Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 7
Chuva, chuva e...Sim, mais chuva.




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Abri os olhos, e estava no teto da casa do Louco, enquanto Denise me desenrolava de ataduras de linho. Um chumaço de alguma coisa fedida me amordaçava, e pela cara vingativa do vampiro, deviam ser as minhas meias. Tentei cuspir a mordaça, Dê puxou aquele negócio da minha boca com força. Finalmente fiquei em pé, alerta, o coração martelando o peito, todo o mundo mais colorido e definido do que antes. O que diabos eu bebi? O lobisomem abaixou pra um bote, a cauda balançando de excitação.

— Posso pegá-lo de novo? Posso, Zé Vampir?

— Coroa de Rá, Lobi! Estragarás minhas ataduras! Vai-te daqui, animal! Xô!

— Dê, aquele café tava batizado com o quê? Cocaína?

— Nah, era só cafeína. Mas deu um sabor muito bom. — Zé Vampir quase lambia os lábios olhando pra mim. Toquei o pescoço, senti a leve ardência na pele.

— Peraí… Você me mordeu? — O vampiro concordou com a cabeça, satisfeito. — Ele me mordeu, Denise! Que merda aconteceu aqui?

— Finalmente acabei. Toma, Senhor Múmia. Obrigada.

— Chama-me Lorde Ramsés, garota. Mas agradeço-te a gentileza. E quanto a tu, biltre… — A múmia me incinerou com os olhos. — Espero que Ammit devore-te o coração bem devagar.

— Vamos embora, Muminho!

— Estais vendo? É por vossa causa que esses mortais insistem em chamar-me de qualquer coisa! Ninguém tem respeito pela nobreza nesse cemitério! Lady Sarah, esperar-te-emos lá fora. Em vinte minutos Lady Morte chegará com o ônibus, e a senhorita sabe que ela não vos esperará.

— Sim, claro, Lorde Ramsés. — E pra nós dois. — Ele aprendeu português no Segundo Império, acho, e se recusa a usar qualquer coisa mais popular que isso.

Lamentei de verdade ter passado todo o dia fazendo… o que porra eu estivesse fazendo, pra acabar brinquedo de cachorro envolvido em faixas e lanche de vampiro. Sarah me olhou compreensiva. — É, Xavier, não deu pra gente conversar dessa vez, mas vamos nos encontrar de novo.

— Se você não estiver querendo dizer depois de eu morrer aos oitenta na minha cama, não me conte, ok? Minha cabeça não aguenta mais por hoje. Mas falando sério, você parece bem. Você tá bem?

Eu realmente queria saber. Ela era… quero dizer, é legal.

— Tenho amigos, um esposo excelente, e o cemitério é muito divertido. Olhando por certo lado, tive muito mais sorte que vocês. Mas tem alguma coisa que você quer me perguntar.

Me mexi sem jeito. Estava tão na cara assim? — Minha mãe. Meu irmão. Você os viu por aí?

— Eles seguiram em frente, Xaveco. Eles estão bem.

— Tudo bem. Acho que eu já sabia. Obrigado, Sarah. — Ela virou pra Denise, obviamente me dando alguma privacidade. Minha namorada olhou pra mim em choque.

— Irmão? Você tinha um irmão?

— Pelo menos... ia ter. — Mais tarde. Vou lidar com isso mais tarde. Graças a Deus ela não insistiu. Olhou de volta pra Sarah atordoada, e a fantasma a olhava com intensidade, como se Denise precisasse lembrar do que iria dizer a seguir.

— Coragem. Esperança. Sacrifício. Essas coisas realmente são importantes.

— Frase de autoajuda a essa hora não, né, gata do além? Sei que você pode fazer melhor. E toda essa coisa de sacrifício, sabe... não é pra mim. — e acrescentou, num sorriso interesseiro. — Escuta, Dona Morte não consegue uma carona pra gente de volta pro Limoeiro não? Toda aquela poeira da estrada está acabando com meu cabelo!

Sarah riu alto, o tipo de som feliz que eu não ouvia há uma vida inteira. — Sabe, você poderia perguntar a ela.

— A louca! Você faz essas piadas porque…

Perguntar o quê?

Sim, ela mesma. Putz, tô feliz que minha namorada não possa ler meus pensamentos agora. Eu não me importo de morrer jovem, se é essa mulher quem vai me levar. Meio baixinha, com olhos cheios de gentileza e alguma coisa no sorriso que me faz ficar feliz também. Claro, vestida de preto, com um cabelo meio espetado e maquiada, parecia mais uma punk gótica, e as roupas justas a deixavam...Porra, se eu abrir a boca agora vou dizer bobagem e aí será só subir no tal ônibus, porque Denise com certeza vai me matar. Atrás de nós veio o Licurgo com uma bolsa feita sob medida pra uma foice enorme.

— Prontinho! Afiada, polida e equilibrada.

A morte abriu o zíper e expôs a arma, testando o peso, pensativa. — Está perfeita. Obrigada.

Então virou-se para nós, a lâmina ainda oscilando na mão como se estivesse ansiosa pra testar o fio. — O que você queria me perguntar, Denise?

— Absolutamente nada, Senhora...Senhorita... Alteza... — Ela me puxou pra trás, tremendo, e de volta pra realidade. — Estava inclusive comentando aqui com minha amiga como eu jamais atrapalharia seus deveres. E como está ficando tarde, eu e o Xavier aqui precisamos voltar. Então Senhora, Licurgo, Sarah...

Saímos na maior velocidade possível sem correr. Estávamos no meio da rua quando a temperatura começou a despencar. O vento ficou mais intenso, e pisamos na outra calçada quando o primeiro trovão ecoou. Puxamos as capas e entramos na floresta.

***

— Essa chuva não passa! Vamos parar, Dê! Precisamos montar um abrigo! — Ela nem virou e continuou andando.  — Denise, você me ouviu? Nós precisamos parar!

Outro raio. Foi tão perto que eu senti o trovão além de ouvi-lo. Cacete, isso está ficando ruim bem rápido. Segurei no braço dela, pra chamar sua atenção. Ela agarrou meu braço e continuou a andar.

— Não vamos dormir nessa floresta, amor. Precisamos andar até chegar perto da casa do Mauro e do Cas.

Comecei a procurar a ameaça. Ela estava apavorada, só me chamava de amor daquele jeito quando pensava que podia não me ver de novo. Agarrou meu rosto e puxou pra ela.

— Não olha pra ela, Xavier! Só. Anda. Pra. Frente!

— Vai acabar caindo um raio na gente! Precisamos sair desse caminho aberto até melhorar...— Ela me interrompeu, quase fora de si.

— Mas nós não vamos! Você acha que essa tempestade é natural? Não vai melhorar! Aquela é uma Pisadeira, porra!

Puta que pariu. Dessa vez irritamos de verdade o baixinho sádico. Uma Pisadeira é uma velha esquelética, com o nariz curvo e o péssimo hábito de pisar no peito de pessoas que dormem até sufocá-las. Ela é estupidamente pesada e forte, e não gosta de ser surpreendida. Denise tinha razão. Encharcados e cansados, ainda assim precisávamos seguir.

Andamos a noite inteira, eu ainda alerta de cafeína e medo, Denise animada apenas pelo desejo de chegar. Apoiou-se no meu braço, teimosamente dando um passo, depois outro. A chuva torrencial continuou, mas o céu passou de negro a cinza-chumbo. Ela oscilava.

— Denise, me deixa te levar. Você tá exausta.

— Se eu parar, eu vou dormir, e aquela coisa vai dar um jeito de… você sabe. Não quero reencontrar a Senhora da Foice tão cedo.

Maldita língua. Só caminhar em linha reta, eu disse. Não pode ser tão difícil. Agora parávamos a cada duzentos metros pra pular e fazer algum exercício. A chuva empoçava nos sapatos, e sentia frio de verdade. Olhei pra ela, preocupado. Menor que eu, ela tinha menos resistência ao frio, e não tinha tomado aquela caneca de café do cão. Ela estava de olhos fechados, meio caminhando, meio caindo. Ah, não. Com toda a chuva, podia sentir a velha dos infernos quase na nossa nuca. Segurei o braço dela com mais força. Denise não reagiu.

— A culpa é sua!

— Mmhum… quê?

— De todas as suas ideias ruins, essa foi a pior delas, Denise!

— Cala a boca, Xavier. Tô muito cansada pra brigar.

— Ah, você vai me ouvir! Sempre tô seguindo suas maluquices, mas essa foi demais! Estamos aqui no meio do mato, fodidos até a alma, por causa dessa sua obsessão estúpida de peitar Lady Shih!

— Você acha que eu queria estar nesse fim de mundo? Ela iria nos matar, esqueceu? Como fez com todas aquelas pessoas! Ela quer o mundo, idiota! Mesmo que a gente não soubesse como ela matou o pai, todo mundo que sabe da infância dela vai sumir!

— Por que é muito melhor morrer aqui feito um bicho, com lama até os tornozelos no meio do mato, não é?

— Então volta, seu burro! Volta pra Lady Shih, finge que ela ainda é a menina que a gente conheceu e fica com o rabo entre as pernas, esperando a doida não se aborrecer contigo e te dar de prêmio pro Nero de novo! Eu vou lutar contra ela enquanto eu respirar!

Mexer naquela memória reabriu feridas que eu nem lembrava que estavam lá. Levantei os braços, recuando.

— Desculpa, Denise. Eu passei do limite.

— Sim, você passou. No que você estava pensando?

— Precisava te manter acordada. Aquela megera ainda está atrás de nós. Você tava andando e dormindo. Exercício não estava funcionando mais.

— Sério? Você começou uma briga pra me acordar? — Concordei com a cabeça.

— Era o que eu tinha. — Ela não sabia se continuava a discutir, ria ou me dava uns tapas. Provavelmente faria os três, se não estivesse tão frio.   

— Às vezes você me surpreende. Funcionou. Vamos andando antes que o efeito passe e você precise começar uma DR pra me manter viva.

Não precisei começar nada. Ela ficou um pouco mais leve, e piadas também funcionaram. Soubemos que chegamos quando a chuva e o vento pararam. Eu tremia sem controle, com frio a ponto de nem pensar direito, e as pernas pareciam pedra quando senti o sol.

— Che-chega-ga-mo-mos. Gra-ga-ga...ças...— Foi fechando os olhos e caiu. Se eu não estivesse olhando pra ela, teria batido no chão. Tentei levantá-la, não consegui. Olhei ao redor, a Pisadeira tinha sumido.

Ficamos na frente da casa nem sei quanto tempo, o chão coberto de flores de ipês amarelos e brancos. Como eu não reparei que o lugar era tão bonito? Denise estava gelada, e não tremia. Isso era bom ou ruim? Eu… acho que deveria fazer alguma coisa. Talvez, se eu fechar os olhos um pouco, eu consiga lembrar. Não, não, tenho que ficar acordado e… E… O que mesmo? Tinha algo a ver com roupas...

Acorda, Xaveco. Você e Denise precisam trocar essas roupas molhadas.

Tudo bem. Alguém nos ajudou a chegar até o quarto, e eu tirei a roupa, joguei num canto, pus uma calça seca, troquei a roupa de Denise e tentei levá-la até a cama. Acho que vou cair. Alguém me segurou, e eu queria dormir ali mesmo.

Ainda não, Xaveco. Você precisa chegar na cama. — Não me sentia bem assim há… nem quero pensar.

 — Me deixa ficar um pouco mais. Está tão bom aqui. — Tão familiar. Cheirava como meu pai. Cedo demais, fui deixado na cama ao lado da minha namorada. O alguém moveu meu braço pra cima dela e nos cobriu com alguma coisa peluda e pesada. Puxei Denise pra mais perto.

Pronto. Assim vocês vão ficar aquecidos. Deus os abençoe, meninos.

Acordamos com o estrondo. Cacete, estou mesmo na casa do Mauro e do Cas, na cama. Agora não importa como, estamos sob ataque. Denise puxou os pergaminhos e o isqueiro, saquei minhas armas da mochila e corremos pra fora.

Animais gigantescos, dríades e ninfas tentavam conter os incêndios e destruíam os últimos mercenários na floresta. Podia reconhecer Nina acima da batalha, coordenando os esforços, contendo todos os defensores atrás de uma linha imaginária. Não levou muito tempo, e só havia os ruídos dos animais e das ninfas, lutando contra o fogo.

Na direção das ruínas, um grupo ficava cada vez maior. Uma loba do tamanho de um cavalo rosnava e olhava atentamente para o outro lado, com hienas, um grupo de leões e três elefantes, todos… esperando. Havia inclusive vários sobreviventes do ataque à cidade, rilhando os dentes de fúria. Por que eles não avançavam?

— Vou ajudar com os incêndios, lindo. Não faça nenhuma loucura, volte vivo pra mim.

— Te amo, Dê.

— Eu também. — Ela correu, e os focos próximos começaram a extinguir-se.

Abri caminho entre os combatentes que se amontoavam, até chegar ao grupo que esperava. Focado como estava à frente, tropecei em algo e quase caí de cara. Um gato preto me encarava, severo.

— Fique aí quietinho, seu… Damas da noite, é o secundário! Você é o Cantada… Opa, não era esse o nome… Xaveco, não é?

Porra, Secundário?  

— Eu te conheço?

— Você era o roadie da TMJ! Só tinha o cabelo mais curto e era mais magro. Tomar anabolizante faz mal, sabia?

— Depois a gente conversa, gatinho. Preciso fazer uma coisa. — A pata no meu ombro tinha o peso da mão de um homem adulto.

— Gatinho é a sua avó, me respeite que estou salvando sua vida — e continuou, mais melancólico. — Não saia do meu lado, garoto. A Deusa sabe que vou precisar de companhia agora.

— O que está acontecendo? — perguntei, enquanto levantava e sacudia as folhas. O gato subiu no meu ombro, os olhos fixos à frente, murmurando algo que eu não compreendia bem. Terminou, e suspirou cansado.

— Agora estamos seguros, ou o mais seguros possível. Quanto ao que está acontecendo, melhor ver por si mesmo. É o fim de um homem bom.

Levei um tempo pra entender o que via. Ao contrário da confusão lá trás, todo o espaço à nossa frente estava silencioso. Todos os soldados da linha de frente, talvez uns cem, estavam em pé, imóveis. Um homem com máscara de lobo cantava comandos mágicos, com uma suavidade hipnotizante. Na frente dele, o “Cebola” só agitava as mãos, comandando uma orquestra invisível.

Os dois caminhavam entre os soldados, e sequer olharam quando passaram por um homem cujo lança-chamas o devorava. A granada de um outro explodiu, e um tremor percorreu a plateia. O “Cebola” parou no centro, ergueu a mão e a fechou.

Estávamos a talvez dez metros dos soldados mais próximos. Começou a escorrer sangue do nariz de cada um deles, alguns dos ouvidos. Nenhum se mexeu. Nenhum gritou.

Todos caíram como bonecos de pano. Uns poucos convulsionavam. Os dois, já muito à frente, continuaram cantando e regendo o extermínio. Olhei mais à frente, e a imobilização se espalhava como uma onda. As tropas atrás começaram a atirar neles, e os primeiros projéteis desviaram pra cima. O homem que vinha à frente gritou, e o ar encheu de xingamentos e cliques de armas enguiçadas.

Eu estava horrorizado. Eu já tinha estado em combate antes, mas aquilo era um massacre. Mesmo as hienas já não pareciam ansiosas pra avançar.

— Pare, garoto… — suplicava baixinho o gato. — Vocês já conseguiram. Nenhum deles voltaria aqui nem com o Inferno atrás deles. Damas da Noite, os façam parar…

Quem quer que ainda estivesse atiçando os soldados, ou finalmente entendeu, ou perdeu o controle do exército. Começou uma debandada, os retardatários caindo como folhas.

O mascarado de lobo ergueu a cabeça e uivou. Um urro ergueu-se dos animais ao nosso lado, e todos começaram uma corrida, ansiosos para alcançar os invasores. O gato negro esperou vários minutos, então desceu do meu ombro e seguiu o grupo.

Eu não consegui. Por tudo que é mais sagrado, o que foi aquilo? Suava frio, e meus pés pareciam colados no chão. Talvez fosse a exaustão, mas minha mente não absorvia uma centena de pessoas morrendo daquela forma, com uma música e um fechar de mãos arrancando todo mundo da tomada. A expressão deles… Acho que nunca mais consigo fechar os olhos sem lembrar.

— O que tá fazendo parado aí? Eu disse pra não sair do meu lado!

— Eu não vou chegar perto dos mons-

— Não se atreva. Ninguém fala assim do meu aluno na minha frente. Venha logo.


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Notas finais do capítulo

Curiosidades:

* Realmente existem múmias egípcias no Brasil, a maior parte comprada por D. Pedro I. A maior parte foi destruída no incêndio do Museu Nacional;

* Na mitologia egípcia, há o Ammit, monstro responsável por devorar o coração dos impuros;

* No cânon, Xaveco não tem um irmão, mas sei que teria sido um ótimo irmão mais velho;

* Dona Morte nessa história é totalmente inspirada na Morte de Sandman (Vertigo). Ela é linda e uma simpatia só.

(A quem tiver $$$: tenha o compilado Morte, da Vertigo. Mesmo que não conheça o universo Sandman do Neil Gaiman, vale MUITO a pena)

* A reação do Xavier não é de amor romântico: como todo soldado em guerra, ele tem uma relação muito próxima com a morte, mas não é aquela bobagem do Thanos. O Xav só não sabe disso;

* A Pisadeira é uma lenda mais conhecida em São Paulo e Minas Gerais, e geralmente descrita como na história;

* Fazer exercício encharcado numa temperatura muito baixa é um jeito bem rápido de perder calor do corpo. Não é preciso nevar pra se morrer de frio;

* Xaveco foi mesmo roadie da TMJ, e Bóris lembra disso do aniversário de 15 anos da Marina.

Mais uma vez, muito obrigada por lerem até aqui, e espero vocês no próximo capítulo.



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