O Resgate da Rainha escrita por Nora


Capítulo 4
A Floresta de Fiamma




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Nos próximos dias depois da conversa com a avó e o pedido ao irmão, Aurora se esgueirou.

Esgueirou-se por todos os lados. Tinha suas aulas e treinos mas depois, sempre dava uma desculpa para não estar com os outros. Ia as fornalhas, passando longos períodos escondida sob a saleta de Sir Ludovin, vendo o conjunto impressionante, e de encher os olhos, dos projetos do Mestre da Fornalha. Corria para a baía dos dragões — sua entrada ficava depois da larga floresta, atrás do castelo. Havia um monte rochoso com uma entrada inclinada para o subsolo e guardas de prontidão durantes todas as horas do dia e da noite.

As refeições eram as mais difíceis de ignorar, mas Aurora deu um jeito. Sempre deixava para avisar em cima da hora para alguma criada que tivera o infortuno de estar ao seu serviço, que repassasse a informação à sua avó. Após isso, achava uma entrada secreta e aportava-se com um bom livro, sabendo que Aleksandra mandaria que a procurassem.

Ninguém a encontrou. Ninguém conhecia as passagens do castelo como Aurora conhecia — talvez seus irmãos. Quando mais jovens, brincavam de mapeá-los em suas longas horas livres.

No último dia antes da coroação, Aurora foi dispensada de todos os seus afazeres reais e foi afogada em rendas e tule. Um punhado de costureiras e criadas tiraram suas medidas e começaram a preparação para que ela fosse a mais deslumbrante mulher do reino no dia seguinte; ela tinha bufado de forma impaciente quanto a isso. Sua mãe e tia-avó eram dríades, ela não seria a mulher mais bonita do reino nem se quisesse.

Nem que o espírito da beleza viesse beijá-la enquanto adormecida.

Era provável que Aurora tivesse enxotado as mulheres antes do almoço, se não fosse um pequeno rapaz que bateu em sua porta,  corado de correr para cima e para baixo. Caleb, o menino de recados. Ele era filho bastardo de uma das cozinheiras e, como era mirrado para qualquer outro trabalho, andava de um lado para o outro passando todo tipo de mensagem inútil que os nobres tinham preguiça de fazê-lo.

Aurora o encarou com implacável mal humor, sentimento que mudou assim que soube do que se tratava.

— Aqui — Caleb tinha murmurado, o rapazinho tão nervoso e, olhando para os lados de maneira tão indiscreta, que era uma sorte o castelo estar naquele alvoroço e ninguém perceber a sua tensão eminente. — Seu irmão disse para usá-las hoje à noite, no horário do jantar, e encontrar os guardas na saída sul, sem ser vista.

Caleb revelou uma grande encomenda em papel pardo, cuidadosamente embrulhado. A surpresa fez os olhos acinzentados da princesa cintilarem.

Os ombros de Caleb relaxaram quando Aurora o livrou do peso daquela demanda.

A coisa mais perigosa que já fiz — o menino choramingou, arrastando os pés para fora do alcance de Aurora.

Mas a garota ouviu o tintilar de moedas nos bolsos dele.

Quando a noite começou a se estende, fazendo-se presente da vista de sua janela— o céu tomando aquela coloração avermelhada como se chamas consumissem toda Sigard —, Aurora já estava de saco cheio de todas as costureiras e criadas. Elas não conheciam a sua essência, a enrolaram num padrão nauseante de cores de sua corte, mas o vestido tinha golas e mangas longas, sem querer mostrar uma parte de sua pele.

O vestido era quase virginal; o que, sinceramente, era uma piada.

— Já chega — Aurora disse quando colocaram o último alfinete. — Está ótimo. Está maravilhoso. Agora quero que saíam para que eu possa me arrumar para o jantar, se possível.

O tom sempre grosseiro de Aurora, raramente, deixava espaço para discussões.

Uma criada tinha se disposto a ficar e ajudá-la a se arrumar. Claramente tratava-se de uma novata, já que todas as outras apenas prenderam a respiração; Aurora se perguntava o quão inútil uma pessoa precisava ser para não saber preparar e tomar o próprio banho sozinha. Mas, estava muito ansiosa para ralhar com a garota nova e só se deu ao trabalho de enxotar todas as mulheres para fora — deixando claro para Olga, a mais velha de suas criadas, que deveria avisar à sua avó que logo, iria juntar=se as festividades daquela noite.

O que era uma mentira daquelas.

Assim que viu-se sozinha em seu grandioso quarto, Aurora correu para o baú onde tinha escondido a bem embalada encomenda enviada por seu irmão. Rasgou todo o papel pardo sem elegância alguma e seus dedos apressados roçaram o tecido bem encorpado do uniforme da patrulha; ele não tinha os tons de Sigard, eram camuflados, porque os patrulheiros sempre estavam em florestas — e não apenas na Floresta de Fiamma, como naquela noite.

Os patrulheiros cuidavam das fronteiras entre as cidadelas e a natureza — que guardavam horrores e belezas que apenas um mundo mágico como aquele poderia reservar. Já os guardas da cidade geralmente eram treinados em grandes academias que não focavam apenas no uso de singularidades, mas também no treinamento físico dos seus soldados — esses ficavam nas ruas de cada cidade e vilarejo sobre o Novo Mundo, respeitando as regras de seu território; eram responsáveis por lidarem com casos civis, e fosse necessário, levarem as situações mais graves ao rei. Haviam também os guardas-reais, esses eram treinados no castelo, com mais intensidade e disciplina que qualquer guarda da cidade. Um bom guarda-real podia ser muito mais do que um soldado prostrado ao lado do quarto do rei.

Um bom guarda-real podia ser o chefe de patrulha ou até mesmo, o Capitão do Exército.

E o Exército — o sonhado e amado Exército que Aurora almejava liderar um dia —, era constituído apenas pelos melhores guerreiros de cada território. Os soldados do Exército não apenas dominavam até o último fragmento de sua singularidade, como também eram senhores de guerra. Talhados para o embate.

Homens que, caso cegos de seus poderes mágicos — como em Rysmun —, ainda seriam capazes de fazer um estrago selvagem a qualquer exército apenas com suas espadas, machados ou mãos.

Haviam também os sentinelas — espiões furtivos —, mas Aurora nunca identificou-se com o gênero.

O frenesi preso dentro dela deixava claro que precisava estar num campo de batalha e, quanto estavam em tempos de paz, ela precisava de alguma coisa para acalmar o monstro.

Fazer aquela ronda com a patrulha era apenas o primeiro pequeno passo.

Com a coroação de Heinrich, Aurora seria mais vista — uma vez que tornaria-se herdeira direta do irmão —, e seria mais fácil demonstrar todas as suas aspirações. Aurora tinha certeza que poderia convencer mais pessoas a treiná-la. Ambiciosamente, desejava até mesmo candidatar-se a grandes competições que aconteciam todos os anos, nos mais diversos territórios, e juntavam milhares de espectadores para conjuntos incríveis de demonstração de força, inteligência e estratégia.

Fazer uma patrulha já era algo pelo qual se orgulhar e, se todos os seus planos dessem certo, ela podia fazer algo memorável naquela noite.

Sem mais demoras a princesa arrancou suas roupas e colocou-se no uniforme da patrulha. Havia um quepe que a ajudaria a esconder os cabelos platinados, mas naquele momento Aurora apenas o colocou no cós de sua calça. Avançou para o grande guarda-roupa e puxou uma túnica preta. Vestiu-a e olhou-se satisfeita no espelho, notando que a túnica escondia cada pequena parte de sua farda.

Aurora podia ouvir pela janela aberta as conversas cada vez mais altas nos andares à baixo, nos jardins.

A princesa armou-se com as suas adagas de arremesso, escondidas em suas botas e saiu do quarto às pressas, temendo por um momento que os homens já estivessem no posto de saída, adiantados, e deixassem-na para trás.

— Ei, você — enquanto descia as escadas, cuidando todos os cantos para que não fosse surpreendida por um familiar, Aurora chamou um guarda. — Vá até onde quer que estejam jantando nos jardins, e diga que... a princesa Aurora teve uma premonição. Que precisa se ausentar e ir louvar ao espírito de Egnias para o festival do fogo. Que era imprescindível que eu fizesse isso hoje então, peça desculpas. Diga que eu lamento muito não estar lá hoje e essas coisas.

Ela moveu a mão com impaciência e deixou para trás um guarda confuso.

Não importava. O que importava era sair do castelo antes que sua avó a encontrasse. Dos portões para fora, Aleksandra não se daria ao trabalho de mandar guardas atrás dela — e se quisesse fazê-lo, obviamente, Heinrich contaria toda a situação.

Aurora não apenas conhecia os esconderijos do castelo, como seus corredores menos habitáveis.

Ela não teve dificuldade de encontrar a cozinha e sua porta estreita e escondida, na lateral de um fogão a lenha.

Lá fora não cheirava muito bem, e ela tinha certeza que algum animal faminto se mexeu nas sombras. No meio de latões de lixo metálico, Aurora se livrou da túnica; torceu os cabelos brancos até conseguir ajeitar o quepe sobre a cabeça e depois, deslizou para o lado contrário de onde vinham as risadas e conversas.

A princesa podia até distinguir as vozes das pessoas que estavam mais próximas dali.

Foi fácil chegar à saída sul vestida daquela forma. Com a cabeça ligeiramente baixa, tudo que Aurora fez foi dar um aceno de cumprimento para cada guarda que cruzou o seu caminho.

Haviam mulheres na guarda. Não muitas, mas o suficiente para a silhueta feminina da princesa não fosse de chamar tanta atenção.

Quando começou a se aproximar do portão sul, o corpo inteiro de Aurora estremeceu de excitação.

Ela viu ao longe os guardas brincando entre si — alguns eram aspirantes, o que ela conseguia notar pela pequena insígnia prateada sobre seus peitos —, e os outros patrulheiros, mais antigos e experientes, com insígnias douradas. A conversa abaixou gradativamente enquanto ela se aproximava, alguns garotos mais jovens até mesmo abaixaram as suas cabeças, outros espicharam o pescoço para ver melhor.

A princesa, deveriam estar pensando. Tinham sido avisados a pouco que ela estaria lá.

Numa fria recepção, Aurora parou à frente da patrulha. Nada além de uma expressão profundamente controlada.

Alguém abriu espaço entre o amontoado de homens e poucas mulheres.

Aurora identificou o único olho violeta de Andrei e seus lábios quase se torceram.

— Vossa Alteza — por obrigação, Andrei fez uma breve reverência à Aurora. — Sou o líder da patrulha dessa noite, vou nos guiar daqui para Inácia e de lá, para a fronteira de Fiamma. É uma longa caminhada, não usamos os portais.

Parecia que Andrei estava esperando que Aurora retrucasse quanto a isso.

— Certo — foi tudo o que a princesa disse.

Andrei pigarreou, parecendo desconfortável com a situação.

Era como ter os olhos do próprio rei sobre eles, procurando por algum erro. Caso Andrei não conhecesse o suficiente do rei Heinrich, poderia até mesmo desconfiar que Aurora estava sendo uma sentinela — no entanto, ele também conhecia o suficiente da princesa para saber que isso não passava de um desejo dela.

Então, por ora, a proteção da princesa de Egnias — amanhã, herdeira do reino de Sigard —, estava completamente em suas mãos.

Não era a mais branda das sensações.

Andrei virou-se para os seus homens.

— Aspirantes marchem à frente, seniores, atrás de mim — Andrei gesticulou para Aurora seguir com os aspirantes.

Aquilo deu-lhe uma satisfação estranha e silenciosa.

Há todo momento, alguém esperava que Aurora fosse reclamar.

Ela teve vontade de praguejar quando foi mandada junto aos aspirantes, facilmente era uma combatente mais feroz do que até mesmo os seniores — contudo, ficou em silêncio. Tinha crescido no castelo ouvindo relatos sobre a vida dos aspirantes. Tudo não passava de uma grande provação. Era como se tudo o que fizesse valesse uma nota — a nota definiria quem você seria e até onde chegaria.

O Exército, o ponto mais alto, não aceitava aqueles que sequer conseguiam lidar com uma caminhada mais longa.

E foi uma caminhada homérica.

A estrada batida que levava até a cidadela de Inácia era a pior parte, mesmo que fosse muito bonito. Aurora tinha a sensação que algo sobre a lua era inspirador, com seu brilho mortiço e gélido, no vazio que era a escuridão noturna. Enquanto o pequeno séquito caminhava haviam conversas paralelas. Aurora ficou no meio do grupo, querendo avaliá-lo na sua própria quietude. No meio dessa avaliação, Aurora notou que Darius estava entre os aspirantes, e que a olhava com curiosidade, certo de que Aurora não captava o seu olhar de soslaio.

Ele pareceu verdadeiramente surpreso quando ela se virou de forma abrupta e mostrou a ele os dentes de forma animalesca.

Darius não voltou a olhá-la no restante do caminho.

Estavam em Inácia, a cidade mais próxima do reino e única que era possível visitar com uma caminhada. As outras ficavam há distâncias maiores, precisando de algumas horas de cavalgada e outras exigiam dias e, noutras ainda, apenas se chegava pelos portais ou — como era em Sigard —, com o auxilio dos dragões.

Todas as terras mais distantes tinham seus terrenos divididos entre nobres que juraram fidelidade, não só a Grande Sigard, mas também ao espírito de Egnias e o seu próprio sucessor, o rei. Aurora conhecia boa parte deles, não tendo se interessado em conhecer todos.  

Em Inácia as casas eram suntuosas mansões e palacetes que luziam em ouro e fogo.

Aquele lugar era o ápice da rica vida em Sigard. Bem diferente de Breton, que ficava na divisa com Rohen — sendo a cidade menos favorecida de todo o território do rei de Egnias mas, ainda assim, não eram pobres miseráveis. Contudo, qualquer comparação de Inácia com Breton chegava a ser humilhante.

As grandes construções tinham pequenas torres, despontando como lanças para o céu. Na noite, os criados acendiam as pontas das torres com lanternas em homenagem a Egnias, iluminando a cidade inteira com pequenos pontos de luz. Por todas as partes. Não apenas em mansões, mas também nos estabelecimentos próximos, no teatro da cidade e até mesmo na biblioteca — que possuía um imenso sino, feito de ouro.

Tudo em Inácia era feito de ouro e em cores quentes do outono.

A patrulha chegou à praça principal da cidade que ostentava um grande chafariz com uma estátua de Mikhail — o rei que tinha sido responsável pelo Tratado há dois séculos atrás, derrotando o temível Obliterador. Muito embora os pés de Aurora reclamassem enquanto eles deixavam a estrada e iam em direção ao chão pavimentado, a visão daquela estátua iluminada pela lua, fez Aurora estremecer na noite amena.

Pelo espírito de Egnias. Houve um breve momento, enquanto Aurora encarava a estátua majestosa de Mikhail, cintilante pela luz prateada da lua... que Aurora pôde jurar que a estátua tinha sorriso para ela.

Aurora engoliu a seco. Tinha estado tão vidrada na imagem que, simplesmente, não ouviu a ordem de Andrei para que parassem de andar e ela foi a causadora de um empurrão que resultou em tantos outros.  

Um aspirante tinha até mesmo caído no chão, mas levantou-se tão rápido quanto a batida de um coração.

— Ordem! — Andrei rosnou, contrariado. — Que bagunça é essa? Estão vendo algum dos seniores com atitudes infantis como essa?

Aurora não voltou a olhar a imagem soberana de Mikhail, concentrada na figura de Andrei, que se colocou à frente de toda a patrulha. A princesa voltou a sua atenção ao líder da patrulha, ouvindo as suas orientações seguintes. Estavam apenas alguns minutos de Fiamma, uma patrulha era constituída por vigilância constante e silêncio para que pudesse concentrar-se em tudo o que acontecia ao seu redor e além dele. Andrei os separou em duplas; Aurora acabou com Darius.

Ela quase soltou um gemido de frustração. Precisava confessar que não trabalhava bem em equipe.

— Aurora — Andrei chamou quando recomeçaram a caminhada. As duplas visivelmente separadas e Aurora, ainda mais visivelmente separada de Darius. Pelo menos o quanto a cortesia permitia.

— Sim? — a princesa murmurou, olhando-o de soslaio quando o soldado se aproximou.

Andrei falou baixo o suficiente para que apenas Aurora ouvisse.

— A patrulha vai até o raiar do dia. Amanhã à noite é a cerimônia, se você desejar sair mais cedo para descansar antes do festival...

Aurora arqueou as sobrancelhas, incrédula. Mas ela não parou o passo.

— Está me dando tratamento preferencial? — sussurrou bruscamente, fazendo a face de Andrei contorcer-se numa carranca. — Vou ficar o mesmo tanto quanto os outros, eu me viro quanto ao festival. Como você mesmo disse, ele vai correr apenas à noite.

Aurora deixou Andrei para trás quando viu o amontoado de árvores que se fechavam como uma armadilha sinistra.

Nem a luz prateada da lua parecia capaz de adentrar àquela escuridão.

Os dentes de Aurora estavam fortemente trincados com a suposição de Andrei, A princesa podia sentir que ele a olhava enquanto Gregory — que parecia ser o subcomandante —, orientava as duplas a ficaram afastados de tantos a tantos metros, para terem uma cobertura proveitosa do limite de Fiamma à Inácia.

Aurora ficou mortalmente em silêncio, parada no seu lugar, ao lado de Darius.

— Como os desaparecimentos aconteceram por aqui — Gregory disse. Um dos aspirantes prendeu a respiração. — Vamos ficar por aqui. Estão vendo as tochas no alto? Acho que não... por Egnias parecem apenas vaga-lumes daqui, mas as tochas são soldados da cidade em campanários. Foram avisados que há patrulheiros no perímetro, irão sinalizar caso vejam algo fora do comum.

Todos aspirantes assentiram.

Os seniores — sete ao todo —, organizaram-se há uma distância favorável dos aspirantes; esses eram um montante de vinte e duas duplas. Aurora notou como Andrei e Gregory foram os que ficaram mais próximos dela; como guardas-reais e não servidores da pátria, mas sim servindo a ela.

 Não era apenas revoltante, mas também humilhante.

A vida dela valia mais do que a dos outros aspirantes? Bem, Aurora tentou ser lacônica quanto a isso mas, de fato, a vida dela valia muito mais do que a dos outros aspirantes apenas pelo fato do sangue que corria em suas veias como lava. Entretanto, talvez por isso, deveriam dar mais atenção aos outros. Por que as pessoas não viam que ela era poderosa o suficiente para se defender sozinha?

Depois de Rysmun, Aurora jurou a si mesma que nunca mais seria pega desprevenida.

Dois passos sempre à frente, seu pai dizia.

Aurora ficou onde foi delimitado como uma estátua.

— Então você... — Darius tinha tentado começar uma conversa momentos depois.

Aurora apenas ergueu uma mão, os olhos vidrados sob a luz da lua.

Não — a princesa cortou, tão dolorosamente quando uma navalha. 

Todas às vezes que as duplas de aspirantes começavam a cochichar, era possível ver os olhos inclementes dos seniores pedindo silêncio.

Isso nas primeiras três horas de patrulha.

Quando foi por volta das três horas da manhã, Aurora ouviu um sênior a distância ralhar com um garoto por estar caindo no sono. Era a única coisa que os patrulheiros se importavam em repreender àquela altura, já que tantos outros tinham começado a conversar. Uns mais corajosos haviam se sentado sob as árvores nodosas de Fiamma; Darius, era um deles.

Aurora estava em pé por todas aquelas horas. Os músculos de suas pernas pareciam inchados e repuxavam quando ela trocava o peso do corpo de uma perna para a outra.

Mas Aurora não se sentou.

Havia apenas meia dúzia de aspirantes em pé.

Aurora estava pensando sobre aqueles aspirantes quando virou e olhou sobre o ombro, surpreendendo Darius que arregalou os olhos, pensando se estava fazendo alguma coisa de errado ao rasgar pequenos pedaços de grama sobre os dedos, para afastar o tédio.

Ele ficou esperando que Aurora falasse alguma coisa.

— Qual a sua singularidade? — a princesa perguntou.

Darius espalmou as mãos sobre a calça camuflada, apoiando-as na árvore para erguer o corpo. Ele tinha poucos centímetros, ignoráveis, a mais do que Aurora. Os cabelos castanhos eram claros e cheios e ele tinha sardas sobre o rosto. Imensos olhos verdes emoldurados por cílios bonitos demais para um rapaz.

— Sentidos lupinos — murmurou. — Posso... ativá-los sabe, não estou fazendo isso agora. Quando faço, posso ouvir melhor, posso farejar. Corro mais rápido, mas não grande coisa. Infelizmente, não vem com superforça.

Aurora ponderou sobre o quanto aquilo podia ser útil. O corpo ligeiramente virado para Darius, mas ainda era capaz de observar os movimentos de Andrei e Gregory.

— Como você ativa a sua singularidade? — perguntou baixo, enquanto um plano se formando em sua cabeça.

Darius abaixou o tom de voz por simples reflexo.

— Assim... — disse.

A princesa imaginou se o idiota iria se transformar em lobo na frente dela ou algo do tipo — o que acabaria com os seus planos que precisavam ser discretos —, mas não. Darius apenas fechou as pálpebras e, quando as abriu de novo, era possível ver a luz prateada da lua refletir sobre íris lupinas. Intensas e amarelas, sem qualquer sinal de que um dia houve um tom esmeraldino de verde no mesmo lugar.

Era intrigante. Darius passava de uma figura comum para algo selvagem com um simples piscar de olhos.

O aspirante escondeu o desconforto ao ser analisado pela princesa de forma tão intensa. Ela parecia calculá-lo, como uma equação que estava perto e longe de seu alcance, ao mesmo tempo.

Os lábios de Aurora entreabriram-se, rosados mas secos. Antes que a princesa de Sigard pudesse falar, o rosto de Darius voltou-se para o emaranhado de árvores atrás deles. Haviam caminhos desregulares para todos os lados. Aurora viu como as orelhas de Darius moveram-se, bem parecido com o que os filhotes de cachorros faziam ao escurem algo que lhes chamava à atenção.

O aspirante encarou profundamente a floresta. Atento.

O coração de Aurora bateu violentamente. Isso!

— Você está ouvindo? Está ouvindo alguma coisa? — no seu momento de excitação, ela elevou a voz mais do que o recomendado.

Darius segurou o pulso dela por reflexo. Aurora teria retorquido com agressividade caso não tivesse sido chamada.

— Aurora! Darius! — Era Andrei. — Tudo bem aí.

— Só conversando para passar o tempo! — A princesa disse depressa, mas ela queria mesmo era que Andrei se ferrasse.

Em todas aquelas horas que estava ali, Aurora só conseguia pensar em como era patético que uma força militar com sete seniores simplesmente tivesse medo de adentrar à floresta. Eles pareciam estar protegendo o que quer que estivesse do lado de dentro, ao invés de proteger o que estava do lado de fora! Tanto tempo e esforços gastos naquelas patrulhas imbecis. Patrulhas do lado de fora. Era basicamente inaceitável.

Caso ela fosse líder de uma patrulha, já teria se emaranhado dentro daquela floresta.

Aliás, era isso mesmo que ela iria fazer.

Com ou sem patrulha.

— Há alguém dentro da floresta — Darius murmurou, os olhos alertas voltando-se para Aurora enquanto ele ainda segurava o seu pulso, agora com mais força do que pretendia.

— Há muitas coisas dentro da floresta — Aurora rebateu, puxando a mão para afastar do toque desconhecido. — Seja mais específico.

Pelo canto do olho, Aurora viu Andrei mover-se incomodado, seu único olho violeta sob Aurora e Darius.

Ela não tinha muito tempo até ele decidir se aproximar.

— Consigo sentir coisas pequenas, roedores bem perto daqui. Mas lá para o fundo, há algo fedendo a podre. E juro, se eu não estiver enganado... — ele se interrompeu, olhando para Aurora como se pudesse ler, na expressão dela, quais eram os planos da princesa.

Se você não estiver enganado... — Aurora incentivou, os ombros já projetados na direção da floresta.

— Há um humano dentro da floresta — pela maneira como Darius falou, o aspirante parecia ciente de seria a gota da água daquele copo que já estava prestes a transbordar.

E não estava errado.

Aurora moveu a cabeça numa negativa, como se estivesse completamente consternada com algo. A princesa havia abaixado-se — por um momento, Darius não entendeu o movimento até vê-la retirando da bota uma adaga de lâmina cintilante e afiada —, e murmurou para ele com implacável rebeldia.

— Siga-me se você quiser ser útil essa noite.

Andrei também devia ter visto o movimento de Aurora, por que ele chamou-a outra vez.

— Aurora!

— Você não sabe o caminho — Darius disse com urgência.

Aurora encarou Darius com grande repúdio e murmurou:

Foda-se.

Quando a princesa de Sigard viu Andrei começar a dar passos a na sua direção, ela fez a única coisa plausível naquele momento, sabia que havia alguém lá dentro.

Aurora contornou o corpo de Darius com tremenda facilidade e atirou-se numa corria desenfreada para dentro da floresta. A dor nas suas pernas? Completamente esquecida. Além o sangue pulsando em suas orelhas de modo intenso, ela podia ouvir a gritaria que se seguiu ao seu movimento para dentro do terror de Fiamma. Não tão aterrorizante assim, Aurora notou. Apesar de ser escuro, ela tinha conseguido manter o ritmo, livrando-se apenas de alguns obstáculos com saltos bem medidos.

Não se atreveu a olhar para trás, temendo que isso pudesse fazê-la cair, e Aurora tentou sentir alguma coisa no escuro.

Parou apenas depois do que pareceu minutos de correria.

Os gritos tinham parado a muito tempo atrás — como se Andrei e Gregory tivessem medo de falar muito alto dentro da floresta —, e foi apenas quando parou que Aurora notou alguém em seu encalço.

Parecia que além de correr um pouco mais rápido, Darius também conseguia ser bem furtivo.

— Perdeu a razão? — Darius não ofegava, mas o peito de Aurora subia e descia com mais ardor.

Sequer a encontrei — a princesa murmurou cheia de divertimento.

Aurora olhou ao redor e notou que Fiamma parecia uma floresta como todas as outras. Muito parecia com a clareira que tinha atrás do castelo, antes de chegarem a montanha que abrigava a entrada da baía dos dragões. Era escuro, mas seus olhos adaptaram-se bem com a fraca iluminação prateada da lua. Viu tudo, de onde estava. Árvores altas, flores abastadas e saudáveis. O chão gramíneo era desnivelado por conta de galhos perdidos por todos os lados e pedras. Haviam algumas rochas pequenas... um tronco caído e cheio de musgo...

— À esquerda! — Darius disse tão depressa que sua voz saiu desnivelada e falhada.

— Aurora!

A princesa ouviu Andrei chamá-la de alguma parte dentro da floresta, no mesmo momento que era atingida por alguma coisa que a fez rolar no chão e bater brutalmente contra uma árvore. O ar deixou os seus pulmões completamente e ela viu pontos brancos na sua visão. Mas, não houve tempo para pânico.

Não quando ela precisou usar o antebraço sobre o pescoço daquela coisa e afastar dentes extremamente afiados de seu rosto.

A coisa era uma rassulka. A pele podre da criatura tinha um cheiro tão ruim quanto seu aspecto esverdeado e partes inteiras em estado de decomposição. O odor fez o estômago de Aurora embrulhar em fúria, mas no momento ela só conseguia se concentrar nos dentes cortantes que se debatiam a centímetros do seu rosto. A rassulka debatia-se nervosamente, as mãos arranhando a terra ao lado de Aurora, até notar que podia enfiar aqueles dedos agudos sobre a pele da garota.

O que fez Aurora urrar como uma louca e erguer a mão — que milagrosamente ainda segurava a adaga —, e projetá-la diretamente para a têmpora do monstrengo.

Como se a coisa toda não pudesse piorar, a rakulssa guinchou e o líquido verde que saiu do seu ferimento caiu sobre o rosto todo de Aurora.

A rassulka não parou de lutar, mesmo com uma adaga presa no crânio.

O plano seguinte era cortar os pedaços e colocar fogo!

Antes que Aurora pudesse incendiar as próprias mãos, a rassulka foi tirada de cima dela.

A princesa não perdeu e levantou do chão o corpo dolorido. Temendo que a criatura fugisse, Aurora criou um circulo de chamas ao redor do terreno que estavam. Uma criatura da água jamais sairia no meio das chamas e agora, a rassulka estava presa.

O fogo também ajudou Aurora ao ver ao redor com muito mais clareza.

Darius estava erguendo os punhos, como se isso fosse fazer diferença. Aurora notou que ele não tinha arma. Arma alguma. Ao contrário de Andrei e Gregory — que junto aos dois aspirantes ladeavam a rassulka dentro do círculo de fogo —, que portavam espadas douradas que brilhavam junto ao reflexo das chamas.

A criatura estava encurralada e sabia disso.

Estava nua. O corpo apenas uma inspiração do corpo feminino. Seus cabelos eram longos, azul-claro. Caíam molhados até a sua cintura ossuda. A rassulka não portava armas por que aqueles dedos longos e aguados eram armas, assim como aqueles terríveis dentes afiados. Uma arcada inteira apenas com presas amareladas e sujas. Seus olhos leitosos pareciam cegos, mas pela maneira como giraram e focaram-se neles com perfeição, Aurora sabia que não era.

Havia também uma língua longa, que brincava nos vãos de seus dentes. Era verde e com bolhas esbranquiçadas. O estômago de Aurora deu uma segunda volta terrível.

A rassulka grasnou engasgada e Andrei ergueu a espada, dando um passo a frente.

— Uma ova! — Aurora rosnou.

Nunca que ela deixaria todas as glórias para Andrei.

Desesperada, a rassulka pareceu notar quem era o elo mais fraco. Ela pulou como um sapo para cima de Darius, fazendo-o choramingar como um bebê. Ele provavelmente teria morrido se a intensão da rassulka não fosse fugir dali o mais rápido que pudesse. Ela preparou um segundo pulo, mais rápido do que o primeiro. A criatura estava passando por cima da chama — diante os olhos incrédulos de Andrei e Gregory e de Darius caído no chão como uma criança —, quando uma labareda lambeu o corpo da rassulka, no meio da sua passagem, fazendo-a gritar.

O grito gelou até e medula de Aurora, nenhum humano jamais faria um som como aquele.

Houve um baque grosseiro no chão, do lado de fora do círculo de chamas onde a rassulka havia caído.

Andrei percebeu o que Aurora queria fazer antes que ela o fizesse.

— Não! — o líder segurou o braço da princesa, sem esperar que a garota estivesse quente como ferro em brasa.

Aquilo seria uma queimadura e tanto.

Gregory tentou se aproximar, mas Aurora partiu entre as chamas, passando por elas completamente incólume. A rassulka deitada sobre o chão, até podia ter recebido alguma empatia de Aurora, se a princesa não estivesse consumida pela cólera.

Era um sentimento tão mordaz, que crescia dentro dela. A criatura que abrigava em seu âmago, estava em completo júbilo. Imparável. Como se as suas garras estivessem para fora da cela, quase soltando-se. Quase tomando Aurora por inteira e a transformando num monstro. Foi essa sensação, foi a criatura dentro dela, que fez Aurora trucidar a rassulka. Sem necessidade, Aurora esfaqueou a criatura em todos os cantos que podia, ouvindo-a chorar estridentemente — e se houvesse outras na floresta, naquele momento, estariam vindo na direção de Aurora sem dúvida alguma.

Foi um caos completo. As chamas do círculo oscilavam junto aos golpes de Aurora, e do lado de dentro os gritos de Andrei e Gregory eram abafados pelo choro da rassulka. E tudo pareceu durar muito tempo. A rassulka não estava morta, e Aurora não conseguia cortar os pedaços com aquela adaga pequena e com o fio já se perdendo.

Então, ela puxou a criatura pelos tornozelos e a puxou para dentro do fogo, para queimar até não restar nada além do cheiro de podridão no ar e seus dentes que a princesa usaria como um colar, quem sabe, no dia seguinte na coroação de seu irmão.

Os pensamentos mais mórbidos estavam brincando sobre a mente de Aurora.

Mas subitamente, a princesa sentiu-se fraca.

Estava sentada entre as persistentes labaredas de fogo, o corpo da rassulka a sua frente não passava de carne tostada, soltando esparsas fagulhas em alguns momentos. A mente de Aurora pareceu distante, enevoada. A voz de Andrei dentro do círculo parecia muito distância. Ele a chamava, pedia para conter o fogo. Para deixa-los sair.

Aurora o olhou sem interesse. O fogo fazia pequenas cócegas sobre sua pele e a princesa notou que não havia consumido as suas roupas — um agrado do seu irmão.

Ninguém entendeu por que Aurora estava sorrindo de forma fraterna no meio das chamas.

— É o veneno — Gregory estava conversando às pressas com Andrei que ponderava aproximar-se das chamas. Ele segurava a mão queimada que tinha criado bolas e estava em carne-viva em algumas partes. — O veneno das unhas da rassulka, está começando a fazer efeito. Em pouco tempo ela vai estar delirando e nós não vamos sair daqui. Onde estão aqueles outros imbecis.

Darius tentou se aproximar e Aurora mostrou a ele os dentes de novo.

O rosto do aspirante estava branco como cera.

— Aurora, Aurora — ele chamou. — Você precisa se controlar. Abaixe essa barreira de fogo. Há pessoas lá fora, eu consigo ouvi-las daqui. Há pessoas em algum lugar perto.

As barreiras de Aurora esvaíram-se como a chama de uma vela soprada pelo vento.

Era verdade, haviam pessoas e ela sabia disso por que estava ouvindo os gritos. Como não tinha percebido antes? Eram vários deles. Roucos. Vinham de perto. Aurora levantou cambaleando e deu um soco sobre o queixo de Gregory quando ele tentou segurá-la pela cintura. Forte o suficiente para fazê-lo se afastar, mas não apropriado o suficiente para que o tivesse derrubado. Ela se sentia mole. Alguma coisa zunia em seus ouvidos.

Andrei e Darius tinham saído numa corrida disparada na direção dos sons que eram mais altos e claros agora. Pedidos de socorro.

Aurora tentou correr junto deles, mas suas pernas não estavam obedecendo aos seus comandos.

Ela podia jurar que Gregory tinha dado uma risada.

— Com a sua licença e com respeito pelo espírito de Egnias... — ainda em tons de riso, Gregory a levantou do chão com tremenda facilidade.

Aurora teria lutado, mas suas mãos estavam débeis e ela notou que poderia facilmente dormir.

Não — Aurora retrucou com a voz bêbada em veneno.

— Ninguém vai acreditar que eu carreguei a princesa de Egnias — Gregory fantasiou, num sussurro.

O corpo de Aurora caiu ligeiramente mole sobre os braços do guarda. Seus olhos, que quase se fechavam, ainda tiveram um vislumbre do que Andrei e Darius faziam; tinham encontrado uma arapuca no chão, escondida com folhas e galhos. Quando abriram-na, Aurora teve a última visão acalentadora de pessoas saindo daquele lugar. Aliviadas, com os rostos magros e manchados de lágrimas. Um velho, um garotinho e uma garota... embora essa última não chorasse.

Aurora tentou falar alguma coisa, mas seus lábios estavam formigando.

O menininho sujo abraçou Darius e o agradeceu fervorosamente.

— Você deveria agradecer a ela — Aurora ouviu Darius dizer com certa reverência em sua voz. — A princesa de Egnias. Foi ela que salvou todos vocês essa noite.

Depois disso, Aurora caiu na inconsciência e se pudesse, estaria sorrindo quando isso aconteceu.


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