O Resgate da Rainha escrita por Nora


Capítulo 2
À Beira dos Segredos




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Quando Aurora saiu do quarto, deixou para trás duas criadas com os cabelos em pé. A princesa não tinha estado avoada o suficiente para que permitisse que as duas mulheres fizessem o que deviam fazer: deixar Aurora apresentável. A sorte que tinham era o fato de Aurora ser filha de uma dríade, um ser das florestas, conhecida por sua profunda beleza. Aqueles traços — embora não tão surpreendentes quantos os de sua mãe —, ainda estavam lá. Mesmo por debaixo de um vestido simples, carmesim.

Aurora nunca usava das costureiras do castelo, fazendo questão de mandar que o menino de recados do lugar, Caleb, fosse até a aldeia mais próxima e encomendasse os vestidos que ela mesma fazia um esboço. Nada de renda, tule, ou qualquer outra coisa que a deixasse mais parecida com um bolo de casamento do que uma pessoa. Corpetes também estavam fora de cogitação; quase tinha quebrado algumas costelas, uma vez, numa tentativa pífia de agradar a avó. Nunca mais. Preferia os vestidos simples, acinturados por cordões com pedras preciosas. Precisava confessar que era uma vestimenta inspirada nas roupas descomplicadas que as sacerdotisas do Templo de Egnias usavam.

Pelo menos uma coisa elas precisavam saber fazer direito.

Até mesmo a sandália em vermelho-sangue sobre os seus pés não passava de tiras de couro tingidas. Os saltinhos pequenos fazendo um som surdo sobre o chão de mármore castanho — os olhos da princesa apegaram-se um pouco à estrutura dos veios no mármore; pareciam fluir uma correnteza de lava, iluminando o lugar parcialmente, ajudando as chamas que pendiam de candelabros.

O saguão circular do quarto andar — onde ficavam os quartos da família real —, estava vazio. Sabia que quando girasse o corpo e fosse em direção das escadas, encontraria guardas. Ela só precisava fazer o caminho. Ainda não podia ouvir o burburinho da festa informal lá embaixo para se sentir compelida a voltar para o quarto. Bom, se fosse ser completamente sincera, com ou sem o burburinho, ela se sentia completamente desconfortável. Pensou, então, que alguns minutinhos a mais de atraso não faria mal algum. Talvez pudesse até ajudá-la a enfrentar aquilo tudo, e a fizesse parar de agir como se estivesse indo para forca.

Afinal, o seu padrinho era pai do rei de Rohen e da rainha de Corvíria. Em teoria, eram família. Aurora tinha crescido junto a eles, passando momentos significantes de sua vida ao lado daquelas pessoas mas... as coisas estavam difíceis. Ela nunca havia se sentido tão pressionada, ou ansiosa, quanto se sentia agora.

Tinha pânico de estar entre família e simplesmente explodir.

Então, bom, pensando assim, um minuto não faria mesmo diferença.

O saguão circular apresentava muitas portas das quais ela poderia denominar com facilidade. O seu quarto, de Heinrich, o quarto de sua avó. O quarto reservado aos pais quando decidiam deixar o território de Visária para uma visita mais longa — o pai precisava morar fora dos limites de Sigard antes que ele e Aleksandra colocassem o reino inteiro à baixo —, o quarto dos irmãos mais novos; os segundos gêmeos. Victor e Maximus.

Por fim, um quarto que havia sido implementado por meio de magia — por que não deveria estar ali de modo algum —, o de seu avô. Praticamente, uma sepultura aberta, dado ao estado do antigo rei.

Foi na direção dessa porta que Aurora seguiu.

Havia aquele som pulsante sobre as suas orelhas, como se seu coração estivesse batendo no ritmo de tambores. Como se a coisa estivesse esperançosa para algo. Aurora podia até mesmo conviver com esses pequenos contratempos que já faziam parte de sua rotina.

Ela cruzou o corredor, estendeu a mão na direção da maçaneta mas, antes que pudesse tocá-la, uma espada cruzou o seu caminho, interceptando a sua chegada à porta. A princesa recuou a mão; a surpresa pintou-lhe a face por apenas um segundo antes da sua expressão tornar-se tão fria quanto mármore.

Mas a batida de seu coração não negava que tinha sido surpreendida.

Tsc — disse uma voz masculina no escuro. — Você não deveria estar na festa?

Embora tivesse uma estatura considerável, Aurora precisou erguer os olhos para encarar o sentinela. Andrei, de pele marfim, cabelos escuros em corte militar e um único olho violeta intenso que a encarava com deliberada satisfação por tê-la surpreendido. Andrei tinha seus vinte e tantos anos, quase trinta. Ou trinta, de fato, Aurora não sabia.

Ele era um enviado do próprio pai, o Barão das terras de Ganglot, mais ao oeste de Sigard. Era o primogênito, o que tornava uma surpresa a posição do Barão. Mas o que Aurora tinha ouvido — e não foi atrás por que não se importava —, era que Andrei estava à procura de glórias. Uma coincidência, não fosse o fato de estarem em tempos tão pacíficos. E, como tinha irmãos mais novos, então... talvez o Barão fosse um homem solidário aos desejos pessoais dos filhos; o que não era comum em nobres menores.

Aurora anuiu à cabeça, sem demonstrar a Andrei nada além de indiferença.

— Estou surpresa com a nova ousadia dos guardas. Você não devia fazer seu trabalho em silêncio e sem ser percebido? Não é para isso que a sua singularidade serve? — Aurora disse com maldade.

Não era inteiramente culpa dela por ser tão desagradável o tempo inteiro. Viver dentro de sua cabeça, na maior parte do tempo, era um pouco insuportável.

Alguém precisava pagar.

Andrei deu um sorriso leve, abaixando a espada.

— Estou fazendo o meu trabalho — disse, sem se abalar. — Estou zelando pelo bem-estar do seu avô, tanto quanto pelo seu. Sei como a Vossa Majestade, Aleksandra, não tolera atrasos.

Há alguns anos aquele lembrete teria feito Aurora tremer até a medula, contudo, há algum tempo ela não era mais dependente do que a avó gostava ou deixava de gostar. Se fosse só um pouquinho mais rebelde, certamente estaria usando calças e botas, como pela manhã.

— Eu sei que Aleksandra não tolera a falta de respeito pela hierarquia — Aurora tinha elevado a mão, outra vez, para tocar a maçaneta. Andrei não a impediu dessa vez. — E você deveria lembrar-se de onde está dentro dessa cadeia alimentar.

Só então, Aurora sorriu para Andrei que estava sério.

A princesa entrou para o quarto, agora era ela quem se sentia satisfeita.

 

A câmara onde o corpo inerte de Nikolai permanecia, estagnado, tinha a mesma estrutura dos quartos, embora com menos mobília. Havia apenas algumas mesas de centro que sustentavam candelabros de ouro, um livro aberto sobre um atril — Aurora nunca se aproximou para lê-lo, mesmo que tivesse a vaga ideia de que se trataria de algo sobre Egnias, o espírito-mor que sustentava a singularidade de sua família — e vasos de flores recém-colhidas. As janelas estavam abertas, mas claramente encantadas para manter a brisa do lado de fora já que as grandes cortinas aveludadas em rubro não faziam um movimento que fosse.

Nikolai estava deitado sobre um leito de mogno, as mãos unidas sobre o tronco. O antigo rei ainda era jovem, estava próximo de completar apenas sessenta anos; na idade dos magos isso ainda era considerado o começo da vida — levando em conta que, com tranquilidade, viviam até os duzentos e cinquenta anos. Nikolai outrora tivera a pele bronzeada, como se passasse horas abaixo do sol. Quando jovem, era de uma beleza aterradora como o fogo. Aleksandra contava-lhes histórias, quando mais crianças, sobre o rei em armadura incandescente, sobrevoando os limites de Sigard em seu dragão de escamadas impenetráveis.

O homem que Aurora conheceu, no entanto, era um diplomata. Um homem que alcançou a plenitude. Ryan contava que o pai fora muitas vezes inflexível mas, esse homem, Aurora também não conheceu. Tudo que ela teve foi um avô — e muitas vezes, a única pessoa com quem tinha coragem de compartilhar algum sentimento mais perturbador.

Nikolai sempre a olhava como se ela fosse um vulcão próximo a entrar em erupção — a diferença era que, para ele, a explosão teria sido fascinante, como bom apreciador do fogo que era. Contudo, Nikolai nunca teve a chance de ver quem a neta se tornou, ou quem estava prestes a se tornar.  Todas às vezes que entrava dentro daquela câmara, banhada pelo fogo e suas sombras, Aurora sentia um nó abissal em sua garganta. Como se cada momento vivido no calabouço do arquipélago de Rysmun, a apunhalasse novamente de forma cada vez mais dolorosa. Era um conflito terrível; a presença do avô que sempre tinha sido calmaria, agora era dor.

Ainda assim, por sua honra, não havia um dia que Aurora não fosse vê-lo. Perguntava em voz baixa — por que se sentia idiota quando fazia —, como ele estava se sentindo. Puxava uma cadeira que ficava a um canto, sentava-se ao lado do avô e segurava-lhe as duas mãos. Então, geralmente, contava sobre as boas-novas do castelo ou como havia sido o seu dia.

Gostava, particularmente, de contar a Nikolai sobre os irmãos. Sobre como Heinrich estava se saindo, ou como Victor não parava de implicar com Maximus. Também como o próximo rei parecia longe de encontrar uma pretendente — o que era o fervoroso desejo de Aleksandra — ou como Victor andava insuportável com a sua mania de simetria em tudo. Maximus era o mais calmo dos herdeiros Egnias. Um sopro cálido. Nos dias em que a agitação dentro de si era mais sofrível, Aurora ia ao meio da noite para a câmara — se nesses dias Andrei esteve por lá, talvez a expressão no rosto de Aurora tenha o impedido de pará-la.

Os dias ruins eram dias de silêncio. Eram dias de se sentar em silêncio ao lado de Nikolai e deixar que tudo voltasse a memória.

O aniversário da rainha Aleksandra. Uma festa luxuosa e grandiosa, mas apenas para os Cinco Grandes.

Estavam todos lá, reis, rainhas, príncipes e princesas herdeiros, lordes, barões, condes... os tempos de paz que viviam sobre o Novo Mundo não exigiam uma guarda rigorosa. Aurora não sabia como os homens de Rysmun haviam adentrado o castelo, mas eles o fizeram.

Todos os acontecimentos seguintes eram flashs.

A primeira pessoa a cair havia sido Apollyon, o rei de Hibéria — o mais poderoso dos magos —, ele devia ter sido o alvo principal por que, com Apollyon desperto, jamais teriam conseguido aquela façanha.

Apesar de incomumente poderoso, Apollyon podia ter sido ingênuo. Aceitado uma taça de alguém e, no meio de uma conversa e outra, caído em torpor. O rei de Visária, Hayden, conseguiu proteger a esposa para que não fosse levada. Era apenas uma pessoa para se proteger na confusão.

Astória, Hibéria, Sigard e Rohen. Todos sofreram.

Esposas e filhas levadas. Todos sabiam o que aconteciam com mulheres raptadas, eram levadas para procriação, por causa de seu sangue. De sua singularidade. E aquelas, todas elas, ainda tinham consigo histórias e símbolos poderosos sobre si. Foi uma devastação, por sete meses.

Aurora temeu, temeu que a tivessem levado para isso. Mas quando chegou às ilhas de Rysmun, ela notou que seu destino era outro. Não menos pior.

Tiraram-lhe os poderes. Ela sofreu de fome, frio, sede durantes meses.

Foi açoitada tantas vezes que as marcas em suas costas eram lembranças vis... e quando foi libertada, quando finalmente esteve de novo com a família... nunca se deu nem ao trabalho — depois de todo trauma —, de querer saber o que havia acontecido em Rysmun. O que havia realmente acontecido.

Por que estivera lá.

Aurora notou que tirar aquele minuto na câmara de Nikolai tinha sido uma má ideia. Então, a princesa retirou-se o mais rápido possível; enfrentar os conhecidos lá embaixo não parecia tão ruim assim.

Não agora que suas costas pareciam sangrar, apenas com a lembrança.

Aurora não teria sido notada ao descer aos jardins, isso se a sua mãe não fizesse questão de anunciar a sua presença.

A beleza de Nora era soberba. A dríade da natureza não tinha sequer sobrenome, ou como de comum acordo às leis da corte, usava sapatos — seus pés não eram visíveis por debaixo da cauda longa do vestido e dava-lhe a impressão de estar pairando alguns centímetros do chão; tão imaculada que não atrever-se-ia tocá-lo. Seu encanto físico era tamanho que se algum dia um mestre tentasse pintá-la, facilmente encontraria à loucura.

Não havia habilidade o suficiente, sobre qualquer homem das artes, que pudesse representar com fidelidade a graça de uma dríade. E ainda era menor o número de homens que tinham a sorte de desposar uma delas.

A dríade, nascida nos campos abertos de Visária, passou o braço branco como bétula sobre a cintura da filha, aninhando-a como uma criança, para desespero de Aurora. Essa, com os olhos baixos — ainda recuperando-se da visita com o avô e tentando ignorar toda a cacofonia —, apenas aceitou o conjunto de beijos e pequenos arquejos da mãe, em saudade. Nos últimos dois anos tinha passado por aquela situação tempo o suficiente para saber que não adiantava espernear como uma criança para que Nora se afastasse.

O único herdeiro Egnias que tinha essa sorte era Victor — por que era escorregadio como uma sombra. Difícil de pegar; não que Nora não tentasse.

— Achei que não iria se juntar a nós — ouviu a mãe emendar a um último beijo estalado.

Os cabelos brancos faziam cócegas no rosto da princesa.

— Vovó não me daria essa chance — murmurou, erguendo para mãe um olhar controlado. — Ela não tentou lhe enfiar sapatos dessa vez?

— Deve ter desistido depois da última década — Nora piscou.

Aurora deu à mãe um sorriso plácido, ainda sem conseguir desvencilhar-se do abraço de Nora sem que a ofendesse profundamente.

Estavam no início da longa mesa, a cabeceira não estava ocupada, então Heinrich devia estar noutro lado da tenda conversando com alguém. O cortejo de Rohen estava por todos os lados, entre guardas, damas de companhia, nobres e a elite, embora dessa, Aurora só visse o seu padrinho, o príncipe destituído, Victor. As cores de Rohen eram o azul, laranja e dourado, todos destacando-se na multidão vermelho incandescente de Sigard. Aurora tentou procurar nas proximidades se Elora, segunda na sucessão ao trono e sacerdotisa de Rohen, estava aos arredores, mas ao que tudo indicava sua fiel amiga tinha escolhido mais uma longa véspera no Templo, ao lado do espírito da família, do que para eventos frívolos.

Ou também, estava escondendo-se de maneira covarde ao invés de enfrentar Heinrich. Os dois haviam sido prometidos desde muito jovens — mas como diziam, um casamento entre um Egnias e um Berzerkir sempre era amaldiçoado —, Aurora não era muito fã de crendices do tipo, contudo, precisava concordar que o caminho de ambos se bifurcara de modo irreparável.

Uma sacerdotisa nunca havia tornado-se rainha em Sigard. Aleksandra jamais sobreviveria a algo do gênero.

— Vou procurar o papai — Aurora deu um beijo sobre o rosto da mãe que a respondeu com um sorriso.

Tinha desistido de Elora, não via a amiga a meses; mas não podia parar de sentir falta de uma companhia feminina. Como se todas as outras mulheres do castelo e do reino de Sigard fossem apenas bonecas de porcelana.

— Ele estava com seus irmãos em algum canto... se não tiverem fugido para a baía dos dragões.

Sem esperarem por ela, típico. Mas havia muito mais a se ver.

Aurora anuiu a cabeça e deu cumprimentos singelos enquanto circundava o grandioso jardim. Tinham lhe oferecido taças de vinho, mas ela recusou — Aurora não bebia. Qualquer coisa que pudesse tirá-la de seu mais completo senso, estava fora de cogitação.

Quanto mais saía dos limites da tenda e aproximava-se da escuridão dos jardins e do céu estrelado, ela podia notar e reconhecer outros apenas pelos seus tons de vestimenta. A reino de Corvíria, em tons negros e púrpura, com as vestes cravejadas de pequenas pontas de diamantes que pareciam o brilho das estrelas sobre o céu. Por mais que andasse de um lado para o outro, não tinha visto rainha Heidi — a jovem e teatral irmã de Hunter —, essa que tinha sido terceira na sucessão ao trono de Rohen, se Hunter não tivesse dado à irmã as terras de sua falecida mãe, Corvíria. Heidi Nyktenès, que levava o nome do espírito dos céus, que imperava sobre a sua família. Heidi era perversa como a escuridão, na opinião de Aurora. Jovem demais para ser uma rainha e de coração cruel. Não que Aurora fosse muito melhor, mas pelo menos a maldade dela não era a sangue frio.

Aurora notou que o pai e os irmãos não estavam por lugar nenhum. Ela encontrou Felícia, esposa de Victor — a sacerdotisa de Rohen tinha cabelos ruivos, como metal quente. Sardas no rosto e vestia-se muito parecido com Nora.

Felícia era mãe de Elora, mas não era mãe do rei Hunter e nem mesmo, de Heidi ou Hank; os gêmeos.

Victor, Hélade e Felícia... era uma longa história. E sempre que Aurora precisava resumi-la, gostava de dizer que o tio era um grande cafajeste e ponto final.

Tinha dito-lhe isso uma vez à beira de seus dez anos de idade; estava lembrando-se da reação do tio — embasbacado e procurando por uma resposta coerente para dar a uma criança —, quando começou a sorrir. Aurora surpreendeu a si mesma quando notou estar sobre o mais extremo da tenda, olhando na direção da baía dos dragões como se pudesse vê-la de onde estava. O festim não tinha iniciado se ainda não havia comida sobre a mesa, então, ela podia cruzar o terreno e ir encontrar-se com o pai e os irmãos.

Infelizmente, o pequeno tempo que teve para ponderar, revelou-a algo incomum.

Aurora viu a cerca viva bem próxima mover-se de uma maneira relativamente suspeita.

O histórico de ser atacada em festas já estava em uma cota alta o suficiente para que Aurora se desse ao trabalho de andar armada por debaixo do vestido. Ela subiu a saia carmesim e tirou de um coldre à perna, uma das adagas de arremesso de Sir Ludovin, pensando sordidamente que talvez tivesse a oportunidade de usá-la para algo além do arremesso, de fato. Sorrateiramente e com o coração pulsando nas orelhas, Aurora usou a mão canhota para segurar um ramo dos arbustos e puxá-lo com violência, esperando ter como vantagem a surpresa do infrator.

O que viu dentro do arbusto era uma confusão de roupas, pernas, pele bronzeada, cabelos louros, morenos e ruivos.

Um trio de caras surpresas, à primeiro momento.

Depois risinhos e até mesmo um corar suave de uma das garotas.

A expressão de Aurora ficou tão sombria que, caso a sua singularidade fosse um olhar mortal, ela teria matado todos os três naquele exato momento.

— Que falta de respeito no reino alheio — ciciou.

Quando rei Hunter puxou a camisa para cima — o torso insuportavelmente bem treinado exposto —, e começou a sair do seu esconderijo, Aurora soltou o arbusto com violência e girou o corpo para se afastar daquela visão do inferno. Certamente o rei tinha comido algumas plantas verdes por que ele balbuciou alguns xingamentos e depois apressou-se para ficar ao lado de Aurora. Ele parecia interessado no fato dela carregar uma adaga na mão. Afiada e pronta para o ataque; seus olhos — malditos olhos azuis salpicados de relâmpagos —, alternando-se entre o instrumento e o rosto furioso de Aurora.

— Finalmente ia me dar o golpe final? — perguntou daquele jeito brincalhão que Aurora detestava.

— Infelizmente, dessa vez você tinha companhia. Eu não quero plateia quando acabar com você. Quero apreciar o momento sozinha.

— É mesmo? — ele abotoou o último fecho da camisa. — Pelo tamanho do seu ego, eu apostaria que você iria querer uma plateia.

Hunter! — Uma voz afetada o chamou.

Aurora parou no meio da tenda.

Quando ficou de frente para Hunter, ele deu um sorriso enorme. Era alguns centímetros mais alto, os cabelos dourados caíam preguiçosamente até a nuca. Ele tinha diversas marcas, pequenas, mas estavam por todos os lados. Cicatrizes. Todas curadas ao que parecia muito tempo.

Aurora pensou se seria muito ruim se ela fizesse só mais uma para a coleção, enquanto a ponta afiada da adaga pairava próximo ao peito dele, agora coberto. Apesar de ter sido chamado, ele continuou encarando Aurora — aquele mesmo olhar de sempre, como se a desafiasse à alguma coisa que ela não entendia.

Certamente não era ao duelo, por que isso era clássico.

— Hunter! — a voz chamou de novo, mais perto.

Aurora não queria vê-la, mas não queria desviar os olhos daquele desafio silencioso.         

Estava com o maxilar trincado e os olhos ardendo quando foi tirada do chão.

— Aurora! — o tom de seu pai foi a única coisa que impediu a princesa de passar a lâmina de uma maneira fatal sobre o pescoço de Ryan. Aurora revirou os olhos, mas não segurou um meio sorriso enquanto era jogada sobre o ombro como se tivesse, de novo, cinco anos. — Uma festa nunca é uma festa se a Aurora não tenta esfaquear alguém!

Agora que a adaga pendia debilmente em sua mão e Aurora tinha se desprendido do olhar de Hunter, ela podia notar que várias pessoas tinham acompanhado de perto aquele pequeno embate.

Cruzando os tornozelos enquanto era levada para perto da mesa, Aurora olhou para as três figuras atrás dela. Uma sendo Heinrich, enquanto as outras duas eram muito parecidas com Ryan; de cabelos negros, olhos azuis intensos. Victor com a sua clássica expressão de indiferença, os cabelos perfeitamente alinhados e a túnica cinza — que não fazia alusão a casa real alguma —, e Maximus, com o sorriso preguiçoso no rosto gêmeo ao de Victor. Mas não podiam ser mais diferentes. Maximus vestia com orgulho as cores de Sigard. O sorriso tão largo parecia até capaz de machucar seu rosto.

Ele tinha aprendido com a idade, que deveria manter uma segura distância de Victor.

— Aurora — Maximus murmurou, com uma piscadela de cumprimento.

Aurora sorriu para o irmão. Maximus tinha sido seu porto seguro quando ela voltou de Rysmun.

— Ei, Max — Aurora correspondeu, mas teve a atenção roubada pela visão de Heinrich que irrompeu bem próximo.

Ryan deixou Aurora no chão para conversar com Victor — pai de Hunter e senhor que tinha dado nome ao filho mais novo de Ryan. A princesa acomodou-se sobre saltinhos cretinos que usava, ajeitando a adaga no coldre. As pessoas amontoaram-se ao redor da mesa quando um cozinheiro apareceu dna entrada para os jardins, nas mãos uma bandeja de prata fumegando com batatas de aparência deliciosa.

— Você viu? — Heinrich murmurou, como o bom fofoqueiro que era.

— Eu vi muitas coisas, fui agraciada com esses belos olhos para esse fim — Aurora comentou, tentando recuperar o bom humor, enquanto se enfiava no meio de nobres e lordes e tentava encontrar um lugar para se sentar.

Heinrich a acompanhou, mesmo que soubesse ter que sentar-se à beira da mesa.

— Hunter — com aquelas poucas palavras, ele conseguiu obscurecer a expressão de Aurora de novo. — Hunter namorando Vexia e Angelique.

Aurora parou ao lado de uma cadeira vazia e colocou a mão sobre o encosto. De um lado estava Darius, um aspirante a guarda-real, filho de um Lorde e do outro, estava Maximus. Bom o bastante.

— Eu estou encantadoramente surpresa por, de alguma forma, você achar que eu estou interessada em quais cadelinhas o Hunter escolheu dessa vez. Não faz diferença que elas tenham sangue real. Ele parece ser ótimo em convencer qualquer uma a ir para cama com ele.

Heinrich revirou os olhos, mas riu.

— Deixe Apollyon ouvir você dizer isso da filha dele — sussurrou, dando uma boa olhada para o lado.

Aurora não resolveu conferir por que o rosto de Heinrich se iluminou.

— Vá se sentar no seu lugar, Heinrich — Aurora ralhou.

Com uma risada de grande diversão, Heinrich girou o corpo e seguiu longamente para o início da mesa.

Quando Aurora puxou a cadeira e se sentou, comportadamente, ela entendeu por que Heinrich parecia, subitamente, de tanto bom humor.

Hunter estava sentado à frente de Aurora.

     

Aurora achou que teria uma forte indigestão pela posição que estava, e mesmo que tentasse manter o rosto virado para Maximus — com quem conseguia nutrir uma verdadeira e produtiva conversa sobre dragões —, ainda era impossível ignorar as risadinhas e conversinhas de Hunter e suas duas namoradas.

Parecia que o pai dele tinha sido um ótimo professor.

Há um lado de Hunter estava a exuberante Vexia. Filha do rei de Hibéria, muitas vezes considerado o mago mais sábio dos Novos Tempos — o que a fazia filha de um dos Cinco Grandes. Vexia tinha o corpo sinuoso com uma ampulheta, e seria pouco dizer que ela era farta em vários aspectos; mesmos aspectos que ela adorava ressaltar em vestidos viperinos, justos e cintilantes, com as cores de forte verde de sua casa real. Vexia tinha lábios cheios, pintados num intenso rubro, os cílios alongados e curvados sobre olhos inclementes e verdes como esmeralda. Sua pele levemente bronzeada dizia que ela tinha passado, provavelmente, algum tempo à beira da praia em sua sinuosa mansão nas ilhas Hibéricas onde vivia com a mãe — divorciada do rei de Hibéria há anos.

A vida no Novo Mundo era um emaranhado, potencialmente confuso.

Como madrasta, Vexia tinha agora uma dríade. Uma senhora das florestas era a rainha de Hibéria há alguns anos. Sendo essa, Anice, tia-avó de Aurora.

Todo mundo sabia que Vexia detestava Anice; Aurora se perguntava — excitadamente —, se esse desprazer se estendia a ela também.

De soslaio, Aurora observou Vexia passar as unhas negras, como garras de um corvo, sobre os cabelos tão escuros quanto. Aquele movimento sobre os fios grossos e brilhantes exalou o cheiro numa estranha mistura doce e acre. Sutilmente, Vexia passou o braço pelo de Hunter, e Aurora viu, os lábios de Angelique contorcerem-se.

A outra garota, sentada do outro lado de Hunter, também vinha de uma família real.

Angelique era única e mais nova irmã da rainha Heather, de Argágia.

Argágia e Cádica eram as duas nações sob os mares; estava fora dos territórios conhecidos e não seguiam as leis dos homens, com legislações completamente diferentes. O reino dos mares era governado em mais da sua metade por Argágia, tendo sempre as suas próprias guerras com Cádica.

Angelique tinha sido a segunda na sucessão ao trono até a sua irmã apaixonar-se.

A singularidade — se é que aquilo podia ser chamado de singularidade —, do povo dos mares era a sua transformação em belas criaturas com caudas escamosas e cintilantes. Eles respiravam embaixo d’água e faziam os mais magníficos truques aquáticos que se possa imaginar. Eram poderosos. Com as suas próprias lendas, seus próprios objetos encantados e maldições.

Era raro que um de seus se envolvessem com o povo da terra, mas por obra do destino, o reino de Hibéria ficava logo acima do castelo de Argágia; contam que o príncipe herdeiro de Hibéria, durante uma das noites sobre o extremo da ilha enquanto estava próximo à mar aberta, deparou-se com a visão da sereia sob a luz do luar. E depois disso, todas às noites de lua cheia, ele era levado pelo encanto da rainha Argágia até os limites de Hibéria.

Em qualquer outro reino aquilo teria sido um escândalo, mas o governante de Hibéria era mais do que um rei, Apollyon era um pai acima de qualquer outro título. Caso Ace tivesse sido primogênito de qualquer outro reino, aquilo teria acabado em guerra contra Argágia, porém por sorte, o jovem príncipe pode declinar a sua posição ao trono — por que nenhum humano poderia ser qualquer outra coisa, senão um consorte do reino matriarcal marinho —,  e com pouca vontade que tinha de ser rei de qualquer coisa, Ace aceitou de bom grado seu caminho para os mares.

Rainha Heather havia sido uma das vítimas de Rysmun; a única informação que Aurora tinha sobre o motivo por trás do sequestro era que todas as mulheres dos Cinco Grandes — ou quase todas —, foram levadas. Provavelmente por seu sangue e sua singularidade. Talvez para dar algum aviso.

Heather não teria sido levada se não estivesse grávida na época. Grávida de sete crianças.

A sorte naqueles dias de horror para a rainha foi o fato de Nora e Anice estarem junto a ela, porque dríades eram ótimas parteiras.

No dia em que as sete sereias nasceram, o mar estava numa revolta tão grandiosa que Aurora perdeu o pouco fôlego que ainda tinha. Lembrava-se de ter segurado nas grades do calabouço e enfiado a cabeça entre o ferro para ver pela precária janela retangular de seu encarceramento, os céus que estavam em comunhão com o mar, entre raios, relâmpagos e trovão, e ondas que subiam em uma catástrofe que parecia pronta para engolir Rysmun. Haviam seres marinhos cintilando sobre o caótico mar; mas ninguém além das famílias reais tinham o poder de transformação para andar sobre a terra.

Naquele dia Aurora também viu os navios de guerra.

Quando as sete princesas de Argágia nasceram, ela foi libertada.

Aurora não era fã de Angelique por que ela lhe lembrava o mar, e o mar lhe lembrava Rysmun, e a sensação a sufocava.

Contudo, não podia negar que a princesa era algo de tamanho esplendor quanto as pérolas do mar. Os cabelos ruivos eram cheios e encaracolados, o rosto bronzeado era delicado e bonito, com bochechas pronunciadas. A beleza de Angelique era límpida; ela não usava maquiagens hostis como Vexia. Seu vestido era um conjunto de conchas, pérolas, cristais azuis, num monumento homogêneo e inspirador. Angelique e Vexia eram completamente diferentes — a não ser pela maneira como pareciam orbitar ao redor de Hunter —, nenhuma das duas parecia capaz de tirar os olhos dele.

Aurora notou que elas pareciam joias; resplandecentes, bonitas e desejosas. Mas elas pareciam as joias do rei. Nada além de um símbolo. Nada mais que um belo utensílio.

Subitamente, Aurora desejou que não estivesse usando vestido.

— Está tudo bem, Aurora? — Maximus perguntou discretamente, Aurora estava cortando um pedaço de carne com mais força do que era necessário.

Ela apenas afirmou com a cabeça, mas sentiu outro olhar sobre ela.

Seu corpo ficou em estado de alerta quando Aurora ergueu os olhos e encontrou a rainha Heidi — ao lado de Vexia —, encarando-a como se estivesse vendo uma pequena peça teatral da qual apenas ela entendia a mensagem. As duas encararam-se por um longo momento até que a rainha de Corvíria deu à Aurora um sorriso bestial.

Heidi tinha presas no lugar de caninos; ela mesma tinha usado uma lixa de ferro para deixar os dentes afiados daquela forma. A esclera de seu olho, ao invés de apresentar o habitual tom branco, era intensamente vermelho-sangue, deixando o azul noturno de sua íris, que um dia havia sido bonito, completamente medonho. Aurora sabia que os dentes eram uma forma de intimidação, mas quanto a coloração nos olhos ela não fazia ideia. Haviam muitos efeitos colaterais quando se treinava as suas singularidades — mas Heidi também era interessada por poções então, era provável que alguma coisa tivesse dado certo.

Ou errado.

Com quatorze anos, ela era facilmente a mais jovem rainha do Novo Mundo, em outros termos isso não teria acontecido, mas ela era uma Berzerkir, mesmo que não usasse o nome.

Desde os tempos do Tratado de Mikhail, o nome de Berzerkir era temido e, Heidi, aproveitava-se disso.

— Atena! — a voz cantada de Angelique tirou a atenção de Aurora que estava sobre Heidi.

Enquanto observava a primeira princesa-sereia aproximar-se — Atena não tinha mais do que quatro anos —, Aurora ainda podia sentir que Heidi a olhava intensamente. Era desconfortável, mas Aurora se recusava a deixar isso transparecer. Em Rysmun, as mulheres tinham estado em calabouços separados em duplas. Heidi tinha sido a longa companhia de Aurora e, num momento crucial, acabaram dividindo mais do que Aurora desejava dividir com alguém.

— Você sumiu — Atena choramingou, indo sentar-se no colo de Angelique. — Você e tia Vexia disseram que eu podia vir junto, mas me deixaram sozinha!

Angelique ficou profundamente vermelha.

Filha de Heather, sua irmã, e filha também de Ace, irmão de Vexia, Atena era mais uma ligação entre as duas. Maior do que Hunter... embora ambas tivessem deixando-a com as damas de companhia para meterem-se com o rei de Rohen no meio dos arbustos.

Que vexame.

Aurora tentou concentrar-se em sua comida de novo, de forma silenciosa agora, mas era impossível com a voz fininha de Atena que não parava de tagarelar. Atena era a primogênita, futura rainha dos mares; mas também era uma criança muito doente. Frágil, tão impossibilitada de executar qualquer uma de suas singularidades, sendo a única das setes que não conseguia conjurar a sua cauda ou mover as águas ao seu bel-prazer.

Atena vivia em Hibéria, em solos humanos.

Ninguém falava sobre o futuro de Argágia com uma futura rainha tão adoentada.

A mistura de sangues, àquela altura, tinha transformado as singularidades praticamente inconstantes. O reino de Hibéria dominava as diversas artes da mente. Como Vexia, que fazia qualquer um dizer à verdade quando esse fosse o seu desejo. E, Atena, embora longe de conseguir exercer os domínios de seu povo das águas, tinha transformado a sua mente em uma porta para o futuro.

A pequena garota era conhecida como uma clarividente desigual, para a sua idade.

Mas era difícil saber, numa criança, o que era verdadeiramente uma visão ou o que era imaginação.

Como naquele momento.

— Tá, não importa — Atena disse, como se perdoasse as duas pelo deslize.

Todas as sete princesas-sereias tinham cores de cabelo diferente uma das outras. Atena tinha longos fios cor de cobre e seus olhos tinham a mesmíssima coloração. A pele marfim era fortemente marcada pelas veias arroxeadas em suas mãos e pescoço. Era mirrada, com ombros curvados; de modo algum negando que alguma coisa em sua saúde era precária.

— Eu vim aqui — a pequena princesa continuou, alisando a saia brilhosa do seu vestido branco. — Por que eu tive uma visão sobre o Hunter.

Todas as cabeças num raio de sete cadeiras viraram-se para Atena. Hunter empertigou-se de onde estava, enquanto Aurora desejava, violentamente, que Atena fosse profetizar algum revés para o rei de Rohen.

— Uma visão sobre mim? — Hunter virou o corpo na direção de Atena com um sorriso doce e olhos gentis. Vexia apertou-lhe mais o braço, de maneira possessiva, olhando a sobrinha sobre o ombro de Hunter. — Me conte, o que guarda o meu futuro?

Atena ficou intensamente corada, da mesma cor de seus cabelos. Ela franziu os lábios, como se não tivesse imaginado que depois de mencionar isso, precisaria contar o que viu.

Aurora tentou parecer indiferente, mas estava curiosa. Assim como Darius de seu lado e Maximus do outro. Então, a princesa imaginou, que não faria mal erguer os olhos e dar uma espiadinha enquanto Atena falava...

— Agora fale, Atena! — Vexia disse, com um riso sedutor.

A menina anuiu a cabeça, mas soltou o ar dos pulmões longamente.

Eu vi você se casando, Hunter. Não muito mais velho do que é agora — houve um burburinho ao longo da mesa, o que fez Atena abaixar ainda mais o tom de voz, sentindo-se observada. Aurora sentiu o coração dar uma volta totalmente desnecessária, até mesmo tinha inclinado-se para ouvir melhor as palavras seguintes de Atena.

Mas antes que a menina pudesse continuar, os olhos febris de Vexia estavam devorando a sobrinha.

— É mesmo? — perguntou, tentando esconder a ansiedade. — E como era? Como era?

Atena ficou mais corada do que antes.

— Não vi muitas coisas... vi o Hunter no altar, e tinha muita gente em volta. Como eu abri a portinha, acho que vi tudo desse ângulo. A noiva... — algumas pessoas trancaram a respiração. Vexia e Angelique, a primeira delas. — Tinha um véu muito, muito comprido, e ele parecia feito do brilho das estrelas, era a coisa mais linda que eu já vi! Eu não vi o rosto dela, mas quando ela olhou para o lado e sorriu, eu vi que ela tinha dentes de ferro, fechando assim, como os dentes de um tubarão!

Houveram algumas risadinhas e outras trocas significativas de olhares.

O cenho de Aurora estava franzido.

— Dentes de ferro? — Vexia perguntou, a expressão completamente decepcionada. — Por que Hunter se casaria com alguém com dentes de ferro? Quer dizer, como alguém assim faz um...

— Vexia! — Angelique retorquiu, depressa e desesperada, tampando as orelhas de Atena.

Hunter caiu na gargalhada.

— Eu não conheço ninguém que tenha dentes de ferro — ele ponderou, parecendo se divertir com a situação.

Aurora não conseguiu conter a língua.

E era só uma noiva, Atena?

Ela se arrependeu da pergunta no momento seguinte porque houve um surto de silêncio. A mesa toda parecia estar observando aquela conversa, mas Aurora não podia se deixar abalar. Ela ergueu um pouquinho o queixo e deixou passar por si o afiado e nervoso olhar de Vexia, contudo, aquela também era a pergunta de interesse da princesa de Hibéria.

Atena arregalou os olhos.

Era.

Mais um conjunto de burburinhos.

Hunter se moveu desconfortável na cadeira.

Aurora quis apreciar o momento de desconforto, ou rir. A coisa dentro dela segurou as grades de sua prisão e se sacudiu em júbilo. Mas a alegria de Aurora não durou por muito tempo. Quando a rainha Heidi pigarreou, chamando a atenção para si, Aurora congelou até os ossos.

— Hum... — ronronou como um felino manhoso, batendo as unhas da mão destra sobre a mesa de madeira e encarando Aurora com um vigor facínora. Heidi deu um longo sorriso quando viu os lábios de Aurora formarem em silêncio a palavra ‘’por favor’’.

Era bom demais ter a princesa egocêntrica do reino de Sigard implorando. Heidi gostou daquilo.     

A criatura dentro de Aurora rosnou; o rosnado foi liberado pelos lábios de Aurora de uma maneira animalesca. Ela sabia que a atenção de todos já estava sobre Heidi. Sobre Heidi e suas palavras.

Sobre Heidi e o segredo mais obscuro e vergonhoso de Aurora.

— Aurora sabe muito sobre casamentos... — completou a rainha, fazendo algumas pessoas erguerem as sobrancelhas. — Afinal de contas, ela é uma doce viúva.

Antes que aquela garotinha egoísta e insensível pudesse falar mais alguma coisa, Aurora já tinha erguido o seu corpo com tanta fúria que sua cadeira caiu para trás. Ela tinha empunhado a faca de carne, com serras para cortar ossos, com a destra e, sem pestanejar, sem sequer se orientar sobre o que estava fazendo — a criatura dentro dela voltando a imperar em júbilo —, Aurora atravessou a mão de Heidi com a serra.

O sangue escarlate da rainha de Corvíria começou a escorrer da mão ferida, a serra da faca tinha afundado-se até mesmo na madeira da mesa.

Aurora estava vendo tudo em chamas.

Aquela desgraçada de Corvíria! A princesa podia sentir o corpo tremer, e as pessoas gritarem seu nome. Algumas se levantavam — seu irmão Victor, sorrateiramente, iniciando uma aposta.

— Sua vadiazinha de fogo. Eu vou acabar com você! Ninguém tira meu sangue!

Heidi mostrou as presas para Aurora, apenas uma mesa separando-as de toda a fúria.

A rainha de Corvíria segurou o punho da faca e arrancou-lhe da mão, soltando um grunhido alucinado por causa da dor. Heidi tinha se atirado contra a mesa, a faca golpeando na direção do rosto de Aurora que se curvou para trás, tropeçando a caindo sobre a cadeira virada no chão.

Quando Heidi se arremessou contra ela, foi segurada pela cintura por Vexia, que estava mais próxima.

As sombras ergueram-se sobre Heidi e Vexia como uma parede, e essas arremessaram Vexia à distância. Isso deu tempo de Aurora se levantar, de pronto as mãos, os punhos... os braços, em chamas.

— Tudo na Aurora! — Ryan gritou ao longe, deslizando moedas de ouro sobre a mesa.

Nora ralhou com o marido de algum lugar. Ninguém parecia saber o que fazer naquela situação.

Quando Aurora mirou uma esfera de fogo insano sobre Heidi, e Heidi atirou na direção dela a faca — sendo levada pelas sombras direto para o peito de Aurora —, tudo mudou. Tudo ficou quieto. As mãos de Aurora estavam sem chamas, ela pareceu estar cega por algum momento. Um simples sopro, uma respiração.

Quando conseguiu piscar, furiosamente, e perceber o que tinha acontecido, Darius já estava segurando os cotovelos da princesa de Sigard.

— Já chega — foi Victor, pai de Heidi, quem disse.

Quando ele se pronunciou, Aurora grunhiu novamente. Controle temporal, herdado pela parte materna de Victor. Ele tinha parado o tempo para as duas, tinha cessado os ataques. Isso fez Aurora gritar incoerentemente — principalmente ao se lembrar que Heidi estava a um passo de falar tudo.

— Darius, suba com a Aurora. Eu vou num segundo — Ryan pediu.

A princesa sabia que não adiantava investir contra Heidi de novo. O jantar estava arruinado.

Ela se moveu brutalmente, sacudindo-se até que Darius a soltasse.

— Posso subir sozinha — com um rosnado aterrador, Aurora arrancou aqueles sapatos ridículos e jogou na direção dos arbustos.

Ela marchou, sentindo os olhos curiosos e incrédulos sobre si. Sabia que entre eles, os piores eram os da mãe, em preocupação. Os de Heinrich, em reprovação.

E os da avó, em completa cólera.

Mas nada disso importava, Aurora ainda estava vendo em chamas enquanto entrava no castelo e rumava para o seu quarto.


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