Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 10
Já falei como detesto flashbacks?




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Mauro tinha se movido, sem acordar. Cássio o deitou no colo, mantendo a mão no braço dele, enquanto procurava mantê-lo confortável. Mas o gato se movia de um jeito artificial, como se estivesse cumprindo um cronograma. Na verdade, nos últimos dias ele ficava tão parado que parecia parte do cenário.

— Claro que é. — E franziu a testa, como se não gostasse de algo no ar. — Espera, fique parada aí.

— Mas que di...— Ele pôs o dedo nos lábios, e eu calei. Cas fez um chiado estranho, e ouvi o barulhinho de folhas. Lentamente, uma jararaca de uns dois metros rastejou pra longe.

— Como você sabia? — O Cascaboy era uma espécie de Demolidor tupiniquim, só pode. Como diabos ele sabia do bicho? Radar? Câmera térmica? Protagonismo?

— Eu sei onde está tudo que estraga, Denise. E tudo estraga, mais cedo ou mais tarde. Inclusive os seres vivos. Mas com eles é... diferente. Por exemplo, eu sei que aquele é o Xavier porque decorei que ele é um jovem com o ombro direito ruim, e os pés cheios de cicatrizes. Sei que é você...

— Tá bom, já entendi. Não preciso dessa tomografia mágica, obrigada.

Ele completou, como se fosse óbvio — ...Pela voz, Denise. Você não se machucou muito por aí, mas não para de falar. Também tem todos os dentes, isso é meio raro hoje em dia.

Por reflexo, cobri a boca com as mãos. Isso nem é invasivo ou arrepiante, não é? Será que nenhum dos dois sequer conhecem o significado de privacidade, espaço pessoal, qualquer uma dessas coisinhas sem importância?

(Sim, estou ouvindo as risadas de ironia. Tudo que vai volta, há, há, há.  Posso continuar?)

— Você ia falar do que aconteceu com você e o Xavier. Continua.

Suspirei. Descanse em paz, noção do Cássio. Sua vida não foi longa, mas todos nós (ainda) sentimos sua falta. — Você sabe que eu sou adotada, não é?

— Não, não sabia.

— Meu nome nem era Denise… Era (argh) Creuza Maria, pode? E eu sou… era feliz com meus pais adotivos, mas tinha curiosidade de saber por que me deram pra adoção. Quero dizer, alguém diva e necessária como eu? Pus minhas habilidades investigativas em ação, e descobri alguns parentes numa cidade próxima de Sococó da Ema, pra onde o pai do Xaveco ia a trabalho no final de semana.

“Xaveco descobriu, e convenceu o pai a nos dar uma carona. Chegamos, batemos a cidade inteira, pista falsa. Seu Ximenes nos encontrou e estávamos na estrada quando aconteceu.”

Não, eu não falaria dos dias presos no carro, do terror daquelas coisas passando nas janelas, dos gritos. Nunca.

— Finalmente escapamos barranco abaixo, pra uma mata próxima. Seu Ximenes foi escoteiro, ainda sabia muita coisa. E tinha… tá, vou falar. Tinha um boitatá naquela mata, e os zumbis não chegavam perto.

— Boitatá? Serpente de fogo?

— Sim. Sei que parece besteira.

— Claro que não. Só nunca encontrei nenhum. Já encontramos um bocado de coisa esquisita por aí.

— Não chame o Robson de coisa esquisita, ok?

— Você chamou o boitatá de Robson? — Cássio tentou não cair na gargalhada, não conseguiu.

— Boitatá é espécie. Eu tinha que chamar o Robson de alguma coisa e “boitatá que salvou nossas vidas” é muito comprido. Além disso, ele tem mesmo cara de Robson. Ele não me engoliu, então acho que gostou. Em resumo, passamos uns anos morando com o Robson.

— Você morando na mata... Minha imaginação não vai tão longe assim. — Ignorei o desaforo e continuei a história.

— De vez em quando passava o Bravura por lá… É verdade, você não conhece. É algo como um cowboy místico do interior. O sujeito nos dava notícias, e o mundo estava perigoso demais. Fomos ficando, e tudo que podíamos fazer era torcer pra todos estarem bem. Xaveco estava feliz, ele gosta mesmo dessas coisas rústicas, e curtia muito passar tempo com o pai. Eu também estava, e o Robson gostava de companhia. Uma que ele não precisasse queimar, pelo menos. Ele me ensinou quase tudo que sei sobre fogo.

Gente, há anos eu não pensava naquilo. Tanta coisa acontecendo tinha seu lado bom, impedia que eu olhasse o que minha vida virou e me transformasse numa bolinha de tristeza. Mas Denise se apega à verdade, doa a quem doer, e eu precisava continuar.

— Foi um dia normal, quando aconteceu. Já conhecíamos cada palmo do lugar, não ficávamos juntos o tempo todo. Então, quando o dia acabou, eu e Xavier estávamos nos empanturrando de frutas, esperando pelo Seu Ximenes, que tinha ido buscar água.

Respira, Denise, força na peruca...Droga, a quem quero enganar? Isso ainda machuca. Muito.

— Quando finalmente o encontramos, ele já tinha perdido a consciência. Picada de cobra. Não pudemos fazer nada. Robson… Ele não funciona do mesmo jeito que um mortal. O lindo nunca achou que tivesse algo errado. Mas o Xavier levou muito tempo pra se recuperar. No terceiro ano, mais ou menos, fomos embora. Vagamos muito tempo, até chegarmos a uma cidade pequena onde Maria Cebolinha, Eduardo e os pais dela estavam numa viagem. Aninha também estava lá, trabalhando com uma excursão infantil.

A careta que Cássio fez teria sido engraçada. — Puta que pariu, por isso eu nunca a achei. Revirei as cidades daqui atrás dela por anos, o porra do Careca nunca falou que a família tinha viajado. Merda!

Ele virou pra mim, como se não soubesse bem o que fazer do que sentia.  

— Os pais do Cebola já tinham falecido, e ela estava… Recém-casada com um fazendeiro metido a besta. Casou com ele cinco anos atrás.

— Mas cinco anos atrás, ela teria...Porra, catorze! Quantos anos tem o filho da puta?

—Vinte e três na época. Segura a onda, boy do armagedom. Ele tá morto.

— Eu tinha prometido que iria cuidar dela, Denise. E agora você me diz que ela estava refém duma porra de pedófilo?

Denise, querida, você era melhor na escolha de palavras. — Não te culpo, a gente entendeu assim também no início. Pensamos que o Genésio tinha raptado-a e matado os pais dela, ou algo assim. Ela o convenceu, Cas. O seduziu com a inteligência, pela firmeza de decisão. Tinha um jeito de persuadir que fez muitos dos mais velhos a obedecerem. O fato de que os planos dela davam certo também ajudava.

Sim, Cebola. Os planos da sua irmã davam certo o TEMPO TODO. Você deveria ter tido algumas lições com ela, viu?

— Ela já era totalmente amoral, mas protetora. O que fizesse o grupo sobreviver era bom: nesse sentido, a união com o Genésio foi um lance espetacular. O canalha tinha terras, gado, homens armados... Ele a admirava de verdade, a garota tinha um sorriso doce e uma mão de ferro. A união dos dois deu uma força insana pros Filhos da Tormenta. Eles eram meio que um pacote.

(Sobre as outras coisas que os dois faziam juntos, amores: NÃO. Me recuso a pensar nisso. Não importa que ela também quisesse, ela tinha catorze anos. CATORZE. Eu o teria esganado com as próprias mãos, se pudesse.)

Mesmo no luar fraco, eu conseguia ver o Cássio cada vez mais espantado, como se eu estivesse descrevendo um acidente de avião prestes a acontecer.

— O que ela organizava funcionava. Há uns quatro anos, alguma coisa mudou. Olhando agora, tudo estava cada vez mais errado, mas nós confiávamos nela e acho… que não pensar sobre o que estávamos fazendo era mais fácil.

Acho que todos nós, os que crescemos numa época mais pacífica (fora os monstros gigantes, fantasmas, aliens… ah, você entendeu) ficamos envergonhados quando entendemos o que estava rolando. A diva mirim queria mais que segurança, paz e o fim dos obsessivos. Queria o mundo. Queria a droga do mundo inteiro, igualzinho ao irmão.

— Por que você fala mais nela? Os quatro não são os líderes?

— Oficialmente são, mas os três obedecem a ordens dela. Principalmente o Nero, o canalhinha só respira se ela deixar. — expliquei — Quando a ficha caiu, nós tentamos impedir. Eu, Ana e alguns outros dos mais velhos. A doida já tava na vibe da Nansei Tannister, completamente fora da casinha. Xav passava a maior parte do tempo longe, combatendo zumbis, então mal notou as mudanças. A garota só falava do irmão, de superar o verdura. Mesmo o Genésio achava que ela estava indo longe demais. Um dia, o Gené-

— Pare, Denise. — A voz baixa e calma não era de Cássio. Concentrada como eu estava em ser sincera, como nunca fui nesses nove anos com ninguém, não tinha percebido que Mauro e até o Xavier estavam acordados, me ouvindo falar.

Cas recuou um pouco, como se eu fosse a assustadora da paróquia.

Mauro continuou a falar. — Maria é líder dos Filhos da Tormenta? Há quanto tempo?

— Eles não admitem, mas ela é sim. Bigby, Lady Shih é a fundadora. Sempre foi a líder. 

Mau e Cas ficaram sinistramente quietos, como se eu tivesse acabado de tornar tudo ainda pior.  — O nome que Maria usa é Lady Shih? 

Não sei por que o espanto. Já falei do codinome da louca pra eles... Espera. Eu disse a eles, não foi? Não lembro, mas com certeza se eu não falei, o Xaveco falou, ele detesta chamar a sociopata pelo nome.

— Não, não falaram.  Costuma vestir jaqueta e blusa de seda? Cabelo bem comprido?

— Isso mesmo. — Mas como ele…? Ah, droga. Droga, droga, droga. 

Cássio quase não respirava, o queixo caído de espanto. — Eu podia… Cacete, eu podia ter…

Começou a tatear o chão ao redor, a testa franzida. Como se fosse ensaiado, o boy magia partiu pro resgate. Reconheci algumas palavras. Cruzes, Mau tá conjurando uma camisa de força pro Húlqui ou o quê?

— Eu vou chegar perto, ok, Cas? Vai ficar tudo bem — e prosseguiu, sem virar pra nós. — Nós sabemos por que ela tem tanta raiva do Cebola.

***

Pensando agora, eu deveria ter ligado os pontos antes. Ali pela segunda página. Estava tudo na minha cara o tempo todo. Mauro segurou Cássio pelos ombros até a respiração dele estabilizar. A voz do ciborgue parecia quase normal quando ele começou a contar a parte deles na história.

— Em nenhum momento nós queríamos ser famosos, ou importantes; tudo que eu queria era poder pra destruir os obsessivos e poder ter uma vida mais normal, talvez chegar aos trinta… Só isso. Mas conforme nós íamos conseguindo, tudo ficou muito grande, e estranho pra cacete. As pessoas traziam presentes… Orações! Você consegue imaginar como foi bizarro as pessoas baterem na nossa porta querendo que nós déssemos sorte no amor ou vida longa?

— E nem adiantava explicar que nós não éramos nada disso — acrescentou Mauro. — Nós nos mandamos, fizemos uma casa num lugar onde Nina e as dríades podiam nos dar cobertura e espalhamos que ninguém podia entrar. Criamos o Cebola, Cas se vestia como ele de vez em quando. Como nunca encontramos a família dele, achamos que ficaria tudo bem.

— Mas sempre aparecia alguém.  Magos poderosos, algum idiota tentando provar seu valor… Líderes políticos. Uma das pessoas que nos achou foi Lady Shih. Na verdade, ela não aceitou nenhum não como resposta, queria falar conosco de qualquer jeito. Eu estava vestido de Cebola, e aquela foi uma semana de merda. Nós dois estávamos muito putos com alguma coisa… O que foi mesmo?

— Las Vegas.

O semblante dele fechou. Esperamos, ninguém iria explicar mais que isso. Mauro continuou a falar. — Lady Shih se apresentou, numa roupa elegante e com uma maquiagem pesada que a fez parecer mais velha que nós. Falou das coisas que conseguiu, dos territórios que dominava, e soava como se estivesse declarando a merda do Imposto de Renda. Eu não a reconheci. Não lembro se ela falou dos Filhos da Tormenta.

Cássio murmurou, abatido. — Se eu estivesse prestando atenção... Mas só sentia o cheiro da maquiagem, a voz forçada. Eu parecia estar olhando pro rosto dela, mas eu já era cego, caralho. Eu viro pra voz das pessoas — rosnou pra ninguém. — Maria entendeu que o irmão mais velho a estava rejeitando e sendo estúpido… Que nunca foi atrás dela de propósito.

— O tempo inteiro tinha alguém nos ameaçando por alguma coisa, nem teria lembrado disso agora se a forma como ela falou não tivesse me deixado curioso — comentou Mauro, enquanto Xavier xingava baixinho o tamanho do nosso azar. — “Aproveite o topo, Cebola, porque vou tomar tudo de você”. Não nos matar, não fazer a gente se arrepender...Tudo. Ela disse tudo.

Xaveco me cutucou e perguntou incrédulo. — Estamos nessa puta confusão porque ela tá com raivinha do irmão? É sério isso?

Tadinho do meu namorado, é meio devagar às vezes.

— Nunca duvide do que uma garota magoada é capaz de fazer pra se vingar. Lembra do Cebola: “Vou dominar o mundo pra poder namorar a garota que já me quer”?

Além disso, se ela realmente queria o mundo, tinha que começar acabando com a oposição. O “Cebola” era a ameaça mais próxima, então tirá-lo do jogo era unir o útil ao agradável.

— Qual é o problema dessa família, porra? Tudo eles querem resolver com a dominação mundial? Que culpa a gente tem?

— Só aceita, gato. Só aceita.

Cássio murmurou: “Céus, isso é patético. Chega. Fiz merda, estou ficando maluco, mas vou me controlar. Eu consigo.”

Xaveco olhou pra mim inseguro, e eu acenei com firmeza. A verdade é que eu não botava muita fé nesse lance do controle do Cascaboy (estava há uns quatro dias com ele, e o homem já tinha surtado mais que a Magali de dieta), mas como não tínhamos nenhuma outra opção, segue o jogo. Mauro também tentava parecer tranquilo, então todos nos ajeitamos para dormir, exceto o Cas, que voltou ao posto de vigilância.


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Notas finais do capítulo

Gente, não sei dizer de onde tirei a informação de que Denise é adotada. Quase certa que li nalgum ponto da pesquisa sobre ela. Mas sim, o nome da "intérprete" da atual Denise é Creusa Maria (O Concurso das Denises, TM). Como isso não faria sentido em TMJ, então ela se tornou uma adolescente que mudou de nome;

* Bravura é um alter-ego do Chico Bento, que tem diversas habilidades, inclusive viagem interdimensional (pelo menos foi o que foi sugerido no Portal das Trevas). Ele agiu como uma espécie de vigilante após o fim do mundo em Meia Lua;

* Eu gostaria MESMO que casamentos infantis fossem ficção. Genésio (também um personagem de Chico Bento Jovem) já era um canalha antes, o fim do mundo só piorou tudo. Como diabos ele foi convencido pela Maria, nem eu sei.
(e ele teve muita sorte de ter morrido antes; se Mauro ou Cássio ou mesmo a Denise o pegassem depois, tenham certeza que não sobraria nada dele);

* Do seu jeito amoral, Maria gostava mesmo do Genésio. Não foi a mando dela que ele foi assassinado, embora Denise e Xavier não saibam disso;

* Ching Shih foi uma das mais famosas piratas do Mar da China. Comandou uma frota de 400 barcos, e quase 20.000 pessoas. Foi anistiada depois de dar dor de cabeça a meio mundo, e morreu idosa em casa.

A todos que continuam lendo, obrigada. Espero revê-los próximo capítulo.



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