Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 9
Procura-se psiquiatra para lobos




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Depois do Xaveco incorporar o Cebola por uns instantes, saímos do quarto para encontrar a casa... Peraí. Certeza que havia uma construção aqui. Metade da sala tinha sumido, pilhas de pó por todo lado. Como se o Cas tivesse decidido desfazer a própria casa. Não percebi nenhum outro sinal de ataque, mas os rapazes não estavam em lugar nenhum.

— O que aconteceu aqui?

— Eu não sei. — Duas vezes, e eu já estava positivamente cansada de falar isso. Olhamos por aí até encontrar o Cássio sozinho, no meio das árvores. Xavier olhou pra mim, alarmado.

— Ele nunca fica sozinho. Que merda aconteceu aqui?

— Vamos lá descobrir, estrupício, não adianta ficar aqui imaginando.

Descemos a colina com cuidado, até chegarmos ao lado do Cas. Ele não deu qualquer sinal que nos percebeu ali. Não precisei avisar o Xaveco que não falasse; ele sabia. Ficamos nós três entre as flores caindo. O silêncio era tão grande que me partiu o coração.

Eu era uma pessoa horrível. Como eu podia continuar a arrastar os dois e o Xaveco pra essa maluquice? Sabendo tudo que podia custar?

Lembrava de Sarah, tanta tristeza nos olhos. Como se a morte não fosse a pior coisa que pudesse nos acontecer.

Pra frente, Denise. Cabeça erguida, erre com convicção. Seu plano pode dar certo.

(E é claro, se eu puder pular a parte de exterminar a humanidade, seria muito bom)

O medo me apertou o peito de repente, e Xavier me empurrou pra trás, longe de qualquer que fosse a ameaça. Ele estava pronto pro combate, os olhos arregalados e as armas na mão. Eu mesma podia sentir o coração martelando no peito; Todo meu instinto dizia que tinha algo realmente terrível vindo na nossa direção.

Xavier começou a olhar para os lados, à beira do pânico; Sei o que ele pensava, porque já tinha visto aquela expressão.

Nero. Qualquer um com uma energia tão homicida só podia ser o Nero.

Quando já estávamos prestes a atacar, ouvimos uma voz conhecida, cheia de amargura:

— Façam isso, ataquem. Só preciso de um motivo.

Xavier relaxou, quando a silhueta de Mauro finalmente apareceu no topo da colina. Ele parecia que tinha se transformado num lobo e esquecido dos olhos quando voltou a humano. A pressão diminuiu só um pouco enquanto ele andava até nós. Os ipês começaram a se encher de urubus, como se seguissem uma batalha.

— Droga, Mauro, o que é isso? Tá querendo nos matar de medo? Pensei que fosse o... você sabe!

Mauro tinha os olhos injetados, as íris incandescentes como lava. Parecia no limite do controle. Passou direto por nós, e Xavier abria a boca pra reclamar quando apertei o braço dele com força. Meu mastodonte favorito tinha um talento natural pra falar na hora errada.

Mauro só segurou Cássio pelos ombros, a cabeça encostada nas costas do outro, arfando como se tivesse corrido o caminho todo. A corrente balançava no peito do Mauro, o deixando ainda mais parecido com uma versão mais velha do DC. — Desculpa, Cas. Eu... demorei pra achar.

Só então Cássio pareceu perceber alguém com ele; Ergueu a cabeça e virou-se até encontrar o ... Amigo? Marido? Cara-metade? Alguém sabe o que eles eram?

Ignorando a mim e o Xavier totalmente (e nunca fiquei mais feliz de ter sido ignorada), se sentou com o braço em torno dos ombros do Grande Lobinho Mau até a pressão diminuir. Os urubus acharam algo melhor pra fazer e só ficamos nós quatro, no meio das árvores.

Não tinha jeito de ficarmos confortáveis com eles; toda vez que eu relaxava, acontecia algo bizarro e voltávamos à estaca zero. Se Xavier não infartasse nessa jornada, não morreria antes dos cem. Agora mesmo, ele olhava pra cima, e eu sabia o que o incomodava.

Nenhum pássaro. Nenhum inseto. A mata normal não era tão silenciosa. O pobre do Xavier se perguntava a cada cinco minutos o que tinha de tão errado naqueles dois, e eu nem conseguia explicar direito. É como explicar as cores a um cego de nascença.

E talvez tenha sido bom; se ele visse o cenário do ponto de vista mágico, teria me arrastado pra longe e muita coisa teria sido diferente. Se melhor ou pior, não sei. Sei o que me incomodava, apesar de adorar ver os dois juntos. A principal delas é que nós éramos intrusos ali. A outra, que tenho certeza que vocês já notaram, era que Mauro ainda queria nos matar.

— Sim, quero. Apesar disso, tem um feitiço que precisamos pôr em vocês antes de sairmos daqui. — Claro, bofe mágico. Com todo esse amor no seu(s) coração(ões), vou acabar transformada em algum tipo de camelo quando tudo isso acabar.

— Claro que não. — Pare de responder meus pensamentos! Pensando melhor, precisamos conversar. Em particular.

(Lindos, tem alguns tipos de feitiços que você precisa pedir permissão pra funcionar. Essas são os mais perigosos, como dar a alguém sua senha do Feicebúqui. Você não tem controle sobre o que a pessoa vai fazer.)

— Vocês dois, se entendam logo. — Cássio interrompeu a tensão como se já estivesse acostumado. — Com palavras, Lobo. Poupar a energia mágica, lembra? Xavier, vamos deixar os dois conversarem.

Quando os dois estavam a uma distância segura (pro meu namorado não ouvir. Duvido que uma centena de metros impeça Cássio de ouvir alguma coisa), finalmente os olhos dele escureceram. Sim, ele estava mostrando os dentes.

— Qual é o seu problema comigo, Mauro?

— Você ouviu tudo hoje de manhã, não ouviu?

— Claro que sim. Vocês estavam gritando! Não me culpe por ouvir.

— Então sabe o que vai nos custar. Passamos seis anos nessa porra matando obsessivos, e todo mundo que tentou nos impedir. Foi gente pra caralho, parei de contar no quinto milhão. Depois as equipes do Astronauta precisaram de escolta para levar as vacinas… mais trabalho.

“Então vocês apareceram. Tocaram no único assunto dessa porra de mundo que faria o Cas sair pra outra guerra suicida. Sim, estou com raiva de você. Sim, eu mataria vocês dois se houvesse a mínima chance disso consertar tudo. Ainda estou tentado a fazer isso.”

Claro, eu não sei do que você está falando porque estava num resort de férias esse tempo todo, né lindo? Sem drama pra cima de mim, more. — Não está com raiva de mim. Está nervoso porque o Cássio andou guardando segredos de você. Porque ele quer nos ajudar.

Esquece o que eu disse antes. Ele parecia prestes a me transformar num camelo agora. Irritar seres poderosos além da raiva é um dos meus muitos talentos. Levantei as mãos, o isqueiro pronto. Que ele tinha razão não importava. Eu também tinha, e não iria parar ou recuar agora. Estava lutando pelo Xavier, pela Carmem, e iria fazer isso dar certo.

— Eu não me …. — Os olhos amarelaram como ouro num incêndio, mas em algum lugar lá dentro ele desistiu de brigar comigo. Não morrer depois de irritar os outros também é talento, ok? A voz dele ficou muito baixa e pausada, e isso me arrepiou mais que a fúria de antes. — Você está certa. Ele vai ajudar vocês, e isso significa que toda nossa vida, força e magia estarão a serviço desse plano insano. Não duvide da nossa intenção de novo.

(Fiquei esperando o mas. Sempre tem algum mas.)

— Mas. Faça. Isso. Dar. Certo. Destrua a ameaça dos Filhos da Tormenta por completo. Não deixe fraqueza ou compaixão de última hora estragar tudo. Porque se nós arriscarmos a perder nosso futuro, integridade e o amor dessa vida de merda por nada, vamos caçar, encontrar vocês, e fazer se arrependerem de ter nascido. Entendeu?

Denise é atitude, amores, e por mais que minhas pernas tenham virado geleia, continuei encarando o lobo humano com firmeza. — Nós vamos conseguir, Mauro. Eles não farão mal a ninguém de novo quando isso acabar, e vamos deixar vocês em paz. Prometo.

— Talvez eu acredite nisso quando essa merda acabar. Agora, por favor, posso manter você e Xavier vivos?

— Faça. — Cássio e Xaveco vieram caminhando como se nada tivesse acontecido. Mauro mordeu a própria mão, e com o sangue escorrendo desenhou na minha testa e na do Xavier. Isso foi muito nojento, mas o desenho brilhou e sumiu logo.

Interessante. A feitiço de Mauro era bruto, simples e preciso. Não havia pegadinhas ou comandos escondidos. Era uma magia de proteção pura, específica e um tanto bizarra. Quis mandar desfazer, aí olhei com mais cuidado… Espera. Pelos saltos da Beyoncé, era disso que ele estava nos protegendo? Podia ouvir o Licurgo rindo da minha ingenuidade. Posso aguentar a esquisitice do Mau um pouquinho mais.

Explicamos tudo que sabíamos do lugar, e os dois acharam mais simples e discreto caminhar até o quartel general do Clube Hospício. Guardar energia pro evento principal, disseram. O Cas parecia... Bom, ele parecia bem normal agora, não o Homem-de-lata-antes-do-óleo de umas horas atrás.

Partimos, e podia ouvir as camadas de magia protetora se fechando atrás de nós. Fizemos um desvio até a frente do laboratório do finado Franja. O lugar parecia novo, deslocado das ruínas ao redor. Embaixo de uma lança esquisita fincada num bloco de pedra tiraram uma caixa. Por que eles guardavam coisas ali? Mauro pôs duas foices pequenas no cinto, e Cássio um par daqueles garfos ninja...Sai. Herdadas do DC, com certeza. Cássio girou uma das armas com satisfação. Elas brilhavam no sol. Mesmo Mauro sorria entusiasmado.

— Cara, estava com saudades delas. Parece que não as uso há uma vida.

— Espero que não esteja enferrujado, Latinha.

— Te dou uma surra a qualquer hora, lobo metido.

— Uma partida, então. Sem poderes?

— Só preciso saber onde você está. Fora isso, sem poderes. Temos uns cinco minutos, Denise? Dou uma lição nesse babaca ligeirinho e voltamos a caminhar.

— Tudo bem, cinco minutos.

— Estamos convencidos hoje. Está bem, quando ela disser “já”.

— Já.

Xavier parecia uma criança vendo o circo, e parecia com vontade de experimentar sua força numa disputa também. Homens… Mas até eu que entendia pouco de combate via a beleza daquilo. Eles eram muito bons. Numa luta desarmada, Xavier venceria qualquer um deles, mas aquilo era outra história. Cada golpe era mortal, e eles partiram pra cima um do outro com força e rapidez.

Gente, se um dos dois se ferisse naquela brincadeira estúpida, eu arrancaria a porcaria da lança da pedra e bateria na cabeça deles até o juízo encaixar novamente. O que a testosterona faz com o cérebro, afinal?

— Ok, cinco minutos! Parem de tentar morrer e vamos andando! — Os dois guardaram as armas nos cintos e encostaram as testas, sorrindo feito dois malucos. O amor desses dois é estranho, muito estranho.

— Cas, me ensina a usar as sai desse jeito? Vocês são bons pra caralho com essas coisas.

— Essa noite a gente começa. Mauro, está pronto? — E Cássio parecia um homem normal, sem todas aquelas próteses metálicas. O que faz sentido, aquilo chama muita atenção.  Olhei pro Xaveco, Mauro pôs ilusão em nós também. Faz sentido, nossos rostos devem ser conhecidos até na China a essa altura. Ele segurou no ombro de Mauro e caminhamos pro quartel-general dos quatro malucos.

***

Evitamos os soldados (e havia muitos deles) caminhando pela mata. Andar com VIPs é muito mais simples. Eu e Xaveco podíamos ouvir e perceber predadores de todo tipo por perto, mas nenhum apareceu pra tentar a sorte. Animais são mais sensíveis à magia, e Mauro provavelmente tinha a mesma presença de um tubarão branco.

Com um pouco de treino, dá para sentir o volume e… temperamento da magia. Como quando sua amiga esotérica diz que não sente uma boa vibração de alguma coisa, mais ou menos isso.

A magia de Mauro era poderosa, e isso costuma afastar predadores (já usei esse truque mais que algumas vezes), mas o que o deixava especialmente indigesto era o sangue. Matar usando magia deixa… cicatrizes, e é viciante demais. Na verdade, fiquei um tanto surpresa de ele parar nas ameaças. Todo mundo no ramo conhece uma ou duas histórias de magos que começaram matando outro para defesa própria e se tornaram sociopatas que destruíam aldeias por ficarem entediados.

Ainda estávamos a uns oito dias de caminhada, decidimos dormir lá mesmo. Xavier sempre ficou mais relaxado na mata, e logo estava roncando. Eu revisei as magias de proteção ao redor, enquanto Mauro dormia encostado num tronco de árvore, mas com a mão na de Cas. O ciborgue continuava acordado, a pistola na mão.

— Cas, ouvi vocês dois discutindo hoje de manhã.

— Eu sei.

 —Você tá…— Precisava entender todo o rancor do Mauro e o jeito esquisito do Cas, mas não tinha ideia de como começar.

 — … doente ou coisa assim?

 — Coisa assim. É difícil explicar.

 — Não tá morrendo nem nada do tipo, está?

 Vê-lo procurar um jeito de responder foi demais. Meu Pai do céu, arrastei um doente terminal pra enfrentar a Cebola Louca! Claro que o Mauro está com raiva, até eu estaria. Onde Cas estava com a cabeça quando aceitou nos ajudar?

Quando olhei pra ele, vi um meio sorriso, entre a bondade e o sarcasmo.

— Tá preocupada com a minha saúde? Quem é você e o que fez com a Denise?

— Tô preocupada comigo, amore. Se você cai duro nesse seu momento super-heróico, seu marido Lobo Mau vai comer meu fígado.

O sorriso do Cas aumentou, e fez um carinho de leve na mão de Mauro. Eles juntos eram tão bonitinhos, gente.

— Parecemos mesmo casados, né? Esse babaca é a melhor coisa que me aconteceu na vida, mas não curto homem. Ele me ajuda a ser bom… talvez não bom como ele, mas com certeza ainda sou humano por causa do Mau. Mas e vocês? Onde estiveram todo esse tempo?

— Se arruma aí, gato, que a história é longa.


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Notas finais do capítulo

Talvez a única pessoa que sabe o que realmente está acontecendo com o Cas é o Mauro, então vou deixá-lo explicar. Estou certa que em algum momento ele vai fazer isso;

Fred está vivo. Nenhum dos quatro teve vontade de trocar histórias do tipo "Você sabe de Fulano?". Ninguém quer as piores suspeitas se tornando certezas, eles já tem problemas suficientes;

Queria ter podido falar mais do "quintal" da casa deles na história. Ao longo dos anos, eles plantaram várias árvores, estendendo o Parque das Andorinhas (Laços, de Victor e Lu Caffagi. Leiam) até o meio da cidade. Tem várias árvores frutíferas, mas Mauro tem um amor especial por ipês, então tem vários deles na frente de casa. Considero qualquer pessoa que possa ter vários ipês floridos na frente de casa alguém verdadeiramente rico.

A seguir: Ter as respostas não significa que você vá gostar delas.



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