Cold escrita por Syrp


Capítulo 2
01. Maldição


Notas iniciais do capítulo

❆ desculpem pela demora, bom proveito ♥. ❆



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"nós somos como o nosso símbolo, a cobra:

escorregadios, poderosos

e frequentemente incompreendidos."

a.r.

 

Eu me lembro bem de quando as coisas mudaram. Talvez fosse esperado que eu começasse com “o dia 24 de...” ou “naquela manhã...”, mas a verdade é que as coisas começaram a desandar no dia em que eu nasci. Depois do parto, minha mãe perdeu ainda mais as forças, se é que isso era possível. Meu pai estava apavorado. Não deveria sequer mencionar a hipótese de um Malfoy ter medo e meu avô provavelmente me mataria se soubesse, mas não há palavra que defina melhor. Ele tinha um recém-nascido nos braços, sem saber como alimentá-lo, e sua mulher, a mulher que escolheu amar estava morrendo.

Por minha culpa.

Ele tomou a decisão de nos afastarmos de tudo, e nos recolhemos pra antiga mansão de Lucio Malfoy, afastada de tudo: exatamente como ele queria. Minha mãe tinha alguns momentos lúcidos em torno de apagar novamente e passar dias desacordados, e sequer conseguia cuidar de mim nesses momentos. Pelo menos é como meu avô me contou. Isso só aumentou os rumores acerca de estarmos nos recolhendo como todos os outros comensais: após a queda de Voldemort, era o que todos os bruxos ruins estavam fazendo.

Pensaram que estávamos fazendo o mesmo.

A cada dia que se passava, eu ficava mais forte, meus pulmões mais saudáveis e eu chorava mais alto. Em contrapartida, minha mãe ficava mais fraca, mais magra, e a cada dia passava menos tempo acordada. O tempo era o inimigo e meu pai se desesperava cada vez mais; procurou curandeiros, medibruxos, mas ninguém podia fazer nada. Pelo menos era o que diziam. Uma maldição de sangue não pode ser curada, e essa em particular era ainda mais difícil até mesmo de ser controlada. Cedo ou tarde ela iria nos deixar, e mesmo tendo essa certeza, mesmo com meu avô insistindo para ele desistir, ele não cogitou perdê-la. Seria romântico, mas romance é beleza, e não havia nada de belo na história dos meus pais.

Mas havia algo que meu pai conhecia bem, algo que poderia ajudar minha mãe,

Magia das Trevas.

Parecia atrativo, irresistível, mas se há algo que aprendi com os erros de minha família, é que há um preço a se pagar. Sempre há um maldito preço a se pagar. E a moeda de troca fui eu.

Meu avô me contou todos os detalhes da história, mas se recusou a contar o que é que meu pai havia feito para que ela melhorasse. Eu apenas sei que meu pai não fazia idéia de que seria temporário. E que seu tempo com ela seria curto e doeria ainda mais quando ela nos deixasse. Eu sei que ele faria mesmo assim, estava tão preocupado com a própria dor que não pensou na dor que eu sentiria quando ela se fosse. Que ela levaria parte de mim com ela.

Então ele fez. Não sei o que, mas fez. E funcionou. Minha mãe melhorou rapidamente, e logo estava às voltas cuidando de mim, trabalhando no ministério e feliz como nunca. Esses foram os bons tempos que não voltam mais. Por este curto tempo, eu fui feliz de verdade. Ela me ensinava em casa, fazia panquecas para o café só por saber que era o que eu mais gostava de comer (e ainda gosto), cuidava para que meu avô não me importunasse e ainda tinha tempo para ser uma mulher incrivelmente brilhante e inteligente em seu emprego. Olhar para minha mãe com admiração era minha atividade favorita. Meu pai ainda sorria naquela época e dividia seus esforços entre nós dois. Não demorou para eu completar os 11 anos e minha carta para Hogwarts finalmente chegar. As coisas não seriam como eu esperava, e sofrer perseguições constantes por ser filho de quem eu era não estava bem em meus planos, mas eu lidava bem com isso e tinha meu melhor amigo Alvo. Não me importava que ele fosse um Potter. Na verdade, não me importava nada a não ser sua amizade. Ele me defendia, eu o defendia, nos metemos em alguns problemas, mas eu sentia que em Alvo havia um amigo de verdade. Pra vida toda. Era o único em quem eu confiava o suficiente para falar sobre minha mãe. Sobre meu pai. Sobre meus demônios e medos. É estúpido pra mim agora, mas eu era um menino perdido, assustado, com medo de perder a mãe e vi em Alvo um irmão que nunca tive. Por algo muito maior que uma coisa acidental como sangue. Por escolha. Também não tardou pra eu entender que um Potter nunca cogitaria um Malfoy como irmão e ele viria a ser um traidor também.

Eu me senti perdido sem ele, admito, mas minhas preocupações passaram a ser outras: O prazo final estava chegando e logo minha mãe voltou a se sentir fraca, a ter sangramentos recorrentes e a ficar de cama. Meu pai tinha um olhar apreensivo e me afirmava que só se tratava de uma doença boba, mas eu sabia que era muito mais que isso. Não demorou para que minha mãe voltasse ao estado de antes, extremamente magra, fraca e tão pálida que quase era possível enxergar os ossos por baixo da pele fina. Era um aspecto nada saudável de quem iria morrer. Ainda assim, ela continuava acordada. De cama e extremamente fraca, mas ainda consciente, e isso já era um grande alento. Ele não tocava no assunto, nem ela, e as coisas continuavam normais na medida do possível: assim se passou um ano.

Hoje eu não sei bem por que, mas havia uma certeza dentro de mim que ela ficaria bem. Que um dia a doença passaria e ela passaria a vida livre dela. Veria minha formatura em Hogwarts. Meu primeiro dia no trabalho. Meu casamento. Meus filhos. Eram certezas bobas que cresceram dentro de mim e se tornaram armas do pior tipo: ilusões afiadas e traiçoeiras que são como bombas que explodem dentro de nós e deixam milhares de cacos que vão nos cortando por dentro até não sobrar nada.

Durante as férias que dariam ao meu terceiro ano, um dia que eu pensei que seria como qualquer outro, minha mãe me chamou em seu quarto. Me sorriu e tocou meu ombro com a mão agora tão fina que eu tinha medo de pegar bruscamente e acabar quebrando. Ela me olhou com o rosto cansado de quem vinha travando uma batalha sem chances de vitória a vida inteira e meu coração se partiu em mil pedaços. Eu sabia que era uma despedida.

— Depois do parto eu mal conseguia manter meus olhos abertos, mas depois de uma vida lutando para ficar de pé isso não seria nada. Eu só me lembro de olhar para aqueles cabelinhos loiros iguais aos do seu pai e pensar em como você era perfeito, filho. – ela começou. A voz embargada me quebrou a alma, mas eu engoli o choro. – e todo meu. Minha promessa. Saber que eu veria seu rostinho lindo valeu a pena para dilacerar meu corpo. E eu dilaceraria mil vezes por você. Quero que você me escute. Você é a melhor parte de nós dois, filho. Não deixe que o mal te corrompa. Não vá para o lado errado por nada neste mundo. Você é bom. Bom de verdade. Quando olho em seus olhos eu só consigo enxergar bondade e isso me dá paz. Me dá a certeza de que eu posso partir agora. – ela me sorri entre as lágrimas. O sorriso de orgulho que conheço tão bem.

— Você não pode, mãe. Não pode me deixar. Eu não consigo. Não consigo – assim que abro a boca, o choro vem com toda a força. Não consigo segurar as lágrimas, não consigo segurar a dor e nem a raiva. Não consigo mais nada e nem quero.

— Você vai ficar bem. É agora um homem, um Malfoy. Forte. Corajoso. Muito inteligente e bonito, mas isso não é tudo. Você é bom, filho, e nada poderia me dar mais orgulho que isso. – ela seca as lágrimas sorrindo e sua força só me dá mais vontade de chorar – filho, não afaste o amor e a alegria da sua vida só por que eu parti. Não tenha raiva. Não deixe que isso estrague você. Eu quero que você seja feliz. É um homem, mas é ainda meu garotinho.

— Não me peça isso. Não posso. Não sem você. – tento desesperadamente controlar meus soluços, controlar as lágrimas, mas a dor me corrói por dentro e vai levando todas as certezas que vinha juntando minha vida inteira. Tudo que importava.

— Pode e vai, Scorpius Hyperion Malfoy. Meu rei. Meu docinho. A melhor coisa que eu já fiz. Eu amo você, filho – seus soluços se misturam aos meus e ela me aperta em um abraço cheio de significados que leva um pouco de mim.

Minha mãe se foi aquela noite e eu não soltei sua mão nem por um segundo. Meu pai não apareceu aquele dia, e parte de mim sabia que ele estava atrás da porta, sufocando em suas dores assim como eu, mas sem coragem para se despedir.

Uma parte de mim morreu aquela noite e a outra sabia que não tinha mais volta.

 

ATUALMENTE

 

Minha cabeça lateja como o inferno. É a primeira coisa que noto quando acordo. A janela está escancarada e uma brisa suave me arranca um suspiro de satisfação. Me sento na cama, os olhos ainda fechados. Há tempos fico de arrumar uma cortina mas acabo nunca fazendo isso e sempre acordo com o sol me incomodando. Abro um olho pra testar e gemo de insatisfação.

Ninguém mandou exagerar no whisky de fogo, uma voz interior irritante me atira. Espanto o pensamento com um resmungo e me coloco de pé pescando peças de roupa espalhadas pelo quarto. Primeiro a calça e depois calço o coturno despreocupado enquanto observo o farfalhar das árvores. É uma paisagem bonita, os arbustos são milimetricamente alinhados fora da mansão Malfoy e a janela que desce até o chão dá de frente para a árvore principal e um banco de madeira extremamente polido.

É um bom quarto também, embora o que mais tenha me atraído nele seja a distância que mantém do quarto de meu pai e avós e o resto da casa. É distante de todos os outros cômodos da casa e é uma viagem até chegar aqui exatamente como eu queria. Há um bom banheiro também e é de um tamanho razoável, bem mais do que eu precisaria. Há uma cama de casal grande no centro e é todo nas cores cinza exceto por um papel de parede preto onde costumava ficar um quadro de meus avôs. É claro que dei fim nele assim que pisei os pés aqui. Entro no banheiro ainda sem idéia de onde está minha camisa e ajeito os fios loiros com os dedos o melhor possível. Estão despenteados e meu avô odeia, mas é como costumo mantê-lo. Além do mais adoro a chance de provocar um Malfoy.

Escovo os dentes enquanto penso sobre Hogwarts. Repetir um ano. Quem conseguiria esta proeza se não um Malfoy. A conversa com McGonagall ainda me persegue. O jeito que me olhou. Não com raiva, não com deprezo, mas com um olhar assombrado. Talvez tivesse se lembrado de tudo que o mundo bruxo havia passado, talvez tivesse se lembrado de todos que perderam. De qualquer forma, não havia sido essa minha intenção. Logo ela voltou ao olhar de desprezo habitual, trocou algumas poucas palavras com meu pai e ficou deferido que eu repetiria um ano. Que isso não voltasse a se repetir, mas uma frase ainda toma meus pensamentos desde que meu avô me contou tudo que sabia sobre minha mãe.

“Uma maldição de sangue muito forte. Selada com... bom, talvez seja melhor você perguntar ao seu pai.”

Tudo que consegui foi um olhar frio e uma mentira.

Embora houvesse prometido para a diretora que não mexeria com mais nada que tangesse a trevas, é como dizem: os fins justificam os meios.

Visto a camisa com um sorriso de vitória e faço com rapidez o nó na gravata verde e prata que já conheço bem. Deixo o manto preto pendurado no ombro e volto para o quarto em busca da mala meticulosamente arrumada com os livros, trajes, o resto das coisas e minha varinha. Ainda me lembro de quando ela me escolheu, a emoção de entrar na Olivaras e mais: a emoção de ter sido de primeira. Uma varinha incomum para uma pessoa incomum, ele disse. Mas funciona perfeitamente e sei que não poderia ser outra. Varinha de espinheiro-alvo, 29,2 cm, núcleo de fibra de coração de dragão e flexível. Orgulho Sonserino. Balanço a cabeça e analiso o quarto, está limpo, a cama está desarrumada como sempre, mas não há nada espalhado pelo quarto e tudo está em seu devido lugar. Trato de fechar a janela antes de seguir com minhas coisas pelo corredor.  Atravesso as paredes de pedra e os quadros estúpidos mais feliz que nunca por estar deixando esse lugar. Nem que seja só por uns meses.

Finalmente atravesso todos os corredores do labirinto que é a mansão e desço enquanto observo a escada central em toda sua glória e a passadeira verde com detalhes em prata e uma risada de escárnio escapa de meus lábios. Nem imagino como teria sido se eu não fosse da Sonserina, se fosse de qualquer outra casa comunal. Com certeza meu avô teria me chutado antes de eu dizer um que fosse, mas para sua alegria e alivio eu sou um sonserino como todo Malfoy. Apesar de ser uma casa vista com maus olhos pelas outras (embora isso venha mudando depois da guerra bruxa, tenho de admitir), há muita gente legal e disposta a fazer o bem. Não é só sobre gente maligna e das trevas e na verdade podemos ser tão bons quanto todos os outros. É óbvio que ambição e determinação assustam, e podem com certeza ser perigosas e ser associadas como algo ruim, mas não precisa ser. É surpreendente como a bondade pode surgir dos lugares mais inóspitos. Pode parecer arrogante, mas tenho orgulho da minha casa e não há como negar minhas origens. Por mais que não seja o maior fã delas.

Somos corajosos também, embora Grifinórios estejam sempre se gabando de sua coragem, uma irritantemente bondosa em especial, não são eles que dormem numa masmorra bem ao lado de uma lula gigante.

Volto a minha máscara de frieza habitual e atravesso o arco de pedra a tempo de assistir meu avô balançar o chicote em direção a Alper, um dos elfos domésticos que vêm cuidando da casa, e conseqüentemente de mim sua vida inteira. Seus olhos transbordam lágrimas e ele parece apavorado, me olha suplicando ajuda e limpo minha garganta enquanto cruzo os braços. Meu avô para no meio do caminho e me encara, o cenho franzido e um olhar de impaciência de quem foi interrompido.

— Você esqueceu que as coisas não são mais como antigamente? Não pode tratá-lo desse jeito e não vai enquanto eu estiver nessa casa – faço questão de tomar a bandeja das mãos do elfo e ele me encara grato. Maneio com a cabeça para a porta e ele se retira depressa ainda fungando.

— Eles são elfos. É da natureza deles servir, garoto – resmunga amargo enquanto bebe um gole de hidromel e se serve de uma fatia de torta.

— E não é de sua natureza aproveitar disso para tratá-los como bem entende. Acho bom andar na linha, vovô — utilizo o apelido da forma mais irônica possível enquanto faço questão de encará-lo bem de frente – ou vou ter que fazer uma denúncia para a própria Hermione Granger. E nosso nome já não anda muito bem falado, não é?

— Sua insolência ainda vai matar você, Hyperion. – ele fala entredentes, ainda nos encaramos, meu pai mais concentrado em tomar seu café e minha avó estupefata encarando nosso pequeno enfrentamento.

— Como se eu me importasse. Estou indo, só queria avisar – Não consigo evitar o comentário ácido e volto a postura de antes enquanto arrumo minhas vestes e a mala ao meu lado. Viro as costas antes que tenham a oportunidade de dizer qualquer coisa e nem mesmo quero ouvir. Minha mãe era amaldiçoada, isso é fato, mas carregar o nome Malfoy não é muito diferente de uma maldição. Talvez isso fosse símbolo de status antes da guerra, mas hoje só quer dizer que há olhos me monitorando em tudo que eu faço, esperando que eu tome o caminho do meu pai e me torne comensal. Também tem os boatos de que é claro, minha mãe, minha mãe morta, voltou no tempo para engravidar de Voldemort e eu sou sua prole buscando revivê-lo. Sempre agüentei calado, como um bom menino faria. Abaixar a cabeça e ficar quieto, não reagir nunca. Não perder a bondade.

Como ela queria que eu fizesse. Passei a vida engolindo coisas, tentando entender porque é que meu melhor amigo não pode comparecer ao enterro de minha mãe e ficar ao meu lado, porque é que meu pai não era mais capaz de me olhar, porque é que minha família era tão insensível e porque as outras crianças me odiavam tanto se eu não havia feito nada.

Não levou muito tempo pra eu finalmente perceber que um Potter jamais se misturaria com um Malfoy e que meu pai era nada se não um babaca presunçoso como o resto dos Malfoy. Que amor não serve pra muito, que dói como o inferno e parece clichê, mas estou bem longe dele. Passei a vida sozinho, não vai ser incômodo viver o resto dela assim.

Nunca dei motivos para ser a serpente fria, arrogante, maligna e prestes a dar o bote, mas deveria. E vou. Como um legítimo Malfoy faria.


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Notas finais do capítulo

see u later! ♥



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