. 

Aurora sentou à beira da cama alta, os pés sequer tocavam o chão de mármore castanho. 

Ela ficou observando os padrões do quarto. Os tons eram quentes, como se o outono estivesse tanto ali dentro, como lá fora. As cortinas eram cor-de-vinho, pesadas e tão longas que amontoavam-se um tanto sobre o chão. O quarto tinha duas alas. A primeira, onde estava, possuía uma cama enorme. Provavelmente Aurora e todos os três irmãos poderiam dormir ali, tranquilamente. A cama tinha um dossel grandioso e ficava acima de um humilde mezanino. Descendo seus três degraus, era possível ver uma extensa mesa de escritório que era uma bagunça. Livros, papéis soltos, aço por toda parte. Penas e tinteiro. Misturando seus estudos com lazer, sem muita preocupação. Apesar da sua imensa disciplina militar, Aurora era desleixada na vida pessoal. 

A segunda área era constituída por um longo sofá de veludo. Havia um mapa imenso do Novo Mundo pregado à parede com Sigard em relevo. 

No segundo cômodo haviam também manequins em armaduras prateadas, perfeitamente polidas. Seu armário ocupava uma parede inteira, mas em sua maioria eram vestidos que ela nunca tocou. Com muito cuidado, aos lados das paredes que levavam à varanda, posicionavam-se espadas. De todos os tamanhos e formatos, com ornamentos de todos os tipos. 

Uma para cada território do Novo Mundo que visitara, e Aurora já havia estado em todo lugar. 

Ela não sabia qual era a sua preferida. 

A de Sigard, talvez, com a lâmina feita em metal-rubi. Era um metal precioso, inquebrável. Não muito favorável para a batalha, mas impenetrável quando feito para um escudo ou armadura. Ainda assim, a beleza dele era de encher os olhos.

Havia a espada de Rohen, de aço simples, mas com um punho tão belamente trabalhado com a cabeça de um leão, que Aurora imaginava se aqueles olhos feitos de safiras azuis não estavam olhando-a verdadeiramente. 

A espada de Argágia era monumental. O metal oco era translúcido e por ele, água escorria de um lado ao outro com cada movimento. 

Quando mais jovem Aurora tinha ponderado tornar-se ferreira. Imaginava a princesa, que uma boa guerreira que também soubesse forjar o seu aço seria invencível. Teria conhecimento de todas as texturas e disso possuiria toda habilidade para manusear a própria peça. Tinha sete ou oito anos quando tentou ficar perto das fornalhas, no subsolo do castelo. Aleksandra vetou a ideia assim que soube, dias depois. 

Naquela época, Aurora não teve força para lutar contra a fúria da avó, até então, a grande rainha de Sigard. 

Quem sabe ela devesse repensar sobre isso? Não tinha medo de sujar as mãos, ou que não fossem de toque aveludado como eram as de outras senhoritas bem-nascidas. Aurora gostava de cicatrizes que contavam histórias honradas. Não se importava com elas e sempre tinha exibido as suas com satisfação quando mais nova.

As únicas cicatrizes que abominava era o conjunto retorcido e doloroso de açoites às suas costas. A princesa desprezava aquelas cicatrizes por que haviam sido feitas sem honra. Sem que tivesse a chance de se defender... se Aurora tivesse tido a menor chance. Ou qualquer uma delas...

Estava absorta nesse pensamento, remoendo-o como fazia à beira da loucura, quando bateram na porta. 

— Entre — disse Aurora, tomando fôlego. 

Mais uma vez na noite, Aurora se arrependeu de suas palavras. 

Aleksandra, sua saudosa avó, adentrou ao quarto deixando para trás suas três fiéis damas de companhia. 

A rainha fechou a porta. Aleksandra tinha uma pele de tom lívido num emoldurado rosto comprido de traços finos. Seus cabelos negros como nanquim eram sempre elegantemente presos e envoltos de joias vermelhas. Suas roupas eram negras desde o cair de Nikolai — delegando que estava sempre em luto desde o adoecimento de seu estimado marido e rei.

Aurora não se lembrava de ter visto a avó esboçar quaisquer emoções em sua vida. Nunca. 

Tudo que Aleksandra fazia era encarar a neta como de costume: uma fagulha de desapontamento. 

— Explique-se — foi tudo o que a senhora de pele acetinada disse. 

Os acontecimentos de Rysmun, os que deixaram uma marca — não em suas costas, mas em sua alma —, eram um segredo de Aurora e Ryan. Muitas vezes, a menina ressentia-se por ter contato ao pai apenas certa parte. Mas, saber que Heidi compartilhava daquele segredo já era ruim o suficiente. Ela não precisava que isso se espalhasse mais. Às vezes gostava de fingir que o momento nunca tinha acontecido. Que era algum delírio de sua mente, como a coisa dentro dela, provavelmente era. 

As duas encararam-se por um longo momento enquanto Aurora apertava os dedos na beirada da cama, sem se mover um centímetro que fosse. Mas, pelo menos, conseguiu manter a respiração controlada. 

— Ela me irritou, isso não é óbvio? — a princesa murmurou com desobediência, sentindo os olhos de Aleksandra reprovarem a sua conduta, como sempre. — A senhora sabe muito bem como Heidi é, está sempre provocando todo mundo. Não tenho sangue frio. 

Aleksandra soltou o ar pelas narinas com desdém.  

— Me surpreende que você deixe alguém lhe provocar com facilidade. Principalmente alguém tão jovem. Mas, convenhamos, Heidi é uma rainha. Com uma rainha-regente até que complete dezesseis anos mas, ainda assim, senhora de um trono. 

Lá estava, a crítica silenciosa.

Heidi é mais jovem e uma rainha. Você deveria ser uma rainha também.

— É uma pena que eu não tenha uma mãe morta com um império para que meu querido irmãozinho me dê de presente — a princesa ergueu-se da cama, à longos passos na direção da segunda ala de seu quarto. 

Ela precisava respirar o ar puro da janela, Aleksandra já estava sufocando-a. 

— Você pode ser uma rainha de outras maneiras. 

— Me casando? — Aurora clamou com sarcasmo, olhando à avó sobre o ombro. — Me casando ou a senhora está me incitando a iniciar uma guerra? O assassinato de meu irmão ou então, o uso dos exércitos dele para que eu possa dominar algum território? Precisamos concordar que há governantes realmente patéticos por aí. 

Por mais que Aleksandra concordasse com aquelas últimas palavras, Aurora sabia que não era o suficiente. O olhar de sua avó deixava claro que ela não tinha chegado ao assunto de seu interesse, o tema particular que a levou até o quarto na neta, naquela noite. 

A princesa cruzou os braços, fortemente.

Enquanto Aleksandra permanecia plácida, sob o arco que dividia os ambientes, Aurora estava caminhando de um lado ao outro, nervosa. 

E a rainha não estava longe de revelar o que tinha ido fazer ali. 

— Não por casamento — murmurou de modo rígido. Os olhos afiados na direção da neta, pronta para arrancar-lhe todo e qualquer segredo que pudesse estar pondo em risco a sua reputação. A reputação da corte. — Já que você é uma viúva. Não foi o que disse Heidi? 

Aurora parou de se mover e fez muito esforço para não encolher o corpo, mas ela não conseguiu dizer uma palavra contra isso. 

— Eu quero saber — Aleksandra exigiu. — Eu quero saber de cada detalhe. 

— Não há nada o que se deva saber — drasticamente, a voz de Aurora falhou. 

A criatura dentro dela grunhiu em frustração. 

Fraca. 

Conte. Melhor que eu saiba por você, do que tenha que me retirar daqui para os aposentos da rainha de Corvíria e saiba tudo da maneira como Heidi queira me contar. 

A mandíbula de Aurora trincou-se com tanta força que seus dentes pareciam a ponto de quebrar. 

— Pois bem — disse a jovem princesa. O veneno desdenhoso em sua voz provido pelo fato de que Aleksandra odiaria ouvir tudo o que ela tinha a dizer e, em partes, Aurora gostou de trazer algum desagrado à avó pela afronta. — Acho melhor a senhora se sentar. 

 

O aprisionamento em Rysmun só havia sido possível por um motivo: Obstares. 

Há muitos anos os Obstares tinham sido uma das mais poderosas famílias que habitavam o Novo Mundo. Logo após o Tratado de Mikhail ser firmado pelo punho de um Egnias. A antiga família tinha uma singularidade que desafiava e amedrontava a todos os outros. Obstares eram os únicos com a capacidade de vetar, inibir... ocultar, qualquer singularidade. Era perigoso. 

Obstares não sentiam-se como reis. Eles eram Deuses. 

E, mesmo que não viessem dos Cinco Grandes — a linhagem dos primeiros magos do mundo —, eram superiores. 

Até começarem a caçada. 

Não havia registro na história de quem o fez ou quando o fez, ou se houve o envolvimento de algum dos Cinco Grandes em algo tão pavoroso quanto a devastação da linhagem de Obstares. A única coisa que a história sabia era que as paredes do palácio de Obstares foram amaldiçoadas com o derramamento de sangue da família. Daquelas pedras malditas para dentro, a magia era nula. 

Acreditava-se que o tormento do sangue dos Obstares tinha tido fim com a sua morte, mas não tardaram a aprender que o homem podia ser maligno sem limite plausível. 

O grupo que tinha dizimado aquela família também drenou o seu sangue em toda a sua essência. Por anos pocionistas renomados trabalharam em cima da vitalidade da família, à ponto de criarem um veneno inibidor de singulares, que fazia longo resultado quando aplicado direto na veia de um mago. 

Uma vez que a história desses venenos se espalhou, a maioria dos reis declararam punição por morte daqueles que a usassem em seu território. Foi assim que os criadores e possuidores de tal material, esconderam-se como os covardes que eram. Muitas mulheres de alta casta tinham os poderes inibidos e eram levadas para serem violentadas e gerarem herdeiros com sangues únicos. Uma vez que a criança nascida, a mulher era geralmente morta — não havia como controlá-la sem o veneno de Obstares e usá-lo por um tempo mais longo do que uma gestação era um desperdício. 

Tais atos foram abominados.

Rysmun caiu em desgraça e esquecimento, para décadas mais tarde, tornar-se o palco dos horrores vividos por Aurora.

Os seus raptores, aparentemente, não tinham um volume considerável do veneno. O veneno tinha sido usado apenas uma única vez, para transportá-las de Sigard para Rysmun. A ilha não era usada apenas como um esconderijo improvável — já que era vista como amaldiçoada pelos espíritos —, mas também como fonte do poder de Obstares. Tanto as mulheres, quanto os guardas, não podiam usar nenhuma singularidade dentro daquelas paredes. 

Quando Aurora viu-se desperta, sobre as ruínas de uma masmorra, presa como um animal, começou a pensar sobre o seu futuro: violada, grávida e, muito provavelmente, morta depois de dar à luz. Contudo, enquanto os dias passavam, nenhum homem tentou tocá-las. Sequer aproximavam-se muito das barras, atirando-lhes miseráveis pedaços de pão e queijo à distância. 

Aurora e Heidi formularam muitas possibilidades de o porquê estarem ali uma vez que a obviedade fez-se falsa. A maior parte de suas ponderações envolvia as sete-sereias gestadas por Heather, herdeiras de Argágia e Hibéria. Mas qual sentido teria levar todas as mulheres? Não fazia sentido. Nenhuma de suas suspeitas fazia sentido.

Sempre havia algo na história que não se encaixava. 

Os homens que estavam em Rysmun eram apenas os lacaios. Provavelmente, tiveram ordens para alimentarem as mulheres e apenas isso. Com o tempo, entretanto, eles ficaram entediados. Foi quando as brincadeiras hediondas começaram. 

‘’Uma marquinha para que o rei se lembre de nós’’, disse um dos homens quando puxou Aurora pelos cabelos para fora da cela, para o primeiro açoite. A princesa já estava debilitada pela fome quando isso aconteceu, mas quando teve a primeira oportunidade, Aurora atacou o guarda com implacável fúria. 

Houveram gritos de ordens e descrença quando a garota quebrou o pescoço do homem e o deixou jazer no chão.  

Aquela primeira vez foi terrível. Cada um dos trinta guardas deu mais de vinte açoites em Aurora, por causa do colega morto. A princesa descobriu que eles divertiram-se mais ainda quando perceberam que ela se recusava à gritar. A princesa mordia a própria língua, os pés deslizavam sobre o sangue derramado sobre o chão, até que ela estivesse fraca, pendurada pelos grilhões, com o rosto prensado na madeira. 

Batiam nela até que Aurora tivesse desmaiado. 

Quando Aurora acordava, não havia sinal dos ferimentos. Provavelmente um dos homens possuía a singularidade de cura e, quando ela apagava, deixavam-na nova para um novo dia. 

Foi apenas no último açoite que quiseram perpetuar as marcas. 

Dentro daquele inferno, houve um dia pior do que todos os outros. Um dia diferente dentro da monotonia perversa de Rysmun. 

O dia em que um dos senhores responsáveis por aquela monstruosidade, apareceu. 

O rei de Voriente tinha sido conhecido por um conjunto de esposas mortas de maneira muito suspeita. Ele não tinha aparecido, permanecendo em sua decadência de Ocreus, o menor território de todo o Novo Mundo. Àquela altura, Aurora estava tão vazia de emoções que não esboçou nada quando o herdeiro de Ocreus, Edmund, apareceu — bem vestido e bem alimentado —, próximo às grades de sua cela. 

Ele parecia estar fazendo a revista para o pai. Aurora ouviu uma crítica quanto a maneira que os carrascos estavam tratando as suas convidadas. 

Ele pendeu os olhos, preguiçosamente, para Aurora. 

E a princesa prendeu a respiração. 

Edmundo resolveu que até mesmo em miséria, Aurora era uma das mais belas donzelas que ele já havia posto os olhos. Foi quando o príncipe herdeiro de Ocreus decidiu também, que ele adoraria ter um filho com a princesa de Sigard. Mas, Edmundo clamou que queria fazer isso certo. Para desespero de seus homens, ele queria um casamento. Edmundo queria que Aurora dissesse os votos. 

Era muito perigoso levar todas as mulheres para aquele momento; a rainha de Argágia já estava quase no sétimo mês de gravidez. Edmundo reforçou que apenas Heidi deveria estar junto. Que a princesa de Rohen deveria ser a madrinha daquela feliz festividade.  

Foi um caos do início ao fim. 

Os homens seguraram os braços agora magros e débis de Aurora, levando-a para os aposentos andares acima e lhe enfiaram num pomposo vestido branco que não demorou a ficar sujo enquanto Aurora se debatia. 

Tinha saído da inércia e resolvido lutar. Lutar bravamente.

Estava tão fora de si que sequer ouviu quando ameaçaram matar Heidi se ela não parasse. 

Aquela ameaça não deteve a cólera de Aurora. 

Precisaram amarrá-la e levá-la a um altar improvisado, no alto da torre de Rysmun. O pôr-do-sol daquele lugar teria sido lindo caso não fosse abominável o motivo de estarem ali. Dois homens de cada lado de Aurora, os pés dela chutando-lhes as canelas até sangrarem. Seus dentes mordendo o que encontravam e suas unhas arranhando toda pele até que estivessem imundas de sangue.

Edmundo ria, perto de um mestre de cerimônia estarrecido e de um violinista tão assustado que errava cada acorde de sua canção. Ele batia palmas como um louco que assistia o melhor dos espetáculos.

— Está vendo, está vendo!? — dizia para o violinista. — Minha mulher é uma força da natureza! Tal qual o fogo em suas veias. Será uma noite de núpcias e tanto. 

Heidi estava amarrada. Os punhos, os tornozelos. A boca. Três homens a escoltavam e ela parecia ter lutado tanto quanto Aurora para chegar até ali. 

— Tragam-no — Edmundo havia dito, tempos depois, parecendo cansado das recusas veementes de sua noiva.

A princesa não tinha se importado. Não queria saber quem diabos mais eles estavam trazendo, não havia tortura possível que conseguiria lhe afligir àquela altura. Estava tão esquálida que era uma surpresa não ter partido a coluna ao meio com toda aquela violência. No momento, ela queria causar o maior dano que fosse possível. Tinha despertado. Não cairia sem lutar. 

Então, trouxeram alguém. A pessoa estava presa, amarrada e com um saco preto, de tecido, sobre a cabeça.

Quando revelaram a identidade do novo prisioneiro, todos os esforços de Aurora cessaram. Subitamente, sem o seu controle. Heidi prendeu a respiração enquanto Edmundo sentia-se invencível ao ver pousarem os pés, finalmente quietos, de Aurora no chão.

— Case-se comigo ou ele morre — tinha cantarolado, vitorioso. 

Colocaram uma adaga sobre o pescoço do prisioneiro. 

Aurora não olhou para o rosto à sua frente, mas seu corpo não respondia aos comandos de sua mente. Ela sabia que precisava continuar lutando, mas não podia. Não com ele em perigo. Seus olhos viraram-se para o pôr-do-sol, tingido em violeta e rosa. Observou enquanto o Astro Rei tocava o mar. Não havia nada além de mar, para todos os lados que olhava. Era lindo. Era completa e aterradoramente, lindo. 

E Aurora nunca se sentiu tão miserável em toda a sua vida. 

Ela casou com príncipe Edmundo naquele mesmo dia. 

 

Aurora deixou aquela parte sobre o prisioneiro misterioso de lado quando contou a história para a sua avó.

Seus olhos acinzentados pareciam vibrar depois de soltar aquelas informações, até que o ar lhe escapasse totalmente dos pulmões, como se tivesse levado um soco poderoso. 

Durante todo o relato Aleksandra pareceu inflexível. Seus olhos foram ficando obscuros a cada novo dito da neta, o que fez Aurora acreditar que a avó era apenas uma armadura; criada com muito tempo e esmero. Mas ainda era humana — ainda se ressentia pelo que havia acontecido com o sangue de seu sangue. 

— Depois...? — Aleksandra tentou incitar, quando Aurora ficou calada por muito tempo, os olhos sobre as duplas portas da varanda, que estavam abertas. 

O céu noturno lá fora parecia estranhamente sem estrelas. Seriam as nuvens? Talvez começasse a chover.

— Edmundo me levou para um dos quartos de Rysmun, o que fora de rei Othero — a princesa voltou a falar, contemplativa. — Esse foi o último erro dele. Sabe qual era a singularidade dos Voriente? Eles podem apagar a própria existência da mente de alguém. Deve ser bem útil para sair de crimes de forma impune. Uma singularidade fraca, creio eu. Mas deixou Edmundo convencido o suficiente para que não tivesse treinado o seu corpo.

‘’Eu estava fraca, com fome. Eu juro, eu estava quase desistindo. Mas eu não podia deixar que essa fosse a história. A história de Aurora Katerina. Eu fiquei repassando isso enquanto ele tirava as roupas. Eu tinha só doze anos, entende? Doze anos. Eu não seria lembrava, se fosse... estaria junto da pilha de mulheres violentadas por canalhas como Edmundo, usurpadores de singularidade. Não, eu não podia. 

Os meus últimos esforços foram para matá-lo. Foi violento. Eu usei um castiçal que estava perto para apunhá-lo direto na cabeça.’’

O corpo de Aurora moveu-se detidamente. As lumes acinzentadas vagaram na direção da primeira ala do quarto, como se ela pudesse ver por detrás da parede, o cômodo ao lado de sua cama, que sustentava um distinto castiçal pintado em carmesim. 

Ela viu, de soslaio, quando Aleksandra engoliu a seco, disfarçadamente. 

— Se eu tivesse aceitado todas as suas orientações para deixar de lado os treinos militares e me focar em ser uma dama. Provavelmente, agora, eu seria uma dama morta. Morta, violada, e Sigard teria um filho bastardo com uma singularidade estúpida. 

Queria ferir um pouco Aleksandra, porque as lembranças a feriam. Mas tudo que Aurora conseguiu fazer foi fincar uma adaga sobre o próprio peito. Ela piscou rapidamente, afastando as lágrimas que encheram seus olhos, timidamente. A criatura dentro dela grunhiu em sua própria cela, desejando que houvesse algo que pudesse fazer para se vingar. De novo. 

— Eu... — a voz de Aleksandra vacilou e a rainha pigarreou, rearrumando os ombros para trás. — Lembro-me como estavam todos num árduo trabalho para recuperar vocês. A morte do príncipe Edmundo foi anunciada como se ele tivesse caído da varanda de seu quarto, na corte de Voriente. Seu pai achou estranho. Pensou que pudesse ter algo a ver com um ataque isolado. Ele foi até o rei, investigar. Foi isso que salvou vocês. 

Aquela era uma informação que Aurora não tinha. 

Um nó tão profundo fechou a sua garganta de modo tão intenso que a princesa jurou que iria começar a chorar como uma criancinha na frente da avó. Ela precisava sair daquele lugar de qualquer jeito. 

— Se a senhora já sabe tudo o que gostaria de saber, eu tenho afazeres imprescindíveis para tratar agora. 

Aurora não deixou que Aleksandra desse uma última palavra, quando virou na direção da porta e a bateu com amargura ao sair. Precisou esfregar os olhos furiosamente para afastar as lágrimas. Seu rosto ficou drasticamente vermelho por causa disso. 

Ela andou em círculos pelo castelo durante longos minutos, evitando todos os caminhos que eram de trânsito comum. Quando notou, estava à frente do escritório de Heinrich e seu corpo inteiro tremia. 

— Vamos anunciar a Vossa Alt... — dois guardas ladeavam à porta. 

Aurora irrompeu para dentro do escritório como um vendaval. 

Sabia que estava com cara de choro, os olhos inchados de tanto serem esfregados para afastarem as lágrimas todas irritantemente insistentes. A princesa de Sigard sabia que não tinha conseguido disfarçar isso há tempo. Se pelo menos apenas Heinrich estivesse dentro do escritório, mas não... 

Heinrich, seu irmão Victor e Hunter. 

Os três a olharam. Inferno, era óbvio que eles iriam ligar aquilo com o acontecimento recente, com Heidi. O que pensariam? Que ela estava arrependida? Que era uma fraca? Uma covarde que chorava pelos seus atos? 

No momento, ela não conseguia se martirizar por isso. 

— Deixem Heinrich e saíam — murmurou com a voz embargada. 

Hunter já estava levantando, os olhos atentos. O rei de Rohen não lembrava de ter visto Aurora chorar uma única vez na vida. 

— Aurora... — Victor tinha começado a falar.

— Eu disse: FORA! — a princesa gritou e as velas acesas oscilaram por todos os cantos. 

Um pouco exasperado, Heinrich encarou a irmã.

Aurora só ficava fora de controle quando tinha pesadelos sobre Rysmun — e geralmente ele acordava com a princesa dormindo no chão, aos pés de sua cama. O futuro rei notou que Victor estava querendo intervir uma segunda vez, mas antes que o irmão mais novo pudesse fazê-lo, o príncipe herdeiro levantou-se. 

— Falo com vocês depois — orientou, acompanhando-os a porta. 

Aurora deu espaço para que passassem. 

Tão depressa quanto ela desejava, os dois tinham partido. 

Por um momento que pareceu muito longo, ela ficou encarando o chão, ainda sem entrar no quarto. Heinrich a encarava com imensa preocupação. Ele teria abraçado Aurora, caso não soubesse que isso lhe resultaria numa grande dor nas costelas. 

— Entre — pediu com gentileza. 

Era terrível ver a princesa de Sigard, sempre tão cheia de autoconfiança, daquela forma. 

Heinrich tinha acreditado fielmente que a irmã sucumbiria, naqueles primeiros meses depois de Rysmun. Que definharia. Mas, como era sempre do feitio dela surpreender, Aurora tinha renascido das cinzas como uma fênix — o que era algo quase poético levando em conta a singularidade que levavam no sangue. 

Ela andou pelos mares em chamas do inferno e conseguiu voltar disso. Mas às marcas estavam por todos os lados. 

A princesa entrou no escritório do irmão. Sigard  por inteiro era um conjunto artístico impecável em tons quentes, madeira escura, veludo carmesim e detalhes dourados. Lá dentro do escritório não era diferente, mas o lugar exercia luxo e soberania. 

Aurora não conseguiu mover-se mais do que alguns passos da entrada. Não queria se demorar ali. 

— Eu preciso... — adiantou-se antes que Heinrich começasse a querer ser um psicólogo para ela. — Eu preciso sair. Sair mesmo. Nada de ir aos jardins, a baía ou à floresta. Quero sair com a patrulha. Quero ir junto aos guardas para proteger os limites do vilarejo. 

Inácia. Aurora estava pedido para ir à Inácia. A vila mais próxima ao castelo que ficava muito ao extremo Sul do mundo conhecido. 

Diziam coisas assombrosas sobre a Floresta Fiamma. 

Os lábios de Heinrich torceram-se em aflição. 

— Quem sabe depois da coroação... 

— Precisa ser agora! — Aurora falou baixo, mas a sua voz estava tão enérgica que estremeceu seu peito. —  Agora, antes que eu simplesmente entre em colapso. 

Geralmente, ela conseguia se virar com um treino ou outro. Descontando a sua raiva, fúria, medo ou frustração de modos mais comedidos. Mas dessa vez não, não com Rysmun logo abaixo de sua pele, rastejando como uma criatura que trazia todo o pânico daqueles meses pavorosos. 

Contudo, Heinrich não era o rei mais flexível do Novo Mundo. Mas era impossível dizer não a sua irmã naquela situação.

— Não será hoje, provavelmente não amanhã. Os guardas estão se aproximando para sair em três noites. 

— Uma antes da coroação — Aurora sussurrou com certo alívio. 

Heinrich assentiu. 

— Estão acontecendo sumiços em Inácia. É perigoso — pontuou, mesmo sabendo que era isso que a irmã queria. A adrenalina até a última gota. Queria, insanamente, colocar a sua vida em risco apenas para saber que valia a pena viver. E que ela podia fazer algo grande com o que tinha. Ela precisava ser grande. — Aviso à você quando estiverem prontos. Mas, Aurora, cuidado. Acho melhor não falar nada com ninguém, ainda sou só o príncipe herdeiro, se a nossa avó souber disso antes que você saía... 

— Ela vai me parar — A boca de Aurora estava seca. Ela assentiu em compreensão. — Obrigado. Vou esperar e manter silêncio. 

Girando nos calcanhares, a princesa já estava dirigindo-se para a porta. O coração na garganta. 

Heinrich segurou a irmã pelo cotovelo mas, apesar de ter parado, Aurora não o olhou. 

— O que foi aquilo com Heidi? — Aurora sentiu a hesitação na voz dele ao perguntar. 

A princesa permaneceu encarando os detalhes mais escuros no entalhe da porta, depois virou-se para olhar o irmão sobre o ombro. Heinrich tinha soltado o braço de Aurora — conhecia mais do que ninguém que ela não gostava de ser tocada. 

— Aquilo? — a princesa murmurou, havia um sorriso sem emoção sobre seu rosto e um vítreo olhar martirizado que dominava a íris acinzentado. — Aquilo, era um aviso aos meus demônios, de que eu posso ser pior do que eles. 

Aurora abriu a porta e Heinrich não a impediu de sair. 

Estava tarde e, certamente, ela deveria dar meia-volta e ir para o próprio quarto ter uma boa noite de sono. No dia seguinte mais e mais monarcas chegariam à Sigard para a coroação. Ela precisava estar com a cabeça no lugar mas, Aurora sentia que nada estava no lugar. 

Seus pés, vagarosamente, levaram-na para o hall do palácio. De lá, os pés mais apressados, levaram-na para os jardins — já sem sinais das tendas ou das festividades de mais cedo. Nos jardins, o coração de Aurora começou a bater tão rápido que ela desafiou seus pés a acompanharem aquelas batidas. 

Ela estava correndo, correndo sobre à noite extremamente escura. 

Mas de nada adiantava, e ela sabia. 

Não havia como correr do que estava dentro dela.


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