Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 8
Se alguém entendeu, me explique.




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Caminhei entre os mortos acompanhando o felino. Num ponto à frente, os animais abriam espaço, e encontramos.

Puta que pariu.

Eram mesmo Cássio e Mauro.

O mago estava estirado no chão, coberto de suor, a cabeça apoiada na coxa de Cássio, que o escutava com atenção e a mão humana apoiada em seu peito. O ciborgue ainda usava o chapéu do Cebola, só tinha tirado a máscara.

— … e bem acima das nossas cabeças, tem uma porção de cirrus… Aquelas que parecem algodão esfiapado. O céu tá ficando começando a ficar dourado, como um talher muito tempo na mão, pra sua frente está mais laranja.

— Como a fruta?

— Mais forte, tipo o Bolero de Ravel.

— Nenhuma nimbostratus?

— Nenhuma. Parece que amanhã terá sol.

— Que pena. São minhas favoritas, sempre as imagino como um monte de travesseiros de penas flutuando por aí.

Eu e o gato ficamos assistindo. A cena era tão pacífica, tão deslocada, que eu não sabia se tinha raiva ou medo. Mauro olhou pra nós, claramente perguntando se nós tentaríamos interromper. O gato negou de leve. Mauro voltou o olhar pra cima, com um sorriso na voz:

— As nuvens estão bem iluminadas, branquinhas, como neve de manhã. Tem uma cinza claro, como o pelo daquele gato que dormiu no seu colo uma vez, lembra?

— Lembro. Nunca fiquei amigo de um gato tão depressa, ele era tão macio... Obrigado, Mau. Mestre Bóris, vem aqui.

— Olá rapazes. Mauro, você está bem?

— Um pouco estrepado, mestre, mas ainda melhor que os filhos da puta que me atacaram nos últimos dias.

— Depois conversamos sobre isso, garoto. O que você está fazendo, Cas?

— Esse quadril iria piorar mais tarde. Agora está resolvido.

— Puxa, já pensou em abrir uma clínica? Está ótimo! — O gato deu uns pulinhos, satisfeito. — Esse loiro aqui é amigo de vocês, não é?

— É. Oi, Xavier. Está bem?

Nunca mais. — Inteiro. E vocês?

— Nada que não dê pra arrumar.

— Vamos pra casa, e vocês todos tomam um chá e contam as novidades. — Silenciosos, os dois repuseram as máscaras e voltaram aos personagens. Os olhos de Mauro amarelaram, e ele parou de mancar. Caminharam de volta como campeões, e todos olhavam pra eles enquanto passávamos. Alguns humanos nos paravam e apertavam a mão de Mauro, agradecidos.

Eles eram heróis. Detiveram um exército quase sem baixas dentre seus protegidos. Os mortos eram invasores, e teriam destruído e matado o que pudessem. Qualquer um deles teria me matado se tivessem a chance. Eu sabia de tudo isso.

Mas olhando o tapete de cadáveres, era fácil demais me imaginar entre eles. Um ano atrás, eu estaria entre eles. Denise em outro lugar, esperando por notícias minhas que não viriam. Não conseguia deixar de pensar no irmão do Nico, nos amigos do Ricardo, no namorado do Fábio, que não sabiam que os caras viraram comida de hiena numa mata qualquer.

Eu e Denise trouxemos guerra pra casa deles, e agora me sentia mal porque eles venceram? Isso nem faz sentido! Bóris olhava pra mim, curioso.

— Isso é normal. Você só está assustado, garoto. — Fodeu. Agora todo mundo tem acesso aos meus pensamentos? Até o gato?

— Sim, todo mundo com um mínimo de treino sabe o que você está pensando. Você é um daqueles livros de criança com letras grandes. E muitos palavrões. — Bóris sorriu cínico. — Mas qualquer não-humano ligaria os pontos. Você se move como os invasores, mas cheira como a casa do Mauro. Não é difícil concluir que esteve do lado de lá, mas não é um deles.

Acenou com a cabeça pra trás. Encontrei Denise na multidão, me olhando preocupada. Sorri, sem muito sucesso. Ela acenou pras ninfas e segurou meu braço.

— Tá tudo bem, lindo?

— Tô uma droga. Cansado, assustado, com raiva dessa merda toda. — Engoli o choramingo desnecessário. — Mas estou vivo, você está bem, e parece que tem motivo pra chamarem o Cássio e o Mauro de “deuses da destruição”, afinal. Vou ficar surpreso de verdade se Nero ainda tiver a cabeça entre os ombros amanhã.

Saímos da vista dos outros, Mauro sentou no chão, rosnando um xingamento qualquer. Cássio tirou a máscara e rasgou a calça do mago pouco abaixo do joelho, nem sei por que ainda fico surpreso.

— Perna esquerda. Por que sempre é a perna esquerda?

— Ainda tenho um pouco de gaze… Aqui, aperta bem. Droga, Mau, consegue mexer o pé?

— Consigo. Vamos pra casa, então eu olho direito esse arranhão.

— Seu desmiolado do…— Respirou fundo.  — Vem, eu te levo.

— Ei, vai me levar assim, feito uma merda de princesa raptada?

Com um sorriso maldoso, Cássio cochichou alguma coisa que fez Mauro corar como um pimentão.

— Você não se atreveria...

— Denise tá ali atrás, certeza que ela consegue fazer a cena chegar até no seu irmão. Quer mesmo pagar pra ver?

Mauro olhou pra minha namorada com uma careta de receio (sério, Mauro?) e não reclamou mais. Cássio só caminhou em frente, eu seguindo os dois e Denise levando Bóris. Não pensei muito nisso porque aparentemente minha mente é espaço público.

— Não é minha culpa, é fácil demais.

— É mesmo — acrescentou Mauro. Não falei? Espaço público, nem pedem mais licença.  

Chegamos, e depois de um banho e roupas limpas (e minha namorada dar um jeito na perna de Mauro) nos sentamos os cinco na sala pra definir o próximo passo. Eu esperava que fosse ter uma noite de sono e uma refeição decentes. Agora que a adrenalina passou, eu não estava em condições de ganhar uma briga contra o Bóris, que dirá contra as tropas de Bianconero.

O gato e mestre de Mauro olhava com preocupação pro seu aluno, mas como eu, ele parecia desconfortável perto do ciborgue. Nós três estávamos arrebentados, Mauro e Dê cochilando nas almofadas enquanto Cássio cozinhava, seguindo uma receita em braile. Era como ver alguém cair do sexto andar, levantar e sair andando. Estava feliz por ele estar bem, mas era anormal demais.

“Fique quieto e observe”, avisou Bóris na minha mente. Acenei com a cabeça. Quando Cas voltou com os pratos, o gato encheu o prato do ciborgue de sal. Quis protestar, ele me olhou, claramente pedindo pra esperar. Observava atentamente, como o Franja numa experiência.

— Acordem. Vocês precisam comer alguma coisa antes de ir pra cama. — Mauro e Dê grunhiram em protesto. — Por favor, Mau, você não comeu quase nada hoje. Acorda, come um pouco. Tudo bem, fica pra mais tarde.

Saiu e deixou os dois na cama. — Mestre, Xavier, me acompanham?

— Claro. Omelete?

— Sim, com verduras. Tenho errado no tempero, mas segui a receita com precisão, deve estar gostoso — articulou com os lábios o que parecia um agradecimento, e depois de algumas garfadas, virou pra gente curioso.

— Não está bom? Por que vocês não estão comendo?

Os olhos do gato estavam apertados de concentração, eu me sentia assistindo um truque de mágica torto. Tinha uma camada branca na comida, devia estar intragável! Como ele não sentiu a diferença?

“E essa, meu caro, é a pergunta que vale um milhão”, respondeu o gato em pensamento. — Está gostoso sim, Cas. — Verdade, estava bom. Terminamos a refeição, arrumamos a cozinha (ninguém viajaria naquela noite mesmo) e fui pra cama. Bóris saiu das sombras e quase pulei pra trás.

— Você também viu.

— E ainda não entendi nada. Como ele não percebeu?

— Está mais grave que pensei. Você sabe ler pergaminhos mágicos?

— Um pouco.

— Fique mais umas horas acordado, vamos consertar isso. Reclame o quanto quiser, mas pode salvar a vida da sua mulher e a sua.

— Namorada. Denise é minha namorada.

— Humanos são esquisitos demais. Ou estão juntos ou não, pra que fase de teste? Desisto de entender vocês.

Treinamos, e fez diferença alguém que sabe ensinando. Melhorei numa noite o que não melhoraria no ano inteiro. Quando já enrolava a língua como um velhinho bêbado, ele me mandou pra cama.

Merda. Semanas sem uma cama decente, duas noites péssimas e quando consigo dormir, acordo cedo sozinho?

— MmmDia...— Estiquei o braço, não achei ninguém. Quando abri os olhos, ela estava sentada, olhando pela janela. É tão raro vê-la pensativa que fiquei preocupado. — Denise?

—  Bom dia, Xavier.  Ou melhor, boa tarde. — Talvez não tão cedo.

— Já é tarde? Por que ainda estamos aqui? Não podemos dar tempo pra ela se recuperar! Me dá um minuto que eu…— Comecei a me vestir, ela não se moveu. — Tá tudo bem?

— Nós vamos dar um jeito. De algum jeito, vamos fazer isso dar certo. Me recuso a aceitar que não… deixa pra lá. Vai ficar tudo bem, Xaveco. O que você tá procurando na minha mochila?

— Peguei umas dicas de pronúncia com Bóris ontem. Pode me mostrar de novo aqueles pergaminhos? Dessa vez vou poder ajudar mais.

Não, não sou mago. Mas feitiços escritos parecem um pouco com programas antigos de computador: Todo o esforço e energia são armazenados por quem escreve. Sabendo pronunciar, qualquer um pode usar magia acumulada num pergaminho, do mesmo jeito que ninguém precisava saber programar pra usar um computador. Magos de verdade são capazes de improvisar feitiços sem palavras, mas isso é raro.

Ela me mostrou pra que servia cada um, mas de um jeito distraído. Terminamos de arrumar minhas armas, mas tinha alguma coisa muito errada. Ela punha de volta as coisas na mochila, eu segurei e abaixei suas mãos.  

— Não posso ajudar se não souber o que tá acontecendo, Dê. Fala comigo.

Por um minuto ela pareceu prestes a chorar, mas respirou fundo. — Se eu pensar sobre o que estamos fazendo, no egoísmo da coisa toda, não vou continuar, lindo. E apesar de ser um clichê, todos nós já fomos muito longe pra parar agora. Precisamos seguir. Confia em mim mais essa vez.

— Você nem precisa pedir. Nós vamos conseguir, Dê. Tenho certeza.

Ela me abraçou com uma firmeza aflita, como se quisesse me impedir de ir embora.

— Eu te amo, Xavier. Há anos, só era muito infantil pra admitir. Sabe disso, não é? — E me beijou sem me dar chance de responder. Afastei o rosto com gentileza.

— Denise, você tá me assustando. Isso é uma despedida? — Eu a conhecia um pouco mais que bem. Ela estava desesperada pra me convencer de algo, só não sabia como.

— Não, claro que não. Só estou um pouco… Esquece, gato. Vem, temos que...— Tentou sair, eu não deixei. — Que...

Escondeu o rosto no meu ombro. Ela detestava chorar, mesmo quando estávamos sozinhos. Devia estar se sentindo péssima. Eu não sabia o que dizer. Como consolá-la de algo que nem sabia o que era? Só fiquei ali, abraçado, tentando guardar na memória o momento. Quando ela pareceu melhor, sussurrei no ouvido dela:

— Quando tudo isso acabar, vou mandar tatuar essa frase no braço.

— Qual?

— “Eu te amo, Xavier. Há anos, só era muito infantil pra admitir.” Esperei tanto tempo pra ouvir isso.

— Vai sonhando, Xaveco. — Eu queria distraí-la, e ela sabia. Ainda assim, ela sorriu.

— Fica melhor no braço direito ou no esquerdo?  No outro vou deixar um espaço pra quando você admitir o quanto sou foda.

— Mas nem morta, seu convencido! Você nem tem tatuagens, que besteira é essa de deixar espaço?

— Ah, é que vou usar uma letra grande. Talvez daqui até aqui — E apontei o braço esquerdo inteiro.

A careta de choque foi engraçada. — Quando foi que ficou com o ego desse tamanho? Nunca que vou encher sua bola desse jeito, seu estrupício. Uma informaçãozinha de nada, e você já está parecendo o Timóteo.

— Ah, mas vai dizer. Planejo… — A beijei de leve no pescoço. — Passar muito tempo… — Outro beijo —  A vida inteira, se você quiser...— Mais um — te convencendo disso. — E outro — Um dia, você vai falar.

Ela se afastou e começou a me empurrar pela ponta do nariz. — Você é a criatura mais convencida e insuportável que eu já tive o desprazer de amar. Se não fosse tão gostoso e bom com as mãos, eu te chutaria tão longe que cairia sentado na Lua. Vem, estrupício.


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Notas finais do capítulo

Se você, leitor, ficou tão perdido quanto o Xavier, tenha um pouco de paciência. Mesmo que soem estranhas agora, as coisas irão se explicar com o tempo.

Claro que Mauro descreve as cores e formas pro Cássio usando sinestesia. Como mago, ele pode mostrar o que vê literalmente, mas o Cas prefere a audiodescrição, rs. Ter imagens na mente, mesmo que por alguns segundos, pra ele é como sair de um quarto escuro no meio de um bloco de carnaval.

Apesar disso, vocês já perceberam que ele não se comporta como um cego: Isso também será explicado mais na frente.

Mais uma vez (é repetitivo, mas fazer o quê?) a quem leu até aqui, meus agradecimentos. Espero revê-los no próximo capítulo.



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